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OPINIÃO OPINION
Entrevista com o professor Gilles Dussault:
Desafios dos sistemas de saúde contemporâneos,
por Eleonor Minho Conill, Ligia Giovanella e José-Manuel Freire
Gilles Dussault é professor catedrático convidado Conill, Giovanella, Freire O senhor teve a
da Unidade de Saúde Internacional e Bioestatís- oportunidade de vivenciar diversos contextos de
tica do Instituto de Higiene e Medicina Tropical organização de sistemas de saúde por ter mora-
(IHMT), Lisboa, Portugal, desde agosto de 2006. do, estudado ou trabalhado na América do
Anteriormente exerceu funções de Senior Health Norte (Québec e Estados Unidos), na Inglater-
Specialist do Instituto do Banco Mundial, em ra, Austrália, América Latina (Brasil) e, atual-
Washington, D.C. Foi responsável pelas ativida- mente, por estar em Portugal. Sabemos que tam-
des regionais do Programa “Reforma do Sector da bém trabalhou com o continente africano du-
Saúde e Financiamento Sustentável”, em diver- rante seu período profissional no Banco Mun-
sos países de língua oficial francesa, portuguesa e dial. Quais são os aspectos essenciais que devem
espanhola, nos quais o Banco Mundial se encon- ser levados em conta nas reformas visando me-
trava em atividade. Seu trabalho concentrou-se lhorar a qualidade dos serviços de saúde? Exis-
no financiamento do setor saúde e em políticas de tem pontos comuns, apesar de esses contextos
recursos humanos da saúde. Entre 1985 e 2000, serem tão diversos? Quais especificidades são im-
assumiu funções como professor e diretor do De- portantes e devem ser consideradas?
partamento de Administração da Saúde da Uni- Dussault Apesar de cada país e, em muitos
versidade de Montreal. Tem lecionado em diver- casos, cada região (como em Espanha, Itália),
sos países. No Brasil, foi professor visitante na província (como em Canadá) ou estado (como
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca a Alemanha) nos países federais ter suas especi-
(1991-92). Suas publicações concentram-se em ficidades, há princípios que se aplicam a todos.
torno de tópicos relacionados com a regulação e a Uma lista não exaustiva inclui: (1) a adoção de
gestão dos recursos humanos da saúde. Realizou objetivos claros e específicos em termos de qua-
diversos projetos de consultoria para agências de lidade nas suas dimensões técnicas (respeito pe-
cooperação multilaterais e bilaterais e colabora las normas profissionais) e de serviço (aspec-
tos não clínicos dos serviços, a chamada res-
com comitês editoriais e grupos de trabalho in-
ponsiveness); (2) um verdadeiro compromisso
ternacionais como a Organização Mundial da
político ao mais alto nível que apoie esses obje-
Saúde e o Observatório Europeu dos Sistemas e
tivos; (3) a mobilização da capacidade para atin-
Políticas de Saúde.
gir os objetivos. Esta capacidade deve existir em
três níveis: no nível da força de trabalho (que
produz serviços que devem compreender com-
petências técnicas adequadas e motivação para
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Conill EM et al.
prestar serviços de alta qualidade); no nível das dirigente, o que favorece a continuidade na gestão
organizações prestadoras (para criar um ambien- e na implementação das políticas.
te e modalidades de trabalho favoráveis ao bom Além de recrutar gestores competentes e dedi-
desempenho, por exemplo, através do trabalho cados, outras estratégias são importantes para me-
em equipe, acesso a ferramentas funcionais, e pro- lhorar a efetividade e a eficiência dos serviços pú-
cessos de gestão que facilitem o trabalho profis- blicos. Incluo a disponibilidade de sistemas de in-
sional); e no nível institucional, ou seja, do qua- formação que permitem monitorizar em tempo
dro regulador no sector da saúde, através de me- real as principais dimensões do desempenho dos
canismos adaptados de financiamento das orga- serviços públicos, tal como tempos de espera, ní-
nizações e de pagamento dos prestadores e de veis de satisfação dos utentes, rotatividade e absen-
regulação da qualidade, por exemplo, pelos con- tismo do pessoal ou variações na produção.
selhos profissionais reforçados. Neste nível, de- Em muitos países, os sistemas que existem
vem ser definidos sistemas de incentivos alinha- servem as necessidades da administração central,
dos com os resultados esperados. É obvio que a sem atender às dos que dirigem os serviços. Nos
produção de serviços de qualidade exige recur- países de tradição anglo-saxônica tal também
sos financeiros suficientes, mas os entraves à acontece, mas é comum, nas organizações pres-
melhoria da qualidade são mais os de natureza tadoras, existir um scorecard com indicadores
organizacional e cultural que influenciam os com- que facilitam o monitoramento contínuo da pro-
portamentos dos prestadores. dução, dos custos e da qualidade. Desta forma,
os dirigentes podem reagir rapidamente quando
Conill, Giovanella, Freire Países de tradição se apercebem de possíveis problemas.
político-administrativa napoleônica (França, A qualidade dos serviços depende diretamente
Espanha, Itália, Portugal, América Latina, entre do comportamento dos profissionais e outros
outros) parecem ter mais dificuldades que os de trabalhadores que contribuem para sua produ-
tradição anglo-saxã para modernizar seus servi- ção. Por essa razão, a educação e a formação ao
ços públicos, incluindo os sistemas de saúde. longo da vida profissional jogam um papel deci-
Considerando essa ampla experiência em con- sivo no desenvolvimento de competências e ati-
textos políticos, administrativos e culturais dis- tudes que favoreçam a prestação de serviços.
tintos, qual é sua percepção acerca das iniciativas A passagem da formação didática tradicio-
de muitos países da América Latina de reformar nal à formação baseada na resolução de proble-
seus esquemas de governo e gestão dos serviços mas tem ajudado muito na sensibilização dos
públicos para melhorar sua qualidade e eficiên- profissionais para as dimensões de qualidade
cia? Quais seriam suas observações para contri- para além da clínica e para a necessidade da me-
buir na direção de uma nova cultura nos servi- lhoria da eficiência. Os alunos expostos desde o
ços públicos desses países? principio da formação a problemas complexos
Dussault A grande diferença entre os países de tendem a entender melhor que serviços de quali-
tradição anglo-saxônica e os de cultura latina é o dade são serviços tecnicamente bem prestados,
grau de profissionalização e correspondente des- mas também serviços que respondem a outros
politização da gestão dos serviços de saúde e, em critérios importantes para o utente, como a cor-
geral, dos serviços públicos. tesia, a boa comunicação, a compreensão pelo
Sistemas meritocráticos de seleção dos gesto- contexto de vida da pessoa, a informação ade-
res (inclusivamente os de topo) favorecem uma quada etc. A criação de uma cultura profissional
gestão mais racional, baseada em regras adminis- que internaliza a avaliação como ferramenta de
trativas, e não em critérios políticos. Há uma tra- melhoria da qualidade, e não somente como
dição mais antiga de formação em gestão em saú- mecanismo de controlo, é fundamental para fa-
de e de nomeação para postos de direção em que vorecer atitudes criticas e comportamentos adap-
esta resulta das competências e experiências que tados a uma busca contínua pela qualidade.
correspondem às exigências específicas da função. Uma fraqueza observada em quase todos os
Também a seleção dos gestores em nível das orga- países é a negligência na formação do pessoal de
nizações é feita de modo autônomo. O Ministério apoio, desde porteiros a auxiliares, passando pelo
da Saúde ou o Sistema Nacional de Saúde não pessoal de limpeza, que também necessitam de
intervêm, uma vez as regras gerais sejam respeita- adquirir competências básicas que favoreçam o
das. Há, também, menos rotação do pessoal. Por trabalho de qualidade.
exemplo, a chegada de um novo ministro, ou de Finalmente, o desenvolvimento da investiga-
um novo diretor de hospital, não é automatica- ção avaliativa pode ser um bom investimento para
mente acompanhada por movimentos de pessoal a melhoria contínua da qualidade. Conhecimen-
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equidade de acesso: cada vez que o utente tem de Por que alguns países ainda não conseguem
pagar diretamente ou através de um seguro par- garantir a universalidade, apesar de a prometer a
ticular, existe um obstáculo econômico potencial seus cidadãos? As razões são de vários tipos: al-
ao acesso. É o caso das taxas moderadoras, uma gumas são de natureza política. Os governos não
medida intrinsecamente regressiva, que pode li- sempre consideram a saúde como prioridade,
mitar o acesso dos mais pobres, mesmo quando porque outros interesses dominam ou resistam
existem isenções. Essas taxas são impostas para às reformas que a universalidade exige. Quando
“disciplinar” a procura desnecessária de serviços, existe um sector privado forte, o Estado tem
mas não há evidência nesse sentido: não é claro o muito mais dificuldade em exercer seu papel pla-
que é procura desnecessária e de qualquer ma- nejador e regulador. Sistemas bem estabelecidos
neira, a maioria dos serviços de custo elevado como os do Canadá, da Inglaterra, ou dos países
apenas são acessíveis só com a prescrição (auto- escandinavos desenvolveram-se a uma época
rização) de um profissional. A única fonte de fi- quando havia poucos interesses privados lucra-
nanciamento que pode garantir a equidade de tivos, como seguros ou entidades prestadoras, a
acesso é o orçamento geral e é o modo de finan- ocupar o mercado. Os grupos profissionais,
ciar mais barato em termos de custos de transa- quando não são associados aos esforços a favor
ção, em comparação ao financiamento por vári- de uma maior equidade de acesso, podem cons-
as fontes (caixas de segurança social, seguros tituir uma oposição forte.
privados). Quanto às modalidades de financia- Os países menos ricos não têm condições
mento e de pagamento (orçamento histórico, por para financiar os serviços de saúde a partir dos
linha, global, per capita, salário, pagamento liga- impostos gerais, basicamente porque não tem
do ao desempenho), é importante ver o que vai capacidade (ou vontade política) para captar os
favorecer mais a equidade. Por exemplo, o que impostos que deveriam arrecadar. Alguns ainda
favorece mais a produtividade ou a atração e re- dependem da ajuda externa para sustentar seus
tenção de profissionais em zonas carentes? serviços de saúde. Outros têm recursos, mas por
Não conheço um só país que consiga garantir preferência políticas, as utilizam em obras “visí-
a equidade de acesso. Nos países ricos, há servi- veis”. Esses países têm pouca tradição e uma ca-
ços, como os cuidados dentários, alguns medica- pacidade limitada de planejamento em geral, e
mentos, ou as consultas de psicologia, que ficam em saúde em particular, e há pouca continuidade
a custo do utente por não serem incluídos na ca- na implementação das reformas. Mas não é sem-
tegoria de serviços necessários. É o caso no Cana- pre assim, como o demonstra os esforços do
dá. Noutros países, a gratuidade não está garan- Brasil no sector da saúde da família, que pode
tida; o sistema público não cobre a totalidade dos servir de exemplo de boa prática a outros países
custos, como na França ou em Portugal (onde a da região. Além disso, a voz do cidadão está fra-
Constituição diz que os serviços serão “tendenci- ca. Os que têm capacidade de influenciar as deci-
almente” gratuitos! A meu ver, ou são gratuitos, sões políticas tendem a utilizar serviços priva-
ou não são). O resultado é que quando conside- dos, incluindo fora do país, e não têm grande
ramos a despesa total, em países que cobrem to- interesse em promover e defender a ideia da uni-
dos os cidadãos, ou mesmo os residentes, o com- versalidade ou de serviços públicos fortes. É as-
ponente de financiamento público varia entre 85% sim que a “fragmentação” e a saúde a duas velo-
(Dinamarca, Noruega) e 70% (Canadá, Portu- cidades vai provavelmente continuar a existir na
gal); em comparação, em Brasil, é de 42%; de 45% America Latina, até o dia em que as maiores au-
no México e de 51% na Argentina. A parte priva- toridades e lideranças considerem-se como uten-
da do financiamento inclui os pagamentos dire- tes dos serviços públicos e solidários de todos os
tos, o pagamento de seguros e as contribuições de outros cidadãos do país.
organizações caritativas.
Em resumo, a universalidade é melhor garanti-
da quando há um compromisso autêntico e contí- Referências
nuo em nível do governo, quando há um financia-
dor único, quando a organização e a prestação dos 1. Canadian Health Services Research Foundation. [site
serviços e a alocação dos recursos estão alinhados na internet]. 2011 [acessado 2011 abr 14]. Disponí-
vel em: http://www.chsrf.ca
com as necessidades, quando há uma gestão com-
2. Health Foundation. [site na Internet]. 2011 [acessa-
petente, e quando há sistemas de compensação (re- do 2011 abr 14]. Disponível em: http://www.health.
muneração, incentivos financeiros e outros) que org.uk/
favorecem o tipo de desempenho desejado.