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A Textura das Nuvens (Crítica: O Fabuloso Destino de Amélie Poulain /

2001)

Imagine uma vida feita de açúcar.

Imagine mãos feitas de açúcar.

Sinta o cheiro doce, não do açúcar.

Escolha vidas e com suas mãos, transbordando de açúcar, toque em todas elas.

Agora voe...

“Tem coisas que a vida não muda, tem coisas que a gente quer mudar”

Fábulas. Um mundo construído por um diretor totalmente alheio a essa espécie de obra.
O diretor francês Jean-Pierre Jeunet estava acostumado com obras mais sombrias como
Delicatessen (1991) e Alien – A Ressurreição (1997) até o dia em que uma nova
lâmpada acendeu em sua mente e ele escreveu O Fabuloso Destino de Amélie Poulain
(Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain. França, 2001).
Fabuloso mesmo. Surpreendente, doce, único, singelo e, ainda, poderia ficar aqui
citando madrugada afora mais um milhão de bons adjetivos para definir essa obra.

Sim, é Cinema Francês. Algumas pessoas têm certo receio com essa terra que já lançou,
pelo menos no mundo cinematográfico, uma série de gênios, como Truffaut, Resnais e
Godard. Cinema Francês é parado? É. Cinema Francês é cansativo? Pode ser. Mas,
como é possível ver em qualquer tipo de Cinema Nacional, tudo depende do que
procuramos. As características do Cinema Francês são todas tiradas do mundo das artes
(onde a maior parte dos filmes do país foca) e retratá-las sem intensidade, sem reflexão
e com mão leve soa muito contraditório e infiel. Daí pensei: Antes de partir para
Truffaut, Godard, Catherine Deneuve, Jeanne Moreau, porque não o despretensioso
Amélie Poulain? Para resumir, trago a obra de Jeunet para desmistificar o Cinema
Francês na mente de algum iniciante no mundo do Cinema ou até num cinéfilo com
profunda queda pelo Cinema Ianque. Aqui a arte francesa consegue ser leve, bobinha
(tente achar o melhor sentido para essa palavra), emocionante, carinhosa. É uma mão,
transbordando de açúcar, dentro do nosso coração.
Escrito e dirigido por Jeunet, Amélie Poulain chegou ao circuito internacional de
Cinema do ano 2001 como o patinho feio (alguns definiam o filme de forma crua:
desinteressante), no mesmo ano conquistou crítica, Goya, César, público (francês e do
resto do mundo), tendo como fim da caminhada no ano, a rendição do Oscar à obra.

Até hoje Amélie conquista uma quantidade incalculável de pessoas, mesmo no Brasil,
tamanha é a viagem proporcionada pelo filme. E isso é sublime, faz com que
acreditemos na gente como humanos, como protetores, como seres capazes.

Amélie Poulain (interpretada por Audrey Tautou, força física impressionante) cresceu
em meio as paranoias dos pais. Examinada pelo próprio pai, ainda criança, Amélie é
erroneamente diagnosticada como uma menina com problemas cardíacos muito sérios.
Por isso, Amélie foi isenta de estudar em escolas como qualquer outra criança de sua
idade, cresceu sozinha, sem amigos (sua melhor amiga trata-se de uma câmera
fotográfica). E nesse colapso neurótico, Amelie cresceu em completo estado de
voyeurismo. Sabia da vida e das pessoas somente o que ela pôde observar.

Em função de uma infância reprimida, Amélie construiu um castelo em sua mente e ali
abrigou os mais diversos sonhos e fantasias. Imaginação fértil é pouco. É uma roseira
que nunca morre, dali germinou tudo o que Amélie pensa sobre o mundo e tudo o que
ela pode e vai fazer por ele.

Já adulta Amélie muda-se para Montmatre e vai trabalhar como garçonete. Um dia, no
seu apartamento, a jovem parisiense encontra atrás de um azulejo solto, numa caixinha,
as memórias da infância de um garoto que supostamente teria vivido ali, naquele mesmo
apartamento, nos anos de 1950. Após encontrar o senhor (que já aparentava ter mais de
50 anos) e ao ver a reação dele ao receber aquele tesouro, Amélie encontra uma nova
razão de viver: ajudar todas as pessoas que passam pelo seu caminho. Amélie pode ser
encarada como uma heroína, daquelas mais simples possíveis, sem grandes poderes e
tendo como única arma a sua gloriosa imaginação.

Das formas mais inusitadas, a jovem vai ajudando seus iguais. Um casal improvável,
mas que sua junção traria benefícios para uma infinidade de pessoas; um colecionador
de fotos 3x4 (o ótimo Mathieu Kassovitz); um verdureiro rechaçado pelo seu patrão;
uma senhora abandonada pelo marido. E nem tudo caminha com a justiça, na verdade,
quase nada caminha com a verdade, mas, com tudo que Amélie julga ser certo. Da ajuda
ao colecionador de fotos 3x4 surge uma paixão singela e surpreendente, que rende os
melhores momentos do filme: mistura-se comédia, romance, aventura e suspense.

Jeunet acertou em quase tudo nessa obra: na escolha dos atores; na direção de arte, que
é fabulosa, desde a explosão de cores até o figurino, hora, inusitado; nos efeitos de
câmera, esta que nunca deixa de ser ágil e reveladora; na construção de um roteiro
inovador, gótico e surreal, formando essa verdadeira fábula; na apresentação física e
psicológica das personagens e no narrador, que soa ser o grande amigo de Amélie.
Como se a câmera ganhasse voz e resolvesse contar a vida da senhorita Poulain.

O que merece cem capítulos à parte é a trilha sonora de Yan Tiersen. As composições
de Tiersen não permanecem apenas na cena. Tem momentos que a música para de tocar
(raros, pois o filme é quase que inteiramente pontuado pela Valse d’Amelie), mas, que a
gente de tão imerso na história e na doçura da trilha, continuamos com todos os toques
das canções na cabeça. É uma trilha que sobrevive após a projeção da película.
Amélie Poulain é esse lado mais leve, menos crítico, menos preocupado do Cinema
Francês. Humano na sua veia mais profunda, fantasioso na sua primeira aparição.
Depois de assistir é como se tivéssemos finalmente descoberto a sensação de deitar
numa nuvem.

“Pudera eu sentir, sorrir, e ver o sorriso na face de todos que espero que sintam”.

Desculpem-me pela cópia, meus caros.

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