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23/03/2023, 01:52 ConJur - Marcelo Buhatem: Risco da Justiça (totalmente) virtual

OPINIÃO

O risco de uma Justiça (totalmente) virtual. A hora


do retorno
22 de março de 2023, 19h29

Por Marcelo Buhatem

In Medio Stat Virtus. Com esta frase, Aristóteles propunha que a virtude está no meio, na
média ponderada dos fatos. Tal aforismo, sublinhe-se, representa um aspecto importante da
virtude moral. É saber caminhar pelos extremos, sem se deixar seduzir para nenhum dos
abismos laterais. É a busca pela solução razoável, proporcional "em meio" à infinidade de
possíveis respostas.

A pandemia provocada pelo coronavírus trouxe, a fórceps e


por conta das urgências então postas, a necessidade de que
se empreendesse uma imediata readaptação, com reflexos
em todos os setores da sociedade. No Judiciário, No
Judiciário, por exemplo, conhecido por sua estrutura
tradicional e secular, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
regulamentou a realização de sessões virtuais ou audiências
por videoconferência durante o período da pandemia de
Covid-19.

Entretanto, ponderamos, passada a fase mais aguda de tão infausto período, é preciso ter
muito cuidado quando se considera a perspectiva de se consolidar o trabalho remoto como
via exclusiva mesmo após o fim da pandemia.

Com efeito, ninguém estava preparado para lidar com a crise provocada pela nova peste, o
que, de fato, exigiu de todos nós adaptações para que o mundo não interrompesse sua
evolução natural. Uma situação de exceção, não negamos, demandava novas soluções.

Porém, segundo propomos, há que tratar-se aquilo que é excepcional, com o perdão da
tautologia, como excepcional que é, razão pela qual nem todas as medidas adotadas no
período extremo, conquanto alguns reconhecidos benefícios, precisam ser

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permanentemente adotadas ou adotadas em sua íntegra. "Nem tanto ao mar, nem tanto à
terra", diria Aristóteles…

É o caso do Judiciário. Os julgamentos por videoconferência foram a opção viável, naquele


momento histórico, para se assegurar o direito à Justiça mediante o fechamento dos fóruns
e a suspensão das atividades presenciais por causa da necessidade de isolamento social.

Porém, o que foi idealizado como solução em curto prazo, de forma duradoura pode
prejudicar esse mesmo direito à Justiça.

Sem falar na importância econômica do pleno funcionamento que o conglomerado Fórum


atrai, pois, como exemplo, só no Rio passam cerca de 50 mil pessoas por dia em seus
corredores, movimentando restaurantes, bancas, bancos, lanchonetes, lojas etc., que
oferecem emprego.

É preciso entender, ainda, que o Judiciário apresenta uma ritualística própria, que é
fundamental para preservar direitos e garantias processuais. Um dos principais exemplos é
o contato direto da defesa com o réu, que fica impossibilitado em julgamentos virtuais e
afeta a própria dinâmica da audiência.

É inegável que o trabalho do advogado é limitado com as audiências virtuais. A retórica


presencial, por exemplo, tem um impacto muito maior do que aquele que se tem visto nas
videoconferências. Toda a formação adquirida na faculdade é voltada para a performance
nos tribunais e não em uma tela de vídeo.

A própria legislação que rege o trabalho dos magistrados ratifica a importância de


julgamentos in loco. Por isso, é obrigatório que o julgador more na comarca em que atua.
Autorizações para que juízes possam residir em outras comarcas são excepcionais, dada a
importância de se ter uma estrutura que evite o adiamento das audiências.

Nessa discussão, é preciso considerar que vivemos em um país que ainda registra grande
desigualdade, que se reflete na falta de acesso em diversas regiões do país a uma conexão
de internet de qualidade, que é um item básico para a realização de audiências virtuais. Não
ter à disposição uma tecnologia eficiente ou uma conexão confiável implica diretamente em
prejuízo para as partes de um julgamento, colocando em xeque a paridade de armas.

Aliás, atento a tais reclamos, e descortinando uma nova realidade pós pandêmica, o CNJ,
pela Resolução Nº 481, de 22/11/2022, regulamentou a dinâmica dos atos telepresenciais,
sublinhando a presencialidade das audiências, ao dispor que

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"Art. As audiências só poderão ser realizadas na forma telepresencial a pedido da


parte, ressalvado o disposto no § 1º, bem como nos incisos I a IV do § 2º do art. 185
do CPP, cabendo ao juiz decidir pela conveniência de sua realização no modo
presencial. Em qualquer das hipóteses, o juiz deve estar presente na unidade
judiciária." (grifos nossos).

Ainda em boa hora, o CNJ, na mesma resolução, estabeleceu standards que delimitam
quando a realização das audiências se dará na forma telepresencial, por designação de
ofício pelo magistrado:

1º …:
I – urgência;
II – substituição ou designação de magistrado com sede funcional diversa;
III – mutirão ou projeto específico;
IV – conciliação ou mediação no âmbito dos Centros Judiciários de Solução de
Conflito e Cidadania (Cejusc);
V – indisponibilidade temporária do foro, calamidade pública ou força maior.

Por certo, seria inadmissível saber que nas pequenas e médias comarcas estariam presentes,
prefeito, presidente da Câmara de Vereadores, promotor de Justiça, defensor, delegado de
polícia, Polícia Militar, médico, bombeiros, padre, pastor etc., e o magistrado… em home
office.

Neste passo, como que antecipando o espírito de tal resolução, tenho procurado em minha
prática diária como magistrado, atuante perante o 2º grau de jurisdição, prestigiar a
presencialidade nas sessões de julgamento, como consectário do princípio da ampla defesa,
corolário da cláusula geral de tutela da pessoa humana, que impõe aos órgãos judiciais a
fiel oportunização de todos os mecanismos necessários para que o patrono do litigante
possa, efetivamente, cumprir o seu mister, que não se esgota, à toda evidência, na
sustentação oral, mas espraia-se, do mesmo modo, no amplo acesso aos atos do processo, o
que inclui o direito de presença nas sessões de julgamento.

Não se trata, defendo, de mero diletantismo ou superfetação desnecessária, pois que


eventuais questões de ordem, tidas como de somenos importância, podem revelar temas
que se incorporam ao conjunto de atos processuais, como mais um elemento do amplo
direito de defesa, trazendo, em grande número, participações que acabam elucidando
questões que, caso não fossem manejadas, poderia desaguar em nulidades ou injustiças,
aliás, o que apenas corrobora o entendimento do STJ.

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Penso, neste contexto, que assegurar aos causídicos o acesso ao julgamento presencial é
consectário lógico da ampla defesa, inscrita no artigo 5º, inciso 55, da Constituição e revela
conquista civilizatória que não pode receber interpretação restritiva.

Sob hipótese nenhuma, ressaltamos, se quer repelir os benefícios que a tecnologia pode
trazer para a Justiça. Pelo contrário, o Judiciário está atento à forma como a modernidade
traz mais celeridade aos tribunais. Mas, insistimos, passada a fase aguda da pandemia,
concitamos à comunidade jurídica para que reflita acerca desse “novo normal” que está por
vir, sendo preciso ponderar com responsabilidade as mudanças que afetarão o nosso dia a
dia.

Um Poder Judiciário digno e acessível encontra-se nos direitos e garantias individuais do


cidadão, consolidados no artigo 5°, inciso 35, da nossa Constituição. O processo deve
também ser acessível, independente do poder aquisitivo, devendo ser prestada assistência
jurídica gratuita aos necessitados, garantindo aos litigantes o contraditório, e ampla defesa,
dentre tantas outras garantias que não podem ser, de forma alguma, prejudicadas.

No livro Nem Home Nem Office, o CEO de um dos maiores grupos de co-working do
mundo, Tiago Alves, defende que o futuro do trabalho é híbrido. Não há dúvida, porém nos
cabe separar o joio do trigo, e inserir no antigo normal os atos judiciais, processos, temas e
assuntos de maior relevância.

Enquanto não se tem essa verdadeira medida, faz bem o CNJ e a Corregedoria Nacional em
decidir pelo retorno dos trabalhos presenciais, criando, inclusive, um painel onde todos
poderão acompanhar esse retorno. Disse o ministro Salomão:

"Temos notícia que, em muitos estados o que estava acontecendo era uma situação de
quase abandono, principalmente no interior." De acordo com Salomão, além do Painel, que
registrará o retorno ao trabalho e mostrará a retomada das audiências e de todos os atos
processuais, também foi criado um grupo de trabalho (GT) para acompanhar a volta às
atividades no Poder Judiciário.

Juntamente com orientações para os tribunais, o GT — que é presidido pelo corregedor


nacional de Justiça e composto por integrantes de cada segmento da Justiça de todas as
regiões do país — também fiscalizará o cumprimento dos critérios de retorno ao trabalho
presencial, conforme determinação do CNJ.

Chegando ao fim, lembro das virulentas críticas assacadas contra a magistratura, quanto ao
comparecimento nas comarcas somente às terças, quartas e quintas-feiras, no que os
maledicentes se referiam a tal "semana TQQ de trabalho". Pois bem, agora que há uma
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quase institucionalização ou imposição dessa prática, soa contraditório integrantes do


Judiciário criticarem a imposição do comparecimento, pelo menos, nestes dias da semana.

Assegurar que essas garantias se mantenham intactas significa, como alhures proposto, "…
saber caminhar pelos extremos, sem se deixar seduzir para nenhum dos abismos
laterais…" ponderando-se os avanços tecnológicos implementados ao longo da pandemia
com a garantia da presencialidade nos atos processuais, numa atividade contínua,
democrática e dialética. É o desafio e a prioridade na retomada pós-pandemia.

Marcelo Buhatem é presidente da Associação Nacional dos Desembargadores (Andes).

Revista Consultor Jurídico, 22 de março de 2023, 19h29

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