Você está na página 1de 19

1

TRABALHO DOCENTE: UMA CATEGORIA ONTOLÓGICA


José Luís Vieira de Almeida
UNESP
joseluisv@terra.com.br
Teresa Maria Grubisich
Academia da Força Aérea
teresagrub@terra.com.br

INTRODUÇÃO

Neste texto, discute-se, em primeiro lugar, o trabalho, compreendendo-o como


uma categoria ontológica e como uma mediação. Em seguida, examina-se a mediação
com base nas filosofias de Hegel, por meio do texto de Garaudy (1983), e de Marx, por
meio dos escritos de Lefebvre (1979 e 1983). Examinam-se também as formulações de
Lukács (1979 e 1982) e Mészáros (1981). Inicia-se a discussão da categoria em Hegel
que a desenvolveu, passando-se, em seguida, a discuti-la em Marx, que a compreendeu
na perspectiva da Ontologia do Ser Social. Os outros autores a abordaram com base no
referencial marxista.
Na segunda parte do texto, examina-se a mediação para se compreender o
trabalho docente e, a partir dele, desenvolve-se a crítica das expressões professor
mediador e professor facilitador que são bastante difundidas entre os educadores
brasileiros.
Como o enfoque apresentado neste texto não é usual na área da educação,
considera-se importante mostrar as diferenças entre uma abordagem epistemológica e
uma abordagem ontológica. A epistemologia tem por base a relação entre o sujeito
cognoscente e o objeto a conhecer-se. Já a Ontologia do Ser Social está fundada na
relação entre seres sociais que, no caso da prática educativa, buscam ensinar ou
aprender. Em uma relação ontológica, eles não podem ensinar e aprender ao mesmo
tempo, porque nessa perspectiva não se desenvolve a tensão dialética que lhe é vital. A
diferença principal entre a epistemologia e esta Ontologia será explicada quando a
categoria mediação for apresentada.
2

Antes de iniciar-se a discussão, é necessário ainda esclarecer que para Marx a


epistemologia, a ontologia e a lógica têm igual peso, ou seja, uma não é mais importante
ou mais fundamental que as outras. Por isso, o que se pretende neste texto é, somente,
evidenciar o caráter ontológico da relação educativa, sem, por isso, minimizar a
importância da lógica e da epistemologia.

A MEDIAÇÃO

O uso do vocábulo “mediação” tem sido freqüente entre os pesquisadores do


campo da educação no nosso país; e esta freqüência é diretamente proporcional à
imprecisão dos sentidos que ele assume. A palavra mediação pode se referir ao termo
médio de uma relação entre termos eqüidistantes, ou à ligação entre dois termos
distintos, ou ainda à passagem de um termo a outro. Ela pode também dizer respeito à
harmonização de conflitos entre partes ou interesses antagônicos. Fala-se, por exemplo,
no papel do professor como mediador da relação ensino-aprendizagem, ou do caráter
mediador presente na relação entre o conhecimento sistematizado pelas ciências naturais
ou humanas e aquele que o aluno desenvolve no seu cotidiano. Assim, atribui-se à
mediação, o dever ou a possibilidade de igualar os termos (ensino e aprendizagem ou
conhecimento sistemático e experiência cotidiana), dissolvendo as diferenças entre eles.
A mediação é geralmente considerada como o produto de uma relação entre dois
termos opostos que, por meio dela, podem ser homogeneizados, e esta homogeneização
implica equilíbrio entre ambos e, assim, eles deixam de ser opostos. Quando se
compreende a mediação como o resultado, como um produto, a necessária relação entre
dois termos se reduz à soma de ambos, o que os anula mutuamente, levando-os ao ponto
de equilíbrio. Essa idéia concebe a mediação como o resultado da aproximação entre
dois termos que, embora distintos no início, quando totalmente separados, tendem a
igualar-se à medida que se aproximam.
A mediação é uma categoria filosófica que alcança o seu pleno desenvolvimento
em Hegel e, portanto, ela é dialética e não pode ser entendida fora da perspectiva deste
método de análise. Cabe então advertir, desde logo, que a mediação não pode ser
considerada um produto, pois esta noção não tem lugar na dialética; ela aceita apenas a
idéia de processo, que se pauta nas concepções de força e de movimento.
3

O termo mediação, na filosofia de Hegel, diz respeito à relação entre o imediato


e o mediato. Ela é, portanto, uma força negativa que une o imediato ao mediato e, por
isso, também os distingue e os separa. Apesar de propiciar a passagem de um termo a
outro, ela não é uma simples via de ligação, uma “ponte” entre os dois pólos, ela é um
dos termos da relação responsável por viabilizá-la. A mediação permite, por meio da
negação, que o imediato seja superado no mediato sem que o primeiro seja anulado ou
suprimido pelo segundo, ao contrário, o imediato está presente no mediato, e este está
presente naquele. O mediato não supera o imediato, quem o faz é a mediação, assim, a
força inerente à superação não se manifesta nos pólos da relação, o imediato e o
mediato, ela é uma propriedade da mediação.
Conforme Garaudy (1983), a superação do imediato ocorre na mediação; o
mediato é, então, o estado que dela resulta. A superação se viabiliza só quando coisas ou
estados distintos estabelecem relações entre si, mas elas devem ser de mediação, que é
uma relação qualitativa fundada na força e caracterizada pela negatividade e pelo
reflexo. Quando se trata da superação, deve-se ter claro que ela sempre se refere a uma
contradição. Por isso, se a superação ocorre na mediação, a contradição também se
manifesta nela. Assim, não se pode buscá-las nas coisas, mas nas relações que elas
mantêm entre si.
A passagem de uma coisa a outra ou de um estado a outro por meio da superação
não suprime a coisa ou o estado superados, ao contrário, eles passam a fazer parte
daqueles que os superaram. Eles não são suprimidos, porque também estão presentes e
contribuem no processo de superação. A mediação na qual ocorre a superação não é
unilateral nem excludente, busca a totalidade e, assim, combate a unilateralidade da
parte sem excluí-la do todo e, ao mesmo tempo, sem diluí-la nele.
Até aqui, a mediação foi discutida como superação do imediato no mediato. Este
modo de compreendê-la permite o entendimento das categorias do método dialético que
fundamentam a mediação: o movimento e a negatividade. Cabe agora apresentá-la como
categoria ontológica pelo exame de algumas das suas expressões possíveis.
A mediação é uma categoria ontológica fundada na Ontologia do Ser Social e só
pode ser compreendida desta forma, porque, como já se afirmou, ela é a responsável
pela humanização do ser humano. Essa afirmação se esclarece quando se observa que o
radical onthos é o mesmo que Ser. Assim, ontologia é a teoria do Ser. Ela é distinta da
4

epistemologia, porque esta é a teoria do conhecimento. Os limites deste texto permitem


explicar apenas a principal diferença entre as duas. O Ser é concreto e, por isso, não
pode ser dividido; o conhecimento, por outro lado, é abstrato e, por isso, precisa ser
dividido para ser compreendido. A relação ontológica, baseada na Ontologia do Ser
Social, se estabelece entre a natureza como Ser, portanto concreta (total), e o Ser
Humano concreto (total). Ela pode estabelecer-se também entre os seres humanos.
A relação epistemológica, ao contrário, só pode ser estabelecida entre o sujeito
cognoscente e o objeto do conhecimento. Este objeto deve, necessariamente, ser uma
pequena parte do todo, portanto ele resulta de uma abstração1. As relações
epistemológicas produzem conhecimento, mas este conhecimento é distinto daquele
produzido a partir de relações ontológicas. Estas duas alternativas para produzir o
conhecimento, apesar de distintas, não mantêm relações hierárquicas entre si, ou seja,
uma forma não é superior nem inferior à outra.
Feita essa observação, pode-se, agora, retomar o exame da mediação como
categoria ontológica, tomando-se como ponto de partida a sua compreensão no
pensamento marxiano. Talvez o modo mais adequado para explicar a mediação seja
aquele usado por Marx (1983, p. 210): “A fome é a fome, mas a fome que se satisfaz
com carne cozinhada, comida com faca e garfo, não é a mesma fome que come a carne
crua servindo-se das mãos, das unhas, dos dentes”. Assim, a fome animal está no plano
do imediato, no qual vivem todos os seres vivos; já a fome humana é mediata, porque
satisfeita com base em mediações: o tempero e o cozimento da carne, o garfo e a faca.
Além disso, foi preciso acender o fogo e arrumar a mesa. A fome humana, quando é
sentida, também é imediata, mas não é satisfeita nesse plano. Ainda com base na
explicação de Marx, pode-se reiterar que apenas os seres humanos são capazes de
mediar.
A mediação em Marx pode expressar-se no trabalho, bem como nas distintas
expressões da práxis social. Nessa perspectiva, o trabalho é o resultado da tensão
dialética entre a natureza imediata e o ser humano que é mediato. Por meio desta tensão,
o ser humano supera a natureza quando a transforma pelo trabalho.

1 Sobre a relação dialética entre o abstrato e o concreto consultar: KOSIK, k. Dialética do Concreto.
Tradução de Célia Neves e Alderico Turibio, 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. (Coleção rumos da
cultura moderna, v. 26).
5

O trabalho é a categoria central do pensamento de Marx não apenas porque ele


constitui a base material dos modos de produção, e o autor examinou, em profundidade,
o modo de produção capitalista, mas, sobretudo, porque esta categoria é a base da
Ontologia do Ser Social.
O fundamento desta ontologia é a humanização do ser humano. Esta afirmação
seria redundante caso a humanidade fosse compreendida como inata a ele. A
humanidade é decorrente do processo de humanização que é social e, sobretudo,
histórico. Assim o ser humano pode tanto humanizar-se como desumanizar-se. Para a
Ontologia do Ser Social, o trabalho, quando não alienado, promove a humanização do
ser humano porque o distingue da natureza ao torná-lo capaz de transformá-la.
Como já se afirmou, a mediação tem por base o movimento, a força e a
negatividade. Assim, no trabalho que é movimento (relação dialética entre o ser humano
e a natureza), o ser humano nega a natureza, e a natureza nega o ser humano. Nesse
processo, tanto a natureza quanto o ser humano são superados pelo trabalho. É
importante ressaltar que, do ponto de vista da dialética marxiana, o ser humano nunca
deixa de ser natural, pois exprime a sua natureza humana.
A práxis formulada por Marx é também uma relação ontológica. Ela expressa a
tensão entre a Prática e a Teoria. A tensão entre a primeira imediata e a segunda mediata
gera a práxis que supera a ambas. É importante esclarecer que a mediação supera o
imediato e o mediato presentes na relação, mas esta superação se dá no plano do
mediato, um outro estado mediato, que é diferente daquele primeiro. Em outros termos,
na relação de mediação, o mediato modifica o imediato, contudo também é modificado
por ele. Por isso, os dois são superados, ainda que essa superação ocorra no mediato.
Outro modo de compreender as relações de mediação é aquele apresentado por
Lukács (1982). Para ele, a mediação funda-se em três categorias: a generalidade, a
particularidade e a singularidade. O ser humano estabelece vínculos tanto com a
natureza, quanto com a sociedade por meio da relação dialética que se desenvolve entre
seu ser singular, que não se assemelha a nenhum outro, e o seu ser geral, que se
identifica com os outros seres humanos na vida em sociedade e com a espécie, bem
como com todos os seres vivos na natureza. Assim, o ser humano é, ao mesmo tempo,
portador de uma singularidade, que o distingue de todos os outros seres, e de uma
generalidade que o torna um ser semelhante a qualquer outro: a relação dialética entre a
6

diferença (singular) e a semelhança (geral) viabiliza a inserção do ser humano na


natureza e na sociedade. Por isso, a singularidade e a generalidade, embora sejam
estados do Ser, devem ser compreendidas no seu movimento de negação recíproca. O
singular nega o geral, mas está presente nele e, por outro lado, a generalidade nega a
singularidade, porém só se realiza por meio dela. A negação recíproca entre a
singularidade e a generalidade é a particularidade; ela é o movimento que relaciona o
singular com o geral.
A particularidade estabelece a mediação entre o singular e o geral; ela é
responsável pela relação dos dois termos. Este movimento faz com que tanto a
generalidade como a singularidade não sejam fixas; portanto, elas devem ser
compreendidas como processos que tendem à generalização e à “singularização”,
respectivamente. Assim, não se pode alcançar a generalidade ou a singularidade, pois
cada generalidade alcançada deve ser superada por uma outra que a contém. O mesmo
ocorre com a singularidade; ela também deve ser entendida na perspectiva da superação.
Para Mészáros, a mediação do homem com a natureza e os outros homens se
configura como automediação:

A relação entre o homem e a natureza é ‘automediadora’ num duplo sentido.


Primeiro, porque é a natureza que propicia a mediação entre si mesma e o
homem; segundo, porque a própria atividade mediadora é apenas um atributo
do homem, localizado numa parte específica da natureza. Assim, na atividade
produtiva, sob o primeiro desses dois aspectos ontológicos, a natureza faz a
mediação entre si mesma e a natureza; e, sob o segundo aspecto ontológico -
em virtude do fato de ser a atividade produtiva inerentemente social - o
homem faz a mediação entre si mesmo e os demais homens. (MÉSZÁROS,
op cit: 77-78)

A automediação, de acordo com o pensador húngaro, não exclui o Ser Humano


da natureza, mas o distingue dela. Ele está localizado numa parte específica da natureza.
Essa condição permite ao homem interferir nela. Nesse sentido, a natureza se auto-
transforma, na medida em que o ser humano, agente da transformação, está inserido
nela. É a natureza quem “propicia a mediação entre si mesma e o homem”, em primeiro
lugar porque o ser humano é também natureza e em segundo lugar porque ela oferece as
condições para que o ser humano a modifique. Por exemplo, o solo pode ser cultivado,
o curso dos rios pode ser alterado, e os diamantes podem ser lapidados. Esse é o
primeiro dos sentidos da automediação destacados por Mészáros; o segundo diz respeito
7

à mediação entre o ser humano e os outros seres humanos que só se realiza por meio da
atividade produtiva enquanto o modo pelo qual o ser humano transforma a natureza.
Como os seres humanos não se separam da natureza, as relações entre eles não podem
se desenvolver fora dela. Por isso, na automediação se enfatiza o caráter ontológico da
mediação e, dessa forma, demarca-se o cunho ontológico do trabalho docente.

O TRABALHO DOCENTE E A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL

O segundo sentido da automediação, de acordo com Mészáros (op cit), é aquele


que interessa quando se trata da discussão do trabalho docente na perspectiva da
Ontologia do Ser Social. O trabalho desenvolvido pelo professor se expressa na relação
entre ele e o aluno na aula. Em outras palavras, esta automediação só ocorre num
contexto específico que é a aula. Embora o trabalho docente não se reduza à aula, é nela
que se exprime o seu caráter ontológico. É na aula, e somente nela, que se estabelece a
relação ontológica entre seres sociais que buscam ensinar ou aprender. Em uma relação
ontológica, que é, necessariamente, dialética, eles não podem ensinar e aprender nem ao
mesmo tempo nem de forma recíproca, porque desta maneira a tensão entre os dois
pólos da relação de mediação – professor e alunos – não pode desenvolver-se. Assim,
para essa ontologia, o professor ensina e o aluno aprende. Isto ocorre porque o primeiro
deve, necessariamente, estar no plano do mediato, e o segundo, no plano do imediato.
Cabe esclarecer que o imediato não é mais pobre nem inferior ao mediato,
portanto o mediato não é mais rico, melhor ou superior ao imediato; eles são estados
distintos e opostos entre si. Dessa forma, as relações entre os estudantes e o professor
não podem ser hierárquicas, nem de dominação por um lado ou de subordinação por
outro. Elas devem pautar-se pelo esforço de mediação que não é nem automática nem
espontânea. O que ocorre nas relações de mediação é que, como a tensão entre os pólos
da relação é dinâmica, ora predomina um ora o outro. Assim, na relação estudantes –
professor ora se evidencia a expressão do primeiro ora a do segundo. Cabe
principalmente ao professor propiciar a expressão dos estudantes por meio da mediação.
É preciso assinalar que, nessa concepção de mediação, professor e alunos serão sempre
opostos entre si, porém não antagônicos. Por serem opostos, não há harmonia entre eles
e, desse modo, não se pode esperar que desse confronto resulte um estado de equilíbrio.
8

O esforço do professor, que está no plano do mediato, é o de trazer os estudantes para


esse plano. Por outro lado, os estudantes, que quase sempre estão confortáveis no
imediato, tentam trazer o professor para este campo. Neste jogo de forças, no qual ora
os conflitos são velados ora são explícitos, é que se dá a mediação. Deste modo, os
professores que valorizam as experiências cotidianas dos alunos e estimulam a sua
reprodução, em nome das possibilidades da ocorrência de mediações, eliminam a
“dialeticidade” da relação entre o imediato e o mediato, produzindo, assim, o efeito
inverso, ou seja, dificultam ou impedem o desenvolvimento de mediações.
Cabe esclarecer que, para ensinar, o professor não pode ignorar o cotidiano dos
estudantes, pois o ensino torna-se efetivo somente pela contraposição do conhecimento
que ele pretende veicular aos elementos desse cotidiano. Mas, o professor não pode
apropriar-se das vivências cotidianas dos estudantes, pois ele não é, e jamais poderá ser,
um deles. Ao contrário disso, o docente deve empenhar-se por estabelecer as diferenças
entre o conhecimento a ser aprendido e as experiências cotidianas dos estudantes:
quando enfatiza as diferenças entre os dois termos, o professor aborda as relações entre
eles. Por outro lado, os estudantes aprendem quando relacionam, por meio da oposição,
suas experiências cotidianas com os tópicos do conhecimento já sistematizado pela
humanidade que lhes são apresentados pelo docente. Este conhecimento modifica a sua
vida cotidiana, mas não a suprime, ao contrário, a fortalece, na medida em que permite
que ela seja pensada e, dessa forma, articulada às experiências que a humanidade vem
sistematizando no decorrer da história. Quanto maior esta articulação, maiores são as
possibilidades de mediação entre os dois pólos. Isso explica por que se enfatizou a idéia
de que o trabalho docente como automediação só pode ocorrer na aula. Em outros
termos, a aula não pode reproduzir o cotidiano dos alunos, ao contrário, deve negá-lo
para que o seu cunho imediato seja superado.

PROFESSOR MEDIADOR DO CONHECIMENTO E “FACILITADOR” DA


APRENDIZAGEM

Como se verificou, a mediação é fundamental na razão dialética desde Hegel.


Essa afirmação também é verdadeira quando se trata das atividades educativas, desde
que compreendidas dialeticamente. Todavia, é comum entre os educadores brasileiros,
9

afirmar-se que eles são os mediadores do conhecimento, ou mediadores da


aprendizagem, ou ainda que medeiam a relação ensino – aprendizagem. Nessas
afirmações há pelo menos dois problemas: o primeiro e principal é que a mediação só
pode ser desenvolvida por seres humanos ou por ferramentas usadas por eles. Desse
modo, ela pode desenvolver-se por meio da ação do professor ou do aluno (seres
humanos), mas não pode realizar-se por meio do conhecimento ou da aprendizagem. O
segundo problema é que, se coubesse ao educador mediar a relação, ele deveria estar
presente nos seus dois pólos, ou, ao contrário, adotando-se a idéia de que a mediação é
apenas uma “ponte”, o educador não poderia estar presente na relação, permaneceria
entre os seus termos para permitir a ligação de ambos. Em uma concepção dialética da
mediação, essas duas situações não são possíveis, pois o mediar exige dois termos
opostos entre si; por exemplo, o ensino oposto ao não-ensino ou o professor oposto ao
não-professor que, na aula, é o estudante, ou seja, na aula, quem não é professor é
estudante. Por outro lado, o não-ensino não é o mesmo que aprendizagem.

A RELAÇÃO ENSINO-APRENDIZAGEM

A discussão acadêmica sobre a relação ensino-aprendizagem, que se desenvolve


no Brasil nos últimos trinta anos, tende a compreender a ambos como termos de uma
mesma e única relação. Desta perspectiva, não pode haver ensino quando o aluno não
aprende. Nela também se apóia a idéia de que o professor e o aluno tanto ensinam
quanto aprendem, ou seja, são indistintos. Essas concepções advogam, embora por
vezes sem o admitir, o predomínio da aprendizagem em relação ao ensino. Nesse modo
de pensar, há a submissão do ensino à aprendizagem.
O ensino, desde os anos setenta, do século XX, sofre dois processos que
impedem a distinção entre o ensino e a aprendizagem. Um deles é a “psicologização do
ensino” e o outro é aquele que o reduz a um conjunto de procedimentos metodológicos.
Esses dois processos são concomitantes e se evidenciam, por exemplo, no campo da
psicopedagogia no qual prevalece o diagnóstico dos distúrbios de aprendizagem e o uso
de técnicas destinadas a eliminá-los. É preciso observar que tais processos, embora
também se manifestem no âmbito da Didática como disciplina, verificam-se, de fato, no
ensino e, por decorrência, na prática educativa.
10

Os teóricos da educação que propugnam uma relação harmônica entre o ensino e


a aprendizagem estão, na verdade, promovendo a cisão de ambos. Esta cisão resulta de
uma compreensão, estritamente, epistemológica tanto do ensino quanto da
aprendizagem. Em outras palavras, ao privilegiar o conhecimento e a aprendizagem, os
educadores suprimem o Ser e o ensino. Assim, o primeiro é reduzido ao sujeito
cognoscente e, por conseqüência, o segundo torna-se um instrumento da aprendizagem
ou um meio para que ela ocorra.
Uma abordagem ontológica do ensino permite a superação de alguns falsos-
dilemas presentes na visão pautada, exclusivamente, na epistemologia e na idéia de que
a aprendizagem pode prescindir do ensino. Dentre esses dilemas, pode-se destacar
aquele que defende um ensino baseado nos interesses imediatos do aluno. Há também o
dilema de fazer-se com que o ensino seja lúdico para despertar o interesse do estudante.
Outro dilema bastante difundido por essa visão é aquele que enfatiza a necessidade de
integração das disciplinas para que se alcance um conhecimento total. Do ponto de vista
da Ontologia do Ser Social, estes três dilemas são falsos, porque, quando se compreende
o ensino a partir do Ser, pode-se contar com a sua principal característica que é a
capacidade de estabelecer relações dialéticas. Elas lhe permitem por um lado formular
sínteses, e por outro ascender à totalidade, compreendida aqui como tensão dialética
entre o todo e as partes. Dessa forma, o ensino fundado na ontologia não deve procurar
identificar-se com o cotidiano dos alunos, ao contrário, deve contrapor-se a ele. Na
mesma perspectiva, o ensinar também não pode ser substituído pelo brincar. Quanto à
necessidade de atingir-se a totalidade do conhecimento pela aproximação das
disciplinas, a resposta da ontologia é simples: o todo não é a soma das partes, mas sim,
como já se afirmou, uma tensão dialética entre o todo e as partes.
Na relação ensino – aprendizagem, não se estabelece um par dialético, porque
ele se forma com os termos ensino e não-ensino, e, como já foi dito, o não-ensino não
quer dizer aprendizagem. Isso implica afirmar que não há relação entre o ensino e a
aprendizagem, porque, do mesmo modo que, no par dialético, ensino corresponde a não-
ensino, aprendizagem corresponde a não-aprendizagem. Portanto, o ensino não se opõe
à aprendizagem. Assim, ensino e aprendizagem são dois processos distintos: o ensino é
a relação que o professor estabelece com o conhecimento; a aprendizagem é a relação
que o estudante estabelece com o conhecimento.
11

Outra idéia bastante difundida entre os educadores brasileiros e que é fundada na


relação “ensino-aprendizagem”, é a de que o professor seria o “facilitador” da
aprendizagem. Mas, quando se pensa na mediação fundada na dialética, deve-se
considerar que ela requer a superação do imediato no mediato. Assim, é provável que o
professor “dificulte” a aprendizagem do estudante, pois o professor precisa fazer com
que ele supere a compreensão imediata assumindo outra que seja mediata. Em outras
palavras, não há como o professor facilitar a aprendizagem, porque ela resulta de um
esforço pessoal de cada estudante. De acordo com Gramsci (1985), este esforço é,
necessariamente, maior para as crianças e adolescentes das classes populares quando
comparado ao despendido por crianças de classe média que têm facilidade de acesso a
informações relativas ao conhecimento:

será sempre necessário que ela se fatigue a fim de aprender e que se obrigue a
privações e limitações de movimento físico isto é. que se submeta a um
tirocínio psicofísico. Deve-se convencer á muita gente que o estudo é
também um trabalho e muito fatigante com um tirocínio particular próprio,
não só muscular-nervoso mas intelectual: é um processo de adaptação, é um
hábito adquirido com esforço, aborrecimento e mesmo sofrimento.
(GRAMSCI, 1985, p. 89)

Assim, o que o professor deve fazer é organizar os conceitos e as relações entre


eles de modo a permitir que o estudante compreenda o processo de formação e
desenvolvimento do conceito abordado. Ele não poderá facilitar a aprendizagem do
estudante, porque, como assinala Gramsci, a aprendizagem depende do esforço pessoal
de cada estudante. É claro que o professor sempre poderá intervir, de modo direto, neste
processo auxiliando, individualmente, o aluno.
A mediação que se estabelece entre o professor e os estudantes que se expressa
numa tensão entre eles é o fundamento ontológico do trabalho docente. De acordo com
esses fundamentos que tem por base a Ontologia do Ser Social, o professor não pode ser
o único mediador na sua relação com os estudantes: eles também medeiam com o
docente, pois, se assim não fosse, não haveria mediação. Da mesma forma, o professor
também não pode facilitar a aprendizagem dos alunos; pode e deve esforçar-se para que
eles aprendam, mas não pode minimizar nem esconder as dificuldades inerentes à
aprendizagem.
12

O PROFESSOR MEDIADOR E FACILITADOR DA APRENDIZAGEM E A


ESCOLA BURGUESA

A história da escola burguesa pode ser caracterizada por dois momentos: o


primeiro que é conhecido no Brasil como escola tradicional e o segundo que é
denominado de escola nova. Porém, a divisão em dois momentos não pode ser rígida,
pois, no Brasil, ainda hoje há escolas tradicionais.
No período em que a organização da escola é tradicional (séculos XVII a XIX),
a burguesia apresenta-se como classe ascendente, ou seja, ela aspira tornar-se classe
dominante e, por isso, precisa do apoio das outras classes sociais dominadas para a
consecução do seu projeto de sociedade. Em troca dessa anuência, ela defende o acesso
universal à escola, possibilidade que se funda no preceito de que todos os estudantes
são, essencialmente, iguais e, nessa medida, gozam das mesmas oportunidades de
ascensão social. Nesse projeto, embora as oportunidades sejam as mesmas, apenas os
mais capazes, aqueles que sabem aproveitar as oportunidades ascenderão socialmente.
A escola é a principal agência encarregada de igualar os estudantes oferecendo um
ensino igual para todos. Assim, todos os estudantes são iguais no ponto de partida e se
distinguem pelos seus méritos e esforço pessoais, no ponto de chegada, ou seja, no
momento em que deixam a escola. Dessa forma, cada estudante é o único responsável
pelo seu sucesso ou pelo seu fracasso. Individualiza-se o mérito do “bom aluno”, mas
sobretudo a culpa pelo mau desempenho que, quase sempre, implicará outros fracassos
pelos quais, por conseqüência, ele também será o único culpado. Em suma, a escola
tradicional iguala os diferentes e, em nome da igualdade formal, esconde a desigualdade
real.
A escola nova começa a se desenvolver no final do século XIX, portanto depois
da Revolução Francesa (1789) e da Revolução Industrial de 1850 e, dessa forma,
representa os interesses da classe burguesa como classe dominante. Nessa condição, a
burguesia não pôde continuar sustentando a igualdade, ainda que formal, entre os seres
humanos, pois a condição de classe dominante e o exercício da dominação implicam a
presença das classes dominadas. Assim, ao contrário de defender a igualdade, a
burguesia passa a defender as diferenças individuais, isso graças às teses elaboradas
pela Escola Clássica de Economia. Dessa forma, embora a burguesia não abandone
13

completamente a defesa da igualdade formal que se expressa, por exemplo, em teses


como “todos são iguais perante a lei”, (presente no artigo 5º da Constituição da
República Federativa do Brasil) ela precisa fazer com que as outras classes sociais
aceitem a sua dominação como decorrência das diferenças individuais. Desse modo,
essas diferenças tornam-se naturais e, por isso, devem ser aceitas por toda a sociedade.
Diante desse modo de explicar as diferenças entre os seres humanos, o ideário
escolar burguês não pode mais sustentar a idéia de que, na escola, todos os alunos são
iguais e só se tornam diferentes depois de concluírem os seus cursos, no ponto de
chegada. Agora, é preciso instituir a diferença desde o ponto de partida em nome das
diferenças individuais. Assim, a passagem da escola tradicional para a escola nova
implica o enfraquecimento da tese da igualdade entre os alunos, em favor da idéia de
que eles são diferentes entre si, são indivíduos portadores de necessidades e interesses
que não podem ser satisfeitos coletivamente. Ante esse imperativo, que é de cunho
ideológico, foi preciso “mudar” a escola.

A ESCOLA NOVA

Por causa dessa necessidade, os educadores escolanovistas esforçaram-se para


desenvolver uma crítica, muitas vezes feroz, à escola tradicional e, a partir dela, alterar a
organização da escola. Ocorre que aqueles educadores não criticaram a escola burguesa
no sentido de superá-la, quiseram apenas reformá-la para atender às necessidades do
indivíduo e, assim, não puderam ir além da antítese da escola tradicional. Toda antítese
expressa o contrário da tese, e dessa forma, as mudanças promovidas pelos
escolanovistas restringiram-se, por exemplo, à disposição dos alunos na sala de aula, ao
modo de ministrar as aulas e à escolha dos tópicos a serem ensinados.
No Brasil, onde a expressão da escola nova foi tardia, ela iniciou-se na década
de trinta, do século XX, e demorou a disseminar-se; tanto que, até o início dos anos mil
novecentos e setenta, as carteiras escolares eram, quase sempre, fixas e conjugadas; ou
seja, o assento de uma carteira servia de suporte para a mesa de trabalho da posterior, de
modo que os alunos só podiam permanecer em fila e olhando à frente, onde estavam os
dois elementos mais importantes da sala de aula, o professor e o quadro negro. Essas
carteiras foram, rapidamente, substituídas por outras que são individuais, para
14

indivíduos, e móveis. Esta “mobilidade” permite que os alunos escolham a posição em


que desejam permanecer e facilitam o trabalho em grupo que é uma das formas
preferidas pelos docentes para ministrarem as aulas, combatendo, assim, a aula
expositiva herdada da escola tradicional. O problema é que o grupo na escola nova
tende a reduzir-se à soma dos indivíduos. Dessa forma, o trabalho escolar resultante
dessa concepção é, quase sempre, a soma das atividades parciais (individuais)
desenvolvidas por cada um dos estudantes. É comum observar-se, nas salas de aula
brasileiras, sobretudo no ensino superior, os “seminários” ministrados por estudantes
nos quais cada um expõe um tópico do assunto a ser tratado, logo, a soma deles exprime
a totalidade. Outra cena comum, nessas salas de aula, é aquela na qual os estudantes
permanecem sentados em círculo, ouvindo o professor que, geralmente, se coloca de pé
no centro do círculo, desenvolvendo, portanto, uma aula expositiva. Esse tipo de
mudança, embora, no Brasil, esteja presente ainda hoje, caracteriza o que nesse texto
denomina-se primeira fase da escola nova. Ela abrange desde o final do século XIX até
o término da Segunda Guerra Mundial.
A principal mudança ocorrida no ambiente escolar nessa primeira fase do
escolanovismo foi o deslocamento do foco da relação pedagógica, que na escola
Tradicional centrava-se no professor e no ensino e na escola nova passa a ter como
centro o estudante e a aprendizagem. Tal mudança se fez em nome do respeito à
individualidade dos alunos. Ora, se os indivíduos são, necessariamente, distintos entre
si, como é possível ensinar a todos ao mesmo tempo, ministrando-lhes a mesma
disciplina e o mesmo tópico? A solução desse dilema, do ponto de vista do modo de
pensar burguês, apresenta apenas uma alternativa: é preciso fazer com que cada aluno
aprenda a partir dos seus interesses e necessidades individuais. Assim, diante da
impossibilidade de ensinar a todos ao mesmo tempo, é preciso fazer com que eles
aprendam a aprender, o que os torna autônomos. É claro que, nesse contexto, autonomia
quer dizer individualização.
O lema “aprender a aprender” sintetiza a posição dos educadores escolanovistas
para quem cabe ao professor apenas permitir ao estudante aprender por meio da sua
própria experiência fundada nos seus interesses e necessidades individuais. Em outras
palavras, o fundamento da aprendizagem do discente é a sua própria experiência: o
professor deve estimulá-lo a buscar a solução das suas indagações a partir da sua
15

vivência cotidiana. É oportuno observar que esse é um lema caro, inclusive a muitas
correntes progressistas do pensamento pedagógico. A origem liberal-burguesa e
pragmática do “aprender a aprender” indica o seu vínculo, inevitável, com o
individualismo. Há argumentos justificando o seu uso com outra acepção, pois, segundo
tais argumentos, ela pode ser re-significada. Deve-se duvidar dessa possibilidade,
porque a expressão é ideológica, e as expressões ideológicas não podem ser re-
significadas fora do âmbito da ideologia. Assim, o “aprender a aprender” está vinculado
à auto-suficiência do indivíduo e, por isso, jamais poderá assumir um caráter libertário
ou libertador. O compromisso do “aprender a aprender” é com o indivíduo, porém,
quando o lema é pronunciado com o entusiasmo que é comum aos educadores
comprometidos com as demandas populares, a noção de indivíduo parece irrelevante,
mas o perigo da sua reprodução ideológica está nessa aparente irrelevância.
As mudanças no âmbito da metodologia de ensino e da difusão do lema
“aprender a aprender” conferiram à educação e à escola um caráter pragmático, e esta
foi a principal característica da primeira fase do escolanovismo. Na segunda fase,
implementada depois da Segunda Guerra Mundial, os representantes da escola nova
começaram a desenvolver mudanças de ordem conceitual, cuja base foi e é a psicologia
da aprendizagem, o que consolida a idéia de que a escola deve preocupar-se
exclusivamente com o aluno e o seu aprendizado.
Nesta segunda fase da escola nova, pode-se destacar, na educação brasileira, a
influência de vários psicólogos da aprendizagem. Na década de sessenta, observa-se o
predomínio das idéias de B. F. Skinner, mas também está presente o pensamento de K.
R. Rogers, sobretudo nas experiências de educação não-formal. A partir da década de
setenta, os educadores brasileiros tomam contato com as formulações de J. Piaget e,
assim, quase todos se “tornam construtivistas”. Na década seguinte, foi a vez de L. S.
Vigotsky aparecer no cenário e, nos anos noventa, a novidade é a idéia de inteligências
múltiplas de H. Gardiner. O pensamento desses autores, quando veiculado pelos
educadores brasileiros, assume sempre a perspectiva da aprendizagem por parte do
aluno. Em nome dessa nobre preocupação, os educadores brasileiros podem lançar mão
de fragmentos das concepções desses autores e arranjá-las segundo a sua conveniência
no sentido de explicar ou justificar as suas práticas educativas. Isso ocorre, por exemplo,
em relação a J. Piaget e L. S. Vigotsky. Embora o primeiro seja neokantiano e o
16

segundo marxista, muitos educadores brasileiros defendem a idéia de que o pensamento


de ambos é complementar. Dessa forma, o fato de estarem filiados a correntes teórico-
metodológicas distintas, passa a ser irrelevante. O importante é que se consiga explicar,
ainda que de forma equivocada, a aprendizagem do aluno. Cabe alertar que diferentes
opções teórico-metodológicas implicam adoção de distintas categorias de análise da
realidade, quase sempre incompatíveis entre si e, por isto, expressam diferentes modos
de compreender o mundo.
As duas fases da escola nova, embora apresentem características distintas, têm
na aprendizagem do aluno o seu ponto central. Na primeira fase, predomina a idéia de
que ele deve “aprender a aprender”, e isso só é possível quando os seus interesses e
necessidades individuais são respeitados. Na segunda, caracterizada pelo predomínio
das formulações teóricas dos psicólogos da aprendizagem, reforça-se a idéia do
compromisso da escola com a aprendizagem do aluno. Assim, o ideário da escola nova
que na primeira fase restringia-se a um conjunto de princípios pedagógicos e preceitos
metodológicos, ganha legitimidade científica na segunda fase.
Dessa forma, o núcleo central das formulações escolanovistas fundado na noção
de autonomia do aluno como indivíduo permanece intacto: o aluno deve
preferencialmente aprender por meio da experiência os conhecimentos que lhe são
necessários e úteis. Articulando-se os três elementos básicos desse núcleo têm-se:
experiência, necessidade e utilidade. Tendo em vista que eles apresentam um cunho
imediato, pode-se afirmar que a escola nova preconiza uma “aprendizagem pragmática”.
Em outros termos, a “aprendizagem pragmática”, própria da escola nova, só
pode desenvolver-se com base nas atividades de ensino, porque elas propiciam a
experiência imediata do aluno e é por meio delas que o aluno aprende. Não é por acaso
que, no movimento “didática em questão”, na década de 1980, discutiu-se a supressão
da didática geral em favor das didáticas específicas, cujo foco principal são as
atividades de ensino. Na escola brasileira, a atividade pedagógica é, quase sempre,
compreendida na perspectiva do senso comum e, desse ponto de vista, ela se vincula a
um fazer imediato e, por isso, dispensa a discussão de conceitos e teorias de ensino. Em
outras palavras, espera-se que, por meio da atividade pedagógica, o aluno seja capaz de
desenvolver, sozinho, as abstrações necessárias para a compreensão dos conceitos, bem
como estabeleça as relações entre eles. Com isso, o professor desobriga-se de ensinar o
17

aluno, quem o ensina é a atividade. Em outros termos, o ensino passa a ser um atributo
da atividade, quando ela é, de fato, uma responsabilidade do docente: o ensino é um
atributo da docência.

A SUPERAÇÃO DA ESCOLA BURGUESA

Um projeto de superação da escola burguesa deve ocupar-se do combate à noção


de que o conhecimento deve ser acumulado, apropriado individualmente. É preciso
cuidar para que todas as versões dessa idéia sejam identificadas e criticadas com vistas a
sua superação. O conhecimento é produzido coletiva e historicamente, por meio de
processos de síntese. Portanto, a aprendizagem que é o modo pelo qual os estudantes
podem conhecer depende da relação dialética que se estabelece entre o aprendiz com os
outros aprendizes, entre eles e o professor, bem como entre cada aprendiz e o docente.
O principal responsável pelo estabelecimento dessa relação dialética nas suas três
instâncias (a dos aprendizes entre si, a do conjunto de aprendizes com o docente e a de
cada estudante com o docente) é o professor.
O lema “aprender a aprender” é outra formulação escolanovista que deve ser
superada caso se queira, de fato, mudar a escola. A idéia de que os alunos aprendem
sozinhos não visa conceder-lhes autonomia, mas sim torná-los indivíduos, que nessa
condição, podem prescindir das relações interpessoais. Aliás, a autonomia, tal como o
conhecimento, resulta de processos históricos e, portanto, coletivos. Por isso, os
indivíduos, na medida em que vivem isolados, não podem ser autônomos. A autonomia
não reside no “aprender a aprender”, mas na relação dialética que deve estabelecer-se
entre quem ensina e quem aprende.
Outro ponto-chave a combater é aquele que preconiza a aprendizagem por meio
de atividades de ensino. Elas não podem substituir a necessária discussão dos conceitos
que visa o estabelecimento de relações entre eles. Assim, a escola que hoje se empenha
em organizar atividades pedagógicas, deve preocupar-se com a organização do
pensamento dos seus alunos, para o que tais atividades podem contribuir desde que
articuladas à discussão das relações entre conceitos. É preciso também atentar mais uma
vez para o fato de que os educadores escolanovistas promovem mudanças
metodológicas para preservar as relações de poder vigentes na escola; ou seja, tais
18

mudanças, quando ocorrem, estão restritas ao interior da sala de aula e, por isso, não
atingem as outras instâncias da vida escolar. Não há mudança possível sem que a escola
seja compreendida como totalidade dialética e histórica.

CONCLUSÃO

Neste texto, discutiu-se o fundamento ontológico do trabalho docente, com base


na Ontologia do Ser Social, por meio da categoria mediação.
Esta discussão poderia ter sido fundamentada no exame da posição teleológica
do trabalho docente compreendido como mediação de primeira ordem, tendo como
pontos de apoio os textos de Lukács Ontologia del Ser Social: el trabajo (2004) e de
Mészáros Marx e a teoria da Alienação (1981). Porém, essa perspectiva não permitiria
a abordagem da mediação como uma categoria de análise capaz tanto de explicar as
práticas educativas escolares quanto de apresentar-lhes alternativas metodológicas;
especialmente quando se trata da atuação do professor na sua relação com o aluno na
sala de aula, ou seja, o trabalho docente.
Sabe-se que estas opções para examinar o trabalho docente não são excludentes,
mas o que se pretende é enfatizar que este trabalho é uma práxis transformadora.
Espera-se, então, que este texto tenha mostrado as possibilidades do trabalho docente,
quando compreendido ontológica e dialeticamente, no sentido de oferecer respostas às
questões e aos dilemas dos docentes, muitos deles falsos, como por exemplo, o
“professor mediador do conhecimento”, o “professor facilitador”, e a “relação ensino-
aprendizagem”. Ressalta-se que a retórica desses falsos dilemas pode confundir até a
docentes marxistas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GARAUDY, R.. Para conhecer o pensamento de Hegel. Tradução de Suely Bastos.


Porto Alegre: L&PM, 1983.

GRAMSCI, A. (1985) Os intelectuais e a organização da cultura. São Paulo:


Civilização Brasileira, 1985.
19

KOSIK, K. Dialética do Concreto. Tradução de Célia Neves e Alderico Turíbio. 2. ed.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

LEFEBVRE, H. La presencia y la ausencia. Tradução Fondo Nacional de Cultura.


Cidade do México: Fondo Nacional de Cultura, 1983.

LUKÁCS, G. Ontologia do Ser Social: os princípios ontológicos fundamentais de


Marx. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Livraria Editora Ciências
Humanas, 1979.

LUKÁCS, G. Estética I. Tradução de Manuel Sacristán. Cidade do México: Grijalbo:


1982.

LUKÁCS, G. Ontologia del Ser Social: el Trabajo. Tradução de Miguel Vedda.


Argentina: Herramienta, 2004.

MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Maria Helena


Barreiro Alves. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983. (Novas Direções)

MÉSZÁROS, I. Marx: a teoria da alienação. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de


Janeiro: Zahar, 1981.

Você também pode gostar