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As irmãs Cholmondeley.
Obra de autoria Essa pintura do século XVII, de artista desconhecido, pode ser
desconhecida, c. 1600-1610.
representativa das questões sobre a manipulação das células e das
variações genéticas por retratar duas irmãs gêmeas que apresentam
as mesmas feições e características. Há no canto inferior esquerdo
dessa pintura a seguinte e curiosa inscrição: "Duas irmãs da familia
Cholmondeley que nasceram no mesmo dia, se casaram no mesmo
dia e tiveram filho no mesmo dia". As possibilidades das novas
ciências, como a engenharia genética, de interferir na criação da
vida humana nos impõem a necessidade de revisar todos os valores,
principalmente os éticos.

D Que caminho devo tomar?


Lewis Carrol l era professor de matemática na Uni versidade de Oxford quando
escreveu o segu inte em Alice no país da maravilhas:
"- Gato Cheshire ... quer fazer o favor de me dizer qual é o caminho que eu devo
tomar?
- Isso depende muito do lugar para onde você quer i r - disse o Gato.
- Não me interessa muito para onde ... - disse Alice.
-Não tem importância então o caminho que você tomar- disse o Gato.
- ... contanto que eu chegue a algum lugar- acrescentou Alice como uma
expl icação.
- Ah , disso pode ter certeza - disse o Gato- desde que caminhe basta nte. "

342
A resposta do Gato tem sido frequentemente citada • Descobrir pelo senso comum que a roda facilita
para exprimir a opinião de que os cientistas não o transporte de cargas não significa saber expli-
sabem para onde o conhecimento está levando a car as forças de fricção; conhecer o uso medi-
humanidade e, além disso, não se importam muito. cinal de certas ervas não quer dizer identificar
Diz-se que a ciência não pode oferecer objetivos suas propriedades ou compreender como se dá
socia is porque os seus valores são intelectuais e sua ação no organismo.
não éticos. [... ] Mas é provável que a ciência possa • O camponês sabe plantar e colher conforme
contribuir para formular valores e, assim . estabelecer aprendeu com seus pais, usando técnicas her-
objetivos, tornando o homem mais consciente dadas de seu grupo social, as quais são trans-
das consequências de seus atos. A necessidade de formadas lentamente em decorrência dos acon-
conhecimento das consequências, no ato de tomar tecimentos casuais com os quais esse grupo
decisões. está implícita na observação do Gato de se depara. Mas. se em determinado momento
que Alice chegaria certamente a algum lugar se a adubagem deixa de proporcionar os efeitos
caminhasse bastante. Desde que esse algum lugar desejados, ele não sabe identificar os motivos.
poderia revelar-se bem indesejável. é melhor fazer Suas crenças, baseadas em hábitos rotineiros,
escolhas conscientes do lugar para onde se quer ir.1 valem enquanto há êxito, mas é com o conhe-
cimento científico que se obtêm elementos
Com base no texto de René Dubos, professor de para corrigir condutas e adaptá-las a novas
biomedicina ambiental, iniciamos este capítulo com situações.
~o a seguinte reflexão: a ciência não é um saber neu- • Pelo senso comum, sabemos que a água se
"O
e

tro, desinteressado, puramente intelectual, à mar- congela quando a temperatura abaixa "o sufi-
~o gem do questionamento social e político acerca dos ciente". A imprecisão característica desse tipo
"O
~ fins de suas pesquisas. de conhecimento é evitada pela ciência, que se
o
"O
o baseia em uma medição precisa. Além disso, ela
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pode verificar a variedade de condições em que
3
o
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fJ Senso comum e ciência ocorre a solidificação dos ·líquidos, seja o caso
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o
<> O senso comum é o conhecimento que ajuda a da água, do leite, da cerveja, da vodka (que não
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o
nos situarmos no cotidiano, para compreendê-lo e congela nosfreezers domésticos), e tem condi-
"O
~

"'
agir sobre ele. Mais propriamente, poderíamos dizer ções de explicar ainda por que um poço congela
que se trata de um conjunto de crenças, já que esse e o oceano não.
conhecimento quase sempre o recebemos pela tra-
dição, de modo espontâneo e não crítico. Mas não • Características distintas
só. Trata-se também do esforço que fazemos para
A partir desses exemplos. podemos examinar
resolver os problemas que surgem no dia a dia, bus-
algumas características pelas quais se contrapõem
cando soluções muitas vezes bastante criativas.
esses dois tipos de conhecimento.
É bem verdade que, em diversas situações, a ciên-
cia precisou se posicionar contra o que era consi- Particular/geral
derado evidente por essas crenças, por exemplo, Do senso comum resulta um conhecimento parti-
quando se achava natural que a Terra estivesse imó- cular. restrito a uma pequena amostra da realidade,
vel e o Sol girasse em torno dela. No entanto, não
a partir da qual são feitas generalizações muitas
há como desprezar esse conhecimento tão univer-
vezes apressadas e imprecisas. Os dados observados
sal nem desconsiderar o grande volume de saberes
costumam ser selecionados de maneira não muito
já construídos ao longo da história humana e cuja rigorosa. Em outras palavras, conclui-se para todos
aplicação se mostrou fecunda.
os objetos o que vale para um ou para um grupo de
objetos observados.
• Alguns exemplos Já as conclusões da ciência são gerais no sentido de
Vamos distinguir o senso comum da ciência/ que não valem apenas para os casos observados, e sim
examinando a especificidade de cada um por meio para todos os que a eles se assemelham. Afirmações
de exemplos. como "o peso de qualquer objeto depende do campo

1
DUBOS, René. O despertar da razão. São Paulo: Melhoramentos/ Edusp, 1972. p. 165.
2
Baseado em NAGEL, Ernest. La estructura de la ciencia. Buenos Aires: Paidos, 1978. p. 15-26.

Ciência, tecnologia e valores Capítulo 28


de gravitação'' ou "a cor de um objeto depende da luz gravitação universal, ao associar a queda de urna
que ele reflete" ou ainda "a água é uma substância maçã à "queda'' da Lua. Aliás, o caráter unificador
composta de hidrogênio e oxigênio'' são válidas para dessa teoria nos permite associar fenômenos apa-
todos os corpos, todos os objetos coloridos ou qual- rentemente tão díspares como o movimento da Lua,
quer porção de água, e não apenas para aqueles que as marés, as trajetórias dos projéteis e a subida dos
foram objeto da experiência. líquidos nos tubos delgados.
A diferença entre elas deve-se ao fato de que as
afirmações do senso comum são assistemáticas, Subjetivo/objetivo
enquanto as explicações da ciência são sistemáticas O senso comum é frequentemente subjetivo, por-
e controláveis pela experiência, o que permite chegar que depende do ponto de vista individual e pessoal,
a conclusões gerais. Se o saber comum observa um não fundado no objeto, e condicionado por sen-
fato a partir do conjunto dos dados sensíveis que for- timentos ou afirmações arbitrárias do sujeito. Se
mam nossa percepção imediata, pessoal e efêmera temos antipatia por alguém, é preciso certo esforço
do mundo, o fato científico é umjato abstrato, iso- para reconhecer, por exemplo, seu valor profissional.
lado do conjunto em que se encontra normalmente Ao observar o comportamento de povos com cos-
inserido e elevado a um grau de generalidade. tumes diferentes dos nossos, tendemos a julgá-los
baseados em nossos valores e considerá-los estra-
nhos, ignorantes, engraçados ou até desprezíveis.
O mundo construído pela ciência aspira à obje-
tividade. É objetivo o conhecimento imparcial,
que independe das preferências individuais e que
resulta da descentralização do sujeito que conhece,
pelo confronto com outros pontos de vista. No caso
das ciências, as conclusões podem ser testadas por
qualquer outro membro competente da comuni-
dade científica.

Ambiguidade/rigor
Para ser precisa e objetiva, a ciência dispõe de
uma linguagem rigorosa cujos conceitos são defi-
nidos para evitar ambiguidades. A linguagem tor-
na-se cada vez mais precisa, à medida que utiliza
a matemática para transformar qualidades em
quantidades. A matematização da ciência adqui-
riu grande importância no trabalho de Galileu. Ao
estabelecer a lei da queda dos corpos, por exemplo,
Mulher velha cozinhando ovos. Diego Velásquez, 1618.
Galileu mediu o espaço percorrido e o tempo que
Não é preciso efetuar uma invest igação científica para
cozinhar um ovo, basta a experiência proporcionada um corpo leva para descer o plano inclinado, e ao
pelo senso comum. final das observações registrou a lei numa formula-
ção matemática.
É bem verdade que o mesmo não ocorre com
Fragmentário/unificador
Em comparação com a ciência, o conhecimento as ciências humanas, cujo componente qualitativo
espontâneo é fragmentário, pois não estabelece não pode ser reduzido à quantidade. Algumas delas,
conexões em situações em que essas poderiam ser como é o caso da psicanálise, não fazem uso da
verificadas. Por exemplo: pelo senso comum não matemática ou da experimentação, embora outras
é possível perceber qualquer relação entre o orva- teorias psicológicas, como as comportamentalis-
lho da noite e o "suor" que aparece na garrafa reti- tas, recorram não só às experiências em laborató-
rada da geladeira; nem entre a combustão e a res- rio como à matemática e à estatística.
piração (que é uma forma de combustão discreta
relacionada à queima dos alimentos no processo
digestivo para obter energia). Se dermos crédito à
~PARA SABER MAIS
Voltaremos às ciências humanas no capítu lo 32, "O
velha história, é interessante lembrar as circuns- método das ciências humanas".
tâncias em que Isaac Newton teria intuído a lei da

Unidade 6 Filosofia das ciências


Julgamento de Ca/ileu.
Autor deconhecido, 1633-
0 quadro mostra Ga lileu
Ga lilei sendo j ulgado
pelo Tribuna l do Santo
Ofício em Roma, no início
do sécu lo XVII. Gal ileu
foi obrigado pela Igreja
Cató li ca a renegar a teoria
heliocêntrica. Reza a
lenda, porém, que ele teria
murmurado, referindo-se à
Terra: "f pu r, si muove!" ("E,
no entanto, ela se move!").

Os instrumentos de medida (balança, termôme- A partir da modernidade, as ciências se mul-


tro, dinamômetro, telescópio etc.) também permi- tiplicaram, buscando cada uma delas seu próprio
tem ao cientista ultrapassar a percepção imediata, caminho, ou seja, seu método. Cada ciência torna-
imprecisa e subjetiva da realidade e fazer a verifica- -se, então, uma ciência particular, pois delimita um
ção objetiva dos fenômenos. campo de pesquisa e procedimentos específicos.
A ciência constitui-se de corpos de conhecimento Cada uma privilegia setores distintos da realidade:
organizado, nos quais as classificações assumem uma a física trata do movimento dos corpos; a química,
tarefa indispensável. Mesmo que o senso comum seja da sua transformação; a biologia, do ser vivo etc.
capaz de organizar conhecimentos e de fazer classifi- Recentemente, a partir do século XX, constituí-
cações, a ciência distingue-se dele porque suas condu- ram-se as ciências híbridas, como a bioquímica, a
sões se baseiam em investigações sistemáticas, empi- biofísica, a mecatrônica, a fim de melhor resolver
ricamente fundamentadas pelo controle dos fatos. As problemas que exigem, ao mesmo tempo, o con-
explicações cientíjicas são formuladas em enunciados curso de mais de uma ciência.
gerais, alcançados pelo exame das diferenças e seme-
lhanças das propriedades dos fenômenos, de modo
que um número pequeno de princípios explicativos IJ A comunidade científica
possa unificar um grande número de fatos.
As conclusões a que chegam os cientistas são
avaliadas pelos seus pares, que pertencem a uma
O método cientifico comunidade intelectual encarregada do constante
O conhecimento científico é uma conquista exame crítico desses resultados. Uma comunidade
recente da humanidade, datando de cerca de qua- cient(fica pode ser entendida como o conjunto dos
trocentos anos. No pensamento grego, ciência e filo- indivíduos que se reconhecem e são reconhecidos
sofia achavam-se ainda vinculadas e só vieram a se como possuidores de conhecimentos específicos na
separar a partir da Idade Moderna, no século XVII, área da investigação científica.
com a revolução científica instaurada por Galileu. Até pouco tempo atrás as grandes realiza-
A ciência moderna nasce ao determinar seu objeto ções científicas eram fruto de gênios individuais,
específico de investigação e ao criar um método confiá- enquanto hoje em dia, cada vez mais, o trabalho da
vel pelo qual estabelece o controle desse conhecimento. ciência é feito em equipe. Não queremos abordar
São os métodos rigorosos que possibilitam demarcar aqui as ambiguidades do conceito de comunidade
um conhecimento sistemático, preciso e objetivo que científica - que pode ocultar divergências de inte-
permita a descoberta de relações universais entre os resses e conflitos de poder -, e sim mostrar sua
fenômenos, a previsão de acontecimentos e também a importância para a discussão e o estabelecimento
ação sobre a natureza de maneira mais segura. do método científico e a produção da ciência.

Ciência, tecnologia e valores Capítulo 28


É nesse sentido que o filósofo francês Gérard Ciência e valores
Fourez comenta:
É comum as pessoas afirmarem que, enquanto o
senso comum é pragmático, por estar interessado
Afinal, um laboratório terá uma boa performance na aplicação prática, que visa a benefícios imedia-
tanto por seu pessoal ser bem organizado e ter tos, a ciência tem por objetivo conhecer a estrutura
acesso a aparelhos precisos como por raciocinar do mundo.
corretamente. A fim de produzir resultados científicos, De fato, embora sejam inegáveis as aplicações
é preciso também possuir recursos, acesso às revistas, tecnológicas, não é essa a intenção primeira da
às bibliotecas, a congressos etc. É preciso também investigação científica, que antes de tudo visa ao
que, nas unidades de pesquisa, a comunicação, o conhecimento. Sob esse aspecto, a ciência só visaria
diálogo e a crítica circulem. O método de produção a valores cognitivos, isto é, ao cientista só interessa-
da ciência passa, portanto, pelos processos sociais ria conhecer por conhecer, sem se preocupar com
que permitem a constituição de equipes estáveis e
a aplicação do conhecimento. No entanto, veremos
eficazes; subsídios, contratos, alianças sociopolíticas,
que o trabalho científico também envolve, além de
gestão de equipes etc. Mais uma vez, a ciência
valores cognitivos, os valores éticos e políticos.
aparece como um processo humano, feito por
humanos, para humanos e com humanos. 3
• Valores cognitivos
Mais ainda, não se imagine que essas conclusões Examinaremos inicialmente as três caracterís-
<ri

só serão aceitas se forem consideradas indubitáveis. ticas relativas aos valores cognitivos da ciência: a !llo
É preciso retirar do conceito de ciência a falsa ideia imparcialidade, a autonomia e a neutralidade. u
e
de ser ela a única explicação da realidade, um conhe- ~
E

cimento "certo" e "infalível". Há muito de construção Imparcialidade o


u
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nos modelos científicos e, às vezes, são aceitas até De acordo com o professor australiano Hugh o
u
o

teorias incompatíveis entre si, como, por exemplo, Lacey, a "'oi



o
a teoria corpuscular e a ondulatória, ambas utiliza- o;
§
das para explicar aspectos diferentes do fenômeno Q.
o
imparcialidade é a concepção de que as teorias O>
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luminoso. Além disso, a ciência está em constante o
são corretamente aceitas apenas em virtude de o
evolução, e suas teorias, ainda que comprovadas, D

;
manifestarem os valo res cognitivos em alto grau,
são de certo modo provisórias.
segundo os mais rigorosos padrões de avaliação
e com respeito a uma série apropriada de dados
empíricos. 4

Neutra Iidade
O conhecimento científico é neutro quando não
atende a nenhum outro valor particular, podendo
suas práticas serem realizadas no interior de qual-
quer esquema de valor: elas não serviriam a nenhum
interesse específico. Ou seja, no processo de investi-
gação propriamente dito, os valores morais e sociais
não deveriam influenciar diretamente os cientistas,
quando o objetivo é cognitivo.
Cientistas examinando plantas em estufa. Japão, 2008.
Desde Arquimedes a ciência foi um trabalho para Autonomia
inventores e gênios solitários. A ciência contemporânea
é realizada por várias equipes de trabalho em grandes A autonomia refere-se às condições independen-
laboratórios, financiados por empresas multinacionais, tes das investigações, porque, segundo se espera,
universidades e governos. as instituições científicas deveriam estar isentas

3
FOUREZ, Gérard. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo:
Editora Unesp, 1995. p. 94-95.
4
LACEY, Hugh. Valores e atividade científica. São Paulo: Discurso Editorial, 1998. p. 133.

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de pressões externas e poder definir suas agendas
No momento atual, as práticas de controle
voltadas para a produção de teorias imparciais e
da natureza estão nas mãos do
neutras.
neoliberalismo e, assim , servem a determinados
va lores e não a outros. Servem ao individualismo
• Valores éticos e políticos em vez de à solidariedade; à propriedade particular
Pelo que foi dito sobre o valor cognitivo, pode pare- e ao lucro em vez de aos bens sociais; ao mercado
cer que a ciência paira acima do tempo e do espaço, em vez de ao bem-estar de todas as pessoas; à
por isso precisamos introduzir algumas distinções. utilidade em vez de ao fortalecimento da pluralidade
À primeira vista, a neutralidade científica é requi- de valores; à liberdade individual e à eficácia
sito inegociável no processo da investigação, mas sob econômica em vez de à libertação humana ; aos
outros aspectos, a atividade do cientista não é neutra, interesses dos ricos em vez de aos direitos dos
quando deve levar em conta valores éticos e políticos. pobres; à democracia formal em vez de à democracia
Não se trata de incoerência, mas do reconheci- participativa; aos direitos civis e políticos sem
mento de que o poder da ciência e da tecnologia é qualquer relação dialética com os direitos sociais,
ambíguo, porque pode estar a serviço do floresci- econômicos e culturais. A primeira é uma lista
mento da humanidade ou apenas de uma parte dela. de va lores neoliberais; a segunda, de valores do
Daí a necessidade de o trabalho do cientista e do téc- movimento popular. 5
nico ser acompanhado por reflexões de caráter moral
e político, para que sejam postos em questão os fins
que orientam os meios que estão sendo utilizados.
Vejamos o que diz o professor Lacey a esse res- 9 Beneficios das ciências,
peito: para quem?
Percebemos, então, que os valores morais e
sociais influenciam de tal modo as escolhas das
pesquisas, ao privilegiar umas em detrimento de
outras, que se torna impossível considerar a ciên-
cia neutra. É ilusão imaginar que o cientista esteja
imune a influências de seu contexto social. Com
isso, não estamos criticando o fato de valores sociais
orientarem a escolha das pesquisas, mas advertindo
para a importância de examinar esses valores, por-
que alguns podem ser prejudiciais.
Por exemplo, foi desastrosa a interferência dos
valores religiosos da Inquisição, que submeteu Galileu
ao silêncio, bem como dos valores políticos ideológi-
cos do Estado soviético que, na década de 1930, acu-
sava a biologia mendeliana de possuir "características
idealistas" e condenava os cientistas que a seguiam.
É de grande importância, portanto, o esforço
para identificar os tipos de valores que estão
guiando a prioridade dada a certas pesquisas.
Diante do que apontou Lacey, podemos nos per-
guntar, então, até que ponto a ciência efetiva-
mente se presta a servir a valores alternativos, que
visem a garantir a estabilidade social e ecológica.
A condição humana. René Magritte, 1933. Ao olharmos Sabemos das dificuldades que enfrentaria um pro-
essa obra, temos a impressão inicial de que sobre jeto científico desvinculado dos interesses do mer-
o cavalete há uma tela representando fielmente a cado, porque a pesquisa científica exige uma infra-
paisagem externa. Podemos comparar esse engano
com a mesma ilusão daqueles que veem a ciência estrutura cara e equipamentos e instrumentos de
como espe lho da realidade. tecnologia avançada.

LACEY, Hugh. Valores e atividade cientifica. São Paulo: Discurso Editorial, 1998. p. 32.

Ciência, tecnologia e valores Capítulo 28


Esta foi a única
construção que ficou de
pé em Hiroshima após
a explosão da bomba
atômica, em 1945. Foi
mantida no mesmo estado
e hoje se chama Memorial
da Paz, pelo fim das armas
nucleares e para que
não se esqueça de atos
bárbaros praticados por
nações "civilizadas". Em
frente, o verde da praça e
as pombas representam a
esperança do renascimento
após a destruição e
nos fazem pensar na
importância da reflexão
ética sobre os fins para os
quais usamos a tecnologia,
Cerimônia em frente ao Memorial da Paz, em Hiroshima, um fruto ambiguo da
no Japão, em 2007, lembra as vítimas da bomba
atômica lançada na cidade, em agosto de 1945. ciência contemporânea.

U' PARA REFLETffi variadas tendências ideológicas. Também abrem


espaço para alentadas discussões jurídicas, a fim
Destaque, baseando-se nos exemplos deste tópico,
de regularizar procedimentos legais.
quais são as interferências políticas e econômicas que
orientam - ou desviam- a atividade científica.

1J A responsabilidade social
O grande risco da excessiva interferência econô- do cientista
mica nas ciências pode ser ilustrado pelas conquis- Pelo que vimos, não há como aceitar que a exi-
tas obtidas na engenharia genética, que levam gran- gência da neutralidade da ciência se resuma à pro-
des corporações a buscarem justificativas legais cura do "saber pelo saber". A ciência encontra-se
para patentear, por exemplo, as descobertas rea- inextricavelrnente envolvida na moral e na política,
lizadas com a manipulação do código genético de e o cientista tem uma responsabilidade social da
sementes (alimentos transgênicos). qual não pode abdicar.
São também objetos de debates acalorados as Essas observações nos levam a refletir sobre a for-
possibilidades de clonagem de seres humanos, a mação do cientista, que não deve se restringir apenas
partir do sucesso obtido com a aplicação da téc- ao aprendizado de conteúdos, metodologias e práti-
nica em animais. No entanto, o temor de que cien- cas de pesquisa. Mais do que isso, o futuro cientista
tistas se encaminhem para a clonagem humana tem precisa ter condições de examinar os pressupostos de
desviado - e confundido - as discussões em torno seu conhecimento e de sua atividade, de se perceber
das pesquisas com células-tronco, sobretudo aque- como pertencendo a uma comunidade e de identifi-
las que não são extraídas do embrião propriamente car os valores subjacentes a sua prática.
dito, mas de tecidos adultos (como a medula óssea Qual é o papel da filosofia com relação à ciên-
ou o cordão umbilical). As vantagens das novas pes- cia e suas aplicações? Seu compromisso repousa na
quisas estariam na prevenção e cura das mais diver- investigação dos .fins e das prioridades a que a ciên-
sas doenças. cia se propõe, na análise das condições em que se
Todas essas questões têm sido abordadas pela realizam as pesquisas e nas consequências das téc-
bioética, atualíssimo campo que abriga as mais nicas utilizadas.

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