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UM CRISTIANISMO PERSEGUIDO

Os três primeiros séculos da era cristã foram marcados por perseguições à Igreja
nascente. De Cristo ao Edito de Milão (313 dC), os cristãos foram perseguidos, primeiro pelos
judeus, e, a partir de Nero, pelos romanos.
Até o incêndio de Roma, no ano de 64, o Império Romano admitia pacificamente a
existência dos cristãos. Na verdade não distinguia bem os cristãos dos judeus e dava àqueles o
mesmo tratamento dado a estes: liberdade de professar a religião de sua Nação. As tribulações
impostas pelos judeus aos cristãos eram tidas como querelas religiosas internas do judaísmo
(At 18,14-15; 25,19).
O apelo que Paulo dirige a César, no ano de 60, após dois anos de prisão em
Cesaréia, revela que por essa época os cristãos não encontravam hostilidade por parte do
Império. Pelo contrário, Paulo esperava que as autoridades romanas o livrassem da cilada que
lhe fora armada pelos judeus (At 24,10-21; 25,10-11; 26,1-32). O Imperador, a quem ele
apelara, era então Nero (54-68), que pouco depois se voltaria contra os cristãos. Paulo foi
solto em 63.
Já o Apocalipse — concluído em torno de 95 — dá uma outra visão do Império. Os
cristãos já não aceitavam mais sem reservas a autoridade romana, aceitação ainda
recomendada por São Paulo (Rm 13,1-7). O Império é descrito como a fera vinda do mar, e
Roma como a grande prostituta embriagada com o sangue dos mártires. A situação mudara
inteiramente.
O incêndio de Roma jogara o povo contra Nero: todos acreditavam que ele havia sido
o causador daquela desgraça. Nero por sua vez transferira a culpa para os cristãos. Este
procedimento tinha precedentes: por ocasião de outro incêndio, os magistrados — não
encontrando os culpados — jogaram a culpa sobre um grupo de estrangeiros que habitava em
Roma. O fato de não serem romanos já levantava sobre eles uma suspeita: só forasteiros
poderiam desejar a ruína de Roma!
Mas porque visar os cristãos e não um outro grupo qualquer? É possível que tenha
havido influência dos judeus nesta indicação, já que na corte de Nero havia personalidades
influentes de tendências judaizantes. Os judeus perseguiam os cristãos e tinham interesse em
que os romanos o fizessem também. Daí porque os incitavam sempre que podiam (cf At
18,12-13).

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De qualquer modo, já havia preconceitos no meio popular contra os cristãos.
Procurava-se uma vítima para satisfazer o seu descontentamento; nada melhor do que aqueles
já hostilizados, embora por outros motivos.
Assim narra Tácito, historiador romano (c.55-117): “Para fazer calar os rumores
relativos ao incêndio de Roma, Nero designou como acusados, indivíduos detestados por
causa de suas abominações, a quem o povo chamava de cristãos. O nome lhes veio de
‘Chrestos’, que, sob o reinado de Tibério, fora entregue ao suplício pelo procurador Pôncio
Pilatos. Reprimida por momentos, a execrável superstição transbordou novamente não apenas
na Judéia, berço do flagelo, mas em Roma para onde aflui tudo o que se conhece de mais
atroz e infame. Prenderam primeiro os que confessavam a fé, em seguida, por indicação
destes, uma multidão de outros, acusados não tanto de terem posto fogo na cidade, mas de
odiarem o gênero humano. Sua execução foi acompanhada de escárnios: assim, alguns,
cobertos de peles de animais, eram dilacerados pelos dentes das feras; outros, cravados em
cruzes, eram queimados ao cair do dia à guisa de tochas noturnas”.
Foram muitas as vítimas desta perseguição, entre as quais São Pedro e São Paulo.
O texto de Tácito reflete as acusações que eram feitas aos cristãos: abominações,
superstições, ódio ao gênero humano. De “ódio ao gênero humano” os judeus já tinham sido
acusados. Devia-se, originariamente, ao fato de a comunidade judaica ter costumes e práticas
próprios, que a isolava da vida comum dos cidadãos. Os cristãos, no entanto, não se afastavam
do povo; ao contrário, evitavam qualquer atitude de separatismo. Só não seguem costumes
idolátricos e pagãos, tais como: certas festas públicas, por exemplo, a freqüência aos teatros e
circos; algumas profissões, expressões politeístas, práticas que comportavam violência contra
os semelhantes (os gladiadores, as feras no circo), desrespeito ao próximo (prostituição),
adoração de estátuas ou de seres humanos divinizados. Além disso, os cristãos celebravam o
culto à parte não admitindo nele a presença de pagãos, o que criava um certo ar de mistério
em torno deles. Da idéia de “costumes diferentes” se evoluiu para “costumes desumanos”. Daí
as acusações — também já levantadas contra os judeus — de praticarem abominações e
infâmias (flagitia). Sobretudo no meio do povo essas concepções eram voz corrente: em suas
reuniões secretas os cristãos adorariam a cabeça de asno, praticariam ritos de assassínio de
crianças, seguidos de canibalismo, e se uniriam incestuosamente em orgias.
Era a recusa de seguir práticas cultuais pagãs que atraía sobre os cristãos a
hostilidade geral. Estes, fiéis à adoração do único e verdadeiro Deus, recusavam-se a cultuar
deuses pagãos, em particular o Imperador, a quem negavam caráter divino, somente atribuível
a Cristo. Por isto eram considerados ateus, ímpios, sacrílegos. Inúmeras vezes, a multidão

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enfurecida gritava nos estádios, ao ver cristãos entrarem na arena: “Morte para os ateus,
queimem os ímpios”. Foi exatamente enquanto religião diferente, e mais ainda, enquanto
religião nova, que o cristianismo se tornou alvo das críticas, tanto por parte do povo quanto da
elite.
Só podemos entender a atitude anticristã dos romanos, sabendo o alcance da religião
naquela época.
Na antigüidade clássica, tanto na Grécia quanto em Roma, era essencialmente sobre a
religião que se fundava a polis, a cidade (e por cidade deve entender-se Estado, a política). A
religião era uma função do Estado, desempenhada por homens especialmente designados para
isto. Nela a interioridade veio num segundo plano: era uma religião de atos formais, de culto
predominantemente exterior. A política estava essencialmente impregnada de religião, e
separar uma da outra era impossível. O culto constituía o laço de união, dava coesão a toda a
sociedade. Assim como o altar doméstico congregava em torno de si os membros de uma
família, do mesmo modo a cidade era a reunião dos que tinham os mesmos deuses protetores
e realizavam o ato religioso no mesmo altar. Renegar os deuses era não somente uma
apostasia mas uma traição à Pátria; tendo o ato religioso um caráter essencialmente cívico.
Roma, no entanto, mostrava-se tolerante para com os deuses dos povos por ela
subjugados. Cada conquista romana implicava numa ampliação de seu panteão. Desde os
primórdios, o Império foi literalmente invadido por inúmeros deuses, cultos e religiões,
sobretudo orientais. Houve, sem dúvida, algumas restrições e medidas proibitivas, mas no
conjunto não havia hostilidade. O princípio desta tolerância era a consideração de que cada
povo, cada cidade, tinha seus próprios deuses: a conquista ou a anexação a Roma afetava seu
território e a independência política de seus habitantes, mas não a sua religião. Se os deuses
romanos entravam em outras terras, isso aconteceu junto com outros elementos da cultura
romana e não por proselitismo religioso. Porém, um mínimo de conformismo com a religião
romana era pressuposto.
Assim se procedia em relação aos cultos politeístas. Apenas o judaísmo e o
cristianismos eram monoteístas. O judaísmo era considerado religião lícita (religio licita) por
ser uma religião nacional. Tanto antes quanto depois da conquista de Jerusalém por Tito em
70, Javé era para os romanos um deus nacional, o deus do povo hebreu. Os judeus dispersos
pelo mundo eram vistos como estrangeiros residentes nas cidades do Império, tendo a
princípio o direito de praticar o seu culto peculiar. Daí porque Roma não os considerava um
perigo para a religião politeísta tradicional. Foram-lhes, inclusive, concedidos privilégios,
eximindo-os de cargos e deveres civis incompatíveis com a sua fé religiosa. O judaísmo só foi

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alvo de perseguições quando se apresentou como uma ameaça política ao Império (por
ocasião das “revoltas messiânicas” dos zelotas, em 66 e em 135, por exemplo; ou devido à sua
expansão religiosa nas províncias).
Tertuliano (+ depois de 220), teólogo cristão, observa que foi à sombra do judaísmo
que o cristianismo pôde dar seus primeiros passos sem entrar em choque com a legislação
vigente. A situação muda quando, aos olhos da autoridade romana, aparece a distinção clara
entre judaísmo e cristianismo. Suspeita-se o surgimento de uma religião nova (e não “antiga”
como o judaísmo) – “Supertição nova e maléfica”, diz Suetônio, historiador romano (c.69-
126) – com a missão universal de reunir todos os homens na mesma fé, atingindo assim o
paganismo, a religião oficial do Estado, isto é, o suposto fundamento da grandeza do Império
Romano. Seu Deus ultrapassava as fronteiras nacionais e por isso podia ser adorado por todo
homem, fosse ele grego, gaulês ou africano: qualquer cidadão do Império era convidado a
tornar-se cristão.
Otávio (30 aC – 14dC), o iniciador do Império, introduziu a “divinização” do
monarca. O Imperador, agora pontífice máximo (Pontifex maximus), passa a ser chamado
sucessivamente, Augustus, Divus, Divinus, Sol Invictus, Dominus et Deus. A sacralização do
Imperador com seu respectivo rito religioso, tinham por finalidade reforçar a coesão de todo o
Império. O culto do Imperador teve assim inegáveis efeitos políticos: tornou-se como que um
denominador comum para todos os habitantes do vasto império, tão diversificados sob outros
aspectos.
Por outro lado, os romanos estavam convencidos de que sua prosperidade e vitórias
eram fruto de sua fidelidade aos deuses. Encaravam as calamidades como irritação dos deuses
por alguma infidelidade. E consideravam que as divindades desgostavam da presença de gente
que adorava um outro Deus, recusando-lhes o que se considerava o devido reconhecimento.
Acusavam os cristãos de ateísmo pelo fato de negarem o culto aos deuses oficiais, entre os
quais se contavam agora Roma e Augusto (o Imperador). A aparição de um grupo de homens
que se declarava inimigo dos deuses pátrios desencadeava no romano um sentimento de
hostilidade. Era uma ameaça à sua tranqüilidade pois os deuses poderiam ficar zangados.
Constituía igualmente uma ameaça à religião romana na medida em que o cristianismo se
expandia e ganhava sempre novos adeptos. Portanto, era uma ameaça política: a estabilidade
do Império, baseada na religião e na pessoa do Imperador, estava em risco.
O cristianismo foi considerado não apenas religião ilícita, mas “associação ilícita”
(collegium illicitum). Ora, todo aquele que formava uma associação não autorizada ou fora da
lei cometia um crime equiparado à lesa-majestade, para o qual a lei romana era extremamente

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rigorosa. A título de ilustração vejamos a sentença que condenou Cipriano, bispo de Cartago
na perseguição de Valeriano (253-260): “Durante muito tempo viveste sacrilegamente e
juntaste contigo muita gente numa conspiração criminosa, constituindo-te em inimigo dos
deuses romanos e de seus sagrados ritos, sem que os piedosos e sacratíssimos príncipes
Valeriano e Galieno (...) tenham conseguido fazer-te voltar à sua religião. Portanto, tendo sido
provado que foste cabeça e líder de homens réus dos mais abomináveis crimes, servirás de
exemplo para aqueles que juntastes para tua maldade, e com teu sangue ficará sancionada a
lei”. Outro exemplo exprime bem a maneira como os cristãos eram vistos: em setembro de
303, o Imperador Diocleciano (284-305) promulgou uma anistia que abriu as portas das
prisões a numerosos condenados. Ela não se estendeu, porém, aos cristãos, considerados não
como condenados comuns, mas rebeldes.
O cristianismo foi legalmente proscrito por Nero: sob a acusação de supertição ilícita
(superstitio ilicita), tornou-se religião ilícita (religio ilicita). Não se sabe ao certo como se
estabeleceu juridicamente esta proibição. Tertuliano diz que Nero decretou uma lei, o
institutum neronianum, cujo teor teria sido este: Ut christiani non sint – não é lícito ser
cristão. O fato é que o cristianismo passou a ser considerado legalmente criminoso.
Nos dois primeiros séculos os Imperadores não determinaram perseguições gerais.
Estes eram originalmente frutos de movimentos locais e de iniciativa popular que só
posteriormente eram submetidas à apreciação da magistratura. Era o povo, freqüentemente,
que incitava às perseguições, pedindo que as autoridades tomassem medidas contra os
seguidores de Jesus. Curiosamente, era exatamente nas classes populares que o cristianismo
mais se expandia. Aqueles, porém, que não se convertiam – a maioria –criticava as atitudes
dos cristãos que deixavam de lado o politeísmo com suas crenças antigas. Nas fileiras do povo
havia discípulos abnegados e também adversários fanáticos. Estes últimos achavam
plenamente legítimo castigar aqueles que não seguiam as normas religiosas da sociedade.
Julgavam-se, apelando aos deuses, no seu direito de eliminar os cristãos. Os magistrados, por
sua vez, atendiam quase sempre com grande solicitude aos reclamos da multidão, mormente
quando esta se reunia nos estádios. Os rescritos (determinações por escrito) dos imperadores
do século II visavam principalmente controlar a fúria popular e orientar os magistrados para
que não aceitassem com facilidade perturbações da ordem. Mas não colocavam em dúvida a
ilegalidade do cristianismo. Por volta do ano 112, Plínio, o Moço, governador da Bitínia,
consultou o Imperador Trajano a respeito da atitude que devia adotar em relação aos cristãos.
Trajano respondeu com um rescrito que se tornou a jurisprudência seguida durante um século.

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Adriano, em 124, publicou várias prescrições: só seriam aceitas denúncias com
provas e não através de aclamações e gritos. Se alguém acusar caluniosamente deveria ser
castigado.
O procedimento legal para com o cristianismo nos dois primeiros séculos era este: a
justiça podia sempre ser acionada contra os cristãos ou quando havia denúncias particulares.
O que não era difícil de ocorrer em meio à hostilidade reinante. Neste período a situação dos
cristãos caracterizava-se pela insegurança.
Poder-se-ia chamar esse regime como perseguição circunstancial: ora aqui, ora acolá;
hoje perseguição, amanhã tolerância. E, sob vários imperadores, houve períodos de tolerância
bastante longos. A intensidade com que a perseguição atingia cada região, porém, foi muitas
vezes grande.
Lentamente se estabeleceu a convicção de que ser cristão constituía um crime por si.
Mas um crime sui generis. Aqueles que o cometiam não deviam ser procurados; mas, pelo
simples fato de ser cristão infringia-se a lei. Caso alguém fosse acusado e confessasse,
receberia castigo. Porém não de modo absoluto, porque se renegasse a sua fé estava
automaticamente absolvido: para isso bastava uma palavra e alguns gestos.
Com Sétimo Severo, em 202, iniciou-se uma nova prática, seguido por vários de seus
sucessores: a autoridade pública assume, em determinadas ocasiões, a iniciativa das
perseguições. A regra de Trajano – “os cristãos não devem ser procurados” – foi abandonada.
Começa a era das perseguições por editos (decretos). Correlativamente, as perseguições
baseadas em acusações particulares se tornam mais raras, até que, mais tarde, cessam
completamente.
A Igreja sofreu, do início do século III ao início do século IV, o choque de explosões
bruscas e violentas, numa onda sempre crescente. Essa política, no entanto, mostrar-se-ia
ineficaz. Períodos de violência são seguidos por períodos, às vezes longos, de uma paz que, de
tempo em tempo, era quebrada pela retomada do regime antigo, mas tendia a se firmar. Em
202, Severo baixou um edito proibindo aos cristãos e aos judeus o proselitismo, isto é, a
propagação de sua religião. Foi o primeiro edito imperial que atingia diretamente a Igreja. A
motivação desta medida era a seguinte: os avanços da propaganda cristã (e judaica)
alarmavam a autoridade romana, que via o próprio Império ameaçado, na medida em que a
religião tradicional estava sendo solapada. Mas veja-se bem: o decreto não visava em
primeiro lugar os que já eram cristãos. Procurava, antes de tudo, estancar a difusão do
cristianismo. Assim, os bispos, em geral, não foram inquietados neste período. O alvo era
principalmente os que se preparavam para o batismo (os catecúmenos), os que aceitavam

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receber o batismo (os neófitos: recém-batizados) e os encarregados de sua preparação
(catequistas). Enfim, o crime visado pelo novo edito era impedir alguém se tornar cristão.
Note-se que a legislação anterior não foi abolida: ser cristão continuava sendo um crime
passível de punição quando houvesse declaração.
Somente a partir de meados do século III é que se iniciaram as perseguições
sistemáticas, com editos cuidadosamente elaborados, com o objetivo de exterminar
efetivamente o cristianismo. Décio (249-251) foi o primeiro Imperador a decretar uma
perseguição geral contra os cristãos. Apesar da curta duração (250-251) a perseguição atingiu
uma intensidade e uma extensão nunca dantes vista. A finalidade de Décio, assim como a de
Severo, era reforçar a unidade romana em torno da religião. Daí o interesse em fazer mais
apóstatas do que mártires. O edito determinava que todo cidadão do Império devia sacrificar
aos deuses. Depois de ter sacrificado, o cidadão recebia um certificado (libellus)
comprovando sua fidelidade à lei. De posse desta, o indivíduo estava desobrigado. O
certificado continha, além da identificação e da data, os seguintes dizeres: “À comissão de
sacrifícios... Sempre cumpri com os sacrifícios aos deuses, e agora, em vossa presença
conforme manda o edito, sacrifiquei, ofereci libações e tomei parte no banquete sagrado, e
suplico-lhes que assim o certifiqueis”.
A perseguição foi meticulosamente organizada. As prisões se encheram de cristãos.
A primeira vítima foi o Papa Fabiano, martirizado a 20 de janeiro de 250. Os bispos eram alvo
privilegiado, pois o edito atingia preferentemente os chefes das igrejas.
Valeriano (253-260), depois de um período de paz, desencadeou, em 257, nova
perseguição, influenciado por seu ministro das finanças Macriano.
O que houve de especial desta vez foi o misticismo pagão impregnado de um ódio
mortal contra o cristianismo (Macriano era membro importante de uma confraria pagã do
Egito). Por outro lado, como a situação financeira do Império era crítica, buscavam-se fontes
de renda. Macriano foi o primeiro homem de Estado a tirar partido do anticristianismo para
encher os cofres do Estado. Na época, a propriedade eclesiástica assumira importância
considerável e uma parte da aristocracia romana já aderira à Igreja.
O primeiro edito de Valeriano (agosto de 257) visava principalmente o clero –
bispos, presbíteros (padres) e diáconos - a quem se intimava o reconhecimento, mediante um
ato de sacrifício, dos deuses do Império. Por outro lado — e esta disposição afetava todo povo
fiel — proibia-se, sob pena capital, a celebração do culto e a reunião nos cemitérios. O
segundo edito ordenava a execução imediata de membros do clero que não tinham realizado o

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sacrifício, determinando o confisco de seus bens. As perseguições de Valeriano e Décio foram
as mais violentas do século III.
Galieno (260-268), que sucedeu a Valeriano, restabeleceu a tolerância, a qual só foi
rompida quarenta anos mais tarde, por Diocleciano. As determinações de Galieno
autorizavam o culto, mandavam restituir os templos e permitiam aos cristãos entrar em posse
de seus cemitérios. Essas promulgações não transformavam o cristianismo em religio licita
mas constituíam um reconhecimento de fato. O desenvolvimento da Igreja, sua penetração na
elite e seu crescimento quantitativo eram um fato que o Estado já não podia mais ignorar.
Diocleciano só iniciou a perseguição depois de quase vinte anos de reinado, por
influência de filho César Galério. Foi, porém, a mais longa e mais violenta (303-313). Alguns
anos antes (297) se iniciara um processo de exclusão dos cristãos do Exército.
O Império passou, no século III, por uma crise terrível (235-285): externamente,
inimigos pondo em perigo as fronteiras; e internamente, instabilidade do poder, guerra civil,
dificuldades econômicas, anarquia. Diocleciano assumiu a tarefa de salvar o Império e para
isso serviu-se da coerção e da violência.
O novo Império se apresentava como um verdadeiro Estado totalitário no sentido
moderno da palavra, procurando submeter a si todas as energias de seus súditos, absorvendo-
as e unificando-as. A autoridade do soberano se afirmava com características absolutistas.
Desde Augusto sempre existira uma dimensão religiosa na estrutura do poder imperial; com o
novo regime este elemento se consolidava ainda mais. O apego de Diocleciano às tradições
religiosas da antiga Roma e um ideal tão apaixonado pela coesão e pela unidade manifesta em
toda a sua política, levaram necessariamente a confrontos entre o Império pagão e a religião
cristã.
Quatro editos se sucederam em menos de um ano, de 24 de fevereiro de 303 a
janeiro-fevereiro de 304. O primeiro edito tinha em vista sobretudo o culto: destruição das
igrejas; queima dos livros sagrados; confisco de objetos sacros de valor. Os cristãos passaram
a ser excluídos de funções públicas e destituídos de certos direitos. O segundo edito ordenava
a prisão de todos os chefes das comunidades. O terceiro determinava a libertação daqueles
que sacrificassem, e a tortura para os demais. O quarto — como no tempo de Décio —
obrigava todos os habitantes do Império a sacrificar, sob pena de torturas, prisão e morte. As
prisões ficaram repletas, e sobretudo no primeiro ano os membros do clero foram os mais
atingidos. Roma não teve bispo durante quatro anos. A perseguição que durou dez anos foi
muitas vezes interrompida, variando de intensidade conforme o lugar. Nas regiões do Império
submetidas a Constâncio (e depois a Constantino) – Gália, Bretanha, Espanha – só foi

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aplicado o primeiro edito e sem muito entusiasmo. No resto do Ocidente ela foi de curta
duração: no conjunto, não mais de dois anos. Porém no Oriente – Líbia, Egito, Palestina,
Síria, até o Ilírico – a perseguição mostrou-se mais severa, prolongando-se, com alguns
intervalos de relaxamento, até a primavera de 313. O que sobressai é a violência das torturas,
dos martírios e das condenações impostas.
As perseguições começaram a diminuir a partir do oitavo ano (310-311). Em 311
Galério assinou o edito reconhecendo sua inutilidade, pois apesar de toda a violência os
cristãos continuavam resistindo: “... depois da publicação de nosso edito, intimando-os a se
conformar com os costumes tradicionais, muitos foram perseguidos, muitos inclusive foram
mortos. Mas como um grande número persiste ainda em seus propósitos (...), decidimos (...)
que eles possam ser cristãos e reconstruir seus locais de reunião (...)”.
Maximino Daia não aceitou esta resolução e pouco depois prosseguiu
implacavelmente a perseguição no Oriente. Só depois de derrotado por Licínio a 30 de abril
de 313 é que concedeu liberdade completa aos cristãos. Foi o chamado Edito de Milão de 13
de junho de 313 que pôs fim definitivo às perseguições romanas contra os cristãos. Na
verdade ele foi promulgado por Licínio, em Nicomédia. Anteriormente, Constantino e Licínio
tinham se encontrado em Milão onde chegaram a um acordo. O edito concedia liberdade
religiosa para todos (inclusive as outras religiões) e determinava a devolução das igrejas e
demais propriedades confiscadas.
Até Sétimo Severo seguiu-se a jurisprudência de Trajano. Com Severo se iniciaram
os editos imperiais contra o cristianismo e com Décio foi decretada a primeira perseguição
geral. O regime iniciado por Décio foi levado às últimas conseqüências por Diocleciano.
A perseguição, portanto, com maior ou menor intensidade, durou dois séculos e meio
e se estendeu por todo o Império. Não foi permanente mas intermitente. Houve vários
imperadores em cujo governo ela se reduziu a alguns casos limitados no tempo e no espaço.
Os imperadores que se distinguiram por hostilidade declarada ao cristianismo, em geral só
desencadearam perseguições no final de seu reinado. Por outro lado, elas não se deram em
todos os lugares ao mesmo tempo. Enquanto eram intensas em uma parte do Império,
inexistiam em outras. Mesmo nas perseguições gerais a própria extensão do Império impedia
que se aplicasse a lei nas diferentes regiões com o mesmo rigor.
Ao longo de todo esse período, os cristãos viveram em permanente insegurança e
sofreram hostilidade por parte do povo.
A lei contra eles jamais foi completamente abolida. Mesmo em tempos de trégua e
calma, quando a comunidade respirava, o juiz podia aplicá-la sempre que se levava um

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acusado ao tribunal. No conjunto, sem entrar aqui em pormenores, pode-se estabelecer o
seguinte quadro de 64 a 313, ou seja 249 anos:

Século I - 6 anos de perseguição e 30 de tolerância.


Século II - 86 anos de perseguição e 14 de tolerância.
Século III - 24 anos de perseguição e 76 de tolerância.
Século IV - 13 anos de perseguição.

A Igreja conheceu, pois, 129 anos de perseguição e gozou aproximadamente 120 de


relativa tranqüilidade. A distribuição dos anos de perseguição permite ver que todas as
gerações de cristãos daquela época conheceram o drama do martírio e deviam estar
preparadas para enfrentá-lo. Os escritores-testemunhas desse período, tanto pagãos como
cristãos, são unânimes em reconhecer o grande número de mártires. Pelos dados que
possuímos – os quais, diga-se de passagem, não são completos– o número total de mártires
pode ser calculado entre (no mínimo) 100 mil e (no máximo) 200 mil. Mas é preciso dizer
que este número não nos dá uma imagem exata das perseguições, pois ao lado de cada mártir
conhecido há talvez outros 100 que tiveram que suportar o confisco de seus bens, a prisão, as
torturas, o desterro ou a condenação a trabalhos forçados.

Fonte: LESBAUPIN, Ivo. A bem-aventurança da perseguição: a vida dos cristãos no Império


Romano. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1977. p.13-25 (com muitas adaptações no texto original).

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