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Jasson da Silva Martins∗

Revista de Filosofia
A A Existência Intersubjetiva
em Martin Buber

RESUMO

A função da palavra em Martin Buber não é representar ou nomear as coisas, mas fundamentar
a existência do homem. Essa palavra-fundamento não remete ao logos grego, mas está vincada à
longa tradição bíblica do judaísmo. Buber percorre um caminho diferente daquele tradicional das
filosofias do sujeito, explicitando a sua antropologia teológica em conceitos filosóficos e inovado-
res. Ao invés de postular como relação primordial o sujeito cognoscente e o objeto conhecido, ele
descreve a relação interhumana como origem e fundamento da existência humana.

Palavras-chave: Fundamento; Intersubjetividade; Antropologia; Existência.

ABSTRACT

The meaning of word used by Martin Buber is not meant to represent or name things, but to found
man’s existence. This word-foundation doesn’t refer to the greek logos, but it is bond to the long
biblical tradition of Judaism. Buber goes a different path than traditional philosophies of the sub-
ject, making explicit his theological anthropology in innovators philosophical concepts. Rather than
postulate as primordial relation the subject able to know and the known object, he describes the
inter-human relationship as the source and foundation of human existence.

Key words: Foundation; Inter-subjective quality; Anthropology; Existence.

∗ Doutorando em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Bolsista CAPES/PROSUP.

28 ARGUMENTOS, Ano 2, N°. 4 - 2010


Introdução O Fundamento Ontológico: a
Linguagem
É difícil situar o pensamento de Martin
Buber (1878-1965) dentro de alguma corrente
A compreensão da linguagem em Buber
filosófica do século XX. O próprio Buber se
está vincada à tradição bíblica. Para ele, a lin-
considerava um pensador atípico. O seu pen-
guagem é portadora de ser, logo é uma lingua-
samento é fortemente influenciado pela cor-
gem apofântica. A palavra que, sendo dialógica,
rente hassídica da mística judaica, comumente
habita o terreno do entre, requer abertura ao
caracterizada como filosofia do encontro ou
mundo, ao outro, invoca a relação. A palavra
do diálogo. O fato antropológico que sustenta
indica a própria condição do homem como ser
essa característica é a relação, entendida como
existente. O homem habita a palavra.1 Ela não
sinônimo de reciprocidade.
só é proferida pelo ser, como instaura modos de
A reflexão filosófica de Martin Buber vai
existir do ser humano, ou melhor, uma postura
além de uma ontologia da relação. Sua preo-
dual diante do mundo:
cupação não foi criar conceitos abstratos, mas
despertar a nostalgia do humano, propriamen- O mundo é duplo para o homem, segundo
te do homem bíblico, alfabetizado na Torá. A a dualidade de sua atitude. A atitude do
filosofia do diálogo exige a intersubjetividade homem é dupla de acordo com a duali-
como fato antropológico fundamental. Para dade das palavras-princípio que ele pode
proferir. (BUBER, 2009, p. 53).
além do dever ser exigido pela ética, Buber
fundamenta a sua antropologia na categoria Esse par de palavras-princípio Eu-Tu e
do entre o humano e o divino, fazendo com Eu-Isso revela duas atitudes: a atitude do Eu que
que, da parte do homem, a relação intersubje- profere a palavra Eu-Tu, que permite ao homem
tiva seja conduzida necessariamente ao funda- entrar em relação dialogal com um ser a quem
mento do interhumano enquanto resultado da invoca como Tu; e a atitude do Eu que diz Isso,
relação dialógica. Daí decorre a indagação: que permite ao homem, enquanto cognoscente
esse fundamento é filosófico? experimentar, possuir e pensar os entes que o
No pensamento de Buber, a relação cercam. O homem profere um Tu ou um Isso
primordial torna-se o fundamento de todas conforme sua atitude e, cada vez que diz Eu,
as relações humanas, e é primordial que o está pronunciando um dos pares de palavras-
homem encontre o seu sentido e se compro- princípio. O Eu é atualizado cada vez que a
meta com a própria existência no mundo da palavra Eu é proferida igualando-se a uma das
vida. Essa relação, na relação com os entes, é duas palavras-princípio (BUBER, 2009, p. 53).
compreendida por Buber de duas maneiras: Buber considera as palavras-princípio
tomando-os por objetos ou colocando-se na portadoras de ser, não exprimindo algo existente
presença deles. Sendo assim, tais atitudes são fora delas, mas fundamentando uma existência.
expressas por aquilo que o autor chama de Dessa forma, dizer uma palavra-princípio é o
palavras-princípio, respectivamente, a palavra- mesmo que assumir uma das atitudes fundamen-
princípio Eu-Isso e a palavra princípio Eu-Tu. tais. Proferir uma palavra-princípio e existir é a
Neste texto, explicitarei os pressupostos da mesma coisa, pois Buber não faz uma análise
antropologia filosófica de Buber, evidenciando linguística, mas uma ontologia da palavra. Sua
que a fundamentação da existência do homem análise lingüística instaura a diferença ontoló-
e o significado de cada palavra-princípio cons- gica e, entre e através dela, o homem se introduz
tituem a ratificação teológica do seu pensa- na existência. A postura gnosiológica do homem
mento expresso em conceitos filosóficos. impede-o de experimentar e de ser afetado pelo

1
Heidegger, em alguns de seus escritos, também compreende a linguagem como morada do homem, mas em um sentido totalmente
desprovido do vínculo com a tradição bíblica.

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mundo, já que, sob uma postura de autoeleição, da relação Eu-Tu, o mundo do Isso tem coerência
o homem não se permite relacionar e interagir no espaço e no tempo. A palavra princípio Eu-Isso
com as situações apresentadas pelo próprio é pronunciada por um Eu que só tem diante de si
mundo. A participação só acontece à medida objetos e, portanto, fatos do passado:
que a relação, que não é a de um sujeito abs- O Eu da palavra-princípio Eu Isso, o Eu,
trato, separado e isolado do mundo, encontra portanto, com o qual nenhum Tu está
em si mesma o fundamento de certeza e o fim face-a-face presente em pessoa, mas
de todo conhecimento. O ser humano percebe, que é cercado por uma multiplicidade de
experimenta, representa, quer, sente ou pensa “conteúdos” tem só passado, e de forma
alguma coisa, mas tudo isso, para Buber, está alguma presente. Em outras palavras, na
na esfera do Isso, embora o homem participe do medida em que o homem se satisfaz com
mundo somente no domínio da experiência. as coisas que experiência e utiliza, ele
O mundo do Tu tem um fundamento di- vive no passado e seu instante é privado
ferente. Aquele que pronuncia Tu não tem um de presença. Ele só tem diante de si obje-
tos, e estes são fatos do passado. (BUBER,
objeto diante de si, não possui nada, no entanto,
2009, p. 60, grifos do autor).
permanece em relação. Ao proferir a palavra-
princípio Eu-Tu fundamenta-se um modo de Como ficou claro anteriormente, o diálogo
se aproximar do mundo diferente do da expe- presentifica o homem de modo efetivo e existen-
riência: é o mundo da relação que abrange, cial. Eis a inversão, a explicação de conteúdos
perpassa e significa as diversas esferas da vida teológicos em chave filosófica: o objeto não se
do homem: a vida com a natureza, a vida com contrapõe ao sujeito, mas a presença. Para Bu-
os homens e a vida com os seres espirituais ber, a relação do homem com o isso, os entes,
(BUBER, 2009, p. 55). é a estagnação, a interrupção, a ausência de
A relação Eu-Tu acontece na presença, ou presença. É o objeto do conhecimento, que
seja, quando um Tu se apresenta ao Eu. Presença pode ser experimentado, descrito, lembrado,
aqui significa não um instante cronológico, pon- representado, reproduzido, nomeado, classifi-
tual, mas o instante que instaura, presentifica e cado, isolado, analisado, decomposto, mas não
atualiza o homem. O homem atualiza no relacio- presentificado, atualizado e vivenciado. Ou seja,
nar-se, mas não o experimenta. Porém, quando a relação do homem com os entes é uma rela-
experimenta, ele está distante de um Tu. Pois, ção de uso. Tal relação jamais é testemunhada
na tradição bíblica. A não ser indiretamente:
Eu não experiencio o homem a quem
quando alguém da comunidade faz mau uso
digo Tu. Eu entro em relação com ele no
do dom da profecia ou da cura.
santuário da palavra-princípio. Somente
quando saio daí posso experienciá-lo
A relação originária é a relação Eu-Tu.
novamente. A experiência é o distancia- Essa relação entre dois é anterior à relação
mento do Tu. (BUBER, 2009, p. 57). Eu-Isso. A relação Eu-Isso é posterior à palavra-
princípio Eu-Tu porque é justamente separação
Disso decorre o fato de o filósofo referir-se à de um Eu que se diferencia de um Isso. O Tu
palavra-princípio Eu-Tu como originária, anterior é pronunciado antes mesmo de o Eu ter cons-
à relação Eu-Isso. Somente depois de atualizar a ciência de ser Eu. Essa consciência surge d a
relação com o Tu, é que o homem pode referir-se, separação da palavra princípio Eu-Tu em um Eu
no passado, a essa relação. De fato, Buber coloca e um Tu, ambos posteriores à primeira palavra-
a palavra-princípio Eu-Isso no tempo passado. O princípio. Somente através dessa separação
tempo e o espaço fazem parte do mundo do Isso, tornou-se possível a palavra-princípio Eu-Isso,
enquanto não fazem sentido algum para o mundo através de uma justaposição do Eu e do Isso: “A
do Tu. Essa passagem do Tu ao Isso é inevitável. primeira palavra-princípio Eu-Tu decompõe-se
Uma vez deixando de atuar, por mais exclusiva de fato, em um Eu e um Tu, mas não proveio de
que a presença tenha sido na relação imediata, sua justaposição, é anterior ao Eu. A segunda,
interpõem-se meios e o Tu transforma-se em um o Eu-Isso, surgiu da justaposição do Eu e Isso, é
objeto entre objetos. Em sua existência concreta, o posterior ao Eu.” (BUBER, 2001, p. 25).
homem lida com objetos, símbolos, pessoas, conte- Cada Tu, conforme o que já foi exposto,
údos aos quais ele pronuncia um Isso. Ao contrário pode ser transformado em um Isso, após o tér-

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mino da relação, após a cessação do encontro. o homem precisa do Isso, mas só se realiza na
A passagem da relação Eu-Tu à relação Eu-Isso relação dialógica com um Tu. Pronunciando
não ocorre necessariamente. Ocorre através do Tu, o Eu se abre para o Ser na sua totalidade. É
Eu, que, enquanto sujeito cognoscente, precisa relacionando reciprocamente com um Tu que o
ordenar, classificar os entes ao seu redor. Se em homem se reconhece como Eu, encontra o seu
termos epistemológicos essa relação é necessária, fundamento ontológico.
no campo da fundamentação ética essa relação é É nesse nível de discussão que a ética
prejudicial porque é insustentável. Mais uma vez, intersubjetiva, baseada em uma antropologia
a argumentação teológica é confrontada com o dialógica deve ser ressaltada. Note-se aqui a
racionalismo moderno, não apenas demarcando mudança de paradigma: de um lado, a filosofia
uma oposição, mas, sobretudo, se colocando como moderna, pretensamente científica e racional
a melhor argumentação no campo da ética. estabelece como paradigma epistemológico a
relação sujeito-objeto. De outro lado, a relação,
Eis uma verdade fundamental do mundo através das palavras-princípios Eu-Tu e Eu-Isso,
humano: somente o Isso pode ser ordena- é apresentada por Buber como relação fun-
do. As coisas não são classificáveis senão
damental, como estrutura ontológica capaz de
na medida em que, deixando de ser nosso
suportar o mundo, de maneira ética e intersub-
Tu, se transformam em nosso Isso. O Tu
não conhece nenhum sistema de coorde-
jetiva, através da linguagem.
nadas. (BUBER, 2009, p. 72).
O Fundamento Antropológico:
A superação da ‘relação’ entre sujeito
cognoscente e objeto cognoscível, iniciado no o Diálogo
lógos grego e reificada na filosofia moderna
com Descartes, pode ser encontrada no conceito Ao refletir sobre o evento primordial - a
de relação proposta por Martin Buber. A partir, relação -, Buber esboça uma antropologia do
pois, da palavra-princípio Eu-Isso o homem diálogo, recusando uma abordagem do homem
instaura e organiza o mundo dos entes. A partir que prescinda ou omita o a priori da relação.
da relação Eu-Isso, o homem é capaz de pro- A compreensão do homem como ser dialógico
duzir conhecimento e fazer a ciência avançar. afronta a antropologia filosófica clássica, uma
O mundo do Isso é seguro e inspira confiança: vez que está em jogo a totalidade do próprio
é nele que o homem domina seu objeto e vence mundo, e onde o filósofo “[...] não é um obser-
o paradoxo gorgiano sem cair no relativismo. vador indiferente de um processo ou de um
Vários sujeitos poderiam referir-se a um mesmo mecanismo que busca o princípio de sua com-
Isso, mesmo que para cada Eu o Isso repre- preensão em um elemento exterior a si mesmo.”
sente uma coisa diferente. Tal fato demonstra (ZUBEN, 2003, p. 202). O ponto decisivo dessa
a absoluta necessidade desse tipo de relação. argumentação, bem como a visível dificuldade,
No entanto, essa relação Eu-Tu é suficiente para esbarra no argumento teológico: a relação Eu-Tu
a realização do homem? Essa é a aposta das não se esgota na relação gnoseológica.
ciências empírico-formais, sobretudo, baseada O conhecimento do homem é, por sua
em modelos deontológicos. essência, o exame de si mesmo; e para
Pode-se, portanto, considerar o mundo que o homem possa examinar a si mesmo,
do Isso como mundo onde se deve e se pode é necessário o indivíduo cognoscente, o
viver. Um mundo que oferece toda espécie de filósofo, portanto, que faz antropologia,
examina, inicialmente, ele mesmo en-
atrações e estímulos de atividades e conheci-
quanto pessoa. (BUBER, 1962, p. 17).
mentos. No entanto, Buber alerta para o perigo
da sedução do mundo do Isso para o homem, Nessa obra, O Problema do Homem,
que, contentando-se somente com o Isso, sub- Buber reflete sobre as tentativas antropológicas
trai de si a própria humanidade: “E com toda na história da filosofia. Aí, ele aponta para o
a seriedade da verdade, ouça: o homem não surgimento da problemática acerca do homem
pode viver sem o Isso, mas aquele que vive e as lacunas que impediram uma resposta satis-
somente com o Isso não é homem.” (BUBER, fatória por parte dos filósofos analisados. O olhar
2009, p. 74). Portanto, para o autor de Eu e Tu, panorâmico e a descrição crítica apresentada

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pelo filósofo permitem esboçar as linhas gerais É assim, travestindo a experiência dialó-
de sua antropologia, referendada na categoria gica da tradição bíblica em roupagem filosófica
do interhumano, para qual toda relação Eu-Tu que Buber passa em revista o problema do
converge a relação com o Tu eterno. homem de Aristóteles à atualidade.
É necessário afirmar, sem rodeios, a ca- O primeiro a compreender de forma crí-
racterística do homem esboçada por Buber é tica a questão antropológica, segundo Buber,
do homem religioso.2 Daí decorre a tarefa do foi Kant. Ao explicar que o espaço e o tempo
filósofo e de sua ciência: uma antropologia são formas da nossa própria compreensão do
filosófica que queira abordar o homem em sua mundo, não cabia mais ao homem construir uma
totalidade, demanda uma autorreflexão um en- nova casa, mas conhecer-se a si mesmo. Kant
trar por parte do filósofo, na dimensão única de propôs então as famosas quatro perguntas: Que
sua própria vida. Só o homem capaz de solidão posso conhecer? Que devo fazer? Que posso
tem condições de desempenhar essa tarefa. esperar? Que é o homem? As três primeiras
Aquele que se encontra a só, consigo mesmo, encontrariam resposta, respectivamente, na Me-
consegue, nessa sua solidão, descobrir o homem tafísica, na Ética, na Religião. Porém, a resposta
em si próprio e a problemática humana em sua à última questão, que demandaria uma Antro-
própria problemática (BUBER, 1962, p. 18). Essa pologia Filosófica, compreenderia as demais.
imagem do filósofo, um tanto quanto sartreana, Buber diz que Kant não chegou a responder sua
só encontra correspondente na tradição bíblica, quarta pergunta. Diferentemente de Heidegger
na figura do profeta e do patriarca. que debita o fracasso da resposta de Kant ao seu
No livro O Problema do Homem, Buber ponto de partida3 (epistemologia) para resolver
distingue a história do espírito humano em uma questão metafísica (ontologia), Buber, tal
épocas. Chama atenção o estilo de escrita dessa qual um profeta do seu tempo, vê nesse fracasso
pretensiosa retomada história do problema do a justificativa filosófica para ancorar o seu pen-
homem. Estilo esse que poderia ser caracteri- samento antropológico, baseado no diálogo.
zado entre Hegel e Heidegger, à medida que A acribia e a densidade da análise da
usa deliberadamente palavras como “espírito questão antropológica em Kant, somada a
humano”, “épocas”, na descrição do homem missão do filósofo (o próprio Buber), conduziu
e do mundo. Tais épocas dizem respeito ao este a constatação do desvio da problemática
homem e ao mundo. Segundo ele, existe uma antropológica no pensamento de Hegel. O
época em que o homem se sente em casa no pensamento de Hegel, segundo Buber, exer-
mundo, isto é, ele vive no mundo como num ceu uma influência decisiva na maneira de
lar; e outras épocas em que o homem se sente pensar de toda uma época e mesmo em sua
sem lar, vive no mundo exposto à intempérie e atitude social e política. O sistema hegeliano
nem consegue armar uma tenda. Para Buber, despreza a pessoa humana concreta e a so-
somente nessas épocas sem lar que o problema ciedade humana concreta em detrimento da
do homem, surge para o homem: razão do mundo, seu processo dialético e suas
Nas primeiras [épocas], o pensamento an- estruturas objetivas.
tropológico não existe a não ser como uma Buber reconhece que o jovem Hegel co-
parte do pensamento cosmológico; nas locava a problemática antropológica no homem
segundas, o pensamento antropológico concreto sem falar de um conceito geral, mas de
ganha sua profundidade e, com ela, sua cada homem.4 Porém, em vão alguém procura
independência.” (BUBER, 1962, p. 19). o problema do homem real no Hegel maduro.

2
Exemplum praebe: A antropologia filosófica esboçada por Heidegger, olhos postos na finitude, possui o seu fundamento na pré-
compreensão. Para evitar a prolixidade, reenvio o leitor a uma excelente obra, recentemente lançada, que faz um balanço das questões
epistemológicas da antropologia (STEIN, 2009), precisamente o item 13: “A pré-compreensão como base de unidade do ser humano.”
(p. 101-118).
3
Para mais detalhes, reenvio o leitor a segunda parte do texto de Martin Heidegger, Kant e o Problema da Metafísica, intitulado
A Realização da Fundamentação da Metafísica. (HEIDEGGER, 1996, p. 27-111).
4
Buber se refere ao texto da juventude de Hegel, intitulado O Espírito do Cristianismo e seu Destino, escrito em 1799, mas publicado
apenas em 1907. (HEGEL, 1998, p. 287-384).

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O interesse de Hegel, na maturidade, não é de partida e de chegada em Marx, essa redução
devotado ao homem, mas à razão universal. Para sociológica renuncia a uma perspectiva do ser,
Hegel, o ser humano não passa de meio para a na qual existe um começo e um fim atemporal. É
consumação da razão: visível o confronto entre a perspectiva histórico-
O homem não passa de um princípio no dialética de Marx e a perspectiva histórico-
interior do qual a Razão universal atinge a messiânica de Buber.
autoconsciência plena, e com isso, a sua As consequências do pensamento de
perfeição. As contradições da vida e da Marx, para a antropologia filosófica de Buber,
história dos humanos ao ponto onde tudo é o esfacelamento de qualquer estrutura teoló-
antropologicamente questionado, a uma gica ou superestrutura. Para Marx, o lar em que
interrogação de ordem antropológica; mas o homem poderá morar, quando este estiver
que se explicam por uma mera “astúcia” da pronto, se construirá sob as condições de pro-
qual a ideia se serve para atingir, ao suplan- dução. Com Marx, é ponto pacífico afirmar que
tar a contradição, a sua própria perfeição. o mundo do homem é a sociedade. Tal estrutura
(BUBER, 1962, p. 35).
racionalista e finita não poderia servir de base
Sendo, pois, lugar e meio do autoconhe- para o homem peregrino e religioso que Buber
cimento da razão, não há para o homem limites tem em mente.
para o que ele possa conhecer. Hegel tentou, Buber alerta que não será a segurança do
com isso, dar ao ser humano uma nova casa, futuro (prometida pelo materialismo histórico,
não construída no espaço que já tinha sido através da revolução do proletariado) que evi-
abalado por Copérnico, mas no tempo. Secula- tará a queda do homem no abismo, mas a força
rizou o messianismo - tema muito frequente nos capaz de evitar tal queda brotará do desespero,
seus primeiros escritos -, não apresentando a a partir do qual o homem responderá com de-
problemática do futuro. Porém, a convicção na cisão à pergunta por sua essência:
autorealização do pensamento não conseguiu A força para dar esse passo não pode
edificar uma segurança real. Essa crítica à razão provir de nenhuma segurança do futuro,
hegeliana é perpetrada por Buber, através de mas dessas profundezas da insegurança
uma argumentação teológica (novamente) como nas quais o homem, presa do desespero,
garante e fim de sua antropologia filosófica, responde à pergunta pela essência do
centrada na certeza íntima (certeza da fé): homem mediante sua resoluta decisão.
(BUBER, 1962, p. 42).
Porém o pensamento, por si só, não tem
de poder organizar a vida real do homem, Com a introdução da noção desespero,
e a seguridade filosófica mais rigorosa decisão, resolução, propositadamente eu deixa-
pode oferecer à alma a certeza íntima
rei de lado as análises, um tanto quanto historio-
de conduzir um mundo imperfeito à sua
gráficas, que Buber realiza do pensamento de
perfeição. Hegel, seguramente, não per-
cebeu a problemática do futuro, visto que
Feuerbach e Nietzsche. À medida que a relação
fundamentalmente, ele vê em sua própria entre os homens, mediatizada pelo diálogo,
época e em sua própria filosofia o início supõe sempre a relação e a atualização da
da conclusão e que assim, o movimento condição humana de cada homem individual,
dialético da Ideia através do tempo, atinge Buber está mais identificado com Kierkegaard.
a sua perfeição. (BUBER, 1962, p. 39). Para ambos, Kierkegaard e Buber, o homem
Na continuidade de Hegel, Marx realizou é o lugar da síntese. Uma síntese provisória é
o que Buber chamou de redução sociológica. verdade, pois o fundamento dessa síntese, em
Ao invés de oferecer uma imagem do mundo, última análise, é a divindade.
Marx oferece uma imagem da sociedade. Uma Essa relação é, para Kierkegaard, uma
imagem do caminho pelo qual a sociedade relação efetiva e mútua, de pessoa a
poderia chegar à perfeição. No lugar da razão pessoa, quer dizer, que o absoluto entre
hegeliana, Marx coloca as relações de produção também nessa relação enquanto pessoa.
e, através da transformação dessas, realizar- Sua antropologia é, por conseguinte, uma
se-ia a transformação da sociedade. Como as antropologia teológica. Mas ela torna
relações de produção coincidem com o ponto possível a antropologia filosófica de nosso

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tempo. Para ganhar sua base filosófica, Buber, no mundo heideggeriano não existe,
esta antropologia filosófica deve renun- propriamente, um Tu. Portanto, só é possível
ciar à pressuposição teológica. (BUBER, compreender o homem em suas possibilidades
1962, p. 66). de relação com tudo que não é ele, mediante a
diferença ontológica. Buber recorre à reflexão
Para Buber, essa relação homem-absoluto kierkegaardiana, em clara oposição ao pensa-
é uma relação intersubjetiva, ou seja, uma re- mento heideggeriano.
lação recíproca e real, de pessoa a pessoa.
Portanto, é à base de uma antropologia teoló- O homem de Kierkegaard, em seu cuida-
gica que Buber fundamenta a sua antropologia do e angústia, se encontra “só diante de
Deus”; o homem de Heidegger, em seu
filosófica. Heidegger, por exemplo, não seguiu
cuidado e sua angústia, se encontra face
esse caminho. O filósofo alemão, ao tentar dar a si mesmo, nada de si mesmo; e como,
resposta ao significado do Ser, constrói uma em última realidade, pode encontrar-se
ontologia fundamental, através da existência diante de si mesmo, ele se encontra, sem
daquele ser presente que se relaciona com seu seu cuidado e angústia, face ao nada.
próprio ser e que tem a compreensão do seu (BUBER, 1962, p. 77).
próprio ser: o Homem. Todavia, Heidegger não
Ante o pensamento do católico, Heide-
está preocupado com o ser humano concreto
gger, Buber recua ao pensador dinamarquês,
(antropologia filosófica), mas o modo como se
preferindo este aquele, pois acredita que o
dá a existência e o que isso contribui para a
pensamento kierkegaardiano apresentava um
compreensão do Ser (ontologia fundamental).
sistema aberto, onde o homem deveria tornar-
A crítica de Buber a Heidegger, em últi-
se indivíduo para relacionar-se com o Absoluto.
ma análise, é a reafirmação da matriz judaica
Heidegger, ao realizar a secularização conceitu-
adotada e defendida por Buber, em franca opo-
al de Kierkegaard, faz desaparecer o encontro
sição à laicização heideggeriana dos conceitos
da alteridade essencial. Quem tem razão? Am-
kierkegaardianos. É, à base de uma antropolo-
bos. Buber é coerente com a sua antropologia
gia teológica, que Buber imputa a Heidegger
teológica, e Heidegger é honesto no que diz
a culpa por abstrair as categorias da realidade
respeito a fundamentação de uma antropologia
humana, baseadas na relação Eu-Tu e Eu-Isso.
filosófica, como consequência da morte da me-
Ao ouvir de Nietzsche a sentença: “Deus está
tafísica e o fim dos sistemas filosóficos.
morto”, só resta ao Dasein relacionar-se con-
Para Buber, não é possível encontrar o
sigo mesmo. Assim, a existência heideggeriana
essencial do ser humano nem no indivíduo,
é uma existência monológica, pois, além de
nem no agregado, pois ambos são abstrações.
se desviar da relação com o absoluto, também
O fato singular da vida humana é o que ocorre
não considera a relação com o outro, na qual o
entre ser e ser, ou seja, na relação intersubjetiva.
homem experimentaria o Incondicionado. Nas
O ser humano busca o outro ser humano para
palavras de Buber: “Visto que o homem tornou-
comunicar-se com ele numa esfera comum aos
se solitário já não pode mais dizer “Tu” ao Deus
dois que, entretanto, ultrapassa o campo de
conhecido e “morto”, resta saber se ele ainda
cada um. Trata-se da categoria do “entre”.
pode dizer ao Deus escondido e vivo “Tu”, com
todo o seu ser, a outro homem, conhecido e
vivo.” (BUBER, 1962, p. 72). O Fundamento do Agir Ético: o
Heidegger admite uma relação de solici- Interhumano
tude entre os seres humanos e estabelece uma
relação muito clara para fundamentar uma an- Para Buber, existem fenômenos sociais
tropologia filosófica, após a morte da metafísica, sempre que coexiste uma multiplicidade de
através do binômio ocupação/pré-ocupação. homens unidos por um vínculo, que, por conse-
Mas, para Buber, a solicitude não é a relação quência, produz reações em comum. Vínculos
essencial, que coloca a vida de alguém em sociais, para ele, não significa relação pessoal
relação direta com a vida de outro. A solicitude entre indivíduos do mesmo grupo. No domínio
só coloca um homem em relação com a falta do inter-humano, ao contrário, cada um é para
do outro. Partindo do postulado teológico de o outro um parceiro num acontecimento da vida,

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podendo estender essa parceria até mesmo Se nos tempos primitivos a pressuposição
entre adversários. do ser-homem deu-se através da retidão
da sua postura ao caminhar, a realização
A única coisa importante é que, para cada do ser-homem só pode dar-se através da
um dos dois homens, o outro aconteça retidão da alma no seu caminhar, através
como este outro determinado; que cada de uma grande honestidade que não é
um dos dois se torne consciente do outro mais afetada por nenhuma aparência,
de tal forma que precisamente por isso já que ela venceu a simulação. (BUBER,
assuma para com ele um comportamento, 1982, p. 143).
que não o considere e não o trate como
seu objeto mas como seu parceiro num Nesse sentido, o homem só pode ser com-
acontecimento da vida, mesmo que seja preendido em sua totalidade enquanto pessoa
apenas uma luta de boxe. É este o fator determinada pelo espírito, como presença, como
decisivo: o não-ser-objeto. (BUBER, 1982, criatura divina. Essa definição do homem como
p. 137-8). ser de relação é certamente inspirada em Kierke-
Para o filósofo judeu, o privilégio do ser gaard. A relação intersubjetiva enquanto pressu-
humano frente às outras coisas é a capacida- posto ético permite a Buber ultrapassar a relação
de do homem de resistir a toda objetivação. gnoseológica, instaurando a presença.
Este privilégio da não objetivação só pode ser Tomar conhecimento íntimo de um ho-
percebido entre parceiros. A confusão entre o mem significa então, principalmente,
social e o inter-humano é atribuída, por Buber, perceber sua totalidade enquanto pessoa
à má interpretação do conceito de relação. Só determinada pelo espírito, perceber o
nos acontecimentos que atualizem o homem, ou centro dinâmico que imprime o percep-
seja, na presença da face-a-face, é que se dá a tível signo da unicidade e toda a sua ma-
esfera do inter-humano. O seu desdobramento nifestação. O conhecimento íntimo só se
torna possível quando me coloco de uma
chama-se dialógico. A pessoa, na relação entre
forma elementar em relação com o outro,
(interhumano), é o fruto da relação entre o Eu e
portanto quando ele se torna presença
o Tu na relação, próximo da distinção buberiana para mim. (BUBER, 1982, p. 147).
entre sentimento e amor:
O ato de tornar-se presente da pessoa
Os sentimentos, nós os possuímos, o
contrapõe-se à relação sujeito-objeto, reificadora
amor acontece. Os sentimentos residem
no homem mas o homem habita em seu
do Eu-Isso. A ciência moderna com o seu método
amor. Isto não é simples metáfora mas a predicativo-descritivo reduz a relação homem-
realidade. O amor não está ligado ao Eu homem à relação Eu-Isso. Esse método, ao pensar
de tal modo que o Tu fosse considerado o homem como mero corpo psicofísico, reduz a
um conteúdo, um objeto: ele se realiza, abrangência das estruturas visíveis e recorrentes
entre o Eu e o Tu. Aquele que desconhe- na multiplicidade do humano, deduzindo, atra-
ce isso, e o desconhece na totalidade vés de conceitos gerais, o devir do homem por
de seu ser, não conhece o amor, mesmo formas genéticas. Embora o método analítico
que atribua ao amor os sentimentos que das ciências humanas seja imprescindível para
vivencia, experimenta, percebe, exprime. fazer avançar o conhecimento do fenômeno, ele
(BUBER, 2009, p. 61).
não consegue abarcar o conhecimento da indi-
Existe, no âmbito do inter-humano, uma pro- vidualidade desse fenômeno humano. Esse limite
blemática que na prática, instaura uma dualidade deve ser levado em conta pela ciência do homem
entre ser e parecer. No espaço, do inter-humano, (antropologia) transpondo o analítico, para atin-
a verdade está na comunicação entre os homens gir a vida. A proposta buberiana aproxima-se
com os outros, na autenticidade que permita a um do princípio kantiano no qual o semelhante não
homem que outro participe de seu ser, sem deixar deve ser considerado meio, mas tratado como fim
que se introduza alguma aparência entre os dois. em si. Porém, o princípio de Buber tem origem
Como isso é possível? Buber responde, reafirman- e finalidade diferente do dever sustentado pela
do o seu pressuposto teológico que a passagem dignidade humana de Kant. Interessa ao filósofo
da pressuposição à realização do ser-homem, só judeu saber os pressupostos do inter-humano e
é possível através da alma. da reciprocidade:

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O homem é antropologicamente existente identidade entre a absoluta exclusividade e
não no seu isolamento, mas na integrida- a absoluta inclusividade.
de da relação entre homem e homem: é
somente a reciprocidade da ação que pos- Na relação com Deus, a exclusividade
sibilita a compreensão adequada da natu- absoluta e a inclusividade absoluta se
reza humana. (BUBER, 1982, p. 152). identificam. Aquele que entra na relação
absoluta não se preocupa com nada mais
Há, para Buber, um destino humano, isolado, nem com coisas ou entes, nem
semelhante à teleologia aristotélica, na qual a com a terra ou com o céu, pois tudo está
individuação, à medida que significa apenas incluído na relação. Entrar na relação
a marca pessoal, é extremamente necessária pura não significa prescindir de tudo,
para a realização do ser-homem. Para ele, o mas sim ver tudo no Tu; não é renunciar
ser-próprio somente completa o essencial - que ao mundo mas sim proporcionar-lhe fun-
damentação (BUBER, 2009, p. 103).
é a criação da existência humana -, reafirman-
do a antropologia teológica como fundamento Deus é, por essência, o único Tu que não
da antropologia. O que leva o inter-humano à deixa de ser Tu para o homem. É a estrutura me-
sua verdadeira essência é a sua capacidade tafísica que fornece o sentido e suporta a relação
de abertura entre os homens. Essa teleologia horizontal e vertical. É um Tu que nunca se torna
se concretiza na relação-presença entre os um Isso. Nesse caso, o distanciamento de Deus
homens: não é ausência. O indivíduo, à medida que nem
É somente quando há dois homens, dos sempre está presente, deseja uma continuidade
quais cada um, ao ter o outro em mente, característica do mundo do Isso. A única forma
tem em mente ao mesmo tempo a coisa de dar continuidade à relação suprema é através
elevada que a este é destinada e que de uma conversão - um conceito teológico -, que
serve ao cumprimento do seu destino, remete o homem novamente ao seu centro, a sua
sem querer impor ao outro algo da sua origem, enquanto criatura. “A conversão consiste
própria realização, é somente aí que se em reconhecer novamente o centro e a ele voltar-
manifesta de uma forma encarnada toda se novamente. Neste ato essencial ressurge a
a glória dinâmica do ser do homem.
força da relação do homem, a onda de todas as
(BUBER, 1982, p.152).
relações se espalha em torrentes vivas e renova
Somente, pois, na relação em que se tem nosso mundo.” (BUBER, 2009, p. 118).
em vista a grandeza da vocação à qual o outro Com efeito, é na relação entre os homens
é chamado no âmbito da criação, aparece o ser que se destaca a palavra explicitada na lingua-
humano que deve realizar o seu ser-próprio e gem. É na vida com os homens que o ser pode
manifestar sua verdadeira natureza humana. experimentar a reciprocidade do contemplar e
Em cada evento de relação verdadeira, de en- ser-contemplado, do reconhecer e do ser-reco-
contro, o Ser se entrega em sua totalidade, sem nhecido, do amar e do ser-amado. Essa relação
mediações nem ações parciais, numa dinâmica entre é o prelúdio da verdadeira relação. Após
de escolher e ser escolhido. Buber, contrapondo sustentar a diferença ontológica, Buber recai em
a qualquer dualismo que proponha a renúncia uma espécie de platonismo para os leigos, pro-
ao mundo sensível para alcançar a relação abso- curando enxergar, na relação entre os homens,
luta, supõe que o ato do encontro, na aceitação a verdadeira imagem da relação com Deus:
da presença, é o suficiente.
Como toda relação, a relação suprema A relação com o ser humano é a ver-
exige o Eu, e só pode acontecer entre Eu e Tu. dadeira imagem da relação com Deus,
Existe uma peculiaridade proposta por Buber na qual a verdadeira invocação parti-
cipa da verdadeira resposta. (BUBER,
na relação com o Tu eterno, pois em toda a
2009, p. 120).
sua exposição sobre a palavra-princípio Eu-Tu
é afirmada a exclusividade do ser presente ao Ele sabe que eleger a relação humana
Eu, invocado como Tu. Essa exclusividade do como modelo da verdadeira liberdade, apro-
Tu só é rompida quando o Tu se transforma funda ainda mais o fosso entre Deus e o homem,
num Isso, coisa entre coisas. A relação com desfazendo a pretendida unidade originária que
o Tu eterno é uma relação em que existe a sua antropologia tanto necessita.

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A antropologia teológica de Buber ganha Eu e o mundo. A cada perdição (queda) mais
seus contornos definitivos quando ele afirma profunda, segue uma conversão mais originária.
um fenômeno primordial no qual o homem que Nesse processo em espiral, Deus se manifesta.
entrou em relação suprema com o supremo, Esse movimento antropológico é nomeado por
não sai deste evento do mesmo modo como Buber de conversão, o movimento teológico
entrou. Não se trata de um conteúdo, mas uma dessa relação recebe o nome de redenção.
presença, que é também uma força. Essa pre- Portanto, a redenção do ser humano
sença encerra três fatos: o primeiro fato é o de está no movimento de conversão, ou seja, no
ser acolhido e de estar vinculado, que torna a retorno ao vínculo da presença, que faz com
vida mais pesada, porém mais densa de sentido; que Deus se aproxime do “entre seres” e re-
o segundo é a supressão da questão do sentido alize a atualização do homem, na atualização
na sua inefável confirmação, ele não deve ser do mundo. Buber descreve o homem concreto
interpretado, mas realizado; o terceiro é colocar de seu tempo. A concretude da vida humana
à prova este sentido, ser intermédiário da sua interessa à sua filosofia dialogal e é para esse
realização no mundo sem nenhuma prescrição homem que Buber escreve.
prévia, uma vez que cada um só pode por à Este homem concreto não é um ser soli-
prova o sentido recebido na unicidade de seu tário, fechado em si e em seus próprios pensa-
ser e de sua vida. mentos, desligado de qualquer corporeidade e
Da mesma forma que o Tu eterno não de qualquer relação com um mundo exterior. Ao
pode ser reduzido a medidas e conceitos, Deus contrário, esse homem concreto é o homem cria-
não pode ser encontrado no mundo, nem fora tura, feito a imagem e semelhança de Deus. Só
dele, uma vez que não pode ser pensado ou esse homem, alfabetizado na Torá, compreende
experienciado. Toda referência a Deus não a antropologia teológica de Buber, travestida de
passa de metáfora. No entanto, o homem aspira conceitos filosóficos e não fica constrangido com
à continuidade da posse de Deus no espaço e essa relação Deus-Homem/Homem-Deus.
no tempo, buscando a duração da presença e
a extensão temporal. Por isso, Deus, o Tu eterno Referências Bibliográficas
e fundamento da relação, torna-se objeto de fé
e de culto. A única garantia de continuidade
está na elevação dos seres ao Tu, para que neles BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São
ressoe o Tu eterno. Só dessa forma, mesmo não Paulo: Perspectiva, 1982.
podendo nem devendo se libertar do mundo do _____. Eu e tu. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2001.
Isso, o homem pode assegurar o vínculo tem-
_____. Le problème de l’homme. Paris: Aubier
poral numa vida relacional e um vínculo espacial
Montaine, 1962.
na comunidade unida ao seu centro.
HEGEL, F. W. J. Escritos de Juventud. México:
Conclusão FCE, 1998.
HEIDEGGER, Martin. Kant y el problema de la
É nesse movimento de ida e de vinda da metafísica. México: FCE, 1996.
Palavra eterna e eternamente presente na histó-
STEIN, Ernildo. Antropologia filosófica: questões
ria que se renova o contato do Eu e do mundo
epistemológicas. Ijuí: Unijuí, 2009.
e aí, onde reina a palavra ativa, perdura um
acordo entre o Eu e o mundo. Quando a Palavra ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cum-
se torna válida, acontece a alienação entre o plicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003.

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