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As irmãs Cholmondeley.
Obra de autoria Essa pintura do século XVII, de artista desconhecido, pode ser
desconhecida, c. 1600-1610.
representativa das questões sobre a manipulação das células e das
variações genéticas por retratar duas irmãs gêmeas que apresentam
as mesmas feições e características. Há no canto inferior esquerdo
dessa pintura a seguinte e curiosa inscrição: "Duas irmãs da familia
Cholmondeley que nasceram no mesmo dia, se casaram no mesmo
dia e tiveram filho no mesmo dia". As possibilidades das novas
ciências, como a engenharia genética, de interferir na criação da
vida humana nos impõem a necessidade de revisar todos os valores,
principalmente os éticos.
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A resposta do Gato tem sido frequentemente citada • Descobrir pelo senso comum que a roda facilita
para exprimir a opinião de que os cientistas não o transporte de cargas não significa saber expli-
sabem para onde o conhecimento está levando a car as forças de fricção; conhecer o uso medi-
humanidade e, além disso, não se importam muito. cinal de certas ervas não quer dizer identificar
Diz-se que a ciência não pode oferecer objetivos suas propriedades ou compreender como se dá
socia is porque os seus valores são intelectuais e sua ação no organismo.
não éticos. [... ] Mas é provável que a ciência possa • O camponês sabe plantar e colher conforme
contribuir para formular valores e, assim . estabelecer aprendeu com seus pais, usando técnicas her-
objetivos, tornando o homem mais consciente dadas de seu grupo social, as quais são trans-
das consequências de seus atos. A necessidade de formadas lentamente em decorrência dos acon-
conhecimento das consequências, no ato de tomar tecimentos casuais com os quais esse grupo
decisões. está implícita na observação do Gato de se depara. Mas. se em determinado momento
que Alice chegaria certamente a algum lugar se a adubagem deixa de proporcionar os efeitos
caminhasse bastante. Desde que esse algum lugar desejados, ele não sabe identificar os motivos.
poderia revelar-se bem indesejável. é melhor fazer Suas crenças, baseadas em hábitos rotineiros,
escolhas conscientes do lugar para onde se quer ir.1 valem enquanto há êxito, mas é com o conhe-
cimento científico que se obtêm elementos
Com base no texto de René Dubos, professor de para corrigir condutas e adaptá-las a novas
biomedicina ambiental, iniciamos este capítulo com situações.
~o a seguinte reflexão: a ciência não é um saber neu- • Pelo senso comum, sabemos que a água se
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tro, desinteressado, puramente intelectual, à mar- congela quando a temperatura abaixa "o sufi-
~o gem do questionamento social e político acerca dos ciente". A imprecisão característica desse tipo
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~ fins de suas pesquisas. de conhecimento é evitada pela ciência, que se
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o baseia em uma medição precisa. Além disso, ela
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pode verificar a variedade de condições em que
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fJ Senso comum e ciência ocorre a solidificação dos ·líquidos, seja o caso
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<> O senso comum é o conhecimento que ajuda a da água, do leite, da cerveja, da vodka (que não
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nos situarmos no cotidiano, para compreendê-lo e congela nosfreezers domésticos), e tem condi-
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agir sobre ele. Mais propriamente, poderíamos dizer ções de explicar ainda por que um poço congela
que se trata de um conjunto de crenças, já que esse e o oceano não.
conhecimento quase sempre o recebemos pela tra-
dição, de modo espontâneo e não crítico. Mas não • Características distintas
só. Trata-se também do esforço que fazemos para
A partir desses exemplos. podemos examinar
resolver os problemas que surgem no dia a dia, bus-
algumas características pelas quais se contrapõem
cando soluções muitas vezes bastante criativas.
esses dois tipos de conhecimento.
É bem verdade que, em diversas situações, a ciên-
cia precisou se posicionar contra o que era consi- Particular/geral
derado evidente por essas crenças, por exemplo, Do senso comum resulta um conhecimento parti-
quando se achava natural que a Terra estivesse imó- cular. restrito a uma pequena amostra da realidade,
vel e o Sol girasse em torno dela. No entanto, não
a partir da qual são feitas generalizações muitas
há como desprezar esse conhecimento tão univer-
vezes apressadas e imprecisas. Os dados observados
sal nem desconsiderar o grande volume de saberes
costumam ser selecionados de maneira não muito
já construídos ao longo da história humana e cuja rigorosa. Em outras palavras, conclui-se para todos
aplicação se mostrou fecunda.
os objetos o que vale para um ou para um grupo de
objetos observados.
• Alguns exemplos Já as conclusões da ciência são gerais no sentido de
Vamos distinguir o senso comum da ciência/ que não valem apenas para os casos observados, e sim
examinando a especificidade de cada um por meio para todos os que a eles se assemelham. Afirmações
de exemplos. como "o peso de qualquer objeto depende do campo
1
DUBOS, René. O despertar da razão. São Paulo: Melhoramentos/ Edusp, 1972. p. 165.
2
Baseado em NAGEL, Ernest. La estructura de la ciencia. Buenos Aires: Paidos, 1978. p. 15-26.
Ambiguidade/rigor
Para ser precisa e objetiva, a ciência dispõe de
uma linguagem rigorosa cujos conceitos são defi-
nidos para evitar ambiguidades. A linguagem tor-
na-se cada vez mais precisa, à medida que utiliza
a matemática para transformar qualidades em
quantidades. A matematização da ciência adqui-
riu grande importância no trabalho de Galileu. Ao
estabelecer a lei da queda dos corpos, por exemplo,
Mulher velha cozinhando ovos. Diego Velásquez, 1618.
Galileu mediu o espaço percorrido e o tempo que
Não é preciso efetuar uma invest igação científica para
cozinhar um ovo, basta a experiência proporcionada um corpo leva para descer o plano inclinado, e ao
pelo senso comum. final das observações registrou a lei numa formula-
ção matemática.
É bem verdade que o mesmo não ocorre com
Fragmentário/unificador
Em comparação com a ciência, o conhecimento as ciências humanas, cujo componente qualitativo
espontâneo é fragmentário, pois não estabelece não pode ser reduzido à quantidade. Algumas delas,
conexões em situações em que essas poderiam ser como é o caso da psicanálise, não fazem uso da
verificadas. Por exemplo: pelo senso comum não matemática ou da experimentação, embora outras
é possível perceber qualquer relação entre o orva- teorias psicológicas, como as comportamentalis-
lho da noite e o "suor" que aparece na garrafa reti- tas, recorram não só às experiências em laborató-
rada da geladeira; nem entre a combustão e a res- rio como à matemática e à estatística.
piração (que é uma forma de combustão discreta
relacionada à queima dos alimentos no processo
digestivo para obter energia). Se dermos crédito à
~PARA SABER MAIS
Voltaremos às ciências humanas no capítu lo 32, "O
velha história, é interessante lembrar as circuns- método das ciências humanas".
tâncias em que Isaac Newton teria intuído a lei da
só serão aceitas se forem consideradas indubitáveis. ticas relativas aos valores cognitivos da ciência: a !llo
É preciso retirar do conceito de ciência a falsa ideia imparcialidade, a autonomia e a neutralidade. u
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de ser ela a única explicação da realidade, um conhe- ~
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nos modelos científicos e, às vezes, são aceitas até De acordo com o professor australiano Hugh o
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manifestarem os valo res cognitivos em alto grau,
são de certo modo provisórias.
segundo os mais rigorosos padrões de avaliação
e com respeito a uma série apropriada de dados
empíricos. 4
Neutra Iidade
O conhecimento científico é neutro quando não
atende a nenhum outro valor particular, podendo
suas práticas serem realizadas no interior de qual-
quer esquema de valor: elas não serviriam a nenhum
interesse específico. Ou seja, no processo de investi-
gação propriamente dito, os valores morais e sociais
não deveriam influenciar diretamente os cientistas,
quando o objetivo é cognitivo.
Cientistas examinando plantas em estufa. Japão, 2008.
Desde Arquimedes a ciência foi um trabalho para Autonomia
inventores e gênios solitários. A ciência contemporânea
é realizada por várias equipes de trabalho em grandes A autonomia refere-se às condições independen-
laboratórios, financiados por empresas multinacionais, tes das investigações, porque, segundo se espera,
universidades e governos. as instituições científicas deveriam estar isentas
3
FOUREZ, Gérard. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo:
Editora Unesp, 1995. p. 94-95.
4
LACEY, Hugh. Valores e atividade científica. São Paulo: Discurso Editorial, 1998. p. 133.
LACEY, Hugh. Valores e atividade cientifica. São Paulo: Discurso Editorial, 1998. p. 32.
1J A responsabilidade social
O grande risco da excessiva interferência econô- do cientista
mica nas ciências pode ser ilustrado pelas conquis- Pelo que vimos, não há como aceitar que a exi-
tas obtidas na engenharia genética, que levam gran- gência da neutralidade da ciência se resuma à pro-
des corporações a buscarem justificativas legais cura do "saber pelo saber". A ciência encontra-se
para patentear, por exemplo, as descobertas rea- inextricavelrnente envolvida na moral e na política,
lizadas com a manipulação do código genético de e o cientista tem uma responsabilidade social da
sementes (alimentos transgênicos). qual não pode abdicar.
São também objetos de debates acalorados as Essas observações nos levam a refletir sobre a for-
possibilidades de clonagem de seres humanos, a mação do cientista, que não deve se restringir apenas
partir do sucesso obtido com a aplicação da téc- ao aprendizado de conteúdos, metodologias e práti-
nica em animais. No entanto, o temor de que cien- cas de pesquisa. Mais do que isso, o futuro cientista
tistas se encaminhem para a clonagem humana tem precisa ter condições de examinar os pressupostos de
desviado - e confundido - as discussões em torno seu conhecimento e de sua atividade, de se perceber
das pesquisas com células-tronco, sobretudo aque- como pertencendo a uma comunidade e de identifi-
las que não são extraídas do embrião propriamente car os valores subjacentes a sua prática.
dito, mas de tecidos adultos (como a medula óssea Qual é o papel da filosofia com relação à ciên-
ou o cordão umbilical). As vantagens das novas pes- cia e suas aplicações? Seu compromisso repousa na
quisas estariam na prevenção e cura das mais diver- investigação dos .fins e das prioridades a que a ciên-
sas doenças. cia se propõe, na análise das condições em que se
Todas essas questões têm sido abordadas pela realizam as pesquisas e nas consequências das téc-
bioética, atualíssimo campo que abriga as mais nicas utilizadas.