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observados costumam ser selecionados de maneira não muito

rigorosa. Em outras palavras, conclui-se para todos os objetos o


que vale para um ou para um grupo de objetos observados.
Já as conclusões da ciência são gerais no sentido de que não
CIÊNCIA, TECNOLOGIA E VALORES
valem apenas para os casos observados, e sim para todos os que
1. Senso comum e ciência a eles se assemelham. Afirmações como "o peso de qualquer
O senso comum é o conhecimento que ajuda a nos situarmos objeto depende do campo de gravitação'' ou "a cor de um objeto
no cotidiano, para compreendê-lo e agir sobre ele. Mais depende da luz que ele reflete" ou ainda "a água é uma
propriamente, poderíamos dizer que se trata de um conjunto de substância composta de hidrogênio e oxigênio'' são válidas para
crenças, já que esse conhecimento quase sempre o recebemos todos os corpos, todos os objetos coloridos ou qualquer porção
pela tradição, de modo espontâneo e não crítico. Mas não só. de água, e não apenas para aqueles que foram objeto da
Trata-se também do esforço que fazemos para resolver os experiência.
problemas que surgem no dia a dia, buscando soluções muitas A diferença entre elas deve-se ao fato de que as afirmações do
vezes bastante criativas. senso comum são assistemáticas, enquanto as explicações da
É bem verdade que, em diversas situações, a ciência precisou ciência são sistemáticas e controláveis pela experiência, o que
se posicionar contra o que era considerado evidente por essas permite chegar a conclusões gerais. Se o saber comum observa
crenças, por exemplo, quando se achava natural que a Terra um fato a partir do conjunto dos dados sensíveis que formam
estivesse imóvel e o Sol girasse em torno dela. No entanto, não nossa percepção imediata, pessoal e efêmera do mundo, o fato
há como desprezar esse conhecimento tão universal nem científico é um jato abstrato, isolado do conjunto em que se
desconsiderar o grande volume de saberes já construídos ao encontra normalmente inserido e elevado a um grau de
longo da história humana e cuja aplicação se mostrou fecunda. generalidade.

• Alguns exemplos Fragmentário/unificador


Vamos distinguir o senso comum da ciência, examinando a Em comparação com a ciência, o conhecimento espontâneo é
especificidade de cada um por meio de exemplos. fragmentário, pois não estabelece conexões em situações em
Descobrir pelo senso comum que a roda facilita o transporte que essas poderiam ser verificadas. Por exemplo: pelo senso
de cargas não significa saber explicar as forças de fricção; comum não é possível perceber qualquer relação entre o orvalho
conhecer o uso medicinal de certas ervas não quer dizer da noite e o "suor" que aparece na garrafa retirada da geladeira;
identificar suas propriedades ou compreender como se dá sua nem entre a combustão e a respiração (que é uma forma de
ação no organismo. combustão discreta relacionada à queima dos alimentos no
O camponês sabe plantar e colher conforme aprendeu com processo digestivo para obter energia). Se dermos crédito à
seus pais, usando técnicas herdadas de seu grupo social, as velha história, é interessante lembrar as circunstâncias em que
quais são transformadas lentamente em decorrência dos Isaac Newton teria intuído a lei da gravitação universal, ao
acontecimentos casuais com os quais esse grupo se depara. associar a queda de urna maçã à "queda'' da Lua. Aliás, o caráter
Mas, se em determinado momento a adubagem deixa de unificador dessa teoria nos permite associar fenômenos
proporcionar os efeitos desejados, ele não sabe identificar os aparentemente tão díspares como o movimento da Lua, as
motivos. Suas crenças, baseadas em hábitos rotineiros, valem marés, as trajetórias dos projéteis e a subida dos líquidos nos
enquanto há êxito, mas é com o conhecimento científico que tubos delgados.
se obtêm elementos para corrigir condutas e adaptá-las a
novas situações. Subjetivo/objetivo
Pelo senso comum, sabemos que a água se congela quando a O senso comum é frequentemente subjetivo, porque depende
temperatura abaixa "o suficiente". A imprecisão característica do ponto de vista individual e pessoal, não fundado no objeto, e
desse tipo de conhecimento é evitada pela ciência, que se condicionado por sentimentos ou afirmações arbitrárias do
baseia em uma medição precisa. Além disso, ela pode verificar sujeito. Se temos antipatia por alguém, é preciso certo esforço
a variedade de condições em que ocorre a solidificação dos para reconhecer, por exemplo, seu valor profissional. Ao
·líquidos, seja o caso da água, do leite, da cerveja, da vodka observar o comportamento de povos com costumes diferentes
(que não congela nos freezers domésticos), e tem condições de dos nossos, tendemos a julgá-los baseados em nossos valores e
explicar ainda por que um poço congela e o oceano não. considerá-los estranhos, ignorantes, engraçados ou até
desprezíveis.
Características distintas O mundo construído pela ciência aspira à objetividade. É
A partir desses exemplos. podemos examinar algumas objetivo o conhecimento imparcial, que independe das
características pelas quais se contrapõem esses dois tipos de preferências individuais e que resulta da descentralização do
conhecimento. sujeito que conhece, pelo confronto com outros pontos de vista.
No caso das ciências, as conclusões podem ser testadas por
Particular/geral qualquer outro membro competente da comunidade científica.
Do senso comum resulta um conhecimento particular, restrito
a uma pequena amostra da realidade, a partir da qual são feitas
generalizações muitas vezes apressadas e imprecisas. Os dados
Ambiguidade/rigor 3. A comunidade científica
Para ser precisa e objetiva, a ciência dispõe de uma linguagem As conclusões a que chegam os cientistas são avaliadas pelos
rigorosa cujos conceitos são definidos para evitar ambiguidades. seus pares, que pertencem a uma comunidade intelectual
A linguagem torna-se cada vez mais precisa, à medida que utiliza encarregada do constante exame crítico desses resultados. Uma
a matemática para transformar qualidades em quantidades. A comunidade científica pode ser entendida como o conjunto dos
matematização da ciência adquiriu grande importância no indivíduos que se reconhecem e são reconhecidos como
trabalho de Galileu. Ao estabelecer a lei da queda dos corpos, possuidores de conhecimentos específicos na área da
por exemplo, Galileu mediu o espaço percorrido e o tempo que investigação científica.
um corpo leva para descer o plano inclinado, e ao final das Até pouco tempo atrás as grandes realizações científicas eram
observações registrou a lei numa formulação matemática. fruto de gênios individuais, enquanto hoje em dia, cada vez mais,
É bem verdade que o mesmo não ocorre com as ciências o trabalho da ciência é feito em equipe. Não queremos abordar
humanas, cujo componente qualitativo não pode ser reduzido à aqui as ambiguidades do conceito de comunidade científica - que
quantidade. Algumas delas, como é o caso da psicanálise, não pode ocultar divergências de interesses e conflitos de poder -, e
fazem uso da matemática ou da experimentação, embora outras sim mostrar sua importância para a discussão e o
teorias psicológicas, como as comportamentalistas, recorram estabelecimento do método científico e a produção da ciência.
não só às experiências em laboratório como à matemática e à É nesse sentido que o filósofo francês Gérard Fourez comenta:
estatística.
Os instrumentos de medida (balança, termômetro, Afinal, um laboratório terá uma boa performance tanto por
dinamômetro, telescópio etc.) também permitem ao cientista seu pessoal ser bem organizado e ter acesso a aparelhos
ultrapassar a percepção imediata, imprecisa e subjetiva da precisos como por raciocinar corretamente. A fim de produzir
realidade e fazer a verificação objetiva dos fenômenos. resultados científicos, é preciso também possuir recursos,
A ciência constitui-se de corpos de conhecimento organizado, acesso às revistas, às bibliotecas, a congressos etc. É preciso
nos quais as classificações assumem uma tarefa indispensável. também que, nas unidades de pesquisa, a comunicação, o
Mesmo que o senso comum seja capaz de organizar diálogo e a crítica circulem. O método de produção da ciência
conhecimentos e de fazer classificações, a ciência distingue-se passa, portanto, pelos processos sociais que permitem a
dele porque suas conclusões se baseiam em investigações constituição de equipes estáveis e eficazes; subsídios,
sistemáticas, empiricamente fundamentadas pelo controle dos contratos, alianças sociopolíticas, gestão de equipes etc. Mais
fatos. As explicações científicas são formuladas em enunciados uma vez, a ciência aparece como um processo humano, feito
gerais, alcançados pelo exame das diferenças e semelhanças das por humanos, para humanos e com humanos.
propriedades dos fenômenos, de modo que um número
pequeno de princípios explicativos possa unificar um grande Mais ainda, não se imagine que essas conclusões só serão
número de fatos. aceitas se forem consideradas indubitáveis. É preciso retirar do
conceito de ciência a falsa ideia de ser ela a única explicação da
2. O método científico realidade, um conhecimento "certo" e "infalível". Há muito de
O conhecimento científico é uma conquista recente da construção nos modelos científicos e, às vezes, são aceitas até
humanidade, datando de cerca de quatrocentos anos. No teorias incompatíveis entre si, como, por exemplo, a teoria
pensamento grego, ciência e filosofia achavam-se ainda corpuscular e a ondulatória, ambas utilizadas para explicar
vinculadas e só vieram a se separar a partir da Idade Moderna, aspectos diferentes do fenômeno luminoso. Além disso, a ciência
no século XVII, com a revolução científica instaurada por Galileu. está em constante evolução, e suas teorias, ainda que
A ciência moderna nasce ao determinar seu objeto específico comprovadas, são de certo modo provisórias.
de investigação e ao criar um método confiável pelo qual
estabelece o controle desse conhecimento. São os métodos 4. Ciência e valores
rigorosos que possibilitam demarcar um conhecimento É comum as pessoas afirmarem que, enquanto o senso comum
sistemático, preciso e objetivo que permita a descoberta de é pragmático, por estar interessado na aplicação prática, que visa
relações universais entre os fenômenos, a previsão de a benefícios imediatos, a ciência tem por objetivo conhecer a
acontecimentos e também a ação sobre a natureza de maneira estrutura do mundo.
mais segura. De fato, embora sejam inegáveis as aplicações tecnológicas,
A partir da modernidade, as ciências se multiplicaram, não é essa a intenção primeira da investigação científica, que
buscando cada uma delas seu próprio caminho, ou seja, seu antes de tudo visa ao conhecimento. Sob esse aspecto, a ciência
método. Cada ciência torna-se, então, uma ciência particular, só visaria a valores cognitivos, isto é, ao cientista só interessaria
pois delimita um campo de pesquisa e procedimentos conhecer por conhecer, sem se preocupar com aplicação do
específicos. Cada uma privilegia setores distintos da realidade: a conhecimento. No entanto, veremos que o trabalho científico
física trata do movimento dos corpos; a química, da sua também envolve, além de valores cognitivos, os valores éticos e
transformação; a biologia, do ser vivo etc. Recentemente, a políticos.
partir do século XX, constituíram-se as ciências híbridas, como a
bioquímica, a biofísica, a mecatrônica, a fim de melhor resolver • Valores cognitivos
problemas que exigem, ao mesmo tempo, o concurso de mais de Examinaremos inicialmente as três características relativas aos
uma ciência. valores cognitivos da ciência: a imparcialidade, a autonomia e a
neutralidade.
Imparcialidade desviado - e confundido - as discussões em torno das pesquisas
De acordo com o professor australiano Hugh Lacey, a com células-tronco, sobretudo aquelas que não são extraídas do
imparcialidade é a concepção de que as teorias são embrião propriamente dito, mas de tecidos adultos (como a
corretamente aceitas apenas em virtude de manifestarem os medula óssea ou o cordão umbilical). As vantagens das novas
valores cognitivos em alto grau, segundo os mais rigorosos pesquisas estariam na prevenção e cura das mais diversas
padrões de avaliação e com respeito a uma série apropriada de doenças.
dados empíricos. Todas essas questões têm sido abordadas pela bioética,
atualíssimo campo que abriga as mais variadas tendências
NeutraIidade ideológicas. Também abrem espaço para alentadas discussões
O conhecimento científico é neutro quando não atende a jurídicas, a fim de regularizar procedimentos legais.
nenhum outro valor particular, podendo suas práticas serem
realizadas no interior de qualquer esquema de valor: elas não 6. A responsabilidade social do cientista
serviriam a nenhum interesse específico. Ou seja, no processo de Pelo que vimos, não há como aceitar que a exigência da
investigação propriamente dito, os valores morais e sociais não neutralidade da ciência se resuma à procura do "saber pelo
deveriam influenciar diretamente os cientistas, quando o saber". A ciência encontra-se inextricavelmente envolvida na
objetivo é cognitivo. moral e na política, e o cientista tem uma responsabilidade social
da qual não pode abdicar.
Autonomia Essas observações nos levam a refletir sobre a formação do
A autonomia refere-se às condições independentes das cientista, que não deve se restringir apenas ao aprendizado de
investigações, porque, segundo se espera, as instituições conteúdos, metodologias e práticas de pesquisa. Mais do que
científicas deveriam estar isentas de pressões externas e poder isso, o futuro cientista precisa ter condições de examinar os
definir suas agendas voltadas para a produção de teorias pressupostos de seu conhecimento e de sua atividade, de se
imparciais e neutras. perceber como pertencendo a uma comunidade e de identificar
os valores subjacentes a sua prática.
5. Benefícios das ciências, para quem? Qual é o papel da filosofia com relação à ciência e suas
Percebemos, então, que os valores morais e sociais influenciam aplicações? Seu compromisso repousa na investigação dos fins e
de tal modo as escolhas das pesquisas, ao privilegiar umas em das prioridades a que a ciência se propõe, na análise das
detrimento de outras, que se torna impossível considerar a condições em que se realizam as pesquisas e nas consequências
ciência neutra. É ilusão imaginar que o cientista esteja imune a das técnicas utilizadas.
influências de seu contexto social. Com isso, não estamos
criticando o fato de valores sociais orientarem a escolha das
pesquisas, mas advertindo para a importância de examinar esses
valores, porque alguns podem ser prejudiciais.
Por exemplo, foi desastrosa a interferência dos valores
religiosos da Inquisição, que submeteu Galileu ao silêncio, bem
como dos valores políticos ideológicos do Estado soviético que,
na década de 1930, acusava a biologia mendeliana de possuir
"características idealistas" e condenava os cientistas que a
seguiam.
É de grande importância, portanto, o esforço para identificar os
tipos de valores que estão guiando a prioridade dada a certas
pesquisas.
Diante disso, podemos nos perguntar, então, até que ponto a
ciência efetivamente se presta a servir a valores alternativos, que
visem a garantir a estabilidade social e ecológica. Sabemos das
dificuldades que enfrentaria um projeto científico desvinculado
dos interesses do mercado, porque a pesquisa científica exige
uma infraestrutura cara e equipamentos e instrumentos de
tecnologia avançada.
O grande risco da excessiva interferência econômica nas
ciências pode ser ilustrado pelas conquistas obtidas na
engenharia genética, que levam grandes corporações a
buscarem justificativas legais para patentear, por exemplo, as
descobertas realizadas com a manipulação do código genético de
sementes (alimentos transgênicos).
São também objetos de debates acalorados as possibilidades
de clonagem de seres humanos, a partir do sucesso obtido com a
aplicação da técnica em animais. No entanto, o temor de que
cientistas se encaminhem para a clonagem humana tem

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