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«O primeiro carácter do conhecimento científico, reconhecido

por cientistas e filósofos das mais diversas correntes, é a


objectividade,no sentido de que a ciência intenta afastar do
seu domínio todo o elemento afectivo e subjectivo, deseja ser
plenamente independente dos gostos e das tendências
pessoais do que elabora. Numa palavra, o conhecimento
verdadeiramente científico deve ser um conhecimento
válido para todos. A objectividade da ciência, por isso, pode
ser também, e talvez melhor, chamada intersubjectividade,
até porque a evolução recente da ciência, e especialmente da
Física, mostrou a impossibilidade e separar adequadamente o
objecto do sujeito e de eliminar completamente o observador.
Este reconhecimento que é essencial na teoria da relatividade
e na nova Física quântica, torna o carácter da objectividade
mais complexo e problemático do que parecia parecer no
século passado, todavia, não elimina de modo algum da
ciência o propósito radicalmente objectivo. [...]
Não obstante a oposição de toda a corrente empirista, a
ciência moderna é essencialmente racional, isto é, não consta
de meros elementos empíricos mas é essencialmente uma
construção do intelecto. [...] A ciência pode ser definida
como um esforço de racionalização do real; partindo de
dados empíricos, através de sínteses cada vez mais vastas, o
cientista esforça-se por abraçar todo o domínio dos factos que
conhece num sistema racional, no qual de poucos princípios
simples e universais possam logicamente deduzir-se as leis
experimentais mais particulares de campos à primeira vista
aparentemente heterogéneos. [...]
Além disto, os cientistas modernos verificam unanimemente
no conhecimento científico um carácter muito alheio à
mentalidade científica do século passado, o da revisibilidade.
Não há nem nas ciências experimentais, nem mesmo na
matemática posições definitivas e irreformáveis. Toda a
verdade científica aparece, em certo sentido, como
provisória, susceptível de revisão, de aperfeiçoamento, às
vezes mesmo de uma completa reposição em causa. Todos os
conhecimentos científicos são aproximados, quer pela
imperfeição das observações experimentais em que se
fundam, quer pela necessária abstracção e esquematização
com que são tratados. Os conceitos de adequação total e
perfeita devem ser substituídos pelos de aproximação e
validez limitada. Esta nova mentalidade científica que deve ser
mantida num só equilíbrio é principalmente o fruto de
numerosas crises e revoluções da ciência. [...]
Finalmente, um último carácter do conhecimento científico é a
autonomiarelativamente à Filosofia e à fé. A ciência tem o
seu próprio campo de estudo, o seu método próprio de
pesquisa, uma fonte independente de informações que é a
Natureza. [...] Isto não significa que a Filosofia não possa e
não deva levar a termo uma indagação crítica sobre a natureza
da ciência, sobre os seus métodos e os seus princípios e que o
cientista não possa tirar vantagem do conhecimento reflexivo,
filosófico e crítico da sua mesma actividade de cientista. [...]
Mas em nenhum caso a ciência poderá dizer-se dependente de
um sistema filosófico ou poderá encontrar numa tese filosófica
uma barreira-limite que impeça a priori a aplicação livre e
integral do seu método de pesquisa. E o mesmo se dirá no que
respeita à fé: ela poderá constituir uma norma directriz e
prudencial para o cientista, enquanto homem e crente, nunca
será uma norma positiva ou restritiva para a ciência enquanto
tal.»
 
Selvaggi, F., Enciclopédia Filosófica, Roma, 1957, vol. IV, pp. 444-445.
 «O fim último de toda a actividade científica – o pensamento,
a observação e a experimentação – é a procura de uma
representação conceptual coerente da realidade – uma
teoria ou imagem da realidade. Uma tal imagem da realidade,
nem que seja uma imagem parcial, tem uma estrutura
implicativa muito rica, não só para a ciência, como também
para a cultura, a tecnologia e o comércio. Essas imagens da
realidade mostram-nos novos aspectos do código de
construção do universo, criando uma imagem mental que vai
além de tudo o que podemos apreender directamente com os
nossos sentidos e instrumentos. E a motivação que está por
trás da descoberta destas teorias é o desejo do cientista de
descobrir o que (com raios e coriscos!) se está realmente a
passar.
Uma teoria científica pode ser imaginada como um mapa que,
como qualquer mapa vulgar das estradas, nos indica os sítios
por onde se anda e descreve o território e as regras a que ele
obedece – regras como as que exigem que um rio, no mapa,
contorne uma montanha, e que não lhe passe por cima.
Tal como verdadeiros mapas de estrada, os «mapas» das
teorias científicas funcionam porque existe ali mesmo, «ali»,
um território que lhes corresponde, na nossa experiência
comum.
Existem mapas grandes, com um grande âmbito, como a
teoria da relatividade, de Einstein, ou a teoria da selecção
natural, de Darwin. Mas a maioria dos mapas que os cientistas
usam no dia-a-dia são mais pequenos e mais pormenorizados,
como seja a teoria dos metais ou a teoria da síntese das
proteínas. É evidente que a metáfora do mapa irá falhar a
certo ponto, uma vez que o mapa é uma entidade espacial,
enquanto uma teoria é uma entidade conceptual; de
qualquer forma, penso ser uma metáfora útil.
Todas as grandes teorias do mundo natural postulam uma lei
ou hipótese que é o seu ponto fulcral. As leis de Newton, na
mecânica clássica, e a hipótese de que a informação vai
sempre do ADN para as proteínas, e nunca em sentido
contrário, na biologia molecular, são exemplos dessas leis
postuladas. Na metáfora dos mapas, essas leis reflectem,
simplesmente, as regras gerais de que nos servimos quando
desenhamos um mapa. Por vezes, a descoberta científica de
um novo território faz com que as regras do desenho de
mapas sejam modificadas. De qualquer forma, a cada mapa de
qualidade está associado um conjunto definido de regras.
A que é que correspondem, no mundo, as leis naturais e em
que sentido é que elas existem? Elas são, como irei defender,
seguindo o filósofo iluminista Immanuel Kant, os princípios
organizacionais que tornam inteligível e coerente a nossa
experiência do mundo natural. Estes princípios organizacionais
são incorporados num enquadramento lógico e coerente
chamado teoria. Uma teoria fornece, portanto, uma imagem
lógica do Mundo natural, uma imagem que é, em parte, um
produto das nossas mentes e cultura. Mas existe uma parte da
teoria, que é, de facto, a parte mais importante, que não é um
produto da nossa mente – aquilo a que vou chamar a
«estrutura invariante» da teoria. A «estrutura invariante» da
teoria corresponde às características da teoria que são
independentes da nossa descrição específica do território da
natureza e das regras a que ela obedece. Nem todas as teorias
possuem essa «estrutura invariante». Historicamente, essas
teorias são teorias terminais – becos sem saída na evolução do
conhecimento científico.»
 
Heinz Pagels, Os sonhos da Razão, pp. 202 203, Ed. Gradiva, Lx

«O que é imediatamente valorizado pela observação ingénua é


geralmente acessório. A percepção imediata e vulgar, longe de
ser a chave da Ciência, como o julgavam os empiristas,
prejudicou durante muito tempo os progressos da Ciência. A
observação empírica não está, pois, na origem da Ciência, mas
é um obstáculo ao conhecimento científico. […]
Por oposição à percepção imediata, o conhecimento científico
transforma as qualidades em quantidades (o aparecimento da
Ciência é o aparecimento da medida; em vez do 'vivido' sonoro
e colorido, a Ciência descobre vibrações das quais se pode
medir o comprimento de onda, a frequência). À diversidade
empírica a Ciência substitui a unificação racional. Para a
Química, os corpos infinitamente diversos reduzem-se a uma
centena de corpos simples, susceptíveis de se combinar de
diversas formas. Os corpos são compostos de átomos, o
próprio átomo foi analisado: o electrão aparece hoje como o
constituinte último da matéria.
 
[…] Aí onde a observação imediata vê seres – a Ciência
reconhece relações.
A realidade científica não é, pois, a realidade espontânea e
passivamente observada. É uma realidade construída. O facto
só tem significação científica quando é transposto de forma a
comunicar-nos características objectivas, mensuráveis.
A construção científica do facto consiste geralmente em
imaginar uma série de artifícios técnicos para transpor a
observação para o campo visual e espacial. Por exemplo, a
sensação muscular de peso, subjectiva e imprecisa, é
substituída pela apreciação visual da posição da agulha da
balança. A força é medida pelo alongamento comunicado a
uma mola.
[…] A temperatura torna-se um facto científico quando já não
é sentida sobre a pele mas lida num termómetro. Mesmo a
partir de um exemplo simples, pode-se apreciar toda a
distância que separa o 'vivido' imediato do 'conhecido'
científico: a impressão 'vivida' da temperatura depende dos
receptores térmicos à superfície do nosso corpo. Mas estes
fazem parte de um organismo que é, ele próprio, fonte de
calor. A impressão de temperatura depende não só do meio
com o qual o nosso corpo está em contacto, mas também do
nosso próprio corpo. Ela está dependente das variações da
circulação sanguínea. O poder de adaptação do organismo
impede qualquer apreciação objectiva. […] O uso de um
instrumento, posto que tão elementar como um banal
termómetro centígrado, introduz-se já num mundo científico.
[…] A observação científica supõe assim instrumentos, requer
uma manipulação. […]
Ao mundo percebido a Ciência substitui um mundo construído.
[…] Quanto mais a Ciência progride, mais o facto científico se
afasta do facto bruto, quer dizer, do facto tal qual se dá à
percepção vulgar.»
 
D. Huisman e A. Vergez, La Connaissance, Fernand Nathan, Paris, pp. 56-58 (adaptado)

O critério da verificabilidade
 
«A acusação que fazemos ao filósofo metafísico não é a de
tentar empregar o entendimento num campo onde este não
pode aventurar-se com proveito, mas a de produzir frases que
não são conformes com as condições em que só uma frase
pode ter um significado literal. Nem somos nós próprios
obrigados a fazer afirmações sem sentido para demonstrar que
todas as frases de um certo tipo são necessariamente
desprovidas de significado literal. Precisamos apenas de
formular o critério que nos permita testar se uma frase
exprime uma proposição genuína sobre uma questão factual, e
depois referir que as frases em análise não o satisfazem. Será
o nosso próximo passo. Formularemos primeiro o critério em
termos vagos e depois daremos as explicações necessárias
para o tornar preciso.
O critério que utilizamos para testar a genuidade de aparentes
enunciados factuais é o critério da verificabilidade. Dizemos
que uma frase tem significação factual para um indivíduo se, e
apenas se, ele souber como verificar a proposição que a dita
frase parece exprimir, isto é, se ele souber quais são as
observações que o levariam, sob determinadas condições, a
aceitar a proposição como verdadeira, ou a rejeitá-la como
falsa. Se, por outro lado, a proposição putativa pertencer ao
tipo em que a suposição da sua verdade, ou falsidade, é
coerente com qualquer outra suposição relativa à natureza da
experiência futura do indivíduo, então, relativamente ao
indivíduo, é, se não uma tautologia, uma mera
pseudoproposição. A frase que a expressa pode ter uma
significação emocional para o indivíduo; mas não tem
significado literal. E no que respeita às questões, o
procedimento é o mesmo. Inquirimos, em cada caso, que
observações nos conduziriam a responder à questão, de uma
forma ou de outra; e, se não se descobrir nenhuma resposta,
teremos de concluir que a frase em análise não expressa,
quanto a nós, uma questão genuína, por muito que a sua
aparência gramatical o possa sugerir.
Como a adopção deste procedimento é um factor essencial na
argumentação desta obra, necessita de ser examinado em
pormenor.
Em primeiro lugar, é necessário estabelecer uma distinção
entre verificabilidade prática e verificabilidade em princípio.
É claro que todos compreendemos e em muitos casos
acreditamos em proposições que, de facto, não fizemos
qualquer tentativa para verificar. Muitas delas são proposições
que poderíamos verificar se nos déssemos a esse trabalho.
Mas persiste uma série de proposições significativas, relativas
a questões factuais, que não poderíamos verificar, ainda que o
quiséssemos; simplesmente porque não possuímos os meios
práticos para nos colocarmos na situação em que as
observações relevantes poderiam ser feitas. Um exemplo
simples e familiar é o da proposição segundo a qual existem
montanhas na face oculta da Lua.
Ainda não foi inventado nenhum foguetão que me permitisse ir
fazer observações no lado oculto da Lua, por isso sou incapaz
de decidir sobre o assunto através da observação de facto [o
texto foi publicado em 1946].
Mas sei que observações me fariam decidir se, como é
teoricamente concebível, alguma vez me encontrasse em
posição de as fazer. Defendo, portanto, que a proposição é
verificável em princípio, se não na prática, e é por conseguinte
significativa. Por outro lado, uma pseudoproposição metafísica
como: «o Absoluto participa na evolução e no progresso, mas
é em si mesmo incapaz de evolução e de progresso» não é
sequer verificável em princípio. Porque não se pode conceber
uma observação que nos permitia determinar se o Absoluto
participa ou não na evolução e no progresso. É decerto
possível que o autor de tal consideração esteja a utilizar
termos (…) de uma forma pouco utilizada pelos falantes (…) e
pretenda, de facto, afirmar algo que poderia ser verificado
empiricamente. Mas até que nos faça entender como é que a
proposição que deseja exprimir pode ser verificada, não nos
consegue comunicar nada. E se admitir, como penso que o
autor da reflexão em análise teria admitido, que as suas
palavras não tinham intenção de exprimir nem uma tautologia
nem uma proposição passível, pelo menos em princípio, de ser
verificada, poder-se-á concluir que produziu uma elocução que
não tem significação literal, nem sequer para si próprio.
Uma outra distinção que teremos de fazer é a diferenciação
entre o sentido «forte» e o sentido «fraco» do termo
«verificável». Uma proposição diz-se verificável, no sentido
forte do termo, se, e apenas se a sua verdade puder ser
estabelecida definitivamente pela experiência. Mas é
verificável no sentido fraco do termo se for possível torná-la
provável pela experiência. Em que sentido estamos a utilizar o
termo quando afirmamos que uma proposição putativa é
genuína apenas se for verificável?
Parece-me que, se adoptarmos a verificabilidade conclusiva
como critério de significação, como alguns positivistas têm
proposto, a nossa argumentação irá demasiado longe.
Consideremos, por exemplo, o caso das proposições
universais; proposições como: «o arsénico é venenoso»;
«todos os homens são mortais»; «um corpo tende a dilatar-se
quando é aquecido». Faz parte da própria natureza destas
proposições que a sua verdade não pode ser estabelecida com
certeza por nenhuma série finita de observações. Mas se se
reconhecer que as proposições universais se destinam a cobrir
um número infinito de casos, então tem de se admitir que não
podem, nem em princípio, ser verificadas conclusivamente. E
nesse caso, se adoptarmos a verificabilidade conclusiva como
critério de significação, somos logicamente obrigados a
considerar estas proposições universais do mesmo modo que
tratamos os enunciados do metafísico. (…)
Voltamos, portanto, ao sentido mais fraco da verificação.
Afirmamos que a questão que deve ser colocada sobre
qualquer enunciado factual putativo não é se haveria
observações que tornassem a sua verdade ou falsidade
logicamente certas, mas simplesmente se haveria observações
relevantes para a determinação da sua verdade ou falsidade. E
só no caso de a resposta a esta segunda questão ser negativa
é que concluímos que o enunciado em análise não tem
sentido.
Para tornar a nossa posição ainda mais clara, poderemos
formulá-la de outra forma. Vamos chamar às proposições que
registem uma observação de facto ou possível, proposições
experienciais. Em seguida, podemos dizer que a característica
principal de uma proposição factual genuína não é que esta
deva ser equivalente a uma proposição experiencial, nem a
qualquer número finito de proposições experienciais, mas
simplesmente o facto de algumas proposições experienciais
poderem ser deduzidas a partir dela, em conjunção com
determinadas outras premissas, sem serem deduzíveis apenas
a partir destas.»
 
Alfred Julius Ayer, Linguagem, Verdade e Lógica, Editorial Presença, Lisboa, págs. 11-15.

rotasfilosoficas às 18:05
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«Como viver da melhor maneira possível? Esta pergunta


parece-me muito mais substancial do que outras na aparência
mais imponentes: «Tem sentido a vida? Vale a pena viver? Há
vida depois da morte?» Olha, a vida tem sentido e sentido
único; segue em frente, as cartadas não se repetem nem
podem, habitualmente, corrigir-se. Por isso devemos reflectir
sobre aquilo que queremos e reparar no que fazemos.
Depois... conservar sempre a coragem diante do fracasso,
porque a sorte também faz parte do jogo e ninguém pode
acertar em todas as ocasiões. O sentido da vida? Primeiro,
procurar não falhar; depois, tentar falhar sem desanimar.
Quanto a sabermos se vale a pena viver, remeto-te para o
comentário a esse propósito de Samuel Butler, um escritor
inglês, muitas vezes irónico: «Isso é uma pergunta para ser
feita a um embrião, não a um Homem.» Qualquer que seja o
critério que escolhas para julgar se a vida vale a pena, terás
que o ir buscar a esta mesma vida na qual estás mergulhado.
Mesmo que rejeites a vida, fá-lo-ás em nome de valores vitais,
de ideais e ilusões que aprendeste no ofício de viver. (...).
Acredito que qualquer ética digna desse nome parte da vida e
se propõe reforçá-la, torná-la mais rica. (...). E interessa-me
que esta vida seja uma vida boa, não uma simples
sobrevivência ou um constante medo de morrer. (...)
Porque viver não é uma ciência exacta, como as matemáticas,
mas uma arte, como a música. Podem, da música, aprender-
se certas regras e podemos ouvir o que os grandes
compositores criaram, mas se não tiveres ouvido, nem ritmo,
nem voz isso de pouco te servirá. Com a arte de viver
acontece a mesma coisa. (...)
A vida boa não é algo de genérico, fabricado em série, mas só
existe por medida. Cada um precisa de a ir inventando de
acordo com a sua individualidade, única, irrepetível... e frágil.
No que se refere ao bem viver, a sabedoria ou o exemplo dos
demais podem ajudar-nos, mas não substituir-nos.»
 
Fernando Savater, Ética para um Jovem, Editorial Presença, pp. 117-118
rotasfilosoficas às 15:47
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Todo o conhecimento, tanto comum como científico, é formado


por elementos fornecidos pela intuição sensível e elaborados
pelo pensamento. A elaboração é a obra da razão, que se
define como a função de coordenação do pensamento na sua
actividade de conhecimento, função que se exerce mediante
princípios (de identidade, de contradição, de causalidade, etc.)
constitutivos da razão. O conhecimento comum é quase
sempre o produto de uma elaboração espontânea da razão, ao
passo que o conhecimento científico resulta de uma elaboração
reflectida, metódica, prosseguida de modo voluntário e, por
vezes, árduo.
No conhecimento comum, as sensações obtidas pelos órgãos
dos sentidos são elaboradas inconscientemente em
percepções, depois, o espírito, graças à memória, compara
entre si as diversas percepções, analisa-as e observa, assim,
certos retornos de fenómenos análogos. Muito naturalmente, o
espírito aguarda o seu reaparecimento e torna-se capaz, em
certa medida, de os prever; formula, assim, leis empíricas,
como as seguintes: todo o homem morre; o fogo coze os
alimentos e queima.
Não obstante os seus defeitos e as suas insuficiências, o
conhecimento comum ou empírico é um seguro caminhar para
o conhecimento científico, porque comporta já um certo grau
de generalidade; pode, efectivamente, enunciar leis (nem
sempre rigorosas) e, embora subjectivo em larga medida, isto
é, variável de indivíduo para indivíduo, é grandemente
influenciado e regularizado pela sociedade, mediante a
linguagem.
É ensinando a criança a falar que se forma o seu pensamento,
que se lhe dá a possibilidade de o fixar, de o ordenar e de o
comunicar. Um pensamento que a linguagem não fixasse
permaneceria vago, fugidio, incaptável e incoerente. Ora, a
linguagem é um produto social e o pensamento comum
modela-se sob a sua influência constante; fornece-lhe uma
grande quantidade de matrizes gerais inteiramente prontas;
são as palavras que permitem classificar rapidamente as
sensações novas e, com a ajuda da sintaxe, pô-las em relação
com as antigas. A linguagem permite generalizar facilmente
observações particulares, porque as palavras são veículos de
ideias gerais, conceitos universais. Pode dizer-se que ela
transmite os resultados das observações e do enorme trabalho
mental das gerações que presidiram à sua formação.
Assim, a linguagem tende a diminuir o carácter subjectivo do
conhecimento comum, ao fazer participar o indivíduo nos
modos de pensar de um meio social extenso, no seio do qual
os indivíduos controlam reciprocamente os seus
conhecimentos, ao comunicá-los.
O objectivo do conhecimento comum, estruturado e
uniformizado pela linguagem, é adaptar-nos ao nosso meio,
permitir que nos preservemos dos perigos que nos ameaçam,
e que procuremos alimentos. Orientado essencialmente para a
acção e a prática, ele é sobretudo utilitário e tende para o
fabrico de utensílios que aumentam o nosso poder sobre as
coisas e os seres. Pela construção de utensílios rudimentares,
o pensamento, antes de todo o conhecimento propriamente
científico, mede-se já com uma realidade exterior que lhe
resiste e que o rectifica sempre que se transvia. Um utensílio
mal concebido revela-se, na prática, como inutilizável e obriga
por isso mesmo o pensamento a construir um que seja eficaz,
por conseguinte, a corrigir-se para melhor se adaptar à
realidade material.
Mas não entramos apenas em relação com o mundo material;
é igualmente necessário que nos adaptemos aos nossos
semelhantes, que adivinhemos as suas intenções e
prevejamos, em certa medida, as suas acções. A psicologia
empírica responde a esta necessidade; desigualmente
desenvolvida nos diversos indivíduos, funda-se em indícios
pequenos (jogos de fisionomia, gestos, etc.) mais ou menos
habilmente interpretados. Existe, sem dúvida, desde que há
sociedades humanas, ao passo que a psicologia científica é de
criação recente.
 
Maurice Gex, Éléments de Philosophie des Sciences, Éditions du Griffon, Neuchâtel, págs.
15-18
rotasfilosoficas às 14:20
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