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A.

FARIA DE VASCONCELLOS

UMA
ESCOLA NOVA
NA BÉLGICA

Prefácio de Adolphe Ferrière


Posfácio e Notas de Carlos Meireles-Coelho

1.ª edição
A obra-prima de Faria de Vasconcelos só agora
é publicada em tradução portuguesa, com um
notável posfácio escrito por Carlos Meireles-
-Coelho que ajuda a refletir sobre a atualidade
da obra e um conjunto de notas explicativas
que permitem conhecer o contexto em que a
obra foi escrita. O pensamento pedagógico de
Faria de Vasconcelos fica ao alcance de todos os
que se interessam pela construção de uma
escola que prepare para a vida e seja ela
própria um local de vida. Uma escola onde se
aprende e se é feliz.
Ramiro Marques

A aprendizagem das ciências tem de ser feita a


partir de questões abertas em situações reais e
destina-se a preparar melhores cidadãos, é uma
ideia apresentada por Faria de Vasconcelos de
forma pioneira, há um século atrás, neste livro.
Isabel P. Martins

A perda de alunos no nosso sistema educativo


segue as fases de procura social crescente da
educação e promoção do desenvolvimento
humano contido no programa da escola de
Bierges. O processo de democratização da
Escola e a sua ‘massificação’ exigem uma refor-
ma da Escola e a formação de recursos huma-
nos capazes de estruturar reformas pedagógi-
cas, programas de ensino, metodologias de
formação e heranças culturais de uma popula-
ção escolar, incerta no seu número, origem
social, diversidade cultural e projecto de vida.
Partilhamos com Ad. Ferrière o sentimento que
a nova escola em Portugal necessita de huma-
nistas, como Faria de Vasconcelos, que saibam
antecipar e interpretar os sinais do processo
civilizatório em curso e assegurar a educação
das novas gerações.
Jorge Carvalho Arroteia
Esta obra, embora esquecida, mantém-se actual
pelo empenho no desenvolvimento de todas as
potencialidades do ser humano através de uma
educação integral.
Albano Estrela

A formação profissional dos professores portu-


gueses é, evidentemente, um problema nuclear
da educação. O País dispõe hoje de um amplo
conjunto de instituições de ensino superior
dedicadas à formação teórica e prática dos
professores, e à investigação científica, de que o
sistema educativo carece.
Essa estratégia definiu-se e consagrou-se ao
longo do século vinte. Entre aqueles que inves-
tiram a fundo nela destaca-se a figura de Faria
de Vasconcelos, que se inseriu notavelmente no
Movimento da Escola Nova - nacional, europeu
e internacional, com relevo para a obra realizada
no espaço ibero-americano. Entre nós, foi um
dos fundadores da Revista Seara Nova, em 1921.
Nela se bateu pela modernização e reforma da
nossa Educação, com uma visão e informação
únicas à escala mundial. Na Bélgica, criou, a
expensas suas, a escola de Bierges-Les-Wavre,
considerada por Adolphe Ferrière a segunda
melhor Escola Nova do mundo. Une école
nouvelle en Belgique, publicada em Neuchâtel,
na Suíça, em 1915, é um clássico do Movimento
da Escola Nova, prefaciado por Adolphe
Ferrière, o rosto vivo do Movimento da Escola
Nova à escala mundial - Director do Bureau
International des Écoles Nouvelles.
A Fundação Calouste Gulbenkian promoveu a
edição das Obras Completas de Faria de Vascon-
celos. Mas só agora, com a presente edição, fica à
nossa disposição, em português, Une école
nouvelle en Belgique.
Manuel Ferreira Patrício
“Em Bierges as janelas estão abertas a todos os
ventos. Estamos atentos e queremos responder a
todos os estímulos do futuro. Estamos vivos.”

Foi preciso chegar ao centenário de Une école nouvelle en


Belgique, para que esta obra maior de Faria de Vasconcelos
fosse traduzida para português…
Carlos Meireles-Coelho oferece-nos não só a tradução de
Uma escola nova na Bélgica, mas também um conjunto de
anotações e apontamentos, históricos, biográficos e biblio-
gráficos, de grande interesse e utilidade para compreender
o pensamento de Faria de Vasconcelos e a experiência
pedagógica da escola de Bierges-les-Wavre…
A nossa maneira de pensar a infância, a educação e a peda-
gogia baseia-se, fundamentalmente, neste ideário que
aparece claramente exposto, pela primeira vez, no livro de
Faria de Vasconcelos. Daí a sua importância, não só para
Portugal, mas para a compreensão da pedagogia contem-
porânea…
Faria de Vasconcelos é, sem dúvida, o educador português
mais conhecido no estrangeiro. A sua obra constitui uma
referência obrigatória para quem quer estudar as dinâmi-
cas da Educação Nova no princípio do século XX.
Cem anos depois precisamos de abrir novas janelas, a
todos os ventos, para assim responder aos estímulos do
futuro. São outros os tempos, são outros os caminhos, mas
precisamos de ter a mesma ousadia de pensamento e de
acção que este livro de Faria de Vasconcelos revela, pois só
assim estaremos à altura das novas soluções que o século
XXI nos exige.
António S. Nóvoa
UMA ESCOLA NOVA
NA BÉLGICA
2

Este trabalho é financiado pela FCT/MEC através de fundos


nacionais (PIDDAC) e cofinanciado pelo FEDER através do
COMPETE – Programa Operacional Fatores de Competitividade
no âmbito do projeto PEst-C/CED/UI0194/2013.
A. FARIA DE VASCONCELLOS

UMA
ESCOLA NOVA
NA BÉLGICA

Prefácio de Adolphe Ferrière (1915)

Posfácio e Notas de Carlos Meireles-Coelho (2015)

1.ª edição
4

Título: Uma escola nova na Bélgica


Autor: A. Faria de Vasconcellos [a]
Prefácio: Adolphe Ferrière [b]
Posfácio e Notas: Carlos Meireles-Coelho [c]
Título original: Une école nouvelle en Belgique
Tradução: Carlos Meireles-Coelho, Ana Cotovio [d] e
Lúcia Ferreira [e]
Impressão: ARTIPOL – Artes Tipográficas, Lda.
Edição: UA Editora, Universidade de Aveiro (Portugal)
1.ª edição comemorativa do centenário em 2015
Tiragem: 300 exemplares, julho de 2015
ISBN: 978-972-789-454-3
Depósito legal: 396 025/15
Catalogação recomendada:
Vasconcelos, Faria de, 1880-1939
Uma escola nova na Bélgica / A. Faria de Vasconcellos;
pref. Adolphe Ferrière; posf. e notas Carlos Meireles-Coelho
– 1.ª edição – Aveiro: UA Editora, 2015. – 320 p.
Trad. de: Une école nouvelle en Belgique
ISBN: 978-972-789-454-3 (brochado)
Escola nova // Autonomia // Responsabilidade //
Educação para o trabalho // Formação pessoal e social
CDU 37.017
AOS MEUS COLABORADORES
E AOS MEUS ALUNOS
DE BIERGES
6

Tradução a partir do original em francês


Une École Nouvelle en Belgique. Préface de M. Adol-
phe Ferrière. Neuchâtel: Delachaux & Niestlé, 1915.

Foram tidas em consideração as traduções:


A New School in Belgium. With an Introduction by
Adolphe Ferrière. Translated from the French by Eden
and Cedar Paul [a]. London: George G. Harrap & Co., 1919;
Una Escuela Nueva en Bélgica. Prefacio de Adolphe
Ferrière. Traducción de Domingo Barnés [b]. Madrid:
Francisco Beltrán, 1920;
e do prefácio por J. Ferreira Gomes (1980) [c].

Sendo a primeira tradução da obra para português e a


edição comemorativa do centenário da publicação do
original, procurou-se conservar, tanto quanto possível,
a formatação e a paginação do original francês. As no-
tas de rodapé numéricas constam da edição original.
Mas esta tradução é também anotada e as notas finais
são marcadas no texto com a referência [a], seguindo a
ordem alfabética nessa página. Assim [a] na pág. 4 en-
contra-se em Notas (p. 266) como 4[a].
PREFÁCIO

Têm-me perguntado com frequência em que


consiste exatamente uma Escola nova e o que a
caracteriza. A definição que tenho dado1 não foi
suficiente para evitar mal-entendidos. A partir de
agora vou aconselhar a leitura da obra do meu
colega e amigo, professor Faria de Vasconcellos.
A sua escola de Bierges-les-Wavre [b] na Bélgica,
cujo desenvolvimento foi tragicamente interrom-
pido pela guerra [c], era uma Escola nova modelo.
O ideal da Escola nova pode caracterizar-se
por alguns princípios [d]. Como qualquer ideal,
não foi integralmente alcançado por nenhuma ou

1 Projet d’école nouvelle. Saint Blaise: Foyer solidariste, 1909. [a]

— Les écoles nouvelles, Éducation, dezembro de 1910. — L'édu-


cation nouvelle théorique et pratique, Revue psychologique,
junho de 1910. — Les écoles nouvelles à la campagne, Revue
illustrée, 25 de setembro, 10 e 25 de outubro de 1911. — Coeno-
biums éducatifs, Coenobium, dezembro de 1911. — L’éducation
nouvelle, Rapports du Ier Congrès international de pédologie, vol. II,
p. 470, Bruxelas 1912. — Les principales écoles nouvelles, In-
termédiaire des éducateurs, junho de 1913, etc.
8 Uma escola nova na Bélgica

quase nenhuma escola que conheço. Isto não quer


dizer que os trinta princípios [a] a seguir enume-
rados sejam todos exigidos para que uma escola
seja considerada uma Escola nova. Mas a esse
programa máximo pode contrapor-se um progra-
ma mínimo [b]: a escola estar situada no campo, o
ensino partir da experiência e ser enriquecido
pelo trabalho manual, haver um regime de autono-
mia [c] dos alunos e cumprirem-se pelo menos me-
tade dos princípios que caracterizam a Escola
nova modelo. Num tempo em que se vende tudo,
é preciso mais do que nunca, desconfiar das imi-
tações. Para que fique claro: uma Escola nova só
existe como tal para o «Bureau internacional das
Escolas novas»1 se, além do programa mínimo
que acabámos de mencionar, cumprir pelo me-
nos quinze dos princípios mencionados a seguir.
Talvez se queira saber em que me baseio para
«decretar» em que consiste a Escola nova mo-
delo? Eu não decreto nada, entenda-se, limito-me
a registar. Uma experiência de mais de quinze

1 O «Bureau international des Écoles nouvelles» foi


criado em 1899, organizado em 1912, com sede nas Pléiades
sur Blonay (Vaud, Suíça). O seu objeto é estabelecer contac-
tos de entreajuda entre as diferentes Escolas novas, concen-
trar os documentos que a elas dizem respeito e chamar a
atenção para as experiências psicológicas feitas nestes labo-
ratórios da pedagogia do futuro. [d]
Prefácio de A. Ferrière 9

anos de estadias prolongadas e frequentes em vá-


rias Escolas novas autênticas, numerosas compa-
rações de factos e de métodos, um estudo minu-
cioso dos resultados dos alunos tanto na escola
como depois da escola e dos exames assim como
na vida ativa, tudo isso me levou a crer que certos
processos pedagógicos aplicados em determina-
das condições são melhores que outros. Os co-
nhecimentos atuais sobre a psicologia da criança
vieram confirmar estes resultados empíricos, li-
gando os factos às leis. Pois, se as leis nascem das
experiências realizadas, as experiências a realizar
serão por sua vez especificadas, salientadas e
confirmadas na sua eficácia por teorias psicológi-
cas certas.
Acrescento que o quadro aqui apresentado da
"Escola nova" corresponde assim à realidade con-
tida neste termo que, embora pouco satisfatório,
está já consagrado pelo uso. É a clarificação cons-
ciente e refletida de um conceito até aqui mal de-
finido e pouco preciso. [a]

1. A Escola nova é um laboratório de peda-


gogia prática. Procura desempenhar o papel ex-
plorador ou de pioneiro das escolas públicas,
10 Uma escola nova na Bélgica

mantendo-se ao corrente da psicologia moderna


nos meios que aplica, e das necessidades moder-
nas da vida espiritual e material, nos objetivos
que estabelece para a sua atividade. [a]
2. A Escola nova é um internato, porque só a
influência total do meio no qual a criança se move
e desenvolve permite realizar uma educação ple-
namente eficaz. Isto não significa que se encare o
sistema de internato como um ideal que deva ser
aplicado sempre e em toda a parte: longe disso. A
influência natural da família, se for boa, é prefe-
rível à do melhor dos internatos. [b]
3. A Escola nova está situada no campo, sendo
este o ambiente natural da criança. A influência
da natureza, a possibilidade que ela oferece para
nos entregarmos a divertimentos ancestrais, os tra-
balhos agrícolas que permite realizar constituem
o melhor auxiliar da cultura física e da educação
moral. Mas, para a cultura intelectual e artística,
é desejável a proximidade de uma cidade. [c]
4. A Escola nova agrupa os alunos em casas se-
paradas, cada grupo de dez a quinze alunos vive
sob a direção material e moral de um educador
coadjuvado pela esposa ou por uma colaboradora.
Os rapazes não devem ser privados de uma influên-
cia feminina adulta nem do ambiente familiar que
os internatos não conseguem oferecer. [d]
Prefácio de A. Ferrière 11

5. A coeducação dos sexos, praticada nos in-


ternatos até ao fim dos estudos, tem dado resul-
tados morais e intelectuais incomparáveis, tanto
para os rapazes como para as raparigas, em todos
os casos onde tem sido aplicada em condições
materiais e espirituais favoráveis1. [a]
6. A Escola nova organiza trabalhos manuais
para todos os alunos, durante pelo menos hora e
meia por dia, em geral das 14 às 16 horas, trabalhos
obrigatórios que, mais do que terem uma finali-
dade profissional, têm um objetivo educativo2 e de
utilidade individual ou coletiva. [b]
7. Entre os trabalhos manuais a carpintaria [c]
ocupa o primeiro lugar, uma vez que desenvolve a
destreza e precisão manuais, o sentido de observação
exata, o rigor e o autocontrolo. O cultivo do solo e a
criação de pequenos animais enquadram-se na
categoria das atividades ancestrais de que toda a
criança gosta e deve ter a oportunidade de praticar.[d]
8. Além de trabalhos definidos, há trabalhos
livres que desenvolvem os gostos da criança e
lhes despertam o espírito criativo e o engenho. [e]

1 Coéducation, Semaine littéraire, 1909-02-20. — Les condi-

tions de succès de la coéducation dans les internats, Communi-


cations au 1er Congrès international de pédologie, vol. 1, p. 411, Bruxe-
las, 1912. — Coéducation et mariage, Foi et vie, 1914-06-01 e 15 [f].
2 La valeur morale des travaux manuels. Rapport du IIme

Congrès international d’éducation morale, vol. I, p. 488, Haia. 1912.


12 Uma escola nova na Bélgica

9. A cultura do corpo é assegurada pela ginás-


tica natural 1 de corpo nu, ou pelo menos de tron-
co nu, bem como por jogos e desportos. [a]
10. As viagens, a pé ou de bicicleta, com acam-
pamento em tendas e as refeições preparadas pelas
próprias crianças, desempenham um papel impor-
tante na Escola nova. Estas viagens são preparadas
com antecedência e têm uma função pedagógica. [b]

II

11. Em relação à educação intelectual, a Escola


nova procura abrir a mente para uma cultura ge-
ral do espírito e não para uma acumulação de co-
nhecimentos memorizados. O espírito crítico nasce
da aplicação do método científico: observação, hi-
pótese, verificação, lei. Um núcleo de áreas de es-
tudo obrigatórias proporciona uma educação inte-
gral, não enquanto instrução enciclopédica, mas
como possibilidade de desenvolvimento, pela in-
fluência do meio e dos livros, de todas as faculda-
des intelectuais inatas da criança. [c]
12. A cultura geral é concretizada numa dupla
especialização: primeiro espontânea, cultura dos

1 Georges Hébert, L’éducation physique ou l’entraînement

complet par la méthode naturelle, Paris, Vuibert, 1913. [d]


Prefácio de A. Ferrière 13

gostos preponderantes de cada criança1; depois sis-


tematizada e desenvolvendo os interesses e faculda-
des do adolescente num sentido profissional. [a]
13. O ensino é baseado em factos e experiên-
cias. A aquisição de conhecimento resulta de ob-
servações pessoais (visitas a fábricas, trabalhos ma-
nuais, etc.) ou, na falta delas, de outras observa-
ções recolhidas em livros. Em qualquer caso, a teo-
ria segue-se à prática, nunca a precede. [b]
14. O ensino é também baseado na atividade
pessoal da criança. Isto supõe a associação mais
próxima possível do estudo intelectual com o de-
senho e demais trabalhos manuais2. [c]
15. O ensino é baseado nos interesses espon-
tâneos da criança: dos 4 aos 6 anos, idade de in-
teresses difusos ou idade do jogo; dos 7 aos 9 anos,
idade de interesses ligados a objetos concretos
imediatos; dos 10 aos 12 anos, idade de interesses
especializados concretos ou idade das monogra-
fias; dos 13 aos 15 anos, idade de interesses abstra-
tos empíricos; dos 16 aos 18 anos, idade de inte-
resses abstratos complexos: psicológicos, sociais,
filosóficos. O que acontece na escola ou fora dela

1 La loi biogénétique et l’éducation, Archives de Psychologie,


março de 1910. [d]
2 Biogenetik und Arbeitsschule, Langensalza, Beyer & Sohn,

1912. — Les fondements psychologiques de l'école du travail, Revue


psychologique, julho de 1914. [d]
14 Uma escola nova na Bélgica

dá origem, entre os mais velhos e os mais novos,


a lições ocasionais e discussões com lugar de des-
taque na Escola nova. [a]
16. O trabalho individual do aluno consiste
em pesquisar (em factos, livros, jornais, etc.) e
classificar (de acordo com um quadro lógico ade-
quado à sua idade) documentos de todos os tipos,
bem como em trabalhos pessoais e na preparação
de palestras a fazer na aula. [b]
17. O trabalho coletivo consiste na troca e na
ordenação ou elaboração lógica em grupo dos do-
cumentos de trabalho de cada um. [c]
18. Na Escola nova o ensino propriamente dito
está limitado ao período da manhã – geralmente
das 8h00 ao meio-dia. – À tarde, durante uma a
duas horas, segundo a idade, das 16h30 às 18h00,
tem lugar o «estudo» pessoal. As crianças com idade
inferior a 10 anos não têm trabalhos para fazer sozi-
nhas. [d]
19. Estudam-se poucas matérias por dia; ape-
nas uma ou duas. A variedade surge não dos as-
suntos estudados, mas da maneira de os tratar,
sendo as diferentes metodologias e estratégias
aplicadas rotativamente. [e]
20. Estudam-se poucas áreas por mês ou por
trimestre. Um sistema de cursos, semelhante ao
que se faz na Universidade, permite a cada aluno
ter o seu horário individual. [f]
Prefácio de A. Ferrière 15

III .

21. A educação moral, como a educação inte-


lectual, deve ser exercida não de fora para dentro
por autoridade imposta, mas de dentro para fora
pela experiência e a prática gradual do sentido
crítico e da liberdade. Baseando-se neste princí-
pio, algumas Escolas novas aplicaram o sistema da
república escolar [a]. A assembleia-geral, formada
pelo diretor, professores, alunos e por vezes mesmo
pelo pessoal auxiliar, constitui a direção efetiva da
escola e elabora o código das leis. Estas leis são os
meios que tendem a regular o trabalho da comuni-
dade para os fins traçados pela própria assem-
bleia-geral. Este sistema altamente educativo,
quando é realizável, pressupõe uma influência
preponderante do diretor sobre os líderes naturais
da pequena república1. [b]
22. Na ausência do sistema democrático inte-
gral, a maioria das Escolas novas é constituída
como monarquias constitucionais: os alunos ele-
gem chefes, ou prefeitos, que têm uma responsa-
bilidade definida. [c]

1
Le self-government scolaire. Communications du Ier Con-
grès international de pédologie, vol. I, p. 408. Bruxelas, 1912, e
os artigos sobre a educação nova já citados. Outra fonte: William
R. George, The Junior Republic, New-York: Appleton, 1912. [a]
16 Uma escola nova na Bélgica

23. Os cargos sociais de todas as espécies po-


dem permitir que a ajuda mútua se torne efetiva. Es-
tes cargos para o serviço da comunidade são confia-
dos rotativamente a todos os pequenos cidadãos. [a]
24. As recompensas ou sanções positivas con-
sistem em oportunidades dadas às mentes cria-
doras para aumentar o seu poder criativo. Apli-
cam-se aos trabalhos livres e desenvolvem assim
o espírito de iniciativa. [b]
25. As correções ou sanções negativas estão em
correlação direta com a falta cometida. Isso significa
que visam colocar a criança em situação de, por
meios apropriados, alcançar melhor no futuro o
objetivo considerado adequado, que ela não atingiu
ou atingiu de forma não satisfatória. [c]
26. A emulação ocorre essencialmente através
da comparação feita pela própria criança entre o seu
trabalho atual e o anterior, e não exclusivamente pela
comparação do seu trabalho com o dos colegas. [d]
27. A Escola nova deve ser um ambiente de
beleza como escreveu Ellen Key [e]. A ordem é a
primeira condição, o ponto de partida. A arte in-
dustrial que se pratica e de que se está rodeado con-
duz à arte pura, própria para despertar, na natureza
dos artistas, os sentimentos mais nobres. [f]
28. A música em grupo, seja canto ou orques-
tra, exerce uma mais profunda e purificadora in-
fluência naqueles que dela gostam e a praticam.
Prefácio de A. Ferrière 17

Todas as crianças deveriam beneficiar das emo-


ções que ela desperta e desenvolve. [a]
29. A educação da consciência moral consiste
principalmente, nas crianças, em narrativas que
lhes provocam reações espontâneas, verdadeiros
juízos de valor que, repetindo-se e acentuando-se,
acabam por se tornar os princípios orientadores da
conduta para si e para os outros. É este o objeto da
«leitura da noite» na maioria das Escolas novas. [b]
30. A educação da razão prática consiste prin-
cipalmente, entre os adolescentes, em reflexões e
em estudos referentes às leis naturais do progresso
espiritual, individual e social. A maioria das Esco-
las novas observa uma atitude religiosa não con-
fessional ou interconfessional que é acompanhada
pela tolerância em relação aos diferentes ideais, na
medida em que encarnam um esforço com vista ao
crescimento espiritual do ser humano. [c]
*
* *
Estes trinta princípios, retirados da atual expe-
riência das Escolas novas, permitem aferir estas es-
colas, se me é permitido utilizar este termo. Uma
única visita permitirá a um pai de família ficar a sa-
ber se a escola à qual quer confiar o seu filho é ou
não uma Escola nova. Este procedimento conterá
certamente qualquer coisa de um pouco de arbitrá-
rio: toda a aplicação da teoria à prática tem esta ca-
18 Uma escola nova na Bélgica

racterística. Mas quanto menos arbitrariedade exis-


tir na aplicação desta norma de valores, melhor. Foi
isto que pretendi.
Não é também, numa outra área, utilizado o
mesmo procedimento para avaliar a capacidade
de automóveis que devem participar numa cor-
rida de velocidade ou de resistência? Se se utiliza
em mecânica, porque não utilizá-lo também em
psicologia e educação? Poder-se-á reduzir o rigor
do procedimento admitindo por exemplo que
uma escola só realiza metade ou um quarto de
um ou outro princípio. Seguem alguns exemplos.
Observemos seis [a] Escolas novas conhecidas e
indiquemos com um número correspondente à
lista abaixo indicada as características que lhe são
próprias. Os números entre parênteses indicam
que a escola em questão só aplica metade dos
princípios definidos.
ESCOLA D’ABBOTSHOLME (Inglaterra) [b]. 1, 2, 3,
6, 7, 9, 10, 11, (12), 13, 14, 15, (16), 17, 18, 22, 23,
(24), 25, 26, 27, 28, 29, 30. – Total: 22,5.
ESCOLA DE BEDALES (Inglaterra) [c]. 1, 2, 3, (4),
5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, (14), (15), (16), 17, 18, 22,
23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30. – Total: 25.
ESCOLA DES ROCHES (França) [d]. 1, 2, 3, (4), 6,
(7), (8), (9), (10), 11 (13), (18), 22, 23, 24, 25, 26, 27,
28, 29, 30. – Total: 17,5.
Prefácio de A. Ferrière 19

ESCOLAS LIETZ (Alemanha) [a]. 1, 2, 3, 4, 6, 7, (8),


9, 10, 11, (12), 13, 17, 18, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28,
29, 30. – Total: 22.
ESCOLA D’ODENWALD (Alemanha) [b]. De 1 a
30. – Total: 30.
ESCOLA DE BIERGES (Bélgica) [c]. Todos os pon-
tos, menos (4) e 5. (O professor Faria defende a
educação familiar em pequenos grupos. Apenas
a afluência de alunos e a impossibilidade de im-
provisar durante o ano letivo novos edifícios o le-
varam a alojar os 25 alunos numa mesma casa. –
Quanto à coeducação, o estado político-religioso
da Bélgica não permitiu ao professor Faria adotar
esta reforma, que lhe é também bastante cara.) –
Total: 28,5. [d]
*
* *
Já chega de introdução. O leitor, sem dúvida,
quer conhecer diretamente a notável escola de Bier-
ges-les-Wavre. Para isso dou a palavra ao professor
Faria de Vasconcellos. De origem portuguesa, mas
belga pelos estudos (é doutor em direito e ciências
sociais), belga também pelo ensino (durante 10 anos
foi professor de psicologia e pedagogia na Univer-
sidade Nova de Bruxelas [e]) e belga enfim pelo ca-
samento [f], é acima de tudo um humanista no sen-
tido mais lato do termo. Embora exilado na Suíça
pelas imposições cruéis da guerra, não abandonou
20 Uma escola nova na Bélgica

a esperança de continuar a sua obra educativa em


solo belga quando este voltar ao seu próprio génio.
Desejamos os votos mais sinceros a este pioneiro
da educação do futuro [a].

LES PLEIADES sur BLONAY [b],

julho de 1915
AD. FERRIÈRE

_________________

O conteúdo deste volume foi objeto de três palestras no


Instituto J. J. Rousseau [c] de Genebra [d] nos meses de feve-
reiro e março de 1915. Conservou-se o tom familiar da reda-
ção original [e].
A. Faria de Vasconcellos 21

CAPÍTULO I

MEIO AMBIENTE. EDUCAÇÃO FÍSICA

1. Fundação da escola — 2. Localização — 3. Edifícios —


4. Higiene (sono, alimentação, asseio) — 5. Educação
física (jogos e desportos, ginástica, passeios e excursões)
— 6. Trabalhos manuais [a] — 7. Trabalhos agrícolas

Começo por agradecer ao Instituto Jean-Jacques


Rousseau pelo prazer e honra da sua hospitalidade.
Este acolhimento nas atuais circunstâncias comove-
me profundamente. Embora a tragédia já dure há
seis meses, custa-me ainda acreditar que esteja aqui
convosco, longe da minha escola, longe da Bélgica [b].
Para todos aqueles que, nesse país, tinham a missão
de educar os jovens, o golpe ainda foi maior, pois
confiavam nos tratados e tinham colocado a sua es-
perança na resolução pacífica dos problemas inter-
nacionais. Tinham feito deste amor pela paz, do res-
peito pelas convenções, em cuja inviolabilidade
acreditavam firmemente, como pessoas honestas,
a base da sua educação patriótica. Ensinavam as
22 Uma escola nova na Bélgica

crianças a amar o seu país, simplesmente, sem es-


quecer de lhes dizer que todos temos uma pátria co-
mum, mais vasta e ampla, a pátria humana em que
todos os povos, cada um à sua maneira, se esforçam
no sentido do progresso libertador para mais soli-
dariedade, bondade e justiça [a]. Diziam-lhes que o
homem não era lobo do homem, como se dizia anti-
gamente, mas que se foi enriquecendo pelo progres-
so para mais beleza e bondade, que lhe permitiram
olhar mais alto, para a cultura dos valores supre-
mos do espírito. [b] Os acontecimentos atuais pare-
cem não lhes dar razão. E é por isso que me encon-
tro aqui neste momento. — Mas a sua fé permanece
inabalável, porque acima dos homens e das nações
permanece o espírito humano. Apesar de todos os
horrores e de todas as atrocidades, nunca aceitare-
mos que apaguem a chama eterna que, na subida
para as alturas, ilumina o caminho comum. [c] Se
tudo fosse para recomeçar, a Bélgica voltaria a fa-
zer o mesmo, assim como os professores continua-
riam a dizer aos seus alunos: «Não tenham medo,
mesmo na hora do perigo, continuem a acreditar no
ser humano, que a sua honestidade e a sua bondade
são cada vez maiores.» É esta confiança simples no
que há de bom na humanidade que fez do gesto
belga um gesto nobre e verdadeiramente humano.
Ele mostrou que os esforços de redenção humana
não se perderam; concentrou em si toda a energia
A. Faria de Vasconcellos 23

da moralidade à qual o ser humano aspira desde


que existe; salvou e preservou este património co-
mum de toda a vida moral. A educação para a paz
dos jovens belgas não fez adormecer, como se pode
ver, a sua energia combativa, pelo contrário, glori-
ficou e engrandeceu a humanidade no ser humano,
permitindo-lhes assim manterem-se firmes contra o
reaparecimento de brutalidades ancestrais que a
educação para a guerra provocou do outro lado da
fronteira.
*
* *

1. Fundação da escola

Estas considerações preliminares permitem-


me abordar agora o tema das minhas palestras [a]:
Uma Escola nova na Bélgica.
Preferia que tivessem tido a oportunidade de a
ver a funcionar, que é como uma escola deve ser
vista. Para tornar a minha apresentação o mais real
possível, recorrerei frequentemente ao «Boletim dos
alunos» [b], uma publicação escrita inteiramente pe-
los nossos alunos onde eles falam sobretudo do que
fazem, descrevem o modo como aprendem, rela-
tam os principais factos que ocorreram em cada
trimestre, como visitas de estudo, grandes expe-
riências, conferências. Assim, podem ter uma ideia
da atividade que reina na escola. Serão, então, em
24 Uma escola nova na Bélgica

grande parte, os próprios alunos a contar o que lá


fazíamos.
A escola foi fundada em outubro de 1912 e ia en-
trar cheia de esperança e vigor no seu terceiro ano.
É a primeira Escola nova no campo que foi criada na
Bélgica. Parecia responder às necessidades do meio,
porque reencontrou de imediato um ambiente de
interesse e simpatia que lhe foi altamente favorá-
vel. Isto explica por que, inaugurada com nove alu-
nos, passou em ano e meio para um total de vinte
e cinco. Enquanto se aguardava a construção de
edifícios próprios, tive de aumentar os locais exis-
tentes para poder receber em 1914 os novos alunos
já inscritos nas férias da Páscoa do ano anterior [a].
Não foi, no entanto, sem uma certa apreensão
que decidi criar uma Escola nova. Na Bélgica o pro-
blema escolar coloca-se com uma dureza cruel pela
veemência das lutas religiosas e políticas. A reali-
zação de tal obra fora da confusão dos partidos po-
deria parecer utópica, sobretudo se procurasse dar
à educação uma base amplamente humana, con-
trária a todo o exclusivismo e a todo o absolutismo
de qualquer natureza que fosse.
Queríamos realizar completamente a fórmula:
a escola às crianças [b].
Para afirmar o nosso idealismo no meio das
A. Faria de Vasconcellos 25

forças de um utilitarismo cada vez maior e mostrar


que a escola tinha como missão essencial propor-
cionar «educação», no sentido mais amplo do termo,
formámos um Conselho de Patronos [a], composto
por personalidades cuja vida e trabalhos pudessem
servir de garantia às nossas intenções. Mostraram-
se disponíveis os senhores: Alves da Veiga, em-
baixador de Portugal em Bruxelas, G. Compayré
[b], Dr. Decroly [c], G. De Greef [d], Devogel [e], Ad.

Ferrière, T. Jonckheere [f], J. Holdsworth [g], M.


Mæterlinck [h], A. Nyns [i], de Oliveira Lima, em-
baixador do Brasil na Bélgica [j], N. Smelten [k], Dr.
P. Sollier [l], Dr. Schuyten [m], E. Verhæren [n].
O recrutamento do pessoal docente, problema
delicado e complexo cuja solução é por vezes muito
difícil, foi feito nas melhores condições. Consegui
reunir um grupo de homens, amigos, que pela sua
competência, dedicação incansável e conhecimento
sobre a criança, me permitiram realizar o pro-
grama da escola. O corpo docente de Bierges conta
com dezassete professores, incluindo um mestre
serralheiro e um mestre marceneiro. Terei a opor-
tunidade de voltar a este assunto mais tarde. [o]

2. Localização da escola

A escolha da localização de uma escola é uma


questão fundamental. Gabriel Compayré tem razão
26 Uma escola nova na Bélgica

ao afirmar, no estudo sobre a minha escola [a], que o


primeiro fator para o sucesso de uma Escola nova é
a escolha do local adequado onde ela deve ser ins-
talada. A este respeito, não tive razões para me
queixar do local encontrado. Instalámo-nos em
pleno campo do Brabante Valão. O vale do rio Dyle
onde está o nosso terreno e as colinas arborizadas
que o cercam transformam-no num quadro pito-
resco e cheio de beleza. Não é certamente a paisa-
gem grandiosa e enternecedora desta bela Suíça,
um dos locais mais queridos onde agora tantos bel-
gas se reconfortam dos seus sofrimentos e reani-
mam as suas esperanças. Mas, em Bierges [b], o qua-
dro é tão calmo, relaxante e doce que tudo convida
à descontração, à benevolência, ao trabalho calmo,
à alegria de viver. E tudo isto exerce uma influência
preciosa na criança, no seu desenvolvimento físico
e moral. Uma existência feliz mergulha as suas raí-
zes e alimenta-se deste ambiente de paz.
A região é agrícola, de modo que os alunos po-
dem acompanhar de perto as grandes aplicações da
ciência à técnica e à exploração do solo. Na região
há grandes explorações agrícolas, quintas extrema-
mente interessantes, campos para experiências im-
portantes. Não longe daqui temos Gembloux [c],
com uma escola agrícola, que está classificada como
uma das melhores da Europa. Mas se a região é
A. Faria de Vasconcellos 27

agrícola, está também nos arredores de centros


industriais com uma vida intensa, de um trabalho
agitado, como existe na Bélgica, o que permite
instrutivas visitas frequentes e regulares a fábri-
cas, a minas, a esse vasto mundo do trabalho e
dos trabalhadores, que Constantin Meunier [a], o
grande escultor belga com um novo estilo de arte,
glorificou em mármore de forma vigorosa a epo-
peia de trabalho árduo, de heroico sacrifício, de
paciente e fecunda produção. Terei oportuni-
dade, na próxima palestra [b], de falar sobre estas
visitas e da maneira como são preparadas e orga-
nizadas pelos alunos.
Localizada na proximidade de Bruxelas — a 45
minutos de comboio [c] — a escola pode aproveitar
as vantagens que lhe proporcionam os recursos de
uma grande cidade. Podemos assim visitar regular-
mente os museus, as grandes exposições de escul-
tura e pintura, acompanhar de perto o movimento
artístico, assistir a concertos, a representações tea-
trais que tenham um interesse educativo, nomeada-
mente as tardes literárias inauguradas por alguns
teatros de Bruxelas e dedicados aos clássicos fran-
ceses e a algumas personalidades do teatro estran-
geiro. Estes espetáculos constituem um curso prá-
tico de literatura e permitem clarificar as ideias de
uma forma concreta e viva. Por vezes os mais velhos
28 Uma escola nova na Bélgica

vão à Universidade, a conferências, com o objetivo


de esclarecer e complementar os trabalhos escola-
res. Foi assim que alguns deles, aos sábados às 17
horas, na Universidade Nova de Bruxelas, segui-
ram uma série de conferências sobre a arte do Ex-
tremo Oriente, e nas nossas aulas de geografia e his-
tória estudávamos concretamente esses assuntos e
esses países.
Estes pormenores são suficientes para mostrar
que a localização de uma escola não é uma ques-
tão menor e que, pelo contrário, a escolha do lu-
gar tem uma importância capital. Viver no campo
não significa isolamento, renúncia tolstoiana às
imensas vantagens educativas e instrutivas que
uma grande cidade oferece. Permito-me reforçar
esta ideia, porque encontrei muitas vezes pessoas
para quem este retorno à natureza, que está na
base do movimento das Escolas novas, tem o valor
de um símbolo místico, exclusivo e absoluto; é
uma espécie de libertação do satanismo das cida-
des tentaculares. Se é excelente educar as crianças
no campo, seria no entanto lamentável afastar
completamente os jovens de certas influências be-
néficas de uma grande cidade. Estar longe de um
grande centro parece-me errado, porque só a es-
cola não é suficiente, especialmente para os jo-
vens a partir dos 14 ou 15 anos.
A. Faria de Vasconcellos 29

Além disso, tem a vantagem, que deve ser tida


em consideração, de poderem vir à escola com re-
gularidade professores e conferencistas que enri-
quecem a atividade intelectual.
No campo, mas perto de uma grande cidade,
parece ser a melhor situação para uma Escola
nova.

3. Os edifícios da escola
A Escola de Bierges é composta por uma casa
de habitação, dois edifícios para aulas e anexos
(quinta). A horta, o pomar, a mata e os terrenos de
cultivo ocupam uma área de seis hectares, o que é
mais do que suficiente para as necessidades da es-
cola.
No edifício de habitação encontram-se os quar-
tos, sala de banhos, vestiários, salas de jantar e sala
de estar. É uma casa perfeitamente familiar, calma,
repousante, sem o vaivém contínuo que a vida es-
colar produz nas escolas onde se faz do edifício de
habitação também salas de aula.
Esta separação parece absolutamente necessá-
ria não só em termos de divisão do trabalho e ser-
viços, o que permite uma grande autonomia, mas
porque desta forma a imagem da casa se destaca
melhor do conjunto. Obviamente numa escola
muito pequena não há razão para estabelecer uma
30 Uma escola nova na Bélgica

separação muito rígida, mas quando o número de


alunos atinge e ultrapassa os trinta, parece que é
melhor fazê-lo. Só tem vantagens: a ordem, a lim-
peza, o lugar de que dispomos para cada ativi-
dade, a liberdade de movimentos e, consequente-
mente, a alegria de viver. Como a vida social acar-
reta inevitavelmente pequenos conflitos, peque-
nas mágoas, resultantes das fricções inevitáveis do
meio, a criança fica feliz por encontrar um relaxa-
mento saudável na tranquilidade benéfica da casa.
Dos dois edifícios de aulas, um é especialmente
reservado a oficinas e laboratórios. Inclui uma ofi-
cina de serralharia, uma oficina de carpintaria, um
laboratório de física e de química e uma oficina de
modelagem, de cartonagem, de desenho e de en-
cadernação. Trata-se aqui de separar, novamente,
os campos de trabalho para melhor os utilizar. Se
dermos à criança a liberdade para fazer o que
quer, ela não pode, com isso, perturbar o trabalho
dos colegas. Assim as oficinas isoladas e afastadas
do edifício de aulas, como é o caso das de Bierges,
têm a vantagem de permitir à criança desenvolver
um trabalho constante sem que isso cause qual-
quer perturbação aos estudos e às aulas que exi-
gem silêncio, calma e concentração e poderiam ser
perturbadas pelo barulho que a criança faz quando
executa um trabalho com as suas próprias mãos.
A. Faria de Vasconcellos 31

O segundo edifício de aulas situa-se ao fundo


da propriedade, a alguns minutos da casa de habi-
tação. Tem quatro salas de aula, uma sala de dese-
nho e um laboratório de ciências naturais (micros-
cópio, dissecação, coleções, aquários, terrários).
À volta dos edifícios fica o jardim, a mata e os
terrenos de cultivo.
As crianças vivem assim num ambiente saudá-
vel, porque o ar puro, o espaço, a liberdade, a luz
constituem certamente as melhores condições am-
bientais para lhes garantir naturalmente e sem es-
forço o vigor e a saúde. Mas à influência salutar
que a natureza campestre exerce acrescenta-se a
de uma educação física bem compreendida.

4. Higiene do corpo

O que é importante para a cultura do corpo, nos


cuidados de beleza e vigor, é um estilo de vida
saudável.
A) Em primeiro lugar o sono. As crianças dor-
mem 9 a 11 horas por dia, de acordo com a idade e
a estação do ano. Os quartos são espaçosos. As
crianças dormem com as janelas abertas durante
todo o ano, sem perigo, porque no inverno o frio e
a humidade são atenuados pelo calor emitido pe-
los radiadores do aquecimento central.
32 Uma escola nova na Bélgica

Os nossos alunos estão tão bem preparados


para o frio que no inverno passado alguns deles
dormiram numa tenda em noites de fortes geadas.
Para os que são preparados por um regime de en-
durecimento progressivo, nada chega à alegria de
saborear o gosto da fantasia e da aventura de pas-
sar uma noite dentro de uma tenda.
As crianças dormem em grupos de quatro ou
cinco. Em cada quarto há sempre alunos mais no-
vos e mais velhos, é uma forma de enriquecer as
relações sociais, para que todos possam beneficiar
com isso. Os quartos são decorados pelas próprias
crianças, com desenhos feitos por elas ou com gra-
vuras que escolheram.
No verão, dorme-se a sesta depois de almoço,
às treze horas. Durante os períodos de crescimento
e ossificação, é bom que a criança se deite durante
alguns momentos durante o dia. Esta prática favo-
rece uma postura saudável da coluna vertebral.
B) Há cinco refeições por dia, sendo uma refeição
muito ligeira pelas dez horas além das tradicionais;
não há carne ao jantar, só ovos, lacticínios, hidra-
tos ou legumes; nada de álcool, cerveja ou vinho.
Os produtos que comemos são na maior parte
produzidos na quinta da escola. O que consumi-
mos é produto do trabalho dos alunos, pois são
eles que lavram, adubam, semeiam e colhem.
A. Faria de Vasconcellos 33

São eles que tratam e criam os animais da escola:


vacas, galinhas, coelhos, pombos, porcos. Consti-
tuíram entre si uma sociedade cooperativa [a] de
que voltarei a falar, sociedade que explora mesmo
a sério, por conta própria, a quinta da escola.
Compramos lá a manteiga, o leite e os ovos.
Não existe uma grande sala de jantar, mas duas
ou três pequenas que fazem as vezes de uma
grande e propiciam um ambiente mais íntimo e fa-
miliar; pela mesma razão, não há mesas compri-
das, mas pequenas mesas de seis a oito lugares. [b]
A conversa é livre durante as refeições e são as
crianças que se servem a si próprias. Esta liber-
dade é necessária, porque só assim aprendem a
servir-se e a estar à mesa. Nestes momentos pas-
sados em comum gera-se uma alegria familiar e
possibilita-se um relaxamento que favorece a di-
gestão.
C) Salvo indicação contrária do médico, todos
tomam de manhã durante todo o ano um duche
frio. Sempre que o tempo o permite, praticam na-
tação no tanque da escola, o que lhes faz muito
bem. Este exercício altamente salutar ocorre à
tarde e, após o banho, as crianças, nuas, fazem a
sua cura de sol deitadas na relva.
As lavagens frequentes durante o dia e à noite,
34 Uma escola nova na Bélgica

antes de se deitar, uma higiene rigorosa − lavar os


pés, as mãos, a cara, os dentes − criam nas crian-
ças hábitos de limpeza e higiene que é essencial
adquirir.

D) Além disso, todas as semanas o nosso mé-


dico dá lições concretas, práticas e ao vivo sobre
a cultura do corpo, a higiene dos órgãos dos sen-
tidos, a limpeza da habitação. Estas lições permi-
tem compreender melhor e aplicar na prática os
princípios básicos de uma vida saudável e ro-
busta. Há na escola um cargo de paramédico [a] com
o objetivo não só de desenvolver sentimentos de
iniciativa, de solidariedade e de responsabilidade
mas também de dar à criança a oportunidade de
aplicar ao vivo os conhecimentos adquiridos so-
bre higiene e saúde. Mensalmente é nomeado um
aluno pelos colegas: ele é responsável por tratar
das lesões e doenças que possam surgir, de velar
pela farmácia escolar e um pouco por todos os
problemas de higiene que estão ao seu alcance. É
evidente que este cargo exige conhecimentos so-
bre vários casos patológicos e a maneira de os tra-
tar, de ministrar medicamentos adequados a
cada caso, fazer pensos.

Escusado será dizer que o nosso médico e o


nosso professor de ginástica, também ele médico,
A. Faria de Vasconcellos 35

acompanham de perto e controlam o desenvolvi-


mento físico de cada aluno, cujas medidas (peso,
tamanho, perímetro e diâmetro do tórax, força
muscular, estado dos órgãos dos sentidos, visão,
audição) são registadas em fichas regularmente
comunicadas aos pais.

5. Educação física

A frequência das refeições, a duração das horas


de sono, duches, banhos, ar livre, espaço, luz, lim-
peza, higiene, tudo isso facilita a vida muito ativa
dos nossos alunos e permite à educação física mos-
trar todos os seus bons resultados. A estas influên-
cias criativas de energia, de força e de vigor, acres-
centamos ainda os jogos, os desportos, a ginástica,
os passeios, as excursões, as viagens, os trabalhos
agrícolas e os trabalhos manuais. De facto, quanto
mais variados forem os exercícios físicos, mais efi-
caz será a cultura do corpo. Cada um destes exer-
cícios desperta e desenvolve aptidões e energias
corporais e capacidades morais e intelectuais dife-
rentes, contribuindo todas para o mesmo fim: fazer
de cada criança um ser humano completo. Ve-
jamos os diferentes meios da atividade física.

A) Em primeiro lugar os jogos e os desportos. A


criança tem necessidade de jogar e deve ser-lhe
36 Uma escola nova na Bélgica

dada oportunidade de o fazer. O gosto pelo jogo


é um sintoma inequívoco de saúde física e moral.
Os jogos constituem uma parte importante do
programa: estimulam a vida intelectual, são
oportunidades de experiências enriquecedoras,
preparam a criança para a vida, dão-lhe a opor-
tunidade de medir as suas forças e de se ir conhe-
cendo na relação com outros e com o meio em que
está inserida. Não só cultivam a alegria como de-
senvolvem a destreza, a versatilidade e a cora-
gem. Além dos jogos livres que dependem da
fantasia e do gosto da criança, damos grande im-
portância aos jogos coletivos (ténis, futebol) que
favorecem a aquisição de sentimentos de entrea-
juda, solidariedade e disciplina, por habituarem
a lutar por uma causa comum, a do grupo, e a
submeter-se a uma lei: a regra do jogo.
"Os jogos na escola, disse um dos nossos alu-
nos no Boletim, são divertidos e muito variados."
Os mais novos têm jogos para a sua idade: jogo
da barra, jogo das escondidas e ainda o vasto arse-
nal de todos os meios que a sua fértil imaginação
inventa, como jogos de destreza, de corrida, etc.
Os do meio e os mais velhos jogam hóquei, fu-
tebol, ténis, basquetebol. No inverno fazem jogos
que exigem esforços mais enérgicos e no verão
A. Faria de Vasconcellos 37

jogos mais calmos, merecendo o ténis um desta-


que especial.

Todas as semanas os do meio e os mais velhos


elegem um árbitro para os jogos dos mais novos
e para os seus próprios jogos. O árbitro julga os
conflitos que possam ocorrer, o que desenvolve
neles o sentimento de justiça e as qualidades de
calma e tacto que são tão necessárias a quem tem
de viver em sociedade.
Para dar resposta a esta necessidade de vida
social que caracteriza as crianças a partir da pu-
berdade, os do meio e os mais velhos organiza-
ram clubes de jogos e elaboraram os regulamen-
tos. Eis alguns artigos do regulamento do ténis:
1.º Os sócios jogam num terreno alugado por eles, com
as bolas, a rede e as faixas do clube.
2.º A quota mensal e a entrada no clube são de 50 cên-
timos cada uma.
3.º Só são admitidos como membros os proprietários
de raquetes.
4.º O clube reúne-se uma ou duas vezes por semana.

Os jogos e os desportos decorrem todos os


dias depois da sesta até às 14h ou 14h30 para to-
dos os alunos.
A estes jogos vêm juntar-se, às terças e às sex-
tas-feiras à tarde, os desportos de defesa, tais
como a esgrima, o boxe francês [a] e o inglês [b], a
38 Uma escola nova na Bélgica

luta greco-romana [a], a corrida, o salto, sob a di-


reção do professor de ginástica. Nestes desportos
que desenvolvem a versatilidade, a coragem, o
sangue-frio e a força só participam, obviamente,
os alunos mais velhos.

Além destes jogos e desportos, os nossos jovens


praticam ainda exercícios e jogos que fazem parte
do escutismo, aplicando-os nos passeios e outras
saídas. Um material completo de campismo (três
grandes tendas, utensílios de cozinha) permite
desfrutar das alegrias, surpresas e improvisações
de uma vida independente ao ar livre. Os nossos
alunos, que organizaram um clube de campismo,
estão inscritos no Camping Club de Belgique [b].

Se tivermos em consideração os nossos métodos


de ensino, as suas aplicações práticas relativas à
aquisição de conhecimentos e às qualidades de ini-
ciativa, a clareza da inteligência e o pensamento
pessoal próprio; se tivermos em conta o esforço que
fazemos para que a criança tenha uma vida o mais
rica possível, uma vida de responsabilidade, gene-
rosidade, lealdade, uma vida humana que produza
resultados visíveis; se considerarmos o papel, a im-
portância e o carácter que atribuímos aos jogos, aos
desportos e aos trabalhos manuais, podemos dizer
que a nossa ação supera em extensão e profundi-
A. Faria de Vasconcellos 39

dade a do escutismo tal como Baden-Powell [a] a de-


finiu com mão de mestre1. Foi o que reconheceu um
dos chefes escuteiros belgas que veio à escola para
nos fazer entrar na associação dos Boys-Scouts de
Belgique [b]. «Vocês fazem um escutismo mais com-
pleto», disse-me ele depois de ter tomado conheci-
mento da organização e funcionamento da nossa
vida escolar. Na verdade a escola é uma organização
permanente e contínua de vida de acordo com o
ideal escutista. No entanto, não adotámos uniforme,
nem cedemos a algumas tendências particulares que
procuram aqui e ali — felizmente em número redu-
zido — orientar o movimento para determinados
fins, sejam eles quais forem: militarismo, naciona-
lismo ou exclusivismos políticos ou religiosos.

B) A ginástica é dada duas vezes por semana por


um jovem médico entusiasta de educação física. A
sua agilidade, vigor, resistência e beleza do seu corpo
são a ilustração viva do seu sistema, que concilia
Ling [c], Muller [d] e Hébert [e] e tem como objetivo,
falando apenas da parte física, desenvolver um ou
vários músculos através de exercícios apropriados.
Além dos exercícios de grupo, sobretudo respi-
ratórios, que todas as crianças podem fazer, há

1 Baden-Powell. Scouting for boys, 1908. / Éclaireurs, 1912,


tradução de Pierre Bovet.
40 Uma escola nova na Bélgica

exercícios individuais, de carácter terapêutico,


adaptados especificamente a cada criança, à sua
idade, à sua constituição e ao seu desenvolvimento.
Nalgumas delas houve resultados surpreenden-
tes. Um jovem de dezasseis anos chegou com um
desvio da coluna vertebral de tal modo acentuado
que o médico consultado em Bruxelas o aconse-
lhou a usar um colete ortopédico, verdadeira ca-
misa de força que o prendia numa armadura de
ferro e aço. Após alguns meses, sem ser necessá-
rio recorrer a qualquer aparelho, através de um
simples jogo natural de músculos ativados em
exercícios específicos, este jovem estava quase to-
talmente recuperado.
Estas aulas são dadas ao ar livre e de preferên-
cia em tronco nu. Nada melhor do que os exercí-
cios, respiratórios e outros, feitos em idênticas
condições.
Mas a ginástica não esgota a educação física,
longe disso, é apenas um meio. Para as crianças
pode mesmo tornar-se uma abstração difícil de
entender, um trabalho cuja finalidade podem não
compreender. Digo mais: fazer com as crianças
ginástica pela ginástica apresenta para mim as
mesmas desvantagens que ler por ler, calcular
por calcular. Enquanto conjunto sistematizado, é
forçosamente arbitrário, artificial, ininteligível,
A. Faria de Vasconcellos 41

inassimilável e muito abstrato; produz fadiga e


tédio sem qualquer proveito. À parte isso, pode-
mos encontrar e encontramos efetivamente em
várias ocupações físicas movimentos naturais,
concretos, ativos, que interessam a criança, por-
que são meios de expressão das suas atividades:
jogos, corrida, saltos, subida às árvores, trabalhos
de jardinagem, natação, trabalhos manuais, car-
pintaria, serralharia. Todas estas atividades que
respondem às necessidades espontâneas da vida
natural da criança vão muito para além do que os
melhores sistemas de ginástica podem oferecer às
crianças antes dos 14-15 anos. Só a partir desta
idade é que a ginástica, como um conjunto siste-
mático de movimentos, pode ter um interesse
real do ponto de vista educativo não somente
para o desenvolvimento do corpo mas também
para o do espírito. Foi assim que explicámos aos
jovens mais velhos a teoria da ginástica, para os
fazer entender o motivo e a finalidade de cada
movimento.
Quanto aos mais pequenos, deixamo-los cor-
rer, saltar, fazer escalada, natação, jardinagem e
vamos buscar à ginástica apenas alguns exercícios
muito simples durante alguns minutos.
C) Fazemos com frequência passeios e excur-
sões, visitas de estudo a fábricas, museus, monu-
mentos históricos, belezas naturais e pitorescas.
42 Uma escola nova na Bélgica

Andamos tanto a pé como de bicicleta ou de com-


boio, quer chova quer faça sol. Todas as semanas,
especialmente no inverno, quando há menos que
fazer nos campos, costumamos sair durante duas
tardes. E de quinze em quinze dias dedicamos
um dia inteiro a uma visita de estudo. Durante o
trimestre de primavera e verão, os do meio e os
mais velhos saem no sábado à tarde com as suas
tendas; vão a pé ou de bicicleta, para uma região
de interesse, onde acampam. No domingo vamos
com os mais pequenos ter com eles de comboio,
passeamos no local escolhido e regressamos à
noite à escola.
De dois em dois meses fazemos uma saída de
cinco dias, para fazer a articulação do trabalho de
campo com os trabalhos feitos nas aulas. Assim
percorremos a Bélgica toda.
No final do ano, depois das aulas terminarem,
uma viagem de quinze a vinte dias prolonga a
vida da escola. Visitámos em 1914 o litoral belga
e fomos mesmo a Inglaterra, a Dover. No ano an-
terior foi o Grão Ducado do Luxemburgo que nos
atraiu e que percorremos, acampando em tendas,
cozinhando nós próprios, nas orlas dos bosques,
à beira dos rios, no meio da natureza, confronta-
dos com os imprevistos de uma viagem cheia de
A. Faria de Vasconcellos 43

fantasia e poesia, como se fôssemos peregrinos


em busca do ideal. Estas viagens estão cheias de
ensinamentos e emoções! E permitem vivenciar a
solidariedade, a ajuda mútua, a iniciativa, o espí-
rito prático, a paciência, a resistência, o vigor, a
alegria, o bom humor, a arte e a ciência. Desper-
tam todas as virtudes, encorajam e engrandecem.
Projetos de maior dimensão estavam em curso,
a começar pelo estudo das bacias mais industriais
da Alemanha, Inglaterra, Bélgica e França, cuja
análise comparativa teria constituído para os nos-
sos jovens um ensino significativo. Por outro
lado, longas viagens ao Oriente durante as férias
grandes, a Marrocos, Argélia, Tunísia, Egito, até
à Palestina com regresso pela Turquia, Grécia ou
Itália, teriam despertado o interesse pelos inúme-
ros vestígios das civilizações antigas. Estes costu-
mes tão diferentes dos nossos, com a sua arte, a
sua história, a sua poesia, tudo o que já não existe,
podemos revivê-los de uma forma impressio-
nante nos próprios locais onde os nossos antepas-
sados espirituais viveram, sofreram e cantaram.
Quando se sabe viajar economicamente, quando
se pode fazer campismo (e temos tudo o que é ne-
cessário), estas caminhadas instrutivas e educati-
vas ao mais alto nível não ficam muito caras.
44 Uma escola nova na Bélgica

6. Os trabalhos manuais [a]


Para terminar a exposição dos exercícios e das
ocupações físicas, vamos referir o que diz respeito
aos trabalhos manuais e aos trabalhos agrícolas.
No programa da escola, referi nestes termos o
papel e a finalidade dos trabalhos manuais:
«Os trabalhos manuais, como a cestaria, cerâ-
mica, cartonagem, modelagem, encadernação,
trabalhos em madeira e ferro, completam o qua-
dro dos exercícios físicos e constituem um fator
precioso do desenvolvimento físico e intelectual
da criança. Além de satisfazerem a necessidade
de atividade tão natural na criança, os trabalhos
manuais desenvolvem as capacidades de obser-
vação, comparação, imaginação, estimulam o es-
pírito de iniciativa e de construtividade, promo-
vem o desenvolvimento do rigor, oferecem múl-
tiplas oportunidades de aplicar numerosos co-
nhecimentos (em ciências naturais, cálculo, geo-
grafia física) constituindo um meio de expressão
real e vivo. As crianças aprendem a destreza ma-
nual tão necessária na vida.»
Posta a questão de princípio, vamos ver como
na prática organizámos estes trabalhos manuais:
A) Os trabalhos manuais são muito variados,
como acabaram de ver pela enumeração que fiz.
A. Faria de Vasconcellos 45

Trata-se, com efeito, de multiplicar para as crianças


as ocasiões de agir, criar, aplicar e de se revelar. Por-
que se todos os trabalhos manuais apelam a ativida-
des comuns, há no entanto neles, na influência que
exercem, ações distintas que despertam tendências e
aptidões individuais. Assim, quanto mais os traba-
lhos manuais forem em grande número e variados,
mais provável será satisfazermos as necessidades
manuais da criança e descobrirmos nela os gostos,
as tendências, as aptidões específicas que nos per-
mitirão conhecê-la melhor para melhor a orientar.
Um caso típico é-nos dado por um dos nossos
alunos que, destinado inicialmente ao comércio,
manifestou nas oficinas de carpintaria e de serra-
lharia tais aptidões manuais e capacidades intelec-
tuais que o levaram a concluir que estava no cami-
nho errado e que devia mudar para a carreira de
engenheiro mecânico, mais adequada para ele.
Este caso não é único.
B) Os trabalhos manuais são adaptados à idade
das crianças. Os mais novos, de 8 a 10 anos, fazem
dobragem, cartonagem, modelagem [a], desenho.
Nos trabalhos agrícolas, tratam dos caminhos no
jardim, dos seus próprios campos de cultivo, dos
pequenos jardins da escola e cuidam de pequenos
animais, como galinhas, coelhos e pombos. Foram
46 Uma escola nova na Bélgica

incentivados a fazer pequenas construções, como


por exemplo uma pequena casa para os coelhos.
Um dos mais novos relatou a assim situação:
Em novembro, os mais novos anunciaram-nos a realiza-
ção de uma construção enorme realizada por eles para aí colo-
car os coelhos. Alicerces, argamassas, tudo foi feito por eles.
As paredes não eram largas, mas tinham 1,50 m de altura e
a casa 1,50 m de largura. E foi coberta com papel de alcatrão.

Os mais novos fizeram, com a ajuda dos mais


velhos, na carpintaria da escola a janela e a porta.
O trabalho durou bastante tempo, mas ao fim de
um mês os coelhos foram para lá morar. Que ale-
gria construir, fazer a argamassa com cimento,
areia e água, estes dois grandes amigos da criança
e preciosos auxiliares do mestre! Que alegria ver
o trabalho terminado, poder mostrá-lo aos outros
colegas e aos pais! Mas como é triste ao mesmo
tempo que tudo tenha acabado, apesar das dis-
cussões e dos pequenos problemas que tivemos,
e como, no fundo, gostaríamos de poder recome-
çar tudo outra vez! No entanto, se alguém que
não fosse do grupo dos que construíram se per-
mitisse criticar ou sugerir que a obra fosse demo-
lida, a reação seria defendê-la, conservá-la e pre-
servá-la tanto quanto possível. A criança é feita
destes contrastes, destas oposições, de onde brota
a chama que acende a sua personalidade.
A. Faria de Vasconcellos 47

A partir dos 10 anos, juntam-se a estes traba-


lhos manuais o trabalho em madeira e depois o
trabalho em ferro, especialmente para os jovens,
porque exige já um esforço muscular bastante in-
tenso.
C) As aulas de trabalhos manuais são dadas ha-
bitualmente da parte da tarde, embora algumas
também se realizem da parte da manhã. Em todo
o caso a criança tem durante a manhã momentos
destinados aos trabalhos manuais, dedicando-se
nas oficinas a ocupações com um objetivo de utili-
dade individual ou social, ou que constituam uma
aplicação de domínios do conhecimento. Gostaria
de reforçar que a tarde não é só dedicada aos tra-
balhos manuais. É necessário, pelo contrário, alter-
nar os trabalhos manuais e os trabalhos intelec-
tuais no interesse não só da educação mas também
da instrução [a]. É muito difícil explicar a algumas
pessoas que os trabalhos manuais são meios de ex-
pressão das necessidades, dos sentimentos, das
ideias provenientes de aquisições escolares das
crianças e, assim, encadernar, modelar, desenhar,
trabalhar em madeira é tão importante como ler,
escrever e contar. Tenho que acrescentar que é exa-
tamente por não se considerarem estas matérias
em si só e por si só — não fazendo cartonagem
pela cartonagem, modelagem pela modelagem,
48 Uma escola nova na Bélgica

desenho pelo desenho, como a leitura pela leitura


ou o ditado pelo ditado — mas enquadrando-as
nas diversas atividades intelectuais e sociais da
criança, que se aumenta o seu valor educativo.
D) As oficinas estão organizadas de modo a per-
mitir um trabalho produtivo. Nas instalações temos
bastantes ferramentas. Quando a criança entra na
carpintaria [a] e serralharia [b], quando vê ferramen-
tas de todos os tipos espalhadas, fica com a impres-
são de que é capaz de aí fazer coisas sérias e impor-
tantes. Se sente que se pode aí construir um pe-
queno barco rudimentar para andar sobre a água
do tanque, também sente que é capaz de fazer uma
porta, uma janela. E a variedade, a perfeição das fer-
ramentas e dos instrumentos tem sobre os mais ve-
lhos em particular uma influência benéfica em ter-
mos de trabalho. Assim qualquer vontade hesitante
fica motivada e um espírito crítico fica apaziguado.
Tenho visto em experiências de física que se chega
a duvidar de um princípio exato, porque o instru-
mento mais ou menos rudimentar que é utilizado
não dá resultados precisos. O jovem não se contenta
com aproximações, gosta de dados matematicamente
exatos e a sua mente inquieta busca, questiona, du-
vida, tem sede de absoluto, de certezas claras, en-
quanto desfruta — paradoxo ainda que pleno de
A. Faria de Vasconcellos 49

verdade — o sonho, a fantasia e a imaginação sem


limites.
E) Cada oficina é da responsabilidade de um
aluno. É um cargo trimestral que lhe é conferido
pela assembleia dos alunos. O que está encarregado
da oficina deve organizar equipas de alunos para as
aulas; é através dele que todos os pedidos ou recla-
mações dos alunos e professores devem ser trans-
mitidos à direção da escola; deve assegurar a ordem
da oficina; manter em ordem ferramentas, instru-
mentos ou livros que foram utilizados; fazer o in-
ventário das ferramentas e mantê-las em bom es-
tado; é com ele que devemos acordar relativamente
aos trabalhos que há para fazer, tenham eles um ca-
rácter pessoal ou social; e é também ele que tem que
comprar o material, as ferramentas essenciais e li-
dar com os fornecedores — com quem é preciso en-
contrar-se ou a quem tem que escrever — e tomar
dia após dia notas precisas de tudo, correspondên-
cia, medidas tomadas, despesas feitas. Quer se trate
da oficina de serralharia, do laboratório de física e
química, ou da oficina de carpintaria, cada cargo é de
grande valor educativo para o jovem. Ele aprende aí
muitas coisas extremamente importantes. Ao
mesmo tempo, o seu carácter e a sua inteligência
vão-se formando, temperando e consolidando nos
seus traços gerais. Excelente treino para o combate
50 Uma escola nova na Bélgica

da vida, porque se ele exige uma grande liberdade


de ação, também comporta uma extensa dose de
responsabilidade. Grande liberdade, digo eu, e
com razão, porque o jovem é mestre em sua casa,
organiza as equipas, os trabalhos, recebe eventuais
reclamações e quase sempre apresenta uma solu-
ção; administra a oficina, mantém-na e desen-
volve-a. Mas também grande responsabilidade,
acrescentei, responsabilidade efetiva da ordem,
das ferramentas, do material, dos produtos, do
dinheiro que lhe é confiado para compras (cerca
de cinquenta francos por mês).
Perguntaram-me muitas vezes se eu não tinha
medo de que crianças, com toda esta liberdade, fi-
zessem mau uso dela. Pessoalmente sinto-me satis-
feito por lha ter dado. Sem dúvida que tudo isto
comporta dificuldades, mas é bom que o jovem
aprenda a superá-las; que a criança possa agir, por-
que um esforço só tem um valor educativo do
ponto de vista moral se for o resultado de uma re-
flexão e decisão que tenha por base uma experiên-
cia pessoal. Se a criança começa por fazer algo er-
rado, esforçar-se-á por fazer melhor, deixamo-la vi-
ver moralmente, ou seja, permitimos-lhe que se su-
pere, que supere o que está mal até conseguir o
bem. Tudo isto é feito com sabedoria: damos-lhe
ocasiões de agir, multiplicamos oportunidades e
A. Faria de Vasconcellos 51

experiências, porque serão elas que farão dela uma


pessoa com carácter. Se fez algo de mal, mostra-
mos-lho adequadamente com tacto e todo o jovem
bem formado [a] tentará fazer melhor.
Além disso, o jovem acostumado a agir, a fazer
por si próprio, além de se enriquecer com as ob-
servações, com todas as comparações que uma ex-
periência comporta, ganha o hábito de pedir con-
selho, de se documentar, de recolher as opiniões
que o ajudarão a formar o seu ponto de vista, a sua
opinião e de agir em conformidade. Assim faziam
os nossos jovens, em Bierges, em todas as circuns-
tâncias. Discussões entre eles, opiniões e conselhos
pedidos aos que estão à sua volta, precederam
sempre as suas resoluções. Toda a organização da
quinta, por exemplo, é disso uma prova evidente.
Em breve voltaremos a este assunto.
F) Como se empreende e realiza com sucesso
um trabalho manual na escola? Para se compreender
bem, penso que é melhor apresentar um caso con-
creto e seguir as diferentes fases. Escolhi por exem-
plo a construção de um grande terrário que foi
feito para o laboratório de ciências naturais. Trata-
se aqui de satisfazer uma necessidade social. Esta
construção constitui, como se vê, uma aplicação
pedagógica com um fim de utilidade coletiva. [b]
Os trabalhos deste género podem surgir a partir
52 Uma escola nova na Bélgica

da iniciativa de um aluno ou da decisão da turma,


que encarregou um ou vários alunos para o fazer.
Quanto ao terrário, a ideia surgiu na aula de zoo-
logia.
Um jovem foi encarregado pelos colegas da
construção do grande terrário. Como é que ele vai
fazer? Ele não parte à aventura sem conhecer os
meios disponíveis para alcançar o objetivo. Em
primeiro lugar há um período de investigação, de
documentação prévia. É preciso encontrar um
modelo ou criar um. Sabendo o que se vai fazer,
não começa a trabalhar sem organizar as etapas
que se seguem:
1. Desenho preciso do modelo, com medidas
de acordo com as regras da arte.
2. Especificação da qualidade e da quantidade
de madeira e de outros produtos que devem ser
usados, como rede de arame, fechaduras, pregos.
3. Preço de custo com cálculo do preço da ma-
deira, da rede de arame, bem como a estimativa do
número de horas consideradas necessárias para
realizar o trabalho e do preço pelo qual o trabalho
ficaria se fosse feito por um operário de fora.
Esse orçamento feito com rigor é em seguida
submetido à aprovação do aluno responsável pela
carpintaria e do mestre marceneiro. Examina-se,
A. Faria de Vasconcellos 53

critica-se, discute-se, modifica-se, corrige-se se for


necessário. O plano e o orçamento são aprovados.
Se forem rejeitados, recomeçar-se-á tendo em
conta as observações apresentadas.
Depois do trabalho terminado, haverá nova
discussão, avaliação do seu valor técnico, dos seus
defeitos e das suas qualidades.
Procede-se da mesma maneira não somente
para os outros trabalhos em madeira mas também
para trabalhos em ferro, trabalhos agrícolas.
Na cartonagem os mais novos habituam-se já a
desenhar o trabalho antes de o executar, a calcular
a quantidade de papel, cartolina e cartão a usar, o
tempo que vai levar a fazer e também a estimativa
do preço líquido do objeto a criar.
Pelos trabalhos manuais assim compreendidos,
iniciamos as crianças na vida profissional e indus-
trial, na vida ativa. Fazemos do trabalho um meio
poderoso de educação intelectual e social.
O conhecimento das ferramentas e matérias-
primas, a elaboração de um orçamento com estima-
tiva do custo, do número de horas necessárias para
realizar o trabalho e do salário que custaria não só
educa os alunos sobre os meios de produção e os
coloca em contacto direto com as modalidades de
vida e do trabalho humano, como eu referia no meu
programa, mas também lhes permite igualmente
54 Uma escola nova na Bélgica

medir o esforço e a retribuição do produtor, o que


lhe possibilita abrir novos horizontes sobre as ques-
tões sociais.
No ensino dos trabalhos manuais há uma ini-
ciação à vida prática com a introdução do critério
de vida real, que é de uma utilidade incontestável.
Nada de académico, nada de falso, nada de artifi-
cial, e mais uma vez não há trabalho manual por
trabalho manual. Não há modelos convencionais,
uniformes, aplicáveis a toda a turma, mas o traba-
lho manual compreendido como um meio de ex-
primir ideias e de satisfazer necessidades pessoais
ou necessidades sentidas pelo ambiente social no
qual a criança se desenvolve, vive e trabalha. En-
siná-la a usar as mãos, ferramentas, produtos, para
criar utilidades, é ensinar-lhe como se criam na
vida real que rodeia a escola.
Ensinar a criança a colaborar para uma obra co-
mum com o trabalho das suas mãos contribui igual-
mente para a sua educação social. Os nossos alunos
deram as suas contribuições para esta empresa es-
colar. Há em todo o lado traços da sua passagem,
há em todo o lado marcas da sua cooperação feliz e
ativa. De muitas coisas eles podem dizer: «Esta é
a nossa obra, fomos nós que a fizemos.» Parece-
me que não deve haver maior alegria para um
educador do que ouvir as crianças gritar: «É a
A. Faria de Vasconcellos 55

nossa escola, fomos nós que a fizemos!» [a] Foram


inúmeros os trabalhos que as crianças produziram
para a escola: ripas e secadores para a sala dos du-
ches, armários para calçado, suportes para jogos,
mesas para a estufa e a modelagem, quadros pre-
tos para as salas de aula, estantes para os livros,
gavetas, bancos, escadas para uso doméstico, mas-
seira para o pão (que é feito na escola); construção
de uma coelheira, de um estábulo para suínos, de
uma casota para o cão, de um pombal e de um es-
tábulo, trabalho importante feito integralmente
pelos alunos e de que falarei com alguns pormeno-
res já a seguir; mencionarei ainda o cultivo dos
campos, da horta e do jardim. Não vou referir o
resto para não tornar a enumeração exaustiva.
Não gostaria contudo de terminar a minha
apresentação neste ponto sem referir que os mais
velhos pretendiam fazer um projeto formal para
novos edifícios da escola: casas e salas de aula.
Cada um tinha as suas próprias ideias e sei que
muitas observações pertinentes impressionaram o
arquiteto com quem tiveram várias conversas.
Com os trabalhos manuais não se pretende
apenas satisfazer as necessidades da vida social na
escola mas também as necessidades pessoais da
criança, o seu desejo de construir, imaginar, criar,
o seu gosto pela fantasia e pela invenção. E para
56 Uma escola nova na Bélgica

isso, além das horas livres de que dispõe, tem uma


das duas aulas por semana onde se pode entregar
às suas ocupações manuais pessoais. Assim conce-
bidos e realizados, os trabalhos manuais têm uma
função profundamente educativa e só teremos
percorrido o ciclo completo quando virmos o que
de particularmente magnífico se consegue nos tra-
balhos agrícolas.

7. Trabalhos agrícolas

Como tive oportunidade de dizer, a escola tem


seis hectares de terreno. É uma extensão suficiente
para nos permitir encontrar muitos produtos para
a nossa alimentação. Esta exploração agrícola, além
de ser um campo inesgotável de aquisições cientí-
ficas, aplicações práticas e desenvolvimento físico,
constitui para nós um dos agentes mais eficazes de
educação social, partindo da educação moral, por-
que eu não separo moralidade de socialidade. Ela
facilitou-nos a tarefa de preparar a criança para a
iniciação na vida prática e também para a sua in-
serção na vida social bem compreendida.
A) Os mais novos tratam sobretudo dos animais
e da jardinagem. A criação de animais permite ob-
servações e comparações interessantes sobre a
vida e os hábitos dos animais e sobre o que eles
nos dão. A criança responsável por cuidar de um
A. Faria de Vasconcellos 57

animal é, por isso mesmo, obrigada a cuidar dele


a determinadas horas, a criar e organizar rotinas
bastante simples, que estão na base de outras mais
importantes. Partindo do interesse que a criança
demonstra por tais tarefas, educa-se a sua atenção,
a sua vontade e o sentido de responsabilidade tão
necessário na vida.
Os mais novos e alguns do meio têm a seu
cargo cuidar de galinhas, cães, pombos, coelhos e
da população numerosa, diversificada e colorida,
dos aquários e dos terrários: peixes de todos os
tipos, nativos e exóticos, ratos, cobras, lagartos,
rãs, salamandras, sapos, ouriços, para não falar
dos insetos aquáticos, predadores implacáveis,
vândalos indescritíveis, capazes de matar tudo.
Toda esta população tão próxima das forças pri-
mitivas e longínquas do mundo, esta população
que vive, brutal e instintivamente, interessa e
apaixona a criança, ávida de movimento e cor.
Todas as semanas os mais novos fazem numa
reunião a distribuição das tarefas entre eles, que
consistem não só nos cuidados com a alimentação
— procura ou colheita e preparação de produtos
— mas implicam também a limpeza e arranjo das
instalações dos animais. E isto requer, embora
não pareça, que eles pensem em muitas coisas.
58 Uma escola nova na Bélgica

Relativamente à jardinagem, os mais pequenos


encarregam-se da manutenção dos passeios do jar-
dim, do pomar e da mata, dos seus pequenos cam-
pos de cultivo, onde semeiam, cultivam e recolhem
legumes, sem esquecer os seus jardinzinhos. Permi-
tam-me retirar algumas linhas sobre este assunto
do Boletim dos alunos da secção «Ecos e notícias»:
A nossa pequena sociedade de história natural teve as
suas reuniões sempre que possível. A atividade principal
no último trimestre foi de embelezar o jardim. Cada mem-
bro (esta sociedade foi constituída na sua maioria pelos
mais pequenos e pelos do meio) teve o seu canto, o seu
jardinzinho e apresentou o plano das modificações que
pensava fazer; discutimos os trabalhos e executámo-los.

Esses planos incluíam as variedades e a dispo-


sição das flores a cultivar e ainda a forma a dar
aos jardinzinhos. Adotaram-se as mais variadas
formas geométricas. Havia alguns cujas combina-
ções de formas e cores eram muito interessantes.
Eis o que uma criança de 10 anos na sua simplici-
dade nos diz do seu jardinzinho no Boletim:
O meu jardim está localizado junto à estufa. Semeei
capuchinhas [a] e girassóis [b] e acabei de plantar miosótis
[c],
crisântemos [d] e saxífragas [e]. Com roseiras, o meu jar-
dim em forma de triângulo, rodeado de pedras, é muito
bonito e tudo cresce bem. O que é aborrecido é que andem
sobre a relva que plantei perto do parque dos lilases. Os
A. Faria de Vasconcellos 59

lilases estão em flor, há três tipos: branco, malva e violeta.


Rego todas as noites as minhas flores.

Podem concluir todas as vantagens que pode-


mos tirar da jardinagem do ponto de vista do en-
sino — botânica, geologia, física, meteorologia,
geografia, geometria — mas também do ponto de
vista da educação do gosto, da paciência, desta
iniciação à estética que só pode ser feita pela na-
tureza, no que ela tem de mais simples, mais bo-
nito e mais vivo: as flores e as árvores.
E porque eu mencionei a sociedade de história
natural, permitam-me retomar este assunto para
vos dizer que lhe devemos um inventário de árvo-
res da escola — conseguimos classificar mais de
sessenta tipos diferentes e elaborámos um quadro
da folhagem, da floração e do cair das folhas, cuja
importância não passa despercebida: permitiu-nos
conhecer admiravelmente as relações que existem
entre os elementos botânicos e o meio ambiente, a
influência da luz, do calor, do terreno, da exposição.
Este trabalho foi realizado principalmente pelos
do meio, mas os mais novos também contribuíram.
B) Com os mais velhos e os do meio, consegui-
mos fazer nos campos os trabalhos maiores e de um
valor moral e social indiscutível. Sobre eles recaem
60 Uma escola nova na Bélgica

as dificuldades e as alegrias da exploração agrícola


da quinta da escola. São eles que a empreenderam
em condições que vale a pena descrever. Vou dei-
xar que sejam os próprios alunos a falar. Aqui está
o que escreveu um deles no seu artigo intitulado:
A QUINTA
Desde a abertura da escola foi apresentado o projeto para
construir uma quinta. Deu lugar a longas discussões, estáva-
mos todos interessados nesta questão. Devíamos ter vários
animais e sermos nós próprios a cuidar deles, além disso
tínhamos seis hectares de terra para explorar; devíamos
vender os produtos e tirar o máximo partido possível deles.
Numa aula de desenho geométrico, decidimos medir
alguns locais do parque, onde se poderia construir essa
quinta. Fizemos o levantamento de vários locais do vasto
parque posto à nossa disposição. Hesitámos antes da
construção, por várias razões, de que relatarei as princi-
pais. Os lugares que escolhemos foram considerados
maus, por causa da humidade excessiva e da grande dis-
tância que os separava da escola, em caso de mau tempo,
as idas e vindas seriam muito pouco práticas.
Estas discussões duraram muito tempo. Finalmente
no início de dezembro completámos o projeto e, encon-
trada uma localização favorável, começámos os alicerces.
Cada aluno fez um projeto formal com todas as especi-
ficidades convencionais e legais (disposição, pinturas e
cor). O estábulo foi projetado para duas vacas, os outros
animais têm espaço suficiente nos anexos de que dispomos.
Os alicerces, embora profundos, foram feitos em pouco
tempo, a temperatura também ajudou. Terminado este tra-
balho, tivemos de exercer a profissão de lenhador: abater
A. Faria de Vasconcellos 61

uma grande cerejeira que incomodava. Durante algumas ho-


ras fomos passando o machado à vez uns aos outros. Depois
começámos as paredes. Sob a orientação do nosso pedreiro
— funcionário da escola — que nos mostrava como devía-
mos fazer, aprendemos a trabalhar com colher e talocha. Não
faltavam nem operários nem serventes, todos começaram a
trabalhar com afinco, especialmente durante o tempo livre.
Durante a construção foi sugerido que constituísse-
mos uma sociedade para explorar a quinta e os produtos.
Os membros da sociedade comprariam ações que seriam
cotadas e os lucros seriam distribuídos proporcional-
mente, segundo o número de ações de cada sócio. A pro-
posta foi acolhida com entusiasmo.
Era preciso saber que tipo de sociedade iríamos adotar.
«Para isso, disse o professor Faria, vocês têm um meio sim-
ples: consultar um advogado. Melhor do que ninguém ele
dar-vos-á as informações certas.» Aproximávamo-nos cada
vez mais da realidade. Assim e depois de termos falado
com um amigo da escola sobre o encontro, três de nós, os
mais velhos (os jovens de 15 e 16 anos), fomos a Bruxelas
ver o nosso advogado. A nossa consulta durou uma hora,
durante a qual aprendemos o funcionamento das socieda-
des, o que caracteriza cada uma e a que mais nos conviria.
Numa reunião no dia seguinte, repetimos o que ou-
vimos e adotámos por unanimidade a sociedade coopera-
tiva. O professor Faria, todos os mais velhos e até mesmo
alguns mais novos, são sócios.
Durante este tempo a construção vai avançando rapi-
damente; fazemos progressos no modo de colocar tijolos,
de fazer os cantos das paredes... No segundo trimestre
concluiremos o famoso estábulo, que terá um lugar muito
importante na vida escolar de Bierges.
No Boletim seguinte pode ler-se o que se segue:
62 Uma escola nova na Bélgica

A sociedade «A Quinta Pedagógica» [a] fez progressos


durante o segundo trimestre e, apesar de curto, a quinta
avançou muito. Após o regresso das férias de Natal, os alu-
nos retomaram avidamente o trabalho e um mês depois as
paredes do estábulo estavam prontas. Depois tratámos do
telhado; aqui também os forros e as ripas foram pregados
com rapidez. Mal as telhas chegaram, o telhado ficou pronto.
Permito-me abrir um parêntesis para acrescen-
tar que todos os materiais de construção foram com-
prados pelos jovens que se informaram e documen-
taram sobre os preços, como teria feito um adulto.
Ainda faltava fazer a pavimentação, o caixilho e a
porta. Enquanto alguns ajudavam na pavimentação do
estábulo, os outros trabalhavam nos caixilhos. A porta e
os caixilhos foram feitos na escola pelos alunos.
Tínhamos ao nosso dispor uma pia grande de pedra azul
que estava num dos pátios da escola. Todos os alunos mais
velhos se empenharam para a mudar de lugar, e foram neces-
sárias várias horas para a transportar, pois a terra era mole e
a pia muito pesada. Finalmente conseguimos deslocá-la e
nesta tarefa aplicámos o que tínhamos aprendido nas aulas
de física. Cimentámos a pia e fizemos outra em tijolo. Final-
mente passou-se à cal no interior do estábulo. Terminado o
estábulo, passou-se à fossa e à localização da estrumeira.
Chamo a atenção para o facto destes trabalhos
continuarem a ser feitos apenas pelos alunos.
Durante o decurso do trimestre, discutiu-se sobre os ani-
mais que íamos criar. O problema foi bastante complicado,
porque as férias começaram precisamente no momento em
que mais precisávamos de trabalhar nos campos; tivemos que
escolher poucos animais para criação. Não sendo o capital
A. Faria de Vasconcellos 63

muito avultado foi sabiamente aconselhado e aceite que se


constituísse uma empresa modesta.
[Desde então a empresa cresceu, e no ano passado o
capital social, constituído por ações de 25 francos cada,
atingia, se não ultrapassava, o valor de dois mil francos.]
Teremos para criar: uma vaca, uma cabra, coelhos, ga-
linhas, pombos, patos e abelhas.
A vaca! Um novo problema!! De que raça escolher a
vaca? Uma vaca autóctone ou uma vaca bretã? Documen-
támo-nos por todos os lados. Consultámos homens com-
petentes: "A bretã, dizem-nos, é mais barata, é mais pe-
quena, mais fácil de alimentar, abrigar e cuidar e o seu
leite é muito rico. Mas os bezerros pesam menos, por isso
vendem-se a um preço mais baixo.” Também nos disse-
ram que as qualidades desta vaca desapareceriam com a
mudança de clima.
A vaca da nossa região dá mais leite, mas é muito me-
nos rico. Além disso, é mais cara, é maior e come mais. É
mais difícil de manter, especialmente na altura do parto.
Para decidir, fomo-nos informar a uma quinta a cerca
de vinte quilómetros onde havia vacas bretãs. Os proprie-
tários estavam muito satisfeitos e decidimos comprar uma
bretã.

Com alguns pormenores vou resumir a conti-


nuação do relato do nosso jovem.
A empresa comprou uma cabra, galinhas, coe-
lhos, pombas. E no ano passado a população cres-
ceu com uma nova vaca e dois porcos. A sociedade
assegurou a alimentação e os cuidados com os
animais, para isso retirava da terra que explorava
64 Uma escola nova na Bélgica

os produtos necessários ou comprava-os fora.


Vou descrever em poucas palavras a organiza-
ção da nossa sociedade agrícola:
1.º Constituiu-se sob a forma de cooperativa.
Cada cota é de 25 francos. Todos os alunos fazem
parte da cooperativa. Eles fizeram questão que eu
também me tornasse sócio. Aceitei. Nomearam
um diretor técnico (um dos nossos alunos que se
destina à agricultura) e um diretor comercial. O
primeiro tem a seu cargo a exploração da em-
presa, a organização do trabalho no campo, o es-
coamento dos produtos. O segundo trata da parte
financeira e da contabilidade. Será desnecessário
dizer que a contabilidade é mantida rigorosa-
mente em dia, sob a direção do professor de ciên-
cias comerciais e de contabilidade. Aqueles que
pretendem seguir o ramo comercial podem real-
mente ficar a conhecer as suas futuras ocupações.
2.° São os alunos, os sócios, que cultivam os
campos, sobretudo os do meio e os mais velhos.
Eles dedicam-se a todos os trabalhos agrícolas.
São eles que lavram, estrumam, semeiam, colhem.
São ajudados, é claro, quando é preciso, pelos tra-
balhadores agrícolas que forem necessários, que
eles têm que procurar, contratar e pagar. Estes
trabalhos têm lugar uma, duas ou três vezes por
semana, de manhã ou à tarde, segundo a estação.
A. Faria de Vasconcellos 65

Assim no trimestre do verão passado, os jovens


trabalhavam nos campos três vezes por semana
das cinco às sete da manhã. Foram eles que toma-
ram esta decisão e eu não me opus, acautelando
no entanto que, incluindo a sesta, tivessem pelo
menos nove horas de sono.
São também eles que cuidam dos animais, que
lhes dão de comer e de beber, que os levam para
o campo, que lhes fazem as camas de forragem,
que ordenham as vacas. Uma equipa de dois ou
três alunos por semana ocupa-se destas tarefas.
Que lições inesquecíveis de iniciativa, liberdade,
responsabilidade, resistência, vigor, a criança recebe
nos campos! E como é bom que ela aprenda a sentir,
a compreender que todos os trabalhos, mesmo aque-
les que são mais repugnantes e inferiores, contri-
buem generosamente para o sucesso de qualquer
empresa! Não há lugar para a pose, vaidade des-
denhosa, falso orgulho, mas apenas uma aprecia-
ção saudável do valor do trabalho e de quem tra-
balha. Nada mais belo moral e socialmente do que
esta grandeza do trabalho. A criança aprende a
não desprezar estas atividades manuais, porque
vê que por cima do estrume germinam, desabro-
cham e vivem todos os esplendores da flor. E o seu
olhar, o seu coração, a sua inteligência enchem-se,
para toda a vida, de tesouros de ternura, bondade,
estima e justiça agindo em benefício dos que criam
66 Uma escola nova na Bélgica

ou ajudam a criar: são valores úteis a todos, seja


qual for o grau e o género da sua posição social.
3.° São também os alunos que mantêm, repa-
ram e constroem os locais indispensáveis para
alojar as populações de penas ou de pelos da
quinta. Além da construção do famoso estábulo,
fizeram os seguintes trabalhos: melhoramento da
capoeira, construção de um recinto para abrigar as
aves domésticas, de uma coelheira, de um pombal,
de uma casota para o cão de guarda, de um bebe-
douro em tijolo, de uma pocilga para os porcos.
4.° A escola começou por garantir o escoamen-
to dos produtos. Mas face às proporções que a
empresa tomou, teve que se pensar na ampliação
do círculo de compradores e na expansão das ven-
das no exterior. O negócio ia-se organizando
pouco a pouco e não tenho dúvidas de que este
ano adquiriria um poderoso impulso que acen-
tuaria ainda mais o âmbito verdadeiramente so-
cial da empresa agrícola dos nossos alunos. En-
quanto não atingiu este desenvolvimento, a es-
cola comprava aos alunos o leite e a manteiga das
vacas, os ovos das galinhas, os produtos agrícolas.
Não concebo nenhuma lição de solidariedade
mais eficaz, ativa, intensa e, ao mesmo tempo calo-
rosa e cordial do que esta vida afetuosa de trabalho
A. Faria de Vasconcellos 67

de todos e de cada um em benefício da nossa pe-


quena comunidade.
Obra do sistema de autonomia [a] e de solidarie-
dade, a sociedade cooperativa agrícola da escola
também inicia a criança de uma forma real na vida
prática e na vida social, e isto em liberdade com
responsabilidade na grande dimensão das expe-
riências de organização e administração que lhe
permite realizar de forma efetiva.

Também o ar puro, o espaço, a liberdade, a


luz, uma atividade física e manual variada e atra-
tiva, num meio saudável e alegre promovem o
desenvolvimento equilibrado da criança fomen-
tando a calma e a energia. E era esta feliz impres-
são de tranquila confiança, de paz salutar que os
nossos alunos proporcionavam a todos — pais e
amigos — que nos vinham ver.
Pode-se assim notar que nesta vida física, ha-
via importantes fatores de desenvolvimento inte-
lectual, moral e social e é de salientar que esta cul-
tura do corpo constituía a melhor, a mais eficaz e
a mais generosa preparação para a cultura do es-
pírito, do coração e do carácter da criança.
Lembrar-me-ei sempre comovidamente do grito
de admiração do nosso médico quando viu um dia
68 Uma escola nova na Bélgica

as nossas crianças a trabalhar, de tronco nu, feli-


zes, cheias de energia: «Como estão bem!» [a]
E não são apenas as nossas que estão bem, mas
todas as que frequentam as Escolas novas, que fa-
zem de uma educação física bem dirigida o pre-
lúdio da educação intelectual e moral.

_____________
A. Faria de Vasconcellos 69

CAPITULO II

A EDUCAÇÃO INTELECTUAL

O homem e a terra, evolução das necessidades da criança e


da humanidade — QUESTÕES DE ORGANIZAÇÃO: — 1.
Turmas pequenas — 2. Classes móveis, horários indivi-
duais — 3. Aulas de curta duração — 4. Poucas maté-
rias ao mesmo tempo — 5. Interdependência das áreas
— 6. Cultura geral e especialização — MÉTODOS DE TRA-
BALHO: — 7. Aulas e trabalho individual — 8. Conferên-
cias de alunos e professores — 9. Biblioteca, coleções,
documentos, laboratórios, oficinas — 10. Visitas de es-
tudo — 11. Avaliação do trabalho, notas e boletins

Gostaria de, nesta segunda palestra, esboçar


as bases e métodos da educação intelectual tal
como a entendemos e a praticamos em Bierges.
A instalação material com o parque, os cam-
pos, o pomar, a quinta e as populações que lá vi-
vem, os laboratórios e oficinas constituem um
ambiente vivo, real e natural, que pode ser, como
disse Reddie [a], o livro sempre aberto da ciência,
da arte e da moralidade.
No programa da escola estabelecemos um certo
número de princípios fundamentais sobre os quais
assenta a educação intelectual que passamos a citar:
70 Uma escola nova na Bélgica

1.º A base da educação assenta no estudo das


relações da criança e do adulto com a terra. Colo-
camos a criança em contacto direto com as formas
da vida e do trabalho humano, apresentando-lhe
as coisas e os seres no seu ambiente natural. Pode
observar, ver, experimentar, agir, manipular,
criar, construir [a]. Na palestra anterior mencionei
o papel dos trabalhos manuais, como o organiza-
mos na nossa escola. Não é preciso, por isso, vol-
tar a referir a importância das aplicações deste
princípio. Nada como os trabalhos manuais para
colocar a criança na presença da vida, da natu-
reza, do trabalho.
2.º Em segundo lugar adaptamos o ensino e a
educação à evolução natural da criança, tendo em
conta as suas necessidades, os seus interesses e cu-
riosidades, de modo que qualquer noção, seja ela
qual for, não lhe seja apresentada sem que o seu
desenvolvimento intelectual lhe permita com-
preender, assimilar e entender o seu alcance e uti-
lidade. Este princípio tem aplicações imediatas so-
bre o currículo. Há áreas que são abordadas mais
cedo enquanto outras, especialmente as línguas
mortas, são estudadas mais tarde. Este princípio
aplica-se não só a cada área considerada um con-
junto organizado mas a cada uma das diferentes
A. Faria de Vasconcellos 71

partes que compõem cada uma dessas áreas. Um


exemplo será suficiente para entender isto: o co-
nhecimento de gramática, no estudo das línguas,
conhecimento cuja utilidade só é apreendida pela
criança muito mais tarde do que o que normal-
mente pensamos. No entanto, é possível que a
criança estude a língua materna através de exercí-
cios apropriados à sua idade: leituras e redações.
Em zoologia e botânica a descrição das caracterís-
ticas externas dos seres, seus costumes, vida e uti-
lidade precede o conhecimento das suas caracte-
rísticas fisiológicas e o estudo das classificações.
É indispensável que o ensino tenha em conta a
mentalidade da criança, as suas predisposições e
interesses, se quisermos que apreenda e com-
preenda realmente o que lhe é ensinado e tire pro-
veito disso. Teremos a oportunidade de retomar
esta questão mais aprofundadamente quando
abordarmos alguns processos de ensino na escola.
3.º Em terceiro lugar, apresentamos estas no-
ções em harmonia não só com a evolução natural
das necessidades da criança mas também com o
desenrolar que seguiu na história a formação das
ciências que lhe ensinamos [a].
A evolução natural a que aludimos é a reprodu-
ção da que percorreram as necessidades da espécie,
72 Uma escola nova na Bélgica

isto é, da própria humanidade: ela faz com que a


criança reviva, de uma forma evidentemente acele-
rada, as sucessivas fases pelas quais a humanidade
já passou. É então lógico levar a criança a reconsti-
tuir a história abreviada da ciência; o papel do pro-
fessor é simplesmente poupá-la a dificuldades
inúteis ou tentativas desnecessárias. Apresentar à
criança as ciências na ordem em que as várias aqui-
sições apareceram, fazer corresponder as etapas do
ensino das ciências às etapas da sua formação e
desenvolvimento é — ninguém ousará contestar
— a ordem verdadeiramente natural segundo a
qual é conveniente apresentar os conhecimentos. A
criança que percorre estas etapas, que redescobre
assim as várias ciências, que experimentou por si,
atuou, procurou e encontrou, não esquece o que
aprendeu. Sob a orientação de professores, ela faz
por conta própria, nas áreas que estuda, experiên-
cias, verificações e descobertas que levaram as ciên-
cias ao estádio de desenvolvimento em que se en-
contram hoje em dia. Isso permite-lhe adquirir co-
nhecimentos numa ordem natural e lógica e mantê-
los de uma forma precisa, pessoal e duradoura.
E tem uma segunda vantagem: adquire bons
métodos de trabalho. A criança a quem não é apre-
sentada a ciência sistemática do adulto como um
bloco a aprender com todas as peças, mas que é
A. Faria de Vasconcellos 73

conduzida pela sua experiência pessoal a recons-


truir este todo, este conjunto lógico, não aprende
simplesmente, mas sabe como e porque usar os co-
nhecimentos. Isto tem um significado muito ele-
vado na vida, porque não importa só possuir co-
nhecimentos, mas sobretudo saber servir-se deles,
saber utilizá-los, saber aplicá-los [a].
A nossa instrução é essencialmente educativa.
Não procuramos somente encher, mas formar o
espírito da criança. Fazemos um apelo constante
à sua colaboração ativa, à sua curiosidade e inte-
resse. Ensinamos o mínimo possível, fazemos
com que descubra o mais possível, num esforço
pessoal de pesquisa e descoberta.
Para alcançar estes princípios na prática, recor-
remos a toda uma série de meios que passo a expor.

1. Número limitado de alunos em cada turma

A fim de implementar um sistema de ensino e


educação como aquele de que acabamos de enun-
ciar os princípios, é óbvio que o número de alunos
por turma tem de ser limitado. Um número elevado
de alunos prejudicaria a coesão. Evidentemente
não se pode trabalhar em boas condições com tur-
mas tão numerosas como nos quartéis. Para nos
ocuparmos de crianças de forma inteligente, conhe-
74 Uma escola nova na Bélgica

cendo-as, acompanhando-as de perto, não podemos


ter turmas grandes. As Escolas novas compreende-
ram isso e têm um número de crianças limitado.
No ano passado — segundo ano de existência da
Escola de Bierges — havia 25 alunos na Páscoa. As
inscrições feitas a partir desse momento permiti-
ram-nos ultrapassar este ano o número de 35. Eu
tinha a intenção de não ir além dos sessenta [a].

2. Classes móveis, horários individuais

Mas isso não quer dizer que a educação indivi-


dual seja ideal. Longe disso. Em geral, nada supera
o trabalho numa turma, porque nada pode substi-
tuir as sugestões, as solicitações, as reações de um
ambiente social onde a criança tem todo o interesse
em estar comprometida para ser submetida a uma
série de fatores de treino, de emulação, que são ne-
cessários ao seu desenvolvimento intelectual e mo-
ral. A criança tem necessidade, uma necessidade
premente que não pode ser substituída por nada,
de viver em sociedade não só quando joga mas
também quando trabalha. Além de outros desejos,
é bom que a criança tenha o da socialidade. Quando
esta falta é a prova de que algo não está como devia.
Mas o ensino coletivo tem desvantagens quando
aplicado a um número elevado de alunos. Quanto
A. Faria de Vasconcellos 75

maior o número de alunos, mais forte é a tendência


para uniformizar o ensino e isto torna-se inevitável
quando as turmas excedem um certo número. Um
ensino igual para todos só pode dirigir-se e adequar-
se a um número restrito de alunos, aqueles que re-
presentam a média em termos de desenvolvimento
intelectual. Os mais inteligentes sentem que mar-
cam passo no mesmo lugar e desinteressam-se; os
mais fracos não conseguem acompanhar e sofrem
com as desvantagens inerentes à sua qualidade de
atrasados. É necessário evitar isto se queremos que
a instrução e a educação beneficiem todos. O meio
para isso é considerar as desigualdades naturais
que existem entre os alunos, o grau do seu desen-
volvimento intelectual, as suas aptidões e as suas
necessidades intelectuais ou orgânicas.
Daí a instituição nas Escolas novas das chama-
das classes móveis [a], por oposição ao que são, na
rigidez da organização oficial, as turmas regula-
res em que todos os alunos são tratados da mesma
maneira e não têm em conta o seu grau de desen-
volvimento. No sistema de classes móveis, pelo
contrário, os alunos são agrupados de acordo
com as suas aquisições e capacidades, de modo
que uma criança pode estar no 6.º ano em francês,
no 5.º em inglês, no 4.º em aritmética.
Para permitir que cada aluno participe na sua
76 Uma escola nova na Bélgica

turma normal num determinado momento e para


o conjunto das áreas, diminui-se-lhe o número de
horas consagradas à área em que está mais avan-
çado, dando-lhe mais tempo para a área em que
está mais atrasado, ou, sem alterar o horário, se for
possível, consagrar um pouco mais de tempo àque-
les que têm dificuldade em acompanhar, dando-
lhes aulas suplementares.
Os meios não faltam e cada aluno tem o seu
programa, o seu próprio horário, adaptado às suas
aptidões, necessidades intelectuais ou orgânicas.
Obviamente a organização de classes móveis
exige um pessoal numeroso. Em Bierges, como já
disse, para 25 alunos, havia 17 professores [a],
quase todos externos, incluindo neles um mestre
marceneiro e um mestre serralheiro.

3. Duração das aulas

O problema da duração das aulas apresenta um


interesse particular e pode ser visto em diferentes
perspetivas. Com efeito, a sua importância e ampli-
tude resultam do facto de uma aula não ser apenas
um dado quantitativo mas também um fenómeno
qualitativo. A aula não é apenas função da duração
mas também a expressão de dois estados de espí-
rito: o do aluno e o do professor, e das relações que
A. Faria de Vasconcellos 77

existem entre estes estados de espírito e o objeto do


ensino. Daqui resulta que não se pode fixar limites
demasiado precisos, demasiado absolutos em ter-
mos de duração das aulas. Mas há, evidentemente,
um limite para além do qual todo o trabalho produz
fadiga ou é incapaz de gerar interesse. É necessário
descansar, fazer uma pausa, que permita renovar
as disposições de vontade, atenção e interesse. As-
sim, na nossa escola, após 45 minutos, terminamos
ou interrompemos a aula. É claro que o professor
pode, se assim o entender, terminá-la antes. Entre
cada aula, há um intervalo de 10 a 15 minutos. As
aulas começam às 7h55 no inverno e 7h40 no verão
e terminam, respetivamente, às 12h15 e 12h05. A
última aula é mais curta, dura apenas 40 minutos.
As aulas são dadas de manhã, sendo a tarde re-
servada geralmente para os trabalhos manuais, as
visitas de estudo em grupo e o trabalho e estudo
individuais.
Nada disto é absoluto nem categórico. Como
referi, nalguns dias, aulas e trabalhos manuais al-
ternam durante a manhã.
Assim os mais velhos têm, pelo menos três ve-
zes por semana, aulas de tarde das 15h15 às 18h15.
Do mesmo modo também não devemos inferir
o princípio geral de que o estudo e os trabalhos
78 Uma escola nova na Bélgica

individuais dos alunos devem ocorrer somente de


tarde. Neste caso, como noutros, quando se puder
fazer melhor do que cumprir o princípio, não se
deve hesitar em proceder de outro modo.

4. Concentração de um pequeno número de maté-


rias ao mesmo tempo

Para evitar a dispersão e a fragmentação da


atenção cujos resultados são inconvenientes não
somente em termos de formação do espírito e do
carácter mas também da aquisição de conhecimen-
tos, estabelecemos em Bierges uma verdadeira con-
centração do trabalho sobre um número limitado
de áreas ao mesmo tempo.
Nada é mais detestável do que o sistema peda-
gógico que consiste em focar a atenção da criança
sobre uma infinidade de assuntos que não têm ne-
nhuma ligação ou relação orgânica nem sensível
entre eles. Calcular, fazer ditado, ler, aprender his-
tória, geografia, física, e sei lá que mais, tudo numa
manhã, pode ser muito desportivo, mas de pouco
vale se os assuntos tratados nessas diferentes áreas
não tiverem relações em comum entre si.
Como proceder para evitar essa dispersão inevi-
tável da mente, essa fragmentação dos esforços de
atenção? Antes de mais concentramos uma série de
A. Faria de Vasconcellos 79

áreas num trimestre, de maneira a podermos estudar


melhor, aprofundar as matérias que são objeto da
nossa atenção. Dedicamos o tempo indispensável e
isto permite-nos adequar melhor o ensino às condi-
ções do meio ambiente. Nos trimestres da primavera
e do verão podemos ocupar-nos mais eficazmente
da zoologia e da botânica. Ora para consagrarmos a
estas ciências um pouco mais de tempo, temos de di-
minuir o que dedicamos a outras áreas, como por
exemplo a física e a química, que poderemos tratar
de forma mais completa nos trimestres de outono e
inverno. Mas além da vantagem de se adaptar as
áreas de estudo às condições do meio, a concentra-
ção favorece outras, sobretudo permite à criança es-
tudar esses assuntos mais aprofundadamente, com
mais interesse, com maior proveito e menos fadiga.
Esta concentração não se limita, aliás, apenas a
um agrupamento novo de matérias no espaço de
um trimestre, nós generalizámo-lo, estendemo-lo e
ampliámo-lo. É por isso que dedicamos a manhã ou
uma parte da manhã ao estudo da mesma área ou
conjunto de áreas relacionadas intimamente entre
si. Isto permite a alunos e professores aprofundar o
objeto de estudo, tratá-lo de modo conveniente con-
siderando-o sob diferentes aspetos. Assim, em vez
de ter numa manhã francês, matemática, história,
80 Uma escola nova na Bélgica

física, ou seja, em vez de tratar durante uma manhã


assuntos completamente diferentes, ocupar-nos-
emos de um único tema, ou de dois, estudá-los-
emos melhor, durante mais tempo, sem choques,
empurrões, perdas de tempo, resultantes de saltos
frequentes que implicam os horários oficiais. Supo-
nhamos que dedicaríamos uma parte de uma ma-
nhã ou uma manhã ao francês. Acreditem que há
com que ocupar a mente do aluno, com o que cati-
var a atenção dele, sem cansaço, sem tédio, porque
podemos considerar o assunto sob aspetos muito
variados, que, por sua vez, fazem apelo a diversas
atividades da criança: leitura, recitação, gramática,
composição, literatura, tudo isto nos ocupa suces-
sivamente e suscita um vivo interesse.
Durante uma outra manhã, reunimos as ciências
experimentais: fazemos alternadamente química e
física. Temos tempo suficiente para manipular, fa-
zer experiências, realizar pesquisas. E é apenas
nesta condição que o trabalho é realmente produ-
tivo, porque eu não posso conceber que numa hora
se faça ciência experimental, permitindo à criança
agir e construir. Além disso, dispondo de tempo,
podemos empreender com resultados evidentes
um ciclo de experiências, uma série de observações
sobre assuntos que fazem parte do mesmo capítulo;
A. Faria de Vasconcellos 81

podemos concluir o estudo de um capítulo sobre


ciência, literatura, história ou geografia formando
um todo completo. E isto é vantajoso para o aluno
não só do ponto de vista do trabalho, dos métodos
de pesquisa e aquisição de conhecimentos mas
também porque favorece o desenvolvimento da
inteligência e do carácter, pois esta forma de pro-
ceder dá-lhe a oportunidade de sentir ao vivo a ne-
cessidade das qualidades da paciência, tenacidade
e a continuidade do esforço.
A campainha toca. É o intervalo. Descansamos,
descontraímos. O intervalo termina, entramos de
novo e retomamos o assunto. Economizamos
tempo, porque retomamos o trabalho muito mais
rapidamente e a concentração da atenção para o as-
sunto tratado faz-se mais a sério. Estudo e trabalho
ganham em unidade, em profundidade, e, ouso di-
zer, em interesse. Temos assim as manhãs literárias
e manhãs científicas. É a unidade na variedade [a].
Este esforço pedimo-lo sobretudo aos mais ve-
lhos, mas também o pedimos aos mais novos. Su-
ponhamos que temos que tratar de um animal ou
um grupo de animais durante uma manhã inteira.
Como procedemos? Consideramos o assunto nos
seus diferentes aspetos, ligamos conhecimentos co-
muns a outras áreas [b] (geografia, história, botânica,
82 Uma escola nova na Bélgica

física, química) e apelamos a diferentes atividades


da criança: observação, experimentação, leitura,
diálogo, redação, desenho.
A mudança frequente nas perguntas que são fei-
tas sobre o mesmo assunto e as formas de expressão
através da qual a criança traduz as suas reações au-
mentam o interesse [a]. As crianças não se cansam
pelo facto de estudar assim uma matéria ou várias
matérias organicamente relacionadas, um esforço
contínuo de atenção em que contribuíram os olhos,
os ouvidos e as mãos. Fazendo-o perdurar mais
tempo, enriquecemos o interesse do assunto tratado;
e enriquecemo-lo recorrendo a diferentes atividades.
A concentração permite, assim, por um lado
ganhar profundidade de pensamento fazendo o
encadeamento de factos de uma mesma área e, por
outro, estendê-los em amplitude correlacionando
diferentes factos pertencentes a várias áreas.

5. Interdependência das áreas, sem divisões estan-


ques entre elas

Quebrámos as divisões estanques que nos pro-


gramas oficiais separaram as diferentes áreas [b]. Es-
tabelecemos entre elas ligações de interdependên-
cia, de estreita solidariedade, que as ligam logica-
mente. E esta solidariedade natural é indispensável
A. Faria de Vasconcellos 83

para a compreensão do seu valor respetivo, sobre-


tudo para cérebros menos desenvolvidos como os
das crianças. É assim que não só fazemos o estudo
em conjunto de determinadas áreas – por exemplo, a
história, a geografia e a literatura – mas, quando es-
tudamos uma área isoladamente, vamos procurar
aspetos de outras áreas, que possam pôr em relevo o
assunto principal e enriquecê-lo sob diferentes pers-
petivas. Realizamos assim, como diria um biólogo,
ao redor do núcleo central da célula, todas as exten-
sões que irão conectar-se com as células vizinhas.
Trata-se, portanto, de articular entre si diferentes
áreas, de constituir conjuntos fáceis de apreender e
cheios de vida, de modo que a interpenetração escla-
reça e ilumine o assunto tratado.
Todas as ciências se completam, se explicam
umas às outras, se entreajudam pela reciprocidade
dos seus factos, dos seus princípios e sobretudo
dos seus métodos; é necessário ter cuidado para
garantir que não permaneçam mudas, isoladas,
imóveis, estranhas umas às outras; é necessário
que deem as mãos. Um único exemplo mostrará a
importância e a necessidade dessa articulação.
Poderemos imaginar uma lição de zoologia
relacionada, por exemplo, com a respiração, que
não envolvesse a química para explicar factos,
84 Uma escola nova na Bélgica

experiências sobre o oxigénio e o carbono? E,


ainda sem sair da zoologia, no estudo de ossos,
por exemplo, temos de apelar à física — porque as
articulações não podem ser compreendidas sem
que se tenha noções mesmo que sumárias sobre
alavancas — e também à química quando se trata
de estudar a composição dos ossos.
E se das chamadas ciências naturais e experi-
mentais passarmos para as ciências históricas e
geográficas, é o mesmo. Compreender-se-ia, por
exemplo, o estudo da história do Egito isolado do
estudo da geografia deste país? Não. É preciso
tratar ao mesmo tempo estas duas áreas que se
elucidam, completam e explicam mutuamente.
Mas não se trata simplesmente de articular en-
tre elas as diferentes áreas do programa em rela-
ções e proporções lógicas. Estabelecemos entre
elas e os trabalhos manuais ligações mais estrei-
tas, porque, como disse na palestra anterior, o tra-
balho manual constitui um meio de expressão e
um instrumento de pesquisa de ideias e conheci-
mentos.

6. Cultura geral e especialização

Em que sentido orientamos o nosso ensino se-


cundário? Para uma cultura geral ou para uma
A. Faria de Vasconcellos 85

especialização profissional?
O nosso ensino faz a síntese destas duas tendên-
cias que, consideradas isoladamente, não podem
responder à verdadeira missão da educação. Já dis-
semos que a nossa escola prepara mesmo a criança
para a vida ativa real. Isto implica o desenvolvi-
mento de todas as potencialidades do seu ser, atra-
vés de métodos de educação integral, visando tanto
a formação do homem como a do profissional.
Cultura geral e especialização profissional de-
vem completar-se, entreajudar-se, esclarecer-se
mutuamente, e não opor-se uma à outra, como an-
tagónicas ou alternativas.
Todo o profissional especializado tem todo o in-
teresse em possuir uma cultura geral, porque do
ponto de vista técnico ele ganha em mestria, flexibi-
lidade, engenho, capacidades de atenção e reflexão,
conhecimentos variados que aumentam as suas fa-
culdades criativas e meios de trabalho. É um facto
conhecido que os alunos das escolas técnicas en-
tram para lá demasiado novos para conseguirem
aproveitar integralmente este ensino; e que um
pouco mais de tempo na escola primária faz deles
aprendizes com uma maior capacidade de atenção
e uma cultura mais sólida. É, igualmente, um facto
da observação corrente que o trabalhador culto co-
nhece e exerce a sua profissão com mais inteligência
e habilidade que o trabalhador que se especializou
86 Uma escola nova na Bélgica

muito cedo. É assim em todas as profissões.


Mas não é apenas do ponto de vista técnico que
a cultura geral é necessária para o enriquecimento
da inteligência e da profissão do trabalhador, é-o
também do ponto de vista humano, pois, sob pena
de se tornar uma simples engrenagem de uma má-
quina sem coração e sem pensamento, nada do
que pertença aos outros homens lhe deve ser es-
tranho. A cultura geral dirige-se ao espírito, fonte
de toda a atividade. Ela permite ao trabalhador to-
mar consciência do papel social do trabalho, ga-
rante que o profissional sente o alcance da sua ati-
vidade no seio da vida humana, enquanto o es-
forço analítico, particularista, de uma especiali-
dade exclusiva tende a isolá-lo.
Que não se confunda, diz Ad. Ferrière no seu
notável Projet d’école nouvelle 1, cultura geral com
cultura enciclopédica, exaustiva e estéril [a]. De
resto, uma educação e um ensino que não tivessem
em conta o que há de específico em cada criança –
necessidades, interesses, potencialidades, apti-
dões – desviar-se-iam do caminho certo em todos
os aspetos: desenvolvimento pessoal, aquisição de
conhecimentos, preparação para a vida.
Se não temêssemos as fórmulas, se não sou-
béssemos que elas são sempre demasiado vagas

1 Projet d’école nouvelle. Saint-Blaise: Foyer solidariste;


imp. Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 1909.
A. Faria de Vasconcellos 87

e limitadas, diríamos deliberadamente que a es-


cola de Bierges tende a realizar o seguinte: uma
instrução geral adaptada às capacidades e necessi-
dades individuais e, a partir de uma certa idade,
com uma tendência profissional.
Agrupamos os alunos e distribuímos os con-
teúdos do programa em quatro secções:
a) Secção preparatória: 7 aos 10 anos;
b) Secção geral: 11 aos 14 anos;
c) Secção superior: 15 aos 17 anos;
d) Secção especial: 18 aos 19 anos;
Escusado será dizer que o critério da idade é re-
lativo, o limite varia de acordo com cada indiví-
duo e o quadro das nossas secções tem a flexibili-
dade necessária para ter em conta este facto.
Dos 7 aos 14 anos a instrução geral é igual para
todos. Há áreas que são obrigatórias para todas as
crianças — ciências naturais, matemática, língua
materna e línguas estrangeiras, história e geogra-
fia. Este é o programa das nossas secções prepara-
tória e geral.
A partir dos 14 anos e segundo as aptidões de
cada um, introduzimos novas áreas (línguas mor-
tas, por exemplo) ou desenvolvemos áreas já estu-
dadas, como matemática, ciências naturais, línguas
vivas, com vista à preparação da carreira escolhida.
88 Uma escola nova na Bélgica

Esta é a nossa secção superior.


Temos ainda, para terminar, uma secção espe-
cial, onde o jovem entra com cerca de 17 anos. Esta
secção, tanto quanto sabemos, não existe nas esco-
las secundárias sejam ou não Escolas novas. Nesta
secção percorre-se de uma forma geral, elementar
e abreviada o programa da escola onde o aluno
pretende entrar quando sair de Bierges e isto tanto
quanto o género, a complexidade das áreas e as
ferramentas à nossa disposição o permitam.

7. A aula, preparação, trabalho individual

Os métodos de trabalho assumem uma impor-


tância fundamental numa obra de educação, um
papel primordial, pois têm uma importância muito
grande para a vida. O que importa não é apenas
possuir conhecimentos, é sobretudo servir-se deles,
saber utilizá-los, saber aplicá-los. Fazemos o nosso
melhor e esforçamo-nos para fazer compreender à
criança a necessidade de trabalhar bem e adquirir
os meios não apenas para conhecer bem o que
aprende mas também e sobretudo para saber como
servir-se dos conhecimentos para melhor agir.
O que é então uma lição em Bierges? Como é
que a preparamos?
Todos sabem o que é uma lição segundo o sis-
A. Faria de Vasconcellos 89

tema antigo. O professor entra, instala-se na secre-


tária e começa a questionar os alunos sobre um
tema que cada um aprendeu mais ou menos de cor.
É a recitação maquinal e a exposição mecânica do
tema. Uma lição destas é um conjunto de palavras,
fechado, rígido, inorgânico, sem vida, qualquer
coisa de muito particular que diz respeito apenas
ao aluno interrogado, com exclusão de todos os ou-
tros. E as restantes aulas serão assim. Terminado o
tempo da aula, o professor sai. No dia seguinte re-
começa tudo à mesma hora e dura o mesmo tempo.
Ora, uma lição é algo de mais simples e mais
complicado ao mesmo tempo, mais interessante e
mais vivo, como vamos mostrar percorrendo as
diferentes etapas.
Para começar vamos estabelecer: − 1.º uma aula
dá-se em qualquer lugar, porque a sala de aula
está em toda a parte; − 2.º uma aula não é uma
mera exposição que o aluno tem de aprender de
cor, mas uma construção: pouco a pouco, docu-
mento após documento, deve ser o próprio aluno
a organizar todos os dados em colaboração com o
professor e os colegas.
De uma maneira geral, é assim que fazemos.
Suponhamos que quer assistir a uma das nossas
aulas. Entra. É o laboratório de ciências naturais.
90 Uma escola nova na Bélgica

Tem à sua volta terrários, aquários, frascos de vi-


dro com preparações anatómicas. Sente-se aqui
um odor característico. Se em vez de ter entrado
no laboratório de ciências naturais, tivesse entrado
no de física ou química, ou numa outra sala de
aula, isso pouco importa, porque, à parte algumas
diferenças exteriores, as atividades que aí se de-
senvolvem emanam do mesmo princípio.
a) Assistimos, em primeiro lugar, à preparação
em aula do plano de trabalho a realizar. Pergunta-
se, questiona-se, responde-se de um lado e de ou-
tro; estabelece-se a discussão que resulta num pro-
grama determinado de atividades bem definidas.
Acordamos uma série de observações e compara-
ções a fazer sobre um, dois ou três animais.
b) Tomadas as notas, os alunos, conforme o caso,
deixam a sala de aula ou permanecem lá para faze-
rem o trabalho de dissecação ou preparações anató-
micas e microscópicas (cada aluno tem a sua bolsa
de dissecação, o seu pequeno microscópio, a sua
lupa). É a segunda fase da aula que contém a pes-
quisa de todos os documentos: observações, expe-
rimentações, resultados e notas pessoais; esta pes-
quisa pode ser feita em qualquer lugar, nos labora-
tórios, nas oficinas, nos campos. No presente caso
trata-se de implementar o plano elaborado em sala
A. Faria de Vasconcellos 91

de aula e responder ao questionário criado proce-


dendo às observações necessárias. O Pedro irá lá
baixo ao prado, o João a casa do agricultor que vive
em frente, o André a casa de outro e assim por diante.
Vemo-los espalhados por toda a parte fazendo ob-
servações, recolhendo as informações possíveis.
c) O tempo consagrado às pesquisas termina;
reentramos com todas as observações realizadas
segundo o plano desenvolvido em sala de aula
com o professor e os colegas. Em geral a elabora-
ção do plano e a pesquisa dos documentos ocu-
pam-nos a maior parte da manhã de terça-feira
que é dedicada à zoologia. No dia seguinte, há tam-
bém aula de zoologia das 09h30 às 12h05. Chega-
mos assim à terceira fase da aula: faz-se o ponto de
situação das observações realizadas, a correção,
perante os animais estudados, dos registos incor-
retos ou desenhos mal feitos, a aquisição no local
de conceitos complementares. As discussões e lei-
turas terminam esta etapa. E entramos na quarta
fase em que se classifica e agrupa definitivamente
os documentos, observações e experiências reuni-
das; é a organização sistemática da aula.
d) No final da tarde, das 16 às 18 horas, durante
o tempo dedicado ao estudo, o aluno passará a
limpo, em cadernos próprios, a lição preparada na
92 Uma escola nova na Bélgica

sala de aula por ele próprio, pelos colegas e pelo


professor. A redação é a última fase do trabalho.
Em algumas aulas, geografia e história, por
exemplo, confia-se a alguns alunos a missão de
proceder a um estudo prévio dos documentos, an-
tes da intervenção do professor, e muitas vezes
esse trabalho de correção e classificação de docu-
mentos é tão bem feito que o papel do professor se
limita simplesmente a acrescentar algumas noções
complementares.
A aula é não só a realização e o desenvolvi-
mento de uma série de esforços individuais mas
também o resultado de um trabalho coletivo. E
não faz apenas apelo à atividade intelectual do
aluno mas igualmente às suas atividades físicas,
manuais e sociais.
É um pedaço de vida, porque associamos o
aluno a tudo o que acontece à sua volta. O artigo
de um aluno intitulado "Instalação do nosso posto
de rádio", que se encontra a seguir é uma ilustra-
ção viva do que acabei de dizer.
Ao trabalho de preparação e organização das
aulas, em que todos os alunos participam, vêm
juntar-se, para os mais velhos, os trabalhos pes-
soais de grande folgo, cuja elaboração depende
apenas das suas forças.
A. Faria de Vasconcellos 93

8. As conferências de alunos e professores

Uma vez por mês, um aluno e um professor fa-


zem uma conferência sobre um tema à sua escolha
dirigida à escola, aos pais e aos amigos. Estas con-
ferências fazem-se em contraditório; acostumamos
o aluno não só a expor as suas ideias em público
mas acima de tudo a suportar as críticas, o controlo,
a discussão. Este debate que se realiza na presença
dos colegas, pais e outro público é para ele algo de
solene. Eis os temas de palestras do ano passado
realizadas na escola por jovens de 15 anos ou mais:
O porto de Antuérpia;
O Brasil;
A evolução das alfaias agrícolas;
A proteção da natureza na Bélgica e a consti-
tuição de um parque nacional;
A instalação do nosso posto de rádio (T.S.F.);
Árvores do ponto de vista económico.
Os próprios alunos fazem no Boletim da escola
o relatório das suas conferências, das dos colegas
e professores.

9. Biblioteca, coleções, documentos, laboratórios,


oficinas

Para dar à aula todo o seu valor, à preparação


toda a sua importância e obter o melhor rendimento
94 Uma escola nova na Bélgica

possível dos procedimentos que acabámos de


mencionar, é preciso colocar à disposição dos alu-
nos os instrumentos de trabalho que lhes permitem
estudar em boas condições. Há preciosos e indis-
pensáveis auxiliares sem os quais nenhuma obra
de educação e ensino, com base nos princípios que
descrevi no início deste capítulo, pode ser eficaz-
mente realizada.
Livros, laboratórios, oficinas com numerosos
equipamentos devem ser colocados à disposição
efetiva dos alunos, senão todo o trabalho de do-
cumentação e pesquisa torna-se quase impossí-
vel. E uma Escola nova tem de garantir isso cio-
samente desde a sua fundação. É isto que faze-
mos na nossa escola.
Cada turma possui a sua própria biblioteca; te-
mos cerca de quatro mil volumes, referentes a todos
os ramos de ensino, além de numerosas coleções de
gravuras, fotografias, desenhos, postais, onde os
alunos vão buscar as mais variadas informações.
Cerca de uma dezena de revistas e jornais comple-
tam o quadro. Além disso, jornais diários são colo-
cados à disposição dos alunos. Aí encontra-se, sem
dúvida, uma mina preciosa de informações e notí-
cias de onde um espírito esclarecido pode tirar par-
tido do ponto de vista educativo e instrutivo. Todos
A. Faria de Vasconcellos 95

os grandes e pequenos eventos sociais, políticos,


económicos, morais, artísticos, científicos são aí re-
latados e, convidando os alunos a discuti-los, com-
preendê-los e interpretá-los, damos-lhes uma bela e
real lição sobre as coisas sociais que o jovem deve
conhecer e pelas quais, aliás, se interessa. Os mais
novos e os do meio são igualmente postos ao cor-
rente do que nos jornais possa ser do seu interesse.
Cortamos dos jornais diários todos os factos e acon-
tecimentos dignos de nota e que possam ser enten-
didos por eles. Classificamos estes recortes e co-
lamo-los em cartões portáteis que ficam à disposi-
ção dos alunos. Estes cartões são renovados diaria-
mente e constituem o quotidiano da escola. Um
aluno nomeado pelos colegas é encarregado du-
rante um mês desta função de jornalista.
Por conseguinte livros em abundância, revistas,
ilustrações e jornais constituem valioso manancial
de documentos. E tudo isso é indispensável dado
que não temos manuais escolares na escola. Não se-
guimos nenhum. É a guerra aberta, honesta e deci-
dida aos tesouros da imobilidade e uniformidade
do compêndio; e isto por razões de programa, por-
que não há manuais elaborados em harmonia com
o nosso plano de estudos, e também por razões de
ordem espiritual. Para desenvolver nos alunos o
espírito crítico, o controlo da mente e criar neles
96 Uma escola nova na Bélgica

hábitos de documentação e pesquisa, é absoluta-


mente necessário libertá-los da escravidão intelec-
tual e moral do manual. Apelamos à observação, à
experimentação, à pesquisa, às descobertas pessoais
dos alunos; o que nos interessa é que eles ajam e
pensem por si próprios. Fazemos questão que antes
de tudo sejam eles próprios a organizar, coordenar
e sistematizar aquilo que aprendem pela sua pró-
pria experiência pessoal. É necessário que apren-
dam por toda a parte. Um só manual seria sufi-
ciente para cercear o seu pensamento e a sua ação.
Mas há mais. As oficinas e os laboratórios são
absolutamente indispensáveis.
Já falei sobre isto na primeira palestra. Temos
uma oficina de modelagem, cartonagem e enca-
dernação, uma oficina de marcenaria, uma oficina
de serralharia, um laboratório de física e química
e um laboratório de ciências naturais.
Os laboratórios têm as ferramentas e os produ-
tos necessários para realizar todas as pesquisas
úteis aos estudos. O nosso gabinete de física é im-
portante e temos instrumentos de valor. No de quí-
mica também. Além disso, sempre que a experiên-
cia é indispensável não hesitamos em fazer as
aquisições necessárias.
Mas se as experiências e pesquisas ganham em
ser feitas com instrumentos precisos, rigorosos, há
A. Faria de Vasconcellos 97

outras cujo interesse educativo aumenta quando o


aluno deve ele próprio construir o dispositivo.
É então que as oficinas intervêm utilmente e é
necessário que o aluno aí encontre a ferramenta
criadora. Todas as áreas da educação fazem aí uma
ampla colheita de factos e recursos, como terei opor-
tunidade de mostrar mais à frente. Nada é mais in-
teressante do que o proveito que podemos retirar
do trabalho manual do ponto de vista do ensino. E
nada mais moral, nada mais exalta a coragem e or-
gulho humanos do que a comparação que o aluno
possa estabelecer entre os meios rudimentares que
ele cria à imagem e semelhança dos seus ancestrais
remotos e aqueles que a técnica científica moderna
lhe dá nos instrumentos precisos e complicados
dos laboratórios. Isto é altamente educativo. E do
mesmo modo que o aluno pode reconstituir a evo-
lução científica, também pode reconstituir a evolu-
ção da técnica que lhe está associada. E estes labo-
ratórios, estas oficinas, com os seus instrumentos e
ferramentas, estão totalmente à disposição dos alu-
nos; não nos contentamos em lhos mostrar através
dos vidros dos armários hermeticamente fechados;
os alunos podem usá-los livremente. Em muitas es-
colas os laboratórios, os produtos, os instrumentos
não faltam; o que falta à criança é a liberdade para
98 Uma escola nova na Bélgica

os usar. Acreditamos que fazemos ciência experi-


mental quando o professor realiza a experiência à
frente dos alunos. Ora isso não é suficiente: o facto
de assistir a uma demonstração, a uma pesquisa,
não tem o valor educativo e instrutivo da experiên-
cia feita pelo próprio aluno.
Connosco o aluno dispõe realmente de todos os
instrumentos de pesquisa: pode empenhar-se, em
sala de aula ou estudando, quer o professor esteja
ou não presente, em todas as pesquisas e experiên-
cias, em todos os trabalhos de documentação de que
possa precisar; e se deteriorar ou destruir qualquer
instrumento, deve pagá-lo. Assim tem a responsa-
bilidade efetiva de tudo aquilo de que se serve.
A biblioteca, as coleções, os documentos, os la-
boratórios e as oficinas são, como disse, confiadas
aos cuidados do aluno escolhido pela assembleia
de alunos durante um trimestre.
Os próprios alunos enriquecem as nossas cole-
ções com o produto das suas pesquisas, dos seus
trabalhos, dos passeios e visitas de estudo que fa-
zemos, onde recolhemos materiais de estudo úteis.

10. Visitas de estudo

Já disse algumas palavras sobre as visitas de es-


tudo que fazemos com frequência: visitas a museus,
A. Faria de Vasconcellos 99

monumentos, quintas, mercados, lojas, obras pú-


blicas. Creio ser inútil repeti-lo para mostrar as suas
vantagens.
Mas o que pode interessar ao leitor é a maneira
como elas são organizadas. Para o mostrar darei a
palavra a um dos nossos alunos que escreveu no
Boletim um artigo sobre:

A PREPARAÇÃO DE UMA VISITA DE ESTUDO


Tínhamos planeado há algum tempo uma visita de es-
tudos geográficos referente às noções adquiridas neste tri-
mestre sobre o relevo e os cursos de água. Porque não basta
compreender, discutir e reter o que aprendemos, é também
necessário ver o mais possível por nós próprios.
Não podendo ir à Suíça, Noruega, Estados Unidos e em-
preender uma difícil expedição através das regiões polares,
só nos é possível contemplar os fenómenos que foram ques-
tionados nas nossas aulas através das numerosas fotos que
possuímos. Finalmente decidimos que iríamos tentar ver o
máximo possível na Bélgica: montanhas, planícies, diferen-
tes aspetos de vales e rios, as indústrias derivadas da terra.
Fui encarregado pelos meus colegas de preparar a via-
gem, que dividimos em duas partes, cada uma de cinco
dias, o que significa que dois passes de comboio para este
período serão suficientes.
A primeira dessas viagens deve ocorrer no início de feve-
reiro. De acordo com a informação que fui capaz de reunir até
agora, creio poder afirmar que iremos para a região de Ourthe
e Amblève, tendo como centro provável Aywaille ou Remou-
champs. Consistirá sobretudo em ver montanhas, cursos de
100 Uma escola nova na Bélgica

água, cascatas, sumidouros, abismos, perdas de rios, nascen-


tes, pedreiras… Iremos a Hautes Fagnes e a Baraque Michel,
bem como ao Hérou e à confluência dos dois Ourthes. Visita-
remos provavelmente também a Flandres para comparar a di-
ferença entre um curso lento, suavemente inclinado e navegá-
vel de um rio da região, e um curso rápido quase torrencial e
não navegável da região das Ardenas, entre vales flamengos
largos e pouco profundos e ravinas estreitas da Valónia.
A segunda parte será dedicada sobretudo a minas de car-
vão, chumbo, ferro, zinco, pedreiras de pórfiro, mármore,
arenito, fornos de cal, fábricas de cimento, à enorme indús-
tria derivada da hulha e do ferro, a fábricas de vidro, de
faianças, de cerâmica, de tijolos, que abundam na região.
Isto de um modo geral e resumido, sem referir pormenores.
Preparar adequadamente uma visita de estudo é algo
muito demorado. Não vamos à deriva, guiados por uma qual-
quer estrela, sem nos preocuparmos com o que vamos ou não
ver. Um mês ou dois são necessários para a preparação. Em
primeiro lugar, é preciso reunir os livros de que possamos ter
necessidade, lê-los atentamente tomando notas do que for in-
teressante e adicionar alguma ideia nossa. Depois disto, esta-
mos diante de um maço de papéis cheios de projetos. Temos
então de procurar em todos estes documentos as ideias essen-
ciais e deixar o resto tentando localizar o máximo possível do
que podemos ver em dois ou três pontos do país, para evitar
deslocações inúteis e perda desnecessária de tempo. A seguir
é preciso determinar os pormenores materiais da viagem:
dias, datas, alojamento, alimentação, comboios, autorizações
de visitas e os pequenos pormenores que exigem muito tempo.
A última parte não é das mais fáceis: trata-se de prepa-
rar os colegas, quer através das leituras, quer durante as
A. Faria de Vasconcellos 101

aulas, de modo que sejam capazes de entender tudo o que


vão ver. Finalmente, não devemos perder de vista o lado
estético e pitoresco... belezas naturais das regiões a atraves-
sar, o que será mais fácil de fazer nos próprios locais.
Eis, grosso modo, como irei preparar a nossa visita de estudo.

Sintetizemos em poucas palavras os princípios


e os factos relativos às visitas de estudo:
1.º A turma nomeia um, dois ou três alunos,
consoante a importância e amplitude do projeto, pa-
ra preparar e organizar a visita, tanto do ponto de
vista material como do ponto de vista intelectual.
2.º A preparação e organização incluem:
a) Pesquisa de todos os documentos e informa-
ções sobre o assunto: leituras, notas. É antes de
mais um trabalho pessoal dos alunos responsáveis
pela preparação da viagem.
b) Classificação desses documentos, pesquisa
das ideias essenciais, eliminando tudo o que não
for conveniente, localização do que se pode ver em
dois ou três pontos da região, a fim de evitar des-
locações inúteis e perda de tempo. É um trabalho
coletivo da comissão da visita.
c) O trabalho feito é apresentado à turma para
que cada aluno acrescente as suas notas pessoais,
as suas ideias e possa dar-se conta do projeto apre-
sentado. Muitas vezes é um trabalho interessante
para discussão. Em reuniões seguintes os mem-
bros da comissão da visita preparam os colegas,
102 Uma escola nova na Bélgica

através de leituras e pequenas palestras, para que


compreendam bem tudo o que irão ver.
d) É óbvio que durante a visita de estudo são
também os alunos organizadores que têm a mis-
são de fornecer informações no local e explicações
complementares. São guias que devem mostrar e
esclarecer o caminho a percorrer. São como peque-
nos professores que, apoiando-se nos mais velhos,
desempenham muito bem esse papel.
e) A organização material da viagem comporta
igualmente numerosas responsabilidades: marca-
ção dos dias e datas das visitas de estudo, questões
relativas ao alojamento, alimentação, bilhetes de
comboio, autorizações de visitas, contabilização
de todos os custos, pois são os organizadores que
pagam as despesas e se ocupam de muitos outros
pormenores.
f) Mas terminada a visita de estudo, o trabalho
não termina. É preciso registar os factos dignos de
interesse. A turma reúne-se a fim de nomear o ou
os alunos encarregados de fazer para os colegas,
pais e amigos, conferências sobre a visita de es-
tudo, caso se justifique, e organizar uma exposição
de documentos, fotografias, mapas, gravuras, no-
tas e produtos, enfim de todos os materiais reco-
lhidos durante a viagem. É uma espécie de síntese,
quadro vivo do trabalho realizado que mostra os
resultados obtidos.
A. Faria de Vasconcellos 103

Após as palestras sobre a pré-história dadas por alguns


alunos perante uma assembleia de pais, fizemo-los ver uma
exposição organizada por nós, relacionada exclusivamente
com as épocas pré-históricas. Durante dois dias a nossa sala
de modelagem, cartonagem e desenho foi transformada.
Dispusemos a toda a volta contra as paredes estantes como
as de música sobre as quais colocámos em ordem cronoló-
gica um número bastante grande de gravuras, quadros e fo-
tografias de habitações pré-históricas, utensílios, ornamen-
tos, armas. Expusemos coleções de fósseis, plantas, conchas
recolhidas durante a nossa visita de estudo ou que nos foram
dadas por amigos. Um dos nossos professores desenhou um
grande quadro representando uma família pré-histórica nas
suas ocupações... Esta exposição permitiu-nos perceber pelas
imagens e pelos documentos tudo o que nos precedeu no
mundo e assim começar com proveito o curso de história.

g) Agora perguntam-me: que papel desempe-


nha o professor nisto tudo? Ele intervém, antes da
visita de estudo, contribuindo para o trabalho de
pesquisa e documentação e fornecendo, durante a
visita, as informações e explicações que os alunos
organizadores não sejam capazes de dar ou que os
outros participantes não tenham conseguido enten-
der. Ele não substitui nem faz o trabalho do aluno,
mas orienta, esclarece, corrige, completa-o. O seu
papel é o de guia. A sua função é mesmo essa, pois
o conhecimento da criança deve ser fruto da sua
própria experiência devidamente organizada [a].
104 Uma escola nova na Bélgica

11. Avaliação do trabalho, notas e boletins

Vimos como e segundo que princípios traba-


lham os nossos alunos. Talvez me perguntem
como é que avaliamos o trabalho deles.
Trimestralmente enviamos aos pais uma cader-
neta descrevendo brevemente os resultados dos es-
forços que o aluno realizou durante o trimestre de-
corrido. Esta caderneta, além de notas e indicações
relativas ao desenvolvimento físico, inclui nume-
rosas observações psicológicas sobre as aptidões
manuais, intelectuais e morais da criança, sobre as
áreas de estudo, o número de horas que lhe foram
dedicadas, as razões para um atraso ou um avanço.
Seguimos cada aluno de perto, observamo-lo,
estudamo-lo o melhor possível. E como lhe ofere-
cemos muitas oportunidades para agir, num am-
biente escolar muito ativo e variado, somos capa-
zes de descobrir nele tendências, surpreender ap-
tidões, comportamentos, preferências, interesses e
constatar hábitos que nos permitem esboçar as
grandes linhas do seu perfil psicológico.
Os meus colaboradores ajudam-me com as suas
observações que anoto regularmente e que eles me
comunicam também com regularidade.
Como o número dos nossos alunos é limitado,
A. Faria de Vasconcellos 105

podemos chegar a compreender, de certo modo, o


seu grau de desenvolvimento psicológico e assim
adaptar a cada um deles os nossos métodos de
educação e ensino.
Mantemos o aluno ao corrente do que pensamos
dele. Evidentemente que tudo é feito com tacto,
prudência e moderação. É necessário habituá-lo a
admitir que controlamos as suas ações, que as apre-
ciamos; deve vir a compreender que não é perfeito.
A fim de desenvolver o espírito crítico do aluno
e também o seu sentido de justiça e equidade, criei
na escola uma organização cujos resultados me sa-
tisfazem particularmente.
No final de cada período, procedemos à avalia-
ção não só do trabalho mas também de outros ele-
mentos resultantes da vida moral e social do aluno.
Esta avaliação refere-se, portanto, ao esforço rea-
lizado em sala de aula e a todas as manifestações da
vida da criança na escola. Mas ao contrário do que
normalmente se faz, incluímos neste processo os
professores, os colegas do aluno e o próprio aluno.
E a avaliação é o resultado do esforço realizado pelo
aluno, não em comparação com o dos outros alunos,
mas apenas com o seu próprio esforço, com os resul-
tados do seu trabalho no passado. Procedemos as-
sim. Dedicamos a última semana de cada trimestre
106 Uma escola nova na Bélgica

a este trabalho. Cada aluno é chamado a avaliar o


seu trabalho e exprimimos em números a síntese
das observações feitas. As palavras bom, mau, su-
ficiente não exprimem o que queremos dizer com
tanta precisão como os números; esses, apesar da
sua natureza unilateral, portanto imprópria para
exprimir valores psicológicos complexos, permi-
tem no entanto estabelecer certas progressões e
particularidades a destacar no aluno.
Entremos numa sala de aula. Professores e alu-
nos procedem ao trabalho da avaliação: — "E tu,
Pedro, trabalhaste? Fizeste progressos? Como ava-
lias o teu trabalho?" O aluno diz o que pensa do
seu esforço e atribui-se ele próprio uma nota de
classificação de valores, seja 12 ou 13 ou 7 ou 8, que
ele acredita expressar o valor do seu esforço.
Os colegas são de seguida convidados, um de
cada vez, a pronunciarem-se sobre o trabalho desse
colega e a dar-lhe uma nota que devem justificar.
O professor é o último a intervir. Ele faz a crí-
tica da discussão encetada, dá o seu ponto de vista
e justifica-o atribuindo uma nota. De todas as no-
tas é feita a média.
E, como disse, são apreciados não só os traba-
lhos da sala de aula mas também todas as ma-
nifestações da vida da criança: ordem, asseio,
A. Faria de Vasconcellos 107

camaradagem, sociabilidade, lealdade.


Apercebemo-nos assim das vantagens que este
sistema oferece. Torna a criança atenta aos seus
progressos e falhas, ajuda-a a indagar os seus pon-
tos fracos, a medir as suas forças e meios de que
dispõe; habitua-a a refletir sobre si própria, a fa-
zer um exame de consciência. O aluno é levado a
avaliar o seu trabalho não em relação ao dos seus
colegas, mas em relação a si próprio. Ao convi-
darmos os colegas a pronunciarem-se, procura-
mos despertar neles o sentido de justiça, o sentido
da equidade e a exercer o pensamento crítico, ha-
bituando-os a usar este instrumento de controlo
com tacto, prudência e deferência, mas também
com franqueza e lealdade. É bastante encorajador
ver quanto este sistema teve bons resultados.
As nossas cadernetas não contêm apenas as ob-
servações e notas dos professores mas também as
dos próprios alunos, pois se o trabalho do aluno é
um esforço pessoal, para cujo bom resultado con-
tribui a coletividade da turma, é bom e lógico que
esta também intervenha para o avaliar.

_______________
108 Uma escola nova na Bélgica

CAPÍTULO III

ALGUNS PROCESSOS DE ENSINO

I. Ciências naturais: 1. Zoologia, botânica e geologia – 2. Física


e química – II. Matemáticas – III. Línguas: 1. Língua ma-
terna – 2. Línguas estrangeiras – IV. Geografia e história

Propomo-nos tratar numa obra especial a ques-


tão dos métodos e processos que utilizamos no en-
sino das diferentes áreas. Não podemos, por isso, en-
trar aqui em detalhes e desenvolvimentos que teriam
lugar num tratado de didática. Limitar-nos-emos, de
momento, a orientações práticas, gerais e sumárias,
mas ainda assim suficientes para fazer compreender
como aplicamos o nosso programa.

I. CIÊNCIAS NATURAIS
1. Zoologia, botânica e geologia

O ensino das ciências naturais constitui a base e


o pivô essencial da educação intelectual das nossas
A. Faria de Vasconcellos 109

crianças dos 7 aos 10 anos (secção preparatória) não


só porque elas respondem às necessidades e aos in-
teresses intelectuais das crianças (a maioria são ins-
tintivamente naturalistas, dizia Spencer [a] com ra-
zão) mas também porque elas têm durante este pe-
ríodo de preparação e formação, um papel extre-
mamente importante em termos de aquisição de
hábitos de trabalho, de sentido crítico, de controlo
e pesquisa científica. É assim que as ciências natu-
rais colocam a criança em contacto direto com a
realidade e as formas da natureza e da vida (que
lhe interessam e a apaixonam por causa do movi-
mento e da cor que ela observa) e com as realidades
e formas do trabalho humano, usado para subju-
gar as forças naturais em benefício do ser humano.
Este lado da questão não apresenta o mínimo inte-
resse para a criança, mas as suas necessidades de
agir e construir encontram aí múltiplas aplicações.
Vejamos os princípios que regem o ensino des-
tas áreas.
1.º Observação, experiência. A primeira condição
essencial de um ensino interessante e vivo das ciên-
cias naturais é torná-lo concreto, e para isso coloca-
mos a criança diante das coisas, dos factos da natu-
reza. Não estudamos zoologia por livros com dese-
nhos mais ou menos esquemáticos, objetos mais ou
110 Uma escola nova na Bélgica

menos inertes, mas pelo estudo direto das realida-


des concretas e vivas. A observação e a experiência,
que constituem a base de todo o ensino, baseiam-se
nas considerações a seguir mencionadas.
2.º Partimos das características mais evidentes, dos
aspetos mais imediatos dos animais, de plantas, da
terra. Começamos, por exemplo, por estudar as
partes exteriores do corpo de um animal, as suas
necessidades, alimentação, costumes, hábitos.
3.º Partimos também do meio ambiente ime-
diato para em seguida ir para meios e terras mais
longínquas. Começamos por estudar as camadas
geológicas, os depósitos e aluviões dos terrenos
da escola, a geologia do ambiente mais próximo.
4.º O conhecimento do meio ambiente e das
formas para o adaptar às nossas necessidades
confere uma natureza prática ao ensino. Aprende-
mos que serviços é que os animais e as plantas
podem prestar ao homem, qual pode ser o uso
dos seus produtos, quais os processos da sua
transformação industrial.
5.º Mas o estudo assim entendido não consiste
numa acumulação pura e simples de factos a me-
morizar; trata-se de chegar gradualmente às ideias
gerais: as culturas e experiências dos jardins escola-
res das crianças provocam nelas, por exemplo, por
A. Faria de Vasconcellos 111

aproximação e comparação, a constatação de seme-


lhanças e de diferenças entre as várias fases de de-
senvolvimento de uma planta que elas seguem, ou
entre estas e outras que elas plantaram. Da mesma
forma para os animais: acompanhamos a meta-
morfose da rã, de que guardamos em álcool, como
testemunhos, preparações e fragmentos orgânicos
de cada fase (ovos, girinos com brânquias exter-
nas, girino após o desaparecimento das brânquias
externas, girino com duas pernas, girino quase to-
talmente transformado numa rã, rã). Num outro
domínio estabelecer-se-ão relações e comparações
entre as vacas da escola e as dos vizinhos.
6.º As observações regulares e as comparações
permitem chegar a generalizações, a grupos sinté-
ticos, a classificações. Estas tiveram no início um ca-
rácter e um fim precisos e definidos. Assim, sem
sair do domínio da escola, conseguimos classificar
mais de sessenta espécies de árvores diferentes.
Este inventário foi acompanhado de uma tabela
que mostra o nascimento das folhas, a floração e o
cair da folha em cada espécie.
7.º Agrupamos todos os conhecimentos (física,
química, geografia, história) que se relacionam
com um determinado animal, planta ou fenó-
meno de geologia estudado. Associamos também
112 Uma escola nova na Bélgica

os trabalhos manuais, especialmente o desenho, a


cartonagem para fazer caixas para insetos, a mo-
delagem de plantas e animais, e a carpintaria para
a fabricação de viveiros.
8.º As observações e as experiências realizam-se
em condições e com a ajuda de meios que importa
explicar.
Uma escola no campo possui uma situação pri-
vilegiada do ponto de vista das ciências naturais
ao permitir realizar experiências e observações nas
condições mais favoráveis. A criança pode passar
facilmente da observação sem qualquer finalidade
à observação deliberada e metódica da natureza e
da vida que a rodeia e solicita de todos os lados.

Para começar, eis o que diz respeito à zoologia:


a) A quinta, o curral, a colmeia
Dissemos que as crianças se ocupam da criação
de animais: vacas, porcos, galinhas, pombos, pa-
tos, coelhos, cabras, cães. Cuidam dos animais, ocu-
pam-se da sua alimentação, observam as suas vi-
das, acompanham o seu desenvolvimento, assis-
tem aos partos, cuidam das crias, colhem os pro-
dutos e transformam alguns deles, por exemplo, o
fabrico de manteiga e queijo. A título de exemplo,
segue uma descrição retirada do Boletim dos alunos.
A. Faria de Vasconcellos 113

A NOSSA VACA
No ano passado, a nossa Sociedade agrícola tinha de-
cidido comprar uma vaca depois das férias, mas para nos
fazerem uma surpresa, compraram-na mais cedo. Qual
não foi o nosso espanto ao entrar no celeiro, quando
vimos uma linda vitela de raça bretã. Uns grandes olhos
pretos, um focinho cor-de-rosa, uns belos cornos curvos,
o pelo preto e branco, tudo isto me fez gostar muito dela.
Eu gosto muito deste animal. Apesar de se dizer que as
vacas são estúpidas, acho esta inteligente. Como ela olha para
nós quando entramos no estábulo, à hora de comer, sem a
sua comida! Felizmente não a fazemos esperar muito tempo.
Foi um acontecimento quando ela pariu. Havia já al-
guns dias que falávamos em passar a noite em vigília. Infe-
lizmente no dia do parto chegámos todos demasiado tarde.

As crianças tiveram no entanto oportunidade


de assistir ao parto da segunda vaca que foi com-
prada mais tarde.
Não há rosas sem espinhos. Ter uma vaca é muito
bom, mas é preciso cuidar dela, alimentá-la cinco vezes
por dia, fazer-lhe a cama, ordenhá-la; uma vez por se-
mana, uma equipa de dois alunos tem esta tarefa.
As vacas bretãs dão uma média de 10 a 15 litros de
leite por dia, enquanto as belgas dão 20 a 25 litros, o que
faz com que em proporção elas deem menos manteiga. A
vaca é um dos animais mais úteis ao homem. Dá-lhe leite,
do qual se faz a manteiga e o queijo; a sua carne e a das
crias e até mesmo os ossos e os cornos são de grande valor
na indústria. É portanto um animal de grande valor co-
mercial que é preciso tratar com um pouco mais de do-
çura do que normalmente se faz.
114 Uma escola nova na Bélgica

Seria desejável que fossem criadas muitas quintas pe-


dagógicas para ensinar os lavradores sobre a forma ade-
quada de tratar uma vaca e de melhorar a sua raça.
Segue outra passagem do Boletim dos alunos.
OS ANIMAIS DA ESCOLA
Temos muitos animais na escola, destacando-se as duas
vacas, o porco, os cães, as galinhas, as pombas e os coelhos.
As duas vacas estão alojadas no estábulo construído pe-
los alunos no ano passado. A primeira é uma linda vaqui-
nha bretã, malhada de preto, muito meiga. Chamámos-lhe
Margarida (Pâquerette) [a] porque ela chegou na altura da Pás-
coa. A outra é uma vaca belga branca e ciumenta. Chama-
se Mamute; demos-lhe este nome porque ela é enorme.
O cão de guarda vive numa casota de tijolo que está à
entrada da quinta; é um velho cão castanho muito simpá-
tico, chama-se Pastor (Bergeot). A cadela preta é muito jovem
e gosta de andar em liberdade, chama-se Top. Foram os mais
pequenos que construíram a casota dela no ano passado.
O porco chegou há dias; é cor-de-rosa, pequeno, tem
sempre as orelhas sobre os olhos, o seu rabo infelizmente
não é em forma de saca-rolhas.
As galinhas, de muitas espécies, vivem numa capoeira
só para elas; põem muitos ovos por dia. Também há galos.
As pombas agora são doze, umas azuis, outras bran-
cas; alimentamo-las a milho e trigo.
Uma colmeia permite-nos fazer observações in-
teressantes sobre as abelhas.
b) Os terrários, os aquários
Um outro campo de observações zoológicas
para as crianças são os terrários. Há vários. Eles
A. Faria de Vasconcellos 115

contêm os seguintes animais: ratos brancos, um


ouriço, uma tartaruga, lagartos, um licranço, uma
víbora de Kaznakov, uma víbora, salamandras,
que são tratadas pelas próprias crianças.
Ao lado é o mundo dos insetos: carochas [a], be-
souros [b], grilos, formigas, necróforos [c], escara-
velhos, larvas e lagartas de todas as espécies.
E há os aquários [d]. Uma série de recipientes
que reproduzem tanto quanto possível o meio
ambiente natural dos seus habitantes, contêm:
1.º peixes: peixes vermelhos [e], carpas [f], tencas
[g], escalos [h], percas-sol [i], peixes-gato [j], verde-

mãs [k], esgana-gatas [l];


2.º batráquios: sapos, rãs, girinos, tritões [m];
3.º insetos aquáticos: hidrofilídeos [n] , escara-
velhos de água [o], notonectas [p];
4.º moluscos: caracóis [q], caramujos [r], planorbis [s];
5.º minhocas, sanguessugas [t].
Todos estes animais podem ser observados e
estudados metodicamente pelas crianças que es-
crevem nos seus «cadernos de observações», man-
tidos regularmente, as particularidades das suas vi-
das: comida, hábitos, habitat, caracteres exteriores.
Eis uma descrição sobre o aquário retirada do
Boletim dos alunos:
116 Uma escola nova na Bélgica

OS AQUÁRIOS
Na escola eu sou responsável por quatro aquários. O
primeiro contém tritões; estes animais alimentam-se de mi-
nhocas e lama, lutam para apanhar a comida, são aquáticos
e terrestres, pelo que coloquei pedras perto da água para
que pudessem sair. No segundo, tenho percas-sol e escalos,
estes últimos alimentam-se de pequenos animais aquáticos,
minhocas e lama; são prateados como as sardinhas e têm a
ponta da cauda e as barbatanas ligeiramente avermelhadas;
são muito gulosos e, quando passo em frente do vidro do
aquário, comprimem o nariz tentando seguir-me. As percas-
sol são ovais e achatadas; têm um reflexo azulado e são no-
táveis pela sua voracidade. Comem muito e nunca consegui
saciá-las: têm sempre fome. Os vermes deitados no aquário
são rapidamente engolidos, mas se as percas não estivessem
separadas dos verdemãs, tê-los-iam digerido há muito.
O terceiro aquário contém pequenos escalos, tencas e pei-
xes-gato; estes são noturnos, de dia dormem escondidos entre
as plantas aquáticas e as pedras; à tarde, pelas quatro ou cinco
horas, saem e vagueiam em busca de alimento; a boca é reves-
tida de oito filamentos moles, que constituem o seu principal
órgão de tacto. As tencas são peixes com um ritmo muito lento;
têm um reflexo esverdeado e não têm uma grande voracidade.
No meu último aquário vivem os verdemãs e os esgana-
gatas. Os verdemãs são muito pequenos; os que tenho têm
apenas cinco centímetros de comprimento no máximo. Tam-
bém têm filamentos tácteis, mas são muito pequenos. Estes pe-
quenos peixes são muito estranhos em termos de respiração:
quando a água em que vivem está muito suja, põem o focinho
fora de água e engolem muito ar; ao mesmo tempo saem do
orifício anal bolhas de ácido carbónico impróprias para a
respiração. Os esgana-gatas são muito pequenos. Para se
A. Faria de Vasconcellos 117

defenderem endireitam os espinhos dorsais que normalmente


estão dobrados nas costas. Fazem ninhos, mas infelizmente
nunca consegui tê-los em aquário.
c) Trabalhos práticos
O estudo prático de anatomia e de fisiologia é
feito por meio de dissecações. Os alunos também
fazem preparações anatómicas que conservam
preciosamente.
d) Experiências
Escusado será dizer que as sessões de experiên-
cias consistindo, por exemplo, no estudo do movi-
mento, da circulação, da respiração, da digestão
dos alimentos completam o quadro destes exercí-
cios e trabalhos de zoologia que os tornam parti-
cularmente vivos.
e) Visitas de estudo
Como dispomos de uma extensão de seis hec-
tares: campos de cultivo, bosque, jardim [a], horta,
pomar [b], tanque, lago, celeiro, estábulo, temos
com que satisfazer as necessidades de um ensino
rico e variado. Juntamos a isto visitas de estudo não
só em torno da escola mas noutras regiões, de modo
a verem nos ambientes naturais os seres e as coisas
que nos interessam. Aprendemos zoologia, botâ-
nica, geologia em toda parte e procuramos ele-
mentos de estudo em todo o lado onde podemos.
É necessário mostrar aos alunos a fauna
118 Uma escola nova na Bélgica

estrangeira e exótica. As visitas às exposições de ani-


mais que têm lugar regularmente em Bruxelas, o Jar-
dim Zoológico de Antuérpia, o Museu das Ciências
Naturais da Bélgica [a], o Museu Real da África Cen-
tral [b], fornecem-nos dados valiosos.
As crianças relataram algumas destas visitas
no seu Boletim:
EXPOSIÇÃO DE AVICULTURA
Visitamos a exposição de avicultura no Palácio do Cin-
quentenário em Bruxelas. À entrada ouvimos um concerto
de gritos de animais que nos furava os tímpanos. Fez lem-
brar a velha história de músicos de Bremen, em que um
burro, um cão, um galo e um gato cantavam em coro.
Os animais interessaram-nos muito; havia raças muito
variadas de galos, grandes e pequenos, de galinhas, de pa-
tos, de perus, de pavões, de pombas e de papagaios. Havia
galos e galinhas muito engraçados, com patas cobertas de
tufos de penas; parecia que usavam calções. Examinámos
chocadeiras e incubadoras artificiais, capoeiras de todos os
tamanhos e de sistemas diferentes. Vimos também diversas
raças de coelhos (alguns muito simpáticos, com orelhas
muito compridas) pequenas casas de madeira para os alo-
jar, assim como máquinas para cortar as cenouras em fatias
finas. A Exposição de avicultura estava muito bonita.

MUSEU REAL DA ÁFRICA CENTRAL [b]

A visita ao museu, de aspeto imponente, interessou-me


muito. À entrada está um rinoceronte como que a guardar o
edifício. Na primeira sala há sobretudo girafas, elefantes e ma-
cacos, alguns do tamanho de um homem. Nas outras salas há
coleções importantes de peixes, pássaros, insetos e pedras.
A. Faria de Vasconcellos 119

Interessaram-me especialmente as salas em que estão


armas, ferramentas e outros instrumentos e objetos dos po-
vos indígenas, pois através deles podemos conhecer aspe-
tos curiosos da sua vida. As salas sobre a recolha da borra-
cha, os bosques do Congo e os diferentes produtos impor-
tados são também muito interessantes.
Tudo está muito bem exposto e deixámos o museu en-
cantados com a visita.

Noutro lugar um aluno escreve:


Para vermos com os próprios olhos documentos sobre pré-
história e zoologia, organizámos uma visita de estudo de cinco
dias. Fomos ao jardim zoológico de Antuérpia munidos de
um mapa, visitámos todos os pavilhões; depois fomos ao mu-
seu de história natural de Bruxelas que é muito interessante.

Em botânica os mesmos procedimentos levam-


nos aos mesmos resultados. O estudo é concreto e
vivo. Os nossos campos agrícolas, bosque, pomar,
jardim, horta, fornecem-nos uma ampla colheita de
documentação. Já referimos que os nossos alunos
fazem eles próprios – ajudados, quando é preciso,
pelos trabalhadores rurais necessários – a explo-
ração da área rural da escola cujos produtos são
muito abundantes e variados. Isto permite-lhes não
só estudar as características exteriores mas também
a evolução e desenvolvimento das plantas. Ao
mesmo tempo, como eles cavam, estrumam, plan-
tam, semeiam e recolhem, também se apercebem
dos processos técnicos de trabalho e isto também
120 Uma escola nova na Bélgica

permite muitas aplicações de física, de meteorolo-


gia, de mecânica e de química.
a) Jardins dos alunos
Além destes trabalhos gerais de agricultura e
horticultura, os mais pequenos e os do meio têm
os seus próprios jardins, onde:
1. cultivam plantas para alimentação e orna-
mentação.
2. fazem experiências (sacha, drenagem, semen-
teira, reprodução de plantas por estaca, mergu-
lhia e enxertia, poda, observações sobre a influên-
cia da exposição, fertilizantes, luz).
Estas observações que conduzem ao estudo
metódico e regular dos jardins são também regis-
tadas nos «cadernos de observação».
b) Trabalhos práticos
As dissecações de plantas, experiências de la-
boratório (nas raízes, caules, folhas, sementes),
determinações de espécies, permitem abordar os
problemas de anatomia e fisiologia dos vegetais
em condições particularmente reais.
c) Visitas de estudo
O nosso meio, tão rico do ponto de vista botâni-
co, fornece abundantes factos, observações, expe-
riências. O Jardim Botânico de Bruxelas [a], o mu-
seu florestal contíguo, as grandes estufas da re-
gião de Gent, o Museu Real da África Central [b],
A. Faria de Vasconcellos 121

permitem mostrar aos nossos alunos o que a flora


estrangeira, exótica, apresenta de mais interessante.
A visita a estabelecimentos privados, a grandes ex-
plorações agrícolas, jardins, campos agrícolas e hor-
tícolas e a fábricas de transformação de produtos
vegetais completa o quadro dos recursos botânicos.

Em geologia aplicam-se os mesmos procedi-


mentos e meios.
a) Experiências. Reproduzimos experimental-
mente diversos fenómenos geológicos: ação geo-
lógica da atmosfera (desagregação de rochas pelo
gelo), água (infiltração, escoamento), rios, movi-
mentos do solo.
b) Observações, visitas de estudo. Através de ca-
minhadas e visitas de estudo, levamos a criança a
observar diretamente os fenómenos geológicos
mais diversos: visita a dunas, pedreiras, minas,
grutas, cortes no terreno [a]; observação sobre a es-
cavação das fundações de uma casa, de um poço;
estudos sobre estratificações e sedimentação de
rochas, fenómenos de erosão em encostas de coli-
nas, galerias subterrâneas.
O relato de algumas visitas de estudo torná-
lo-á mais vivo:
VISITA DE ESTUDO A FURFOOZ
... No dia seguinte, apanhámos o comboio para Namur.
De Namur a Dinant o vale do Meuse é magnífico com as suas
122 Uma escola nova na Bélgica

rochas escarpadas e falésias. De Dinant fomos para Furfooz.


É um excelente passeio. Seguimos o Meuse até à confluên-
cia do rio Lesse, depois até Walzin... Chegámos a Furfooz...
visitámos as diferentes atrações dos arredores: as grutas, o
poço dos bezerros, o buraco que deita fumo, o campo ro-
mano. As grutas são muito pequenas. Visitámo-las com ve-
las na mão. Foi muito engraçado; quase que parecíamos ho-
mens pré-históricos. O poço de água é um sifão natural que
comunica com o rio Lesse. Está ao mesmo nível do rio e
sobe ou desce conforme o nível das águas do Lesse. O len-
çol de água subterrâneo deste sifão tem uma profundidade
de 15 m e acede-se-lhe por uma fresta estreita entre rochas.
O buraco que fumega situa-se entre o Lesse e o poço de be-
zerros, sobre o lado de uma montanha, e chega-se lá por ca-
minhos de cabras. Este buraco comunica, diz-se, com o lençol
de águas subterrâneas que se estende entre o Lesse e o sifão
natural. Dizem que fuma porque no inverno exala vapores. É
o mesmo fenómeno que ocorre com a respiração no inverno.

VISITA DE ESTUDO A UCCLE


... Primeiro, seguimos na direção de Uccle onde se encon-
trava uma ravina que tinha um grande interesse do ponto
de vista geológico e pré-histórico. Esta ravina tinha cerca de
400 m de comprimento, 100 de largura e 8 de profundidade.
Para lá chegar, seguimos por um pequeno caminho muito ín-
greme logo no início; encontrámos documentos geológicos
que recolhemos para a nossa coleção, mas havia poucos,
porque os melhores já tinham sido levados pelos geólogos.

VISITA A UMA PEDREIRA DE PÓRFIRO:


QUENAST
Dos dois modos diferentes da formação da crosta terres-
tre, um é visível em toda a parte na superfície do solo do
A. Faria de Vasconcellos 123

nosso país: são terrenos sedimentares formados por antigos


depósitos submarinos; o outro, a rocha eruptiva, só aparece
em dois lugares não muito distantes um do outro – Quenast
no Brabante e Lessines no Hainaut. Aí num espaço muito pe-
queno é extraído pórfiro que quase nunca está à superfície;
foi preciso escavar com escavadoras uma camada mais ou
menos espessa de argila. É uma pedra cinza-azul, por vezes
acastanhada por óxidos, que só muito grosseiramente se
pode moldar. Utiliza-se para pavimentar ruas e é usada na
Bélgica em todo o lado com esta finalidade; mesmo no estran-
geiro é muito apreciada. Em Quenast a extração é feita em
duas pedreiras: «a antiga» e «a nova». Visitámos as duas, co-
meçámos pela nova, mais pequena, que é explorada há
pouco tempo. Salvaguardadas as devidas proporções, as
duas são semelhantes. A antiga emprega 3250 trabalhadores,
a nova só 500. Na maior a sala das máquinas, que põe em an-
damento todas as vagonetas, é enorme. A pedreira ocupa um
quilómetro de comprimento, meio de largura e 100 m de pro-
fundidade. É tão grande que, vistos de um lado para o outro,
os homens parecem mosquitos, nem os vemos à primeira
vista. Toda a pedreira é dividida em socalcos onde é feita a
exploração. A pedra vem em grandes blocos cortados em ân-
gulos mais ou menos direitos pelos explosivos. Esses grandes
blocos são transportados em vagões que sobem planos incli-
nados e passam sob um túnel onde serão trabalhados. O com-
primento total das enormes correntes que puxam os vagões é
de 30 km. Num espaço de 6 ou 7 hectares ficam alinhadas as
cabanas de colmo onde os homens trabalham. Transformam
os grandes blocos em paralelos ou cubos de calçada e carre-
gam-nos em vagões para serem comercializados.
Cada ano são vendidos 65 milhões. Todos os resíduos
passam por moinhos e britadores que os transformam em
cascalho de todos os tamanhos, desde pedra para construir
124 Uma escola nova na Bélgica

o lastro das estradas, até ao pó fino que entra na composição


do betão armado.
Cento e quatro homens trabalham constantemente em
52 forjas a preparar brocas para fazer furos para explosivos.
Também fazem numerosas reparações nos equipamentos.
Existem vários refeitórios onde os trabalhadores co-
mem; um de 900 lugares, o outro de 1200. Em cada mesa
existe um forno que permite aquecer os alimentos.
A área ocupada por todo o edifício é de 3000 hectares.

VISITA A UMA PEDREIRA DE ARDÓSIA:


BERTRIX
O último dia foi passado a visitar uma pedreira de ar-
dósia. Após uma viagem interminável, chegámos a Ber-
trix. Depois de nos informarmos, as pedreiras encontram-
se a uma boa meia hora a pé da vila. Pelo caminho, um
jovem pedreiro que nos acompanha alertou-nos para o pe-
rigo de descer estas pedreiras, no entanto, continuámos.
O caminho é muito bonito; à distância, vemos os picos
de Semois. Passámos por um bosque que nos leva às duas pe-
dreiras de ardósia. O nosso guia aconselhou-nos a visitar a
mais pequena, onde seríamos mais bem recebidos. De facto,
fomos muito bem recebidos e tranquilizaram-nos de que não
havia perigo de descer a pedreira, se fôssemos cuidadosos.
Assistimos a uma explosão com dinamite, num corre-
dor inclinado, recentemente começado e destinado à ven-
tilação das galerias subterrâneas.
Esperámos que os trabalhadores saíssem da pedreira
para depois descermos nós.
Cada um levou uma pequena lâmpada de acetileno que
os trabalhadores nos emprestaram. Descemos por uma escada
para um corredor com 45° de inclinação: a entrada da mina.
A. Faria de Vasconcellos 125

Este escuro corredor em linha reta mede 80 m de profundi-


dade e é o ponto de partida para numerosas galerias laterais.
A 21 m encontra-se a menos profunda, a que visitámos. É
quase horizontal e tem apenas uma escada aqui e ali para su-
bir ou descer. Aqui tivemos oportunidade de examinar a ar-
dósia com a luz das nossas lanternas: uma pedra escura azu-
lada, com camadas muito finas que se separam facilmente. A
exploração faz-se da seguinte maneira: desde que se inicia a
secção da galeria de pedra, considerada apta para se tornar
em ardósia, cava-se com dinamite na direção das camadas
(que têm aqui 35° de inclinação) um corredor com 30 cm de es-
pessura, 10 a 20 m de largura e cerca de 15 m de profundida-
de. Retiram-se blocos de 100 a 200 kg que os ajudantes trans-
portam às costas até às vagonetas que os levam à superfície.
Depois de cavarem estes corredores com 30 cm, são
alargados. Preenchem-se os buracos com os desperdícios,
cavando-os da mesma maneira, mas desta vez em altura,
elevando o piso à medida que o trabalho é executado para
manter sempre a mesma distância dos blocos a retirar.
Por vezes formam-se verdadeiras câmaras subterrâneas,
sustentadas apenas por um ou dois pilares de resíduos.
A solidez da ardósia é tanta que podemos espaçar os
pilares de 60 a 70 m sem o menor perigo.
Os locais mais profundos onde se pode chegar nestas
minas estão geralmente a 250 ou 275 m abaixo do nível da
terra; mais abaixo a pedra é muito dura para ser utilizada.
Voltemos agora à luz do dia.
Várias filas de cabanas baixas abrigam cada uma qua-
tro trabalhadores que acabam de retomar o trabalho: um
com um ferro e um martelo pesado quebra a pedra em blo-
cos do tamanho de uma lousa; o segundo divide o bloco
em camadas finas com uma cunha de ferro e um martelo;
o terceiro dá-lhes a forma e o quarto faz o acabamento.
Numa delas, duas máquinas cortam mecanicamente
126 Uma escola nova na Bélgica

os lados, o que reduz os resíduos muito numerosos


quando esta operação é feita à mão. No exterior há várias
ardósias terminadas, de tamanho e forma diferentes,
prontas para serem vendidas.
A descrição destas visitas mostra como a assi-
milação das coisas vistas no local, em ambiente na-
tural, se torna clara, precisa e durável. Permane-
cem vivas na memória e resistem com êxito ao
fluxo nivelador do esquecimento. [a]
Destaco alguns meios auxiliares comuns às três
áreas:
a) Coleções
As coleções são absolutamente indispensáveis;
fixam as ideias, materializam-nas de uma forma
palpável. Estimulado por esses objetos, o aluno
volta aí com frequência e a sua curiosidade é man-
tida viva. Mas para isso há duas condições: 1.º ser
feita pelo próprio aluno para responder a um inte-
resse natural; 2.º representar tanto quanto possível
o meio ambiente, o quadro natural dos objetos
classificados (animais, plantas ou rochas) sem os
quais perderia todo o interesse vivo e prático.
Um exemplo retirado do Boletim dos alunos:
A MINHA CAIXA DE INSETOS
No ano passado, cada um dos mais novos fez na carto-
nagem uma caixa para os insetos que apanhámos. Os
meus eram libélulas, escaravelhos de água e hidrofilídeos.
A. Faria de Vasconcellos 127

Depois de os estudar, quisemos conservá-los. Mas em vez


de picarmos na caixa, como se costuma fazer quando se
coleciona, eu fiz de outra maneira. A minha caixa repre-
sentava um lago com uma pequena ilha, já que os meus
insetos vivem na água e as libélulas voam por cima deles.
Os meus colegas também tinham caixas que simulavam o
local onde os insetos vivem. Havia caixas para grilos, joa-
ninhas, carochas, necróforos, escaravelhos.

b) Trabalhos manuais
A cartonagem (confecção de herbários, de cai-
xas para insetos), a modelagem (de plantas e de
animais), a carpintaria (confecção de terrários) es-
tão, como já dissemos, sempre associadas ao dese-
nho, cujo papel é essencial (desenho a tinta, a co-
res) para fixar, exprimir e ilustrar as aquisições e
descobertas dos nossos jovens naturalistas.
c) Sociedade de história natural
Já citámos (p. 58) esta sociedade que agrupa, fora
da sala de aula, os esforços dos que se interessam
de um modo particular pelas ciências naturais: or-
ganização de caminhadas, visitas de estudo, festas
da natureza, estudos mais aprofundados sobre te-
mas relativos à história natural, monografias de
plantas, de animais. A sociedade reúne regular-
mente. Para ser admitido, é necessário apresentar
um trabalho pessoal de observação ou experiência.
d) Material para os trabalhos práticos
Cada aluno tem para os trabalhos práticos de
128 Uma escola nova na Bélgica

zoologia, botânica e geologia o material necessário


para as observações e experiências: um pequeno mi-
croscópio, uma lupa, alicates, um pequeno estojo de
dissecação, um sacho, redes de captura, prensas de
flores. Equipado com os instrumentos e ferramentas
necessários, pode envolver-se em pesquisas pessoais.

2. Física e química
Aqui também vamos concretizar os princípios
que nos são caros: recorrer à atividade pessoal do
aluno, levá-lo a observar e a experimentar sobre
factos da realidade concreta e a construir explica-
ções, sínteses, ideias gerais.
a) Observação e experiência
A física e a química são ciências experimentais
e de observação, por isso os alunos são colocados
diante dos factos. Acabámos com o ensino mera-
mente verbal. Os laboratórios constituem o centro,
o ponto de partida donde irradiam as ideias para
aplicarem no exterior, onde são necessárias as suas
observações e experiências.
b) Caracterização e desenrolar da experiência, o
papel do professor
O princípio geral da experimentação é que esta
deve ter um carácter de pesquisa pessoal. Cada
aluno, com o texto onde constam as experiências a
A. Faria de Vasconcellos 129

fazer, deve por si próprio questionar os factos,


construir os aparelhos e dispositivos necessários
para o efeito, verificar os princípios, identificar as
leis. Deve redescobrir, reinventar. Trabalhando so-
zinho, o aluno é obrigado a resolver os problemas
pelos seus próprios meios; deve recorrer ao seu
pensamento, à sua ação; a sua destreza manual e as
suas faculdades criativas ganham com esta ativi-
dade pessoal. O papel do professor é apenas o de
orientar os alunos, observar o desenvolvimento da
experiência e não a pensar e a agir por eles. Não con-
sideramos como experimental o ensino baseado
apenas na experiência realizada pelo professor
diante dos alunos. Para nós, não é por ouvir dizer
nem ver fazer que os alunos adquirem os conheci-
mentos, mas pensando e agindo por si próprios.
Como se desenvolve uma experiência? Cada
aluno tem uma folha, o guia curricular (syllabus [a])
com o detalhe das operações a realizar. Estas in-
dicações estão apresentadas no topo de uma série
de colunas que o aluno deve preencher:
1. Texto da experiência para fazer;
2. Precauções a tomar, riscos;
3. Equipamento necessário;
4. Descrição do desenvolvimento da experiên-
cia; observações, comentários, constatações;
5. Conclusões;
130 Uma escola nova na Bélgica

6. Desenho dos instrumentos utilizados;


7. Aplicações práticas;
8. Criação de diferentes procedimentos, incluindo
experiências e instrumentos, que permitem levar
à verificação do mesmo princípio. (Esta rubrica
revela muitas vezes factos muito interessantes so-
bre o espírito do método científico dos alunos.)
As conclusões resultantes de um grande número
de observações e experiências pessoais são de se-
guida ligadas, coordenadas e sistematizadas num
todo científico, com o recurso a explicações e deta-
lhes complementares fornecidos pelo professor.
Além das experiências realizadas individual-
mente, há experiências coletivas, quando por ra-
zões de ordem educativa ou outra, é necessário
combinar os esforços pessoais dos alunos com vista
a um resultado comum. Mas nesta organização co-
letiva, cada aluno, ao ter uma tarefa específica de
acordo com o princípio da divisão do trabalho, fica
a par de todos os detalhes da operação, através de
várias discussões que se vão sucedendo.
Recorrendo ao Boletim dos alunos, posso citar
dois exemplos de experiências em que se recorreu
à intervenção coletiva da turma. Têm ainda a van-
tagem de mostrar o carácter do nosso ensino ba-
seado na atividade pessoal do aluno.
A. Faria de Vasconcellos 131

A EXPERIÊNCIA DE FOUCAULT [a]


Esta experiência foi realizada na sala de modelagem,
antiga capela do castelo. No dia 21 de dezembro de 1912, de
manhã, depois de alguns dias de trabalho, terminámos os
preparativos para a experiência. Fizemos um círculo com um
metro de diâmetro. Foi feita uma pequena bancada de ci-
mento sobre a qual a ponta da bola devia desenhar o seu per-
curso. A suspensão foi fixada com gesso à volta de uma mol-
dura que anteriormente estava destinada para um candela-
bro. Esta suspensão era feita de madeira. Foi feito um buraco
no centro, no qual passava um tafulho de madeira cortado
ao meio para prender a corda que devia sustentar a bola.
A bola de chumbo foi fundida na forja da escola na vés-
pera da experiência. Pelo centro da bola passámos um arame
pontiagudo de um lado e com um gancho do outro, para
poder amarrar o fio. A extremidade pontiaguda devia de-
senhar marcas na bancada de cimento. A bola pesava 1,4 kg.
O comprimento do pêndulo, do ponto de fixação ao
centro da bola, era de 5,825 m.
Na manhã de 21 de dezembro de 1912 queimou-se o fio
que segurava a bola a um prego na parede a 2,459 m de dis-
tância do centro e perante alunos e professores o pêndulo
começou as suas longas oscilações. A experiência permitiu-
nos atingir o objetivo: vimos que a terra rodava sempre.

INSTALAÇÃO DO NOSSO POSTO DE T.S.F. [b]


Já falámos vagamente da instalação da telegrafia sem
fios na escola no ano passado. No estudo sobre eletricidade,
a questão foi novamente discutida. Depois das férias da Pás-
coa, a decisão foi tomada e o aparelho encomendado. En-
quanto esperávamos, estudámos longamente a questão.
Lembro que um aparelho receptor de T.S.F. pode incluir uma
antena que recebe as ondas emitidas pelo posto transmissor.
132 Uma escola nova na Bélgica

Estas ondas são conduzidas por um fio com uma bobina de


autoindução. Na bobina, um cursor, com mais ou menos vol-
tas dependendo da distância e comprimento da onda do
posto transmissor que queremos ouvir, leva a onda ao de-
tetor constituído por um cristal de galena. Em seguida, um
fio leva-a à tomada de terra onde ela é neutralizada.
Quando o aparelho chegou, a primeira pergunta foi:
«Onde colocar a antena?»
Uns achavam que deveria ser colocada nos choupos al-
tos do jardim, outros queriam passá-la por cima do telhado
da escola; os postes seriam de ferro cimentados à volta.
Feitas diversas propostas, lembrámo-nos de repente de
usar a superfície ampla do nosso campo de luzerna. Dois
postes suportariam a antena que atravessaria a pradaria. A
proposta foi aceite e foram fixados pinheiros com cerca de
12 metros: um contra a parede do laboratório de física e o ou-
tro contra a empena da casa de um camponês. Mas o homem
colocou alguns entraves e teve de se deslocar o poste. Foi me-
lhor assim. Colocámo-lo 15 m acima nos nossos terrenos agrí-
colas, localizados no outro lado do terreno municipal.
A autorização para passar com os fios sobre a estrada
foi-nos dada pelo «Conselho dos autarcas e vereadores do
município de Bierges». Pedimo-la diretamente ao secretário.
Ocupámo-nos do sistema de fixação da antena. Fize-
mos dois colares que aparafusámos aos postes.
No poste do laboratório de física foi colocada uma rol-
dana para se poder esticar ou baixar a antena à vontade.
A antena é composta por três fios de bronze fosforoso
separados à distância de 1 m por uma peça em pinho im-
pregnado de alcatrão. Os fios têm 45 m, sendo o compri-
mento total da antena de 135 m, o que nos permite ouvir as
principais emissões em francês, alemão, inglês. A antena está
A. Faria de Vasconcellos 133

isolada em cada extremidade por três cordas parafinadas


com vários isoladores. Os três fios estão ligados entre si por
um quarto a 1 m do poste; a este estão soldados em forma de
Y dois outros condutores que comunicam com um cabo iso-
lado ligado ao aparelho. O aparelho está no laboratório em
cima de uma consola feita por nós na carpintaria. Ao lado
está uma secretária, feita também por nós, onde podemos
registar as notícias transmitidas. As soldaduras foram feitas
com chumbo comum, mas entretanto soubemos que existem
sistemas que têm melhores resultados e voltaremos a fazer
as ligações antes das férias. O fio de terra ligado à canaliza-
ção metálica de água não é isolado; como é perigoso em caso
de tempestade, vamos substituí-lo por um cabo especial.
Esta instalação levou muito tempo; passámos aqui mui-
tas tardes e noites. Foi uma grande alegria quando tudo es-
tava terminado, tudo pronto, ouvimos os primeiros crr...
crr... da Torre Eiffel. Um homem a 250 km de distância, sen-
tado no seu escritório, apoiava mais ou menos tempo numa
pequena alavanca e cerca de um milésimo de segundo de-
pois chegava um som aos nossos ouvidos. É maravilhoso!
Agora pensamos assinar uma revista de T.S.F. para es-
tarmos informados de todas as novidades que dizem res-
peito a esta recente invenção que nos interessa muito.

c) Os trabalhos práticos livres


Além do tempo passado na turma, o aluno con-
tinua a realizar pesquisas pessoais sobre questões
de física ou de química que lhe interessam parti-
cularmente. São os trabalhos práticos livres.
d) Livre disposição do equipamento
As experiências individuais em sala de aula
134 Uma escola nova na Bélgica

ou os trabalhos livres implicam que se manuseie


livremente instrumentos, produtos e ferramentas
dos laboratórios e das oficinas. O aluno que os
usa fica no entanto com a responsabilidade real
por eles, o que educa a sua atenção e paciência,
ao aprender a manuseá-los, a desembaraçar-se e
a prevenir acidentes.
e) Trabalhos manuais, fabrico de aparelhos e dis-
positivos
Os trabalhos manuais são constantemente asso-
ciados à física e à química. Para realizar experiên-
cias, os próprios alunos fabricam os instrumentos
indispensáveis. A lista de tudo o que eles fizeram se-
ria longa: alavancas, roldanas, aparelhos para a de-
monstração das leis da queda dos corpos e do para-
lelogramo de forças, planos inclinados, máquina de
Atwood, prensas, bombas, barómetros, higróme-
tros, máquinas a vapor, condensadores, caldeiras,
aeroplanos de pequena dimensão, níveis de água,
pilhas, telefones, telégrafos, pêndulos, baterias… E,
além dos aparelhos, os alunos criam os dispositivos
experimentais necessários para as suas pesquisas.
Ao mesmo tempo que criam aparelhos simples,
aprendem também a utilizar instrumentos de pre-
cisão que os laboratórios colocam à sua disposição.
Já reparei na dupla importância que a utilização
A. Faria de Vasconcellos 135

de instrumentos de precisão representa do ponto


de vista científico e moral.
1.º Mostrar, por comparação com os instru-
mentos que o aluno constrói, os progressos feitos
pela técnica científica moderna em matéria de
trabalho e engenho; dar ao espírito do adoles-
cente, muitas vezes vacilante, hesitante e pronto
a duvidar, certezas experimentais que os instru-
mentos imprecisos não permitiriam adquirir;
2.° Habituar os alunos a medidas específicas e
rigorosas, acentuar o carácter científico dos méto-
dos. A este respeito, damos uma grande impor-
tância às experiências quantitativas, às expressões
numéricas que dão rigor aos dados.

f) Aquisição do espírito e da prática do método


científico
Os métodos de ensino que utilizamos não pre-
tendem levar à simples acumulação de factos na
memória, mas a que o aluno compreenda o espí-
rito do método científico: espírito de pesquisa e
de controlo.
As noções científicas decorrem de experiências
simples, dados conhecidos, factos correntes.
Usando métodos de observação e de experi-
mentação descritos, partimos do concreto para o
abstrato, do particular para o geral. Levamos o
136 Uma escola nova na Bélgica

aluno a tirar por si próprio, do conjunto de fenó-


menos que os seus olhos observam e que as suas
mãos executam, as conclusões que resultam em
leis, por outras palavras, visões sintéticas, grandes
quadros de ideias gerais.
Ao estudarem física e química, desde o início,
não por si próprias, mas em função de conheci-
mentos essenciais e sobretudo em aplicações prá-
ticas, os alunos crescem gradualmente por referên-
cia a coordenadas cada vez mais regulares, preci-
sas e definidas, até à fase da classificação, onde os
fenómenos são estudados em toda a sua ampli-
tude, debaixo de uma perspetiva científica autó-
noma e num encadeamento sistemático.
g) Carácter prático da educação: descobertas da
vida industrial, visitas a fábricas, trabalhos públicos
Realizar experiências, fazer pesquisas pessoais,
fazer instalações reportando-se à física e à química,
construir aparelhos, dispositivos para encontrar
uma lei com o auxílio dos seus elementos primor-
diais, isolar um dado, redescobrir o conceito são
trabalhos de laboratório de grande interesse.
Mas ao mesmo tempo é indispensável que o
aluno contacte ao vivo com a vida industrial, visi-
tando fábricas e trabalhos públicos, a razão prática
dos seus estudos, esforços e pesquisas científicas.
A. Faria de Vasconcellos 137

Embora o ensino se apoie em aplicações correntes


de física e de química, em fenómenos e ideias que
implicam os processos industriais, o aluno com-
preende melhor com as visitas de estudo para que
servem os seus estudos e os seus trabalhos. Entra em
contacto direto com a componente técnica e cientí-
fica da física e da química nas suas diversas apli-
cações industriais, mas também com o elemento
social da divisão e da organização do trabalho.
As visitas de estudo que fazemos, sem nos
cansarmos, são extremamente importantes.
Vamos novamente retirar do Boletim dos alunos
relatos que eles fazem dessas viagens. Publico na
íntegra alguns desses relatórios que permitem
avaliar melhor os conceitos adquiridos.

TRÊS DIAS DE VISITA DE ESTUDO


SOBRE A HIDRÁULICA

a) Em LA LOUVIÈRE [a]

Neste trimestre as visitas de estudo destinaram-se à fí-


sica. Acabámos de estudar a prensa hidráulica e, como
aplicação interessante, não encontrámos nada de melhor
do que visitar os elevadores hidráulicos de La Louvière.
A 27 de janeiro apanhámos o comboio para La Louvière,
onde chegámos pelas dez e meia, e fomos para o centro do
canal. Este canal liga os ramais do canal Bruxelas-Charleroi
138 Uma escola nova na Bélgica

ao canal Mons-Condé e, como indicava a exposição dos mo-


tivos de apoio ao projeto de lei apresentado em 1877, «permi-
tirá utilizar, no melhor dos interesses de diversas produções
industriais, os produtos variados das bacias de carvão belgas.»
Podemos dizer, com um engenheiro, que, uma vez
concluído este canal, uma linha ininterrupta de navegação
ligará de Condé a Liège todas as bacias de carvão belgas.
O carvão de Mons terá comunicações facilitadas para
o norte de França, Flandres, província de Liège e Holanda.
Depois de seguirmos o canal durante cerca de 15 minu-
tos e tirarmos fotografias, visitámos o elevador n.º 1 com o
mecânico-chefe, que respondeu prontamente às inúmeras
perguntas que lhe colocámos. Vou fazer um resumo das infor-
mações que apontei na sala de aula no dia anterior e no local.
Há uma considerável diferença de nível entre as duas vias
navegáveis unidas pelo canal do Centro: é de 89,477 m. Mas
esta diferença de nível, para um canal com apenas 21 km de
extensão, não é repartida uniformemente. Pode ser dividida
em duas partes bem distintas. A primeira de cerca de 70 m em
apenas 7 km, a segunda de cerca de 20 m ao longo de 14 km.
O elevador n.º 1 é composto por duas caldeiras metálicas
paralelas (reservatórios), movidas cada uma por um pistão
de ferro fundido com 2 m de diâmetro, dentro de uma prensa
de 2,10 m de diâmetro no interior. As caldeiras têm 5,80 m
de largura interior por 48 m de comprimento, com uma al-
tura de água de 2,40 m para as caldeiras ascendentes e de
2,72 m para as descendentes. Estes 32 cm de diferença de altura
de água formam um peso de 79 toneladas que é suficiente
para pôr a funcionar as caldeiras. Este excedente de água
é trazido pelo enchimento e evacuado no esvaziamento.
Um sistema de portas estanques retém a água nas cal-
deiras, por um lado, e no canal, pelo outro.
Para manobrar estas portas, armazena-se, sob o pistão
A. Faria de Vasconcellos 139

de um acumulador, água a 40 atmosferas por meio de po-


derosas turbinas impulsionadas por uma queda de água
de 17 m de altura, vinda da levada superior.
Em resumo, o elevador hidráulico é uma balança gi-
gante com duas bandejas que são as caldeiras. A duração de
uma manobra completa do elevador n.º 1, incluindo o
tempo necessário para a entrada e saída de dois barcos, um
subindo e outro descendo, é de 15 minutos, dos quais 2' 44''
para o movimento vertical das caldeiras. O custo total da
construção deste elevador foi de cerca de 500 000 francos.
Visitámos os elevadores n.os 2, 3 e 4. Estes estão em cons-
trução e são um pouco diferentes do primeiro. Fizeram-se al-
gumas alterações consideradas necessárias. O elevador n.º 1
está pronto desde 1888, mas só será inaugurado em 1915,
quando os outros elevadores e o canal estiverem terminados.

b) Em LA GILEPPE [a]
No segundo dia de visita fomos à barragem de La Gi-
leppe. Apanhámos o comboio para Dolhain e depois fomos
a pé até à barragem. É conhecido o motivo e como é que
esta barragem foi feita. Lembrarei apenas alguns aspetos.
Outrora, as fábricas de Verviers tinham de se contentar,
para as diferentes manipulações da lã, com uma água de qua-
lidade inferior e quantidade insuficiente do rio Vesdre, cujas
águas muito calcárias, muitas vezes impuras, não eram pró-
prias para a lavagem e tingimento. Era necessário remediar
esta situação desastrosa. E surgiu a ideia de fazer uma barra-
gem no vale de La Gileppe, formando um enorme reserva-
tório. Fez-se uma barragem com toda a segurança possível.
Eis alguns números: A altura da barragem é de 47 m, a
espessura é de 15 m no topo e 66 m na base. No topo mede
235 m de comprimento e no fundo do vale 82 m. É ligeira-
140 Uma escola nova na Bélgica

mente arqueado para ter mais resistência à pressão da água.


O volume total de alvenaria é de 258 323 m3, cujo peso é de
cerca de 800 000 toneladas. Para transportar essa massa por
caminho de ferro seria necessário 80 000 vagões de 10 tonela-
das, que formariam 2000 comboios de 40 vagões cada e ocu-
pariam, uns a seguir aos outros, um comprimento de 500 km,
o equivalente a mais de duas vezes a distância Arlon-Ostende!
No meio do cais num pedestal de 8 m encontra-se o
leão que tem 13,50 m de altura.
O lago retido pela barragem tem uma área de 80 hec-
tares e uma capacidade máxima de 12 238 916 m3. A cons-
trução da barragem custou sete milhões de francos. A pri-
meira pedra foi lançada em outubro de 1869 e, sete anos
depois, este gigantesco trabalho estava concluído.

c) Em ZEEBRUGGE [a]
Às 7 horas da manhã apanhámos o comboio na estação
do Norte. Chegados a Heyst, respirávamos com alegria o
ar revigorante da costa. Estava bastante frio. Zeebrugge
fica a 15 minutos a pé da Heyst. Fizemos a viagem em sete
ou oito minutos, com pressa para visitar o cais de Ze-
brugge, esta maravilhosa construção, infelizmente inútil.
Em estudo preliminar sobre o porto de Zeebrugge
aprendemos o seguinte:
A cidade de Bruges foi na Idade Média um dos portos
mais importantes do continente, chamavam-lhe ‘Veneza do
Norte’. Comunicava com o mar do Norte pelo Zwyn, braço
de mar que foi assoreando. Com ele desapareceu a reputa-
ção da cidade. Desde então chamam-lhe Bruges-a-Morta.
O rei Leopoldo II teve a ideia de a fazer reviver. Mas
para isso tinha de lhe dar acesso direto ao mar. Era neces-
sário não só prolongar o canal marítimo de Bruges para o
mar mas ainda criar na costa belga um porto de escala
A. Faria de Vasconcellos 141

capaz de atrair navios mercantes. Bruges não o tinha e a


obra realizada em Zeebrugge teria preenchido esta lacuna
se um erro nas previsões dos empresários, que segundo os
especialistas não se podia realizar, não tivesse tornado
quase inútil esta grande obra.
Fizeram uma espécie de enseada construindo um mo-
lhe que a cercava em três quartos. O molhe media 2487 m
de comprimento. Separa-se da costa, segue para leste fa-
zendo uma curva e termina com uma parte paralela à costa.
O molhe tem três partes: a primeira, junto à costa, forma
um paredão de 3 m de largura e, ao lado, fez-se um aterro
com 11 m de largura para passagem de uma via dupla de
caminho de ferro. A segunda, que lhe dá continuidade, tem
uma abertura de 250 m, para permitir a circulação das cor-
rentes na baía, abrigada pelo molhe, e diminuir o depósito
de sedimentos. A terceira tem duas partes: a primeira, com
1715 m de comprimento, tem uma plataforma de 74 m de
largura, com cais de acostagem para navios do lado da baía,
onde existem guindastes elétricos, hangares, presentemente
não utilizados; a segunda atua como quebra-mar e termina
com uma junta, na qual é colocada uma torre com um farol.
Este trabalho gigantesco custou 38 milhões e foi feito
com uma grua elétrica potente, o Titão, que colocava os
blocos de betão com 55 toneladas. Demorou seis anos.
DEZ DIAS DE VISITAS DEDICADAS
À FÍSICA E À QUÍMICA, ÀS INDÚSTRIAS
DERIVADAS DO SOLO
Visitámos as fábricas Cockerill (o Creusot belga), ofi-
cinas de construção elétrica de Charleroi, fornos de ci-
mento e cal em Gaurain-Ramecroix, refinaria de açúcar
em Chassart, fábricas de vidro em Jumet, de mármore em
Merbes-le-Château, de telhas de cerâmica em Hemixen,
de curtume em Stavelot, pedreiras de pórfiro, de ardósia.
142 Uma escola nova na Bélgica

a) Os estabelecimentos Cockerill… O minério usado para o


fabrico de máquinas vem da Bélgica e de outros países. O
carvão é extraído na Bélgica... Os minerais carregados em
vagões de tração elétrica são descarregados em altos-fornos.
Os materiais utilizados para derreter o ferro são manganês
e coque. São carregados continuamente sete altos-fornos.
Com o auxílio de máquinas ventiladoras, é enviado ar quente
para os altos-fornos para ativar o sistema de aquecimento e
assim aumentar a produção do metal. São treze máquinas,
seis a vapor e sete acionadas pelos gases residuais gerados
a partir dos altos-fornos. As escórias são desembaraçadas
para fabricar tijolos (4 a 5 milhões) e cimento (20 000 tonela-
das), ditos de refugo. O desenvolvimento da Sociedade
Cockerill foi favorecido pelo facto de ser instalada sobre
abundantes camadas de carvão e, embora as minas tenham
sido ativamente exploradas durante mais de meio século,
as reservas ainda são consideráveis. Mas a Sociedade não
extrai somente carvão, também o compra às minas de car-
vão próximas. A transformação do carvão em coque faz-se
através de 3 baterias de fornos do sistema Semet-Solvay. Os
gases queimados aquecem caldeiras cujo vapor aciona mar-
telos, prensas de forjar e rodas para mover vagonetas. O gás
que sobra faz funcionar a Central Elétrica n.º 11 de 2000 HP.

Segue uma lista das principais minas em cujas


concessões participou a Sociedade Cockerill e
que lhe permitiram contar com o fornecimento de
minerais para um período de 100 anos.
Voltemos ao ferro. Funde, torna-se líquido e branco como
leite. Flui a todas as horas. Tivemos a sorte de o ver fluir. O
metal derretido cai em lingoteiras lançando luzes deslum-
brantes. Uma pequena máquina transporta-o para a sala ao
A. Faria de Vasconcellos 143

lado, para o conversor. Ali transforma-se o ferro em aço atra-


vés de vários processos, incluindo os de Bessemer e de Mar-
tin. Em seguida, passa para o forno Pits que o mantém à tem-
peratura necessária até ir para o laminador. Uma grua enor-
me transporta-o pelo ar com pinças e o monstro de fogo sobe
e avança em direção ao laminador. Aí é esmagado, compri-
mido, alongado e tem outras torturas do género. O bloco baixa
e logo duas alavancas, chamadas rippers, se erguem e empur-
ram-no até aos rolos de ferro que o esmagam sem piedade. O
bloco passa entre dois enormes rolos que o achatam. A ope-
ração repete-se várias vezes e o bloco de aço vai-se alongando
como uma serpente de ferro. Finalmente o aço sai destes ma-
xilares horríveis e fica apenas uma chapa fina. Nem todos os
lingotes passam pelo laminador, alguns vão diretamente
para o martelo-pilão ou para a prensa hidráulica. Pontes ro-
lantes elétricas vêm buscá-los ao pé do forno e levam-nos até
à bigorna do martelo-pilão, e aí o lingote é forjado, aplanado
e toma a forma desejada. Vimos uma grande coluna de ferro
vermelho de 15 m de comprimento e 1 m de espessura: era o
eixo do motor de um navio. A 20 m aquecia tanto que era pre-
ciso colocar a mão sobre os olhos. Quando as peças grandes
têm que ser forjadas várias vezes são aquecidas em fornos es-
peciais. A forjadura em prensa hidráulica, onde são amassa-
das peças enormes de metal incandescente, é feita sem ruído
nem choque. É a vantagem da prensa em relação ao martelo-
pilão, que sacode tanto com os batimentos que chega a pro-
vocar a desintegração da textura homogénea do aço. Nas for-
jas grandes há três prensas de 2000 toneladas cada, duas para
peças grandes e a terceira para fazer calotas para cúpulas.
Depois de terem sido forjadas, as peças grandes e peque-
nas passam para a oficina de precisão onde são acabadas ao
décimo de milímetro. É uma sala enorme cheia do barulho de
máquinas, onde existem máquinas de furar, plainas mecâni-
144 Uma escola nova na Bélgica

cas, fresadoras, escareadores, serras de fita, discos de rotação.


Todas estas máquinas trabalham com a energia elétrica for-
necida pela Central n.º 1. Algumas alisam peças redondas,
canhões, por exemplo, tanto externa como internamente.
Fomos de seguida ver o fabrico de porcas e parafusos.
O aluno descreve o processo.
Passámos para a sala de montagem de motores, turbinas.
É numa outra oficina que se montam as locomotivas. A so-
ciedade Cockerill fornece-as a todos os países. Há também
uma oficina dedicada à construção de canhões de tiro rápido.
A Sociedade Cockerill instalou em Hoboken um esta-
leiro onde já foram construídos vários barcos…
b) Visita a uma fábrica de azulejos de faiança e de cerâmica:
Hemiksem
Chegámos à vila de Hemiksem. Informámo-nos sobre o
caminho a seguir e logo vimos ao longe o impressionante
conjunto de chaminés e edifícios enormes de fábricas. Cami-
nhámos depressa porque estávamos curiosos. Começámos
a ouvir todo o tipo de barulho: o silvo de pequenas locomo-
tivas, o cicio de vapor, o zumbido de máquinas... O guia co-
meçou por nos mostrar a parte da frente dos barracões, onde
o caminho de ferro descarrega as matérias-primas necessá-
rias ao fabrico de azulejos: caulino, argila pura, branca e que-
bradiça, areia e feldspato. Estes diferentes materiais são mis-
turados em proporções determinadas e enviados para o
moinho onde são triturados e depois lavados em grandes cu-
bas. Destas sai uma pasta homogénea bege que vai para fil-
tros prensas, de onde sai em forma de bolos redondos, que,
depois de secarem em armários especiais, passam por uma
turbina moedora que os reduz a pó de grão muito fino. Este
é transformado em moldes de ferro de grandes prensas em
azulejos de diferentes formas ou em pequenas barras que
A. Faria de Vasconcellos 145

um pequeno aparelho corta em pedaços para fazer mosai-


cos. Em seguida os azulejos são empilhados em cassetes de
barro refratário que são colocadas no forno e submetidas
durante um certo número de horas a uma temperatura de
1000 graus. Após arrefecimento, as peças estão prontas para
serem decoradas. Algumas passam, em tapetes rolantes, por
um cilindro que as reveste com um esmalte cuja água é ab-
sorvida de imediato. A matéria sólida permanece à superfí-
cie para derreter no calor do forno e formar uma camada
fina vidrada. O esmalte de várias cores é posto em azulejos
decorados em relevo ou feitos à mão com seringa e pincel.
Os azulejos são novamente cozidos, escolhidos, emba-
lados, armazenados e estão prontos para expedição.
Depois da fábrica de azulejos em faiança, visitámos
oficinas de azulejos em cerâmica. É usado o mesmo pó, só
que é ele que é colorido e não o azulejo… O que distingue
ainda a cerâmica é que os azulejos são cozidos apenas uma
vez e durante muito menos tempo… Deixámos esta fá-
brica, que produz 250.000 azulejos por dia, depois de ter-
mos visitado as forjas, as lojas, as oficinas onde são feitas
as caixas e aquelas onde se fazem os moldes.

c) Visita a uma oficina de mármore: Merbes-le-Château


... Começámos logo a visita à oficina de mármore. O
guia mostra-nos o local onde se encontram acumulados os
diferentes blocos de mármore (mármore branco italiano,
mármore vermelho, Comblanchien, roxo norueguês) e os
armazéns para guardar os mármores sensíveis ao frio e ao
sol, por exemplo, um determinado mármore preto belga.
De seguida parámos muito tempo na central elétrica que
produz e envia eletricidade para os diferentes motores das
oficinas. Atualizámos aí conceitos sobre eletricidade, a que
tínhamos dedicado algum tempo durante dois trimestres.
146 Uma escola nova na Bélgica

Mas foi nas oficinas Cockerill e sobretudo nas de construção


elétrica em Charleroi que aprendemos mais sobre o assunto.
Seguimos o guia pela sala de serragem onde muitas má-
quinas trabalhavam ao mesmo tempo. Explicaram-nos que
os grandes blocos que vimos são depois cortados em placas
de diferentes espessuras. Para isso, a grande estrutura hori-
zontal de cada máquina é equipada com 5, 10, 15 e um número
ainda maior de lâminas de aço e animada por um movimento
de vai e vem, de frente para trás e de baixo para cima. Ao con-
trário do que pensávamos, não é a lâmina de aço que corta o
mármore, mas a areia grossa que é deitada sobre ele. Com
este sistema consegue-se cortar 1 cm de profundidade por
hora. Não é muito. Para cortar mármore com superfície curva
usa-se fio helicoidal. Nos últimos anos está a usar-se a serra
circular de carborundum (preparação industrial de carbeto de
silício). Estas serras são usadas para corte de placas de már-
more e permitem economizar tempo. Um exemplo: deve-se
cortar com um comprimento de dois metros uma folha de
mármore com 3 cm de espessura. O sistema antigo demora
3 horas, enquanto o novo leva cerca de 10 minutos. Ultima-
mente a fábrica de mármore de Merbes-le-Château inventou
e aperfeiçoou serras de carborundum movidas a eletricidade.
Noutras oficinas esculpe-se o mármore a cinzel ou a ar
comprimido ainda à mão e fazem-se lareiras, escadas…
Curiosamente os trabalhadores jovens adaptaram-se logo
às máquinas, enquanto os mais velhos não quiseram mudar
de hábitos. Vemos assim uma oficina com pessoas mais ve-
lhas a trabalhar lentamente debruçadas nas suas bancadas.

Peço ao leitor que se lembre do que se disse sobre


as visitas a fábricas que colocam o aluno em con-
tacto não só com os elementos científicos e técnicos
A. Faria de Vasconcellos 147

de física e química mas também com a parte social


da vida industrial. A visita a esta fábrica de mármore
representava neste campo um interesse particular e
foi uma viva lição das coisas [a] de sociologia: orga-
nização, divisão e concentração de trabalho, aptidões
psicológicas e sociais dos trabalhadores, institui-
ções, experiências sociais. O aluno teve oportuni-
dade de verificar ao vivo vários fenómenos sociais.
As placas de mármore depois de serradas são polidas.
Para isso são fixadas na mesa de metal de uma máquina
composta por uma manivela vertical que faz rodar uma
massa de aço, estriada na parte inferior, e que faz o poli-
mento do mármore com areia e pó de pedra. A superfície
a polir é primeiro amaciada, deitando-se para isso areia
entre o polidor e o mármore e, em seguida, tapam-se os
pequenos buracos que se encontram na superfície com um
tapa poros especial. O polimento final faz-se deitando pó
de pedra na máquina.
Depois da visita à fábrica de mármore, a mais impor-
tante da Bélgica, apanhámos o comboio para Jumet onde
há uma vidreira que devíamos visitar.

Podemos ficar por aqui. Estes exemplos são su-


ficientes para mostrar a vantagem destas visitas
para a educação científica, técnica e social dos alunos.

II. MATEMÁTICAS
Aplicamos os mesmos métodos no ensino da
matemática. Vimos o interesse apaixonado da
148 Uma escola nova na Bélgica

criança nesta área que à primeira vista parece ser


assustadora e que responde contudo a sentimen-
tos profundamente humanos: a busca do desco-
nhecido, a alegria de fazer e de encontrar e a pos-
sibilidade de «sentir» o resultado, de materializar
os dados descobertos.
a) Observação e experimentação
Em matemática, como em ciências naturais,
podem aplicar-se os métodos de observação e ex-
perimentação à aquisição das noções de extensão,
medida, grandeza e movimento. Pode recorrer-se
efetivamente ao mundo exterior, a objetos con-
cretos para que os alunos aprendam, a partir da
experiência da vida real, os conceitos de aritmé-
tica, geometria e álgebra.
b) Iniciação matemática: não a definições abstra-
tas, não ao cálculo pelo cálculo. Os trabalhos manuais
Para tornar o ensino vivo, fácil de entender, ex-
cluímos as definições abstratas, as regras confusas
que a criança descobrirá gradualmente através da
manipulação de objetos que lhe fornecem dados
matemáticos. Além disso escolhemo-los na reali-
dade concreta do meio que rodeia a criança. Assim
não fazemos cálculo pelo cálculo, não encaramos
o número como um fim em si mesmo, mas como
A. Faria de Vasconcellos 149

um meio de exprimir ideias, analisar sensações, in-


terpretar objetos exteriores. A matemática está li-
gada às outras áreas de ensino. A criança tem
oportunidade de utilizar dados numéricos em
muitas circunstâncias. Estas constatações e o uso
frequente dessas aplicações permitem-lhe com-
preender melhor do que por qualquer outro meio
a utilidade dessas noções. Medimos e calculamos
em todas as circunstâncias, a partir sempre de ope-
rações da vida da criança, da vida da escola.
c) Geometria e álgebra
Introduzimos muito cedo o ensino da geometria
e da álgebra em relação com o da aritmética. Atra-
vés de um ensino intuitivo, acessível, concreto, con-
seguimos perfeitamente que a criança compreenda,
sinta os teoremas geométricos e as expressões algé-
bricas. Laisant [a] e Meray [b] mostraram que era pos-
sível tornar estas áreas sensíveis e palpáveis e, ins-
pirando-nos neles, pudemos verificá-lo1.
d) Trabalhos manuais
Os trabalhos manuais são o instrumento mais

1 É de referir aqui o engenhoso método inglês dito das curvas (con-

jugação de lãs de cores sobre superfícies ou no interior de caixas de car-


tão), utilizado na escola de Bedales em Inglaterra e descrito por M.
Truan-Borsche que o ensinou e desenvolveu. O opúsculo onde o des-
creveu foi traduzido em francês por Albert Truan, professor em Mor-
ges (Suíça) e será brevemente publicado. (Nota de Ad. Ferrière) [c]
150 Uma escola nova na Bélgica

valioso para a iniciação à matemática e para o de-


senvolvimento progressivo do conjunto de conhe-
cimentos relacionados com esta área. Cortar, tra-
balhar com cartolina e cartão, fazer jardinagem
constituem meios vivos, ocasiões numerosas para
aplicar os conceitos da aritmética, sistema métrico
e geometria. E isto interessa particularmente à
criança, porque é fazendo que ela conta, pesa, mede
e aprende a geometria. Relativamente aos traba-
lhos manuais, citei (p. 49-52) exemplos desta inter-
venção prática de dados numéricos e geométricos.

e) Operações gráficas e desenhos


Usamos muito as operações gráficas e o dese-
nho para levar os alunos a exprimir de uma forma
concreta noções matemáticas e estabelecer as rela-
ções entre geometria, álgebra e cálculo. Exemplos:
gráficos sobre o tamanho, peso, força dinamomé-
trica e espirometria de cada aluno; consumo de
gás, de objetos e de material de escritório.

f) Escritório de encomendas, compatibilidade das


oficinas, sociedade cooperativa dos alunos
Os alunos organizaram um escritório de enco-
mendas. Cada mês um aluno está encarregado de
comprar o material para a turma: papel, lápis, bor-
rachas, cadernos, canetas, aparos, mata-borrões. A
A. Faria de Vasconcellos 151

função das oficinas inclui também muitas com-


pras. A sociedade cooperativa agrícola [a] que ex-
plora, como foi dito, o terreno de agricultura da es-
cola faz negócios a sério. Essas atividades, dadas
as relações sociais que daí surgem naturalmente,
permitem à criança viver a aritmética, praticá-la e
compreender a sua utilidade pessoal e social. [b] O
conhecimento do preço das mercadorias, os pro-
blemas de juros, descontos e dividendos, a manu-
tenção das contas e dos livros, as inúmeras opera-
ções de contabilidade e de finanças são atividades
da vida real que criam, desenvolvem e conferem
às operações de aritmética um significado posi-
tivo, um interesse vivo de primeira ordem.
g) Estudos superiores de matemática
Os princípios subjacentes ao nosso ensino, os
procedimentos que usamos, o quadro das realida-
des concretas, vivas e sociais nas quais os aplica-
mos, conferem aos conhecimentos matemáticos
um rigor, uma consistência, uma clareza de que be-
neficiam os estudos superiores desta área. Nesta
base solidamente estabelecida, a criança, mais tarde
adolescente, constrói sem esforço − desde que a
idade e o desenvolvimento intelectual o permitam
– o estudo gradual e progressivo das matemáticas,
sem que seja repelido pelos seus conceitos lógicos
rigorosos nem pelas suas sequências sistemáticas
152 Uma escola nova na Bélgica

de raciocínio, de representações esquemáticas e de


abstrações. Mas para se chegar aí, é preciso esperar,
sem apressar nada, que a maturidade intelectual do
aluno lhe permita combinar e ligar as ideias lógicas,
de entrar no seu jogo, de se interessar pelo trabalho
desinteressado do espírito puro e pela contempla-
ção interior dos desenvolvimentos pelos quais passa
um raciocínio matemático. Uma questão de tempo
e de paciência. A matemática, ao início ligada à vida
concreta por meios práticos e acessíveis à inteligên-
cia da criança e ensinada de modo que o desenvol-
vimento da sua concentração e raciocínio não sejam
descuidados, condu-la com maior segurança e cla-
reza à compreensão das verdades abstratas.

III. LÍNGUAS

1. Língua materna

No estudo da língua materna, tal como nas ou-


tras áreas, aplicamos os mesmos métodos de ob-
servação, experimentação, trabalho individual
que usamos nas outras áreas.

A. Expressão oral
Falar é tão necessário como escrever. Nas pri-
meiras etapas da vida escolar é por via oral que a
criança expressa as suas ideias, sentimentos e
A. Faria de Vasconcellos 153

pensamentos. A palavra desempenha, tal como o


desenho e outros trabalhos manuais, um papel
muito importante. É um meio de expressão natu-
ral e vivo, de que tiramos proveito não somente
para outras áreas, mas sobretudo para o estudo da
língua materna. A criança gosta de falar. Ensina-
mo-la a falar corretamente, a exprimir-se com cla-
reza, ensinando-a não só a articular e a pronunciar
com precisão mas também a pensar de forma fácil
e bela. E para esta formação do gosto, para a educa-
ção dos meios de expressão oral, usamos procedi-
mentos que se vão desenvolvendo à medida que as
crianças crescem em idade e em conhecimentos. A
linguagem e a dicção são excelentes meios de cul-
tura da linguagem natural e damos-lhes muita im-
portância desde o início. Consideramos que pôr a
criança a falar é uma forma de a fazer agir.
São os seguintes os procedimentos que usa-
mos regularmente:

1. Descrições e narrativas orais, livres e espontâ-


neas, tendo como tema os factos, os acontecimen-
tos, as coisas da vida pessoal, da vida escolar, da
vida social da criança, relatórios das leituras feitas
ou ouvidas, das lendas, dos contos, das notícias, das
exposições de temas científicos, etc.
154 Uma escola nova na Bélgica

2. Palestras feitas na aula ou na escola, na pre-


sença de pais e amigos, sobre certos trabalhos (ex-
periências, visitas de estudo) como diz um dos
nossos alunos no Boletim, permite «habituarmo-
nos a falar em público, o que é muito difícil para
os nervosos e os tímidos.» Citei já (p. 93) alguns tí-
tulos de conferências.
3. Diálogos entre dois ou três alunos que repre-
sentam personagens de fábulas ou de histórias.
4. Discussões preparadas que ocorrem na aula
sobre determinados temas.
5. Comédias. «Os mais pequenos, diz o Boletim
dos alunos, organizaram e fizeram um pequeno tea-
tro; já representaram peças com bastante quali-
dade.» As crianças deviam representar este ano
uma peça grande: O pássaro azul de Mæterlinck [a] e
outras mais curtas. A audição de peças nos teatros
de Bruxelas – tardes clássicas e literárias – é outro
processo excelente do estudo da língua, especial-
mente para os do meio e os mais velhos (p. 27).
6. Recitação de poemas e leitura em voz alta de ex-
certos de prosa: contos, notícias, romances, viagens.

B. Leitura
A leitura, considerada como meio, constitui
também um exercício muito bom.
A. Faria de Vasconcellos 155

1. As sessões de leitura. – As crianças gostam


muito de ouvir ler, ouvir contar uma história. E
muitos preferem ouvir ler a lerem eles próprios; a
voz e o gesto dão mais vida à ação. Para desenvol-
ver esse gosto, temos as nossas sessões de leitura: a)
a hora do conto [a], da parte da tarde, para os mais pe-
quenos, b) as leituras da noite para os do meio e os
mais velhos.
2. A leitura na aula. – Escusado será dizer que as
nossas leituras não se limitam apenas a estas ses-
sões. Na aula fazemos leituras relacionadas com as
diferentes áreas de ensino. Elas transformam-se es-
pecialmente em exercícios, com explicações e comen-
tários de acordo com a idade e os conhecimentos
dos alunos, comentários que têm como objetivo o
estudo da gramática, da composição, dos géneros lite-
rários.
3. A escolha dos livros. – A escolha dos livros é
com certeza um problema delicado. Há muitos fa-
tores que podem determinar a escolha de um livro
e são poucos os que satisfazem plenamente o obje-
tivo pretendido. No entanto não nos faltam livros.
Além dos clássicos e modernos nacionais e estran-
geiros, temos a literatura escrita para jovens: contos,
lendas, romances, viagens, ciência.
Não utilizamos antologias. Preferimos excer-
tos de obras ou obras completas que se adaptem
156 Uma escola nova na Bélgica

ao objetivo pretendido e que interessem à criança.


Citemos aleatoriamente alguns autores: Júlio
Verne [a], Mayne-Reid [b], Fenimore Cooper [c], De
Amicis [d], Fabre [e], Moreux [f], Kipling [g], Wells [h],
Tolstoï [i], Daudet [j], Theuriet [k], Blondiau [l], Sha-
kespeare [m], Victor Hugo [n], Demolder [o], Mæter-
linck [p], Maspero [q], Giraud [r], Maindron [s], Miche-
let [t], J. Renard [u], Butts [v], Charcot [w], de Gerlache [x],
Savage Landor [y], sem esquecer as biografias dos
grandes homens. Temos livros de todos os tipos,
para todas as idades e para todos os gostos.
4. A literatura e história literária. – A literatura é
estudada pelos nossos jovens nas próprias obras e
na história da literatura – despojada de todo e qual-
quer pedantismo e de toda a erudição anacrónica –
é relacionada com a história geral. A obra de arte é
produto do ambiente e do seu criador (daí o inte-
resse das biografias vivas).
Dedicamos, de tempos a tempos, as sessões de
leitura à noite ao estudo e à discussão de uma das
obras mais notáveis da literatura estrangeira antiga
e moderna: Cervantes [za], Shakespeare, Dante [zb],
Ibsen [zc], Tolstoï, Emerson [zd], Kipling.

C. Composição
Um dos nossos jovens escreveu no Boletim dos
alunos um artigo sobre «o ensino da redação». Não
A. Faria de Vasconcellos 157

resisto ao prazer de o transcrever. Apresenta prin-


cípios que apoiamos. Na sua idade (17 anos) já se
pode dar parecer sobre tais questões. Estudou fran-
cês num ateneu (liceu belga), fez experiências que
lhe permitem comparar o nosso sistema com o ado-
tado na escola pública.
A redação ocupa o lugar de destaque entre as subdivi-
sões do estudo do francês. Traz-nos não só prazer literário
mas também é muito útil na vida quotidiana e na vida em-
presarial. Infelizmente é muitas vezes descurada ou pelo
menos mal ensinada nas escolas.
Primeiro, o termo ensino da redação será lógico? Deve-
mos ensinar uma criança de sete ou oito anos a fazer uma
redação? Não, porque o que é uma redação? É uma forma
natural de expressar o pensamento, de o resumir, de narrar
um facto, de descrever ou expor as ideias. Com os mais pe-
quenos trata-se simplesmente de contar o que viram, de des-
crevê-lo, de dar as suas opiniões e as suas reflexões pessoais.
E para repetir o que se viu, o que se sentiu, não é necessário,
parece-me, dar à narrativa uma forma muito determinada
por regras arbitrárias e artificiais. Porquê obrigar a criança a
pensar, a ver, a exprimir-se pelo pensamento de outrem, so-
bre assuntos que não lhe interessam e onde não há lugar para
a iniciativa pessoal? É preciso notar que nas composições dos
exames são as aprendidas de cor, palavra a palavra, que serão
a referência e as mais textuais serão as mais bem classificadas.
Depois disso, como pode a criança ter gosto por estes
deveres com um formato obrigatório que é preciso repetir
eternamente da mesma maneira?
Conviria, pelo contrário, no ensino da língua materna
fazer esta atividade da forma mais natural e mais agradável
158 Uma escola nova na Bélgica

possível. Não seria muito complicado. Bastaria dar à


criança temas que lhe interessam e que estão ao seu al-
cance, não a assustar fazendo-a acreditar que é difícil e
deixá-la contar à sua maneira, usando os seus próprios ter-
mos. O que se deve sobretudo evitar é preparar-lhe a papi-
nha ou resolver-lhe o problema. Chegaríamos assim, após
algum tempo, a ter trabalhos pessoais, não estereotipados,
refletindo as aptidões de cada criança que as escreveu.

O nosso jovem anotou os princípios em que se


deveria inspirar o ensino da redação e da compo-
sição. São estes que aplicamos em Bierges:
a) Propor à criança temas que lhe interessam e
que estão ao seu alcance, temas baseados na reali-
dade à sua volta, na sua observação direta e na sua
experiência, assuntos sobre a sua vida pessoal, a
vida escolar, os animais, os homens, as plantas e as
coisas do seu ambiente. Os temas são escolhidos
livremente pelo aluno, pelo professor com o aluno
ou pelo professor com a turma.
b) Deixar a criança contar livremente, ao seu
modo, o que vê, o que faz e o que pensa, permitir
que a sua iniciativa se manifeste, deixá-la expri-
mir-se livremente, não lhe pedir ou impor um estilo
literário, para que ela realize as tarefas pessoais, li-
vres de qualquer estereótipo, refletindo verdadei-
ramente as suas aptidões e os seus gostos. Isto não
impede, é claro, que sejam dadas na aula algumas
A. Faria de Vasconcellos 159

indicações práticas, algumas orientações gerais.


A discussão regular em comum, aberta a toda a
turma, sobre o tema da composição, a leitura de
excertos de escritores sobre o tema em questão
permite tecer críticas, estabelecer relações e com-
parações, fazer reflexões. São excelentes exercícios
que previnem futuros erros e iluminam o caminho
a seguir em trabalhos posteriores.
Aqui estão uma série de redações e composi-
ções extraídos do Boletim dos alunos. Citamo-las
simplesmente a título de exemplo. Não são mode-
los de estilo, mas redações espontâneas e livres. A
criança demonstra as suas qualidades, a sua ma-
neira própria de construir frases, a sua forma de
apreender as coisas e de expressar o que sente e o
que pensa.

1. Descrição de animais, plantas, pessoas


PASTOR (Bergeot)
O Pastor é um velho cão cinzento. É ele o guardião da
quinta. Quando ouve alguém na rua, começa a ladrar. To-
das as semanas um dos alunos mais novos cuida dele e,
quando lhe levam comida, ele salta para a taça, mas
quando lhe gritam: senta-te! o Pastor vai para a casota e
não sai enquanto a taça não estiver no chão. O Pastor dor-
miu muito tempo na rua como um sem-abrigo, mas agora
tem abrigo, dorme numa bela casota construída à porta da
quinta. Todos nós gostamos muito do Pastor!
160 Uma escola nova na Bélgica

TOP
A Top é uma cadela Groenendael. Ela é minha desde
as férias grandes. Quando chegou à escola, era pequena e
quando a vimos desatámos todos a rir, porque era muito
engraçada. Era uma grande bola preta que saltava e cho-
rava porque não estava habituada à casa e já estava es-
curo. Agora tem quase um ano, já está a mudar o pelo, é
grande e bonita. Adora brincar connosco. Quando lança-
mos um pau, ela vai buscá-lo, mas em vez de o trazer, foge
com ele. Corremos atrás dela, mas ela é tão ágil que temos
dificuldade em agarrá-la. Divertimo-nos todos com a Top.

O GALO (Le Coq)


O galo é uma ave da família dos galináceos. É o macho
das galinhas. Colocamo-lo ao pé delas para fecundar os
ovos. Ele é o dono da capoeira e comporta-se como um pai
com os seus filhos. Normalmente é maior do que as galinhas.
Isto aumenta o seu prestígio. A plumagem varia com a raça.
Pode ser branco, preto ou de várias cores. Neste último caso
existem espécimes cujas cores ficam muito bem, apesar da
variedade de tons. O galo tem uma crista vermelha por ve-
zes muito grande e alta, balançando no topo da sua cabeça.
Ele é também o mais belo ornamento do galinheiro, talvez
para agradar melhor às senhoras galinhas. O galo é famoso
pelo seu canto. Ele chama as galinhas, junta-as, adverte-as do
perigo, lançando um vigoroso cocoroco. Canta muito cedo e
em determinadas alturas do dia. Normalmente esta ave é
galante. Quando levam comida, ele chama as atrasadas e só
começa a bicar quando todas estão presentes. Se alguém tem
a infelicidade de o querer agarrar, põe os seus esporões de
fora e coloca-se em posição de ataque, e isto por cada movi-
mento de que ele não goste. Esta característica é tão conhe-
A. Faria de Vasconcellos 161

cida que, quando se quer falar de uma pessoa que se irrita


com facilidade, comparamo-la ao galo que põe «as unhas de
fora». Isto corresponde à realidade. A ave serve também de
símbolo. A França escolheu como símbolo o «galo gaulês».

2. Narrativas de visitas de estudo, viagens


A VISITA A UMA MINA DE CARVÃO
Primeiro, um supervisor leva-nos à sala das máquinas que
são enormes. Depois, leva-nos a ver a sala das lâmpadas dos
mineiros, onde existem centenas de lâmpadas, cada uma com
um número. Todos os dias um homem encarregado pela ma-
nutenção coloca-as em ordem e limpa-as. Damos uma volta
no exterior antes de descermos. Vemos locomotivas, vagões,
vagonetas; de tempos a tempos comboios enormes cheios
de carvão passam ao longe. Um quarto de hora depois voltá-
mos a entrar, vestimos um fato de lona azul e pusemos um
chapéu de couro na cabeça. Esperamos um pouco até o ele-
vador chegar. É uma caixa muito baixa e estreita; temos que
nos agachar e encolher para lá entrar. Uma vez entrados,
desce em alguns minutos a 500 m de profundidade. Saímos
e precipitámo-nos para a galeria principal que tem 2 a 2,5 m
de altura e 3 a 3,5 m de largura. Ao lado vemos galerias mais
pequenas e veios. Estivemos algum tempo nesta galeria. Ve-
mos cavalos puxando vagonetas. Esses animais entram na
mina muito jovens, a partir do momento em que podem pu-
xar vagonetas, e só saem quando estão doentes ou morrem
de velhice ou cansaço. Depois entramos num veio com cerca
de 60 cm de altura; tivemos que escorregar de costas e de lado.
Vimos mineiros a trabalhar penosamente. Estão pretos e
cansados. Entrámos noutros veios e galerias, de seguida,
voltámos ao elevador e subimos. Lavámo-nos e tomámos
um duche, vestimo-nos e partimos contentes com a visita.
162 Uma escola nova na Bélgica

3. Relatórios de conferências, de discussões, etc.


A CONFERÊNCIA DE ALEX
Esta conferência teve lugar a 8 de fevereiro diante de um
auditório cheio de pais. Alex escolhera como tema A evolu-
ção das máquinas agrícolas. O tema era-lhe familiar, uma vez
que se ocupa de agricultura. No entanto, a preparação exi-
giu-lhe muito trabalho de documentação que fez muito
bem e uma atualização também bem conseguida. Na pri-
meira parte abordou A origem de máquinas agrícolas: como é
que o homem descobriu o arado, a charrua primitiva, que
imita a pata dos animais escavadores e, mais tarde, como in-
ventou a charrua atual. Depois, a partir do século XIX, coin-
cidindo com a desertificação dos campos a favor das cidades,
o aperfeiçoamento rápido de todas as ferramentas substitui
os braços em falta. Este desenvolvimento foi objeto de um
estudo aprofundado no qual Alex nos levou a comparar su-
cessivamente charruas, semeadoras, ceifeiras e debulhadoras
de hoje com as de há 50 anos. Os países novos, particular-
mente os Estados Unidos e o Canadá, com o objetivo de su-
perar a falta de mão de obra, substituíram, há dez anos, a
tração animal por motores; há dois tipos diferentes de má-
quinas: as que sem alterar a sua forma são arrastadas por tra-
tores, as outras reuniram num só aparelho a força motriz e a
força atuante. Até agora nenhum dos dois prevaleceu, tendo
ambos prestado grandes serviços. Proporcionam grandes
economias de força humana e animal, de tempo e dinheiro.
A conferência foi um sucesso, não foi demasiado espe-
cializada para não perder o interesse e foi lida com voz firme.

Na mesma linha, poderíamos encontrar ainda


relatórios de discussões, de livros lidos, de expe-
A. Faria de Vasconcellos 163

riências, de festas e de resumos breves, como


ecos, notícias da vida escolar e social.

4. Interpretações de gravuras, imagens, postais


PRADARIA EM PORTUGAL
Num dia ensolarado, as camponesas vão lavar a roupa
ao rio, levando consigo pequenas caixas onde se põem de
joelhos. Nunca vão sozinhas. Ao mesmo tempo, guardam
as suas ovelhas que comem erva. Depois de lavarem a
roupa, estendem-na na pradaria. Ao longe vemos casas. O
sol brilha. A água do riacho corre e faz glu, glu, glu e a
roupa lava-se e faz ve, ve, ve. – «Maria, já acabaste de lavar
a roupa? Dá-ma para a meter no cesto.» Nalguns lugares
o ribeiro é largo. Os pássaros cantam, as flores crescem e
cheiram bem. O corpo das mulheres reflete-se na água. A
roupa está branca e já secou. Que sorte!

Segue uma pura descrição de uma criança de 10


anos que, ao contrário da anterior, de 9 anos, não
acrescenta nada ao motivo do postal que tem à frente:
A MONTANHA NO INVERNO
Ao longe vemos montanhas: são os Alpes. As cabanas e
as casas com torres e pequenas varandas para ver o panorama
estão cobertas de neve. As árvores estão sem folhas. As nu-
vens pretas parecem dizer «mau tempo». Está frio e o céu
está cinzento. Perto de uma casa estão dois esquis para as
montanhas. A rua está com neve e tem pinheiros infelizes.

5. Retratos pessoais. — Muito difíceis, sobretudo


para os mais pequenos, pois a análise psicológica
164 Uma escola nova na Bélgica

não é especialidade da criança. Os mais pequenos


ouviram dizer que os mais velhos iam fazer o seu
autorretrato e também quiseram fazer o deles. Este
é o autorretrato de um menino de 8 anos.
O MEU AUTORRETRATO
Eu sou um menino. Fiz oito anos há três semanas. Te-
nho um comboio muito bonito e parti a locomotiva, por-
que ela era muito fraca para puxar os vagões. Estudo os
animais, as plantas e a terra; faço contas, leitura, escrita,
cartonagem, toco piano e faço visitas de estudo muito di-
vertidas. Gosto de modelagem e desenho, mas prefiro o
desenho à modelagem. Vou uma vez por semana a Bruxe-
las ao dentista tratar os dentes, porque uso um aparelho.

Segue-se um outro autorretrato de um menino


de nove anos e meio.
O MEU AUTORRETRATO
Sou um menino de nove anos e meio. Tenho o nariz pe-
queno que fica achatado quando leio ou quando como. Tam-
bém tenho dentes pequenos que mais tarde crescerão. Uso
meias inglesas e botas cardadas. Não sou muito limpo e sou
pouco organizado. Vou tentar ter juízo e trabalhar muito.
Cito-os a título de curiosidade e pelo sabor
infantil, ingénuo e sincero.
6. Relatos da vida diária. — Os mais pequenos
têm o seu próprio jornal onde escrevem o que
aconteceu durante o dia e o que mais os interes-
sou. São relatos muito simples do estilo de redação
das cartas privadas sobre temas familiares.
A. Faria de Vasconcellos 165

7. Temas morais, científicos, literários. — São as-


suntos cujo estudo e análise requerem da parte da
criança um desenvolvimento intelectual suficiente
para permitir que discorra sobre questões gerais e
abstratas. Fazemos análises e comentários de um
sentimento, de um provérbio, de uma ideia, de
um acontecimento real ou fictício, de um sím-
bolo, de um extrato de prosa ou poesia, apresen-
tação de um tema científico ou artístico. Os temas
deste género são numerosos. Eis alguns exemplos
retirados do Boletim: ‘O papel dos mais velhos na
escola’, ‘A preparação de uma visita de estudo’,
‘Ensino da redação’, ‘O prazer de se levantar cedo’,
‘Um pequeno estudo acerca do café’, ‘A vida social
na escola’, ‘Um dia na escola’, ‘Um dia de verão no
campo em Portugal’, ‘A vida é para os fortes’. As
conferências de que falámos enquadram-se nesta
categoria.

O PRAZER DE SE LEVANTAR CEDO

Que prazer se experimenta quando nos levantamos


cedo no verão! Digo no verão porque no inverno, quando
se está quente na cama, é um pouco difícil levantar-se para
tomar um duche frio. Mas no verão é outra coisa. Nunca
nos levantamos muito cedo. Acordo normalmente pelas
cinco horas e mal desperto, Alex vem dizer-me, seguindo
a fórmula habitual, que «são horas de levantar». Levanto-
me, calço os chinelos, pego na roupa e vou até à casa de
banho. Lavo-me, tomo um duche, esfrego-me bem com a
toalha, visto-me e vou correr para o jardim para ativar a
166 Uma escola nova na Bélgica

circulação. No jardim sentimo-nos cheios de bem-estar e


alegria. O ar húmido do orvalho da manhã está aromati-
zado com mil perfumes de plantas. O céu está limpo e no
horizonte sobe devagarinho o grande disco de ouro que
vem, uma vez mais, alimentar com os seus raios benéficos
todo o reino animal e vegetal. No ar, nos ramos e arbustos,
cruzam-se andorinhas, piscos de peito ruivo, chapins azuis
e pardais. Que gritos de alegria e provas de felicidade! É
no meio desta bela natureza que trabalhamos. Mas é um
pouco forçado, preferiríamos ir passear. Só que é para a
nossa cultura física que trabalhamos quando corremos no
jardim e, como diz muito bem um aluno numa redação in-
titulada «A vida é para os fortes», «devemos tratar do fí-
sico antes de mais para se ser forte, porque só os fortes é
que vencem1». É no campo que se experimenta verdadei-
ramente o prazer de se levantar cedo, na cidade não há
esta bela natureza. Contudo é um bom hábito levantar-se
cedo, porque quando se é jovem, não se deve dormir muito,
caso contrário, fica-se mole e perde-se a vivacidade.
8. O Boletim dos alunos
PORQUE É QUE IMPRIMIMOS UM BOLETIM?
Como escrevia A. M. no prefácio do primeiro número,
é para nos habituar a escrever, a desenvolver as nossas
ideias. É verdade que podemos fazê-lo nos trabalhos de casa
de francês, mas não é esse o nosso único objetivo. É preciso
saber que não queremos passar por fenómenos. Os artigos
da nossa pequena revista são escritos por alunos e são

1
Este pensamento assim expresso não representa o da es-
cola nem o do próprio aluno que o escreveu. Ensinamos – e
vivemo-lo em todas as circunstâncias – que a força física ape-
nas é condição da força espiritual, única que permite uma
vida moralmente sadia, bela, rica e fecunda.
A. Faria de Vasconcellos 167

muito pessoais. Assinamos os artigos para nos habituarmos


a ser responsáveis por aquilo que escrevemos; indicamos
a nossa idade, não para nos armarmos, como se poderia
pensar, mas para aqueles que leem o nosso Boletim se aper-
ceberem das capacidades e dos progressos de cada um.
No nosso Boletim falamos sobretudo daquilo que fazemos,
descrevemos a forma como aprendemos, relatamos os
principais factos relevantes ao longo dos trimestres, como
as visitas de estudo, as grandes experiências, as conferên-
cias. Assim pode-se ter uma ideia da atividade que existe
aqui e estar a par das mudanças que vamos fazendo.

Apostamos tão fortemente no Boletim dos alu-


nos apenas porque as suas redações são de tema
livre e pessoais, transmitem a sua psicologia, o seu
estilo não literário, mas simples, sincero, autêntico
e humano, e mostram a vida da escola em todas
as suas manifestações. Acreditamos que a melhor
maneira de mostrar uma escola é fazê-lo através
dos seus alunos. Connosco escrevem apenas o
que veem, o que sabem e o que querem.

D. Gramática

Substituímos o ensino teórico da gramática,


profundamente desanimador pela sua mecaniza-
ção, pelo seu verbalismo, pelo abuso de abstrações
e classificações, por um ensino essencialmente
vivo, baseado nos seguintes princípios:
168 Uma escola nova na Bélgica

1. Fazemos questão de mostrar as coisas antes


das palavras [a]. É pela observação e pela indução
que a criança descobre as regras gramaticais, tra-
tadas como fenómenos vivos para serem com-
preendidos e explicados.
2. Fazemos isto em todo o lado onde eles se en-
contrem, o que implica que não damos gramática
pela gramática, apresentamos a regra integrada
num todo vivo e completo, e não isolada, quintes-
senciada numa definição. Fundimos a sintaxe e a
morfologia pelo estudo simultâneo da forma, do
significado, do uso da palavra.
Na secção preparatória (p. 87), ensinamos a gra-
mática de uma maneira acidental, em exercícios de
elocução, de leitura, de composição, sem aprofun-
dar muito e levando à descoberta, por indução, de
alguns princípios básicos e fundamentais.
Na secção geral (p. 87), abordamos o estudo
metódico, mas por observação e experimentação.
Não usamos nomenclaturas nem quadros rígidos,
mas explicações ou comentários de um exemplo
ou de um caso num texto bem contextualizado,
que aborde os diferentes aspetos num todo vivo.
Numa etapa posterior desta mesma secção, o
estudo da gramática tem outra profundidade. A
história da língua, as ligações e as comparações
A. Faria de Vasconcellos 169

com as outras línguas que o aluno estuda permi-


tem um conhecimento mais aprofundado.
É assim pelo trabalho pessoal do aluno, em
textos e através de observações e induções que o
fenómeno gramatical é estudado, compreendido
e classificado, de acordo com as ideias e as fun-
ções que exprime e não através de fórmulas mor-
tas e abstratas.
E. A ortografia
Os exercícios de elocução, leitura e composição
facilitam a aprendizagem da ortografia, ao fami-
liarizarem a criança com o significado, a forma e o
som das palavras, criando associações visuais, au-
ditivas e motoras.
Quando a criança, apesar dos exercícios feitos
em todas as áreas, não consegue corrigir a ortogra-
fia de acordo com a idade e os conhecimentos, re-
corremos à cópia. Os elementos motores desta, as-
sociados a elementos visuais, acabam por fazer ul-
trapassar os erros de ortografia. Escusado será di-
zer que esta cópia é feita de textos que interessam
realmente à criança (prosa ou poesia).

2. Línguas estrangeiras
As línguas estrangeiras ensinadas na escola são
alemão, inglês, espanhol, italiano e português; as
três últimas são facultativas.
170 Uma escola nova na Bélgica

Seguem algumas condições em que é feito o en-


sino das línguas:
1.° O estudo de uma língua estrangeira não co-
meça até que o aluno domine bem a língua ma-
terna e nunca antes dos doze anos.
2.° Usamos o método direto, concebido e apli-
cado da seguinte forma:
a) Durante dois, três ou quatro semestres, as crian-
ças adquirem de uma forma intuitiva e concreta o
vocabulário essencial; envolve-se a criança num
ambiente que lhe permita entrar na língua. Para fa-
zer isso, o melhor meio parece-nos ser uma estadia
no país durante um semestre ou dois. Preferiríamos
utilizar esse método à aprendizagem do vocabulá-
rio essencial em aula, por muito intuitiva que seja.
b) Após a aquisição de um vocabulário extenso,
através de numerosos exercícios orais e escritos,
vivos e concretos, as crianças fazem nesta fase a
leitura de autores. Começam então numa primeira
fase o estudo da gramática, feito metodicamente,
mas de forma experimental. Este estudo desen-
volve-se assim mais eficazmente. A leitura é com-
pletada por redações e composições.
c) Durante o último período, introduzimos os
exercícios de tradução: versões e desenvolvimento
de temas. O quadro dos exercícios é completado
com composições, leituras de autores cada vez
A. Faria de Vasconcellos 171

mais variadas e difíceis, tendo por objetivo o es-


tudo da literatura, da arte e da vida social.
O ensino visa não apenas levar ao conheci-
mento da língua mas também fazer desta um ins-
trumento de análise e compreensão do meio onde
ela é falada.
As nossas crianças estudam as línguas antigas
muito mais tarde do que se faz atualmente: o la-
tim aos 13 ou 14 anos e o grego aos 15 anos.
Elas atingiram nesta idade um desenvolvi-
mento intelectual e um conhecimento aprofun-
dado do francês, que lhes permite tirar o máximo
proveito deste ensino sem perder muito tempo.
Neste caso também utilizamos os mesmos pro-
cessos indutivos aplicados às outras línguas, mas
tendo em conta as suas condições e dificuldades
específicas.

IV . GEOGRAFIA E HISTÓRIA

No ensino da geografia e da história aplica-


mos os mesmos princípios e usamos os mesmos
procedimentos para a atividade escolar, sempre
com base no trabalho pessoal do aluno.

a) Iniciação à geografia

As ideias de espaço e de tempo, que estão na


172 Uma escola nova na Bélgica

base das ciências geográficas e históricas, esca-


pam à inteligência da criança. Mesmo o sentido
de extensão, de distância, ainda não lhe são per-
cetíveis no início da sua vida escolar. Ela só pode
compreender o significado dos conceitos geográ-
ficos numa fase mais avançada.
Devemos, portanto, iniciá-la gradualmente,
fazendo-a aprender pouco a pouco e apresentar a
geografia em condições assimiláveis.
b) Ciências naturais
As ciências naturais constituem para nós um
dos meios mais preciosos para a iniciação geográ-
fica da criança. O estudo de pessoas e coisas (ho-
mens, animais, plantas e minerais) que envolvem a
criança no seu ambiente imediato e atual leva na-
turalmente para explorações sucessivas cada vez
mais amplas, para outros ambientes e outras for-
mas de vida. Assim a comparação entre as formas
da nossa civilização (habitação, mobiliário, roupa,
alimentação, cultura, indústria, comércio) e os mo-
dos de vida primitivos e de povos menos desen-
volvidos permite admiráveis explorações por
todo o mundo, permitindo à criança iniciar-se na
compreensão das relações de interdependência
dos seres humanos entre si e com a natureza.
A zoologia permite-nos chegar aos mesmos
A. Faria de Vasconcellos 173

resultados. Por exemplo, o estudo dos ruminantes


domésticos leva-nos aos dos ruminantes estrangei-
ros e exóticos: a camurça aos Pirenéus [a], a cabra
montês aos Alpes, o dromedário ao Norte da África,
o zebu à Ásia, o iaque ao Tibete, o bisonte à América
do Norte, o lama [b] à América do Sul.
No estudo de plantas, de minerais e de pedras,
encontramos novamente a oportunidade de reali-
zar com as crianças belas viagens à volta do globo.
Estas explorações geográficas, relativas às ciên-
cias naturais, sem nenhum carácter sistemático, le-
vam a criança, pelas evocações sugestivas, a con-
ceber a ideia de outros seres, outros meios, outros
espaços.
c) O imediato em geografia
Partimos evidentemente do que envolve a
criança, da realidade imediata circundante, porque
é nesta que a observação e a experiência podem in-
cidir de uma forma precisa e diretamente assimilá-
vel. Mas isso não significa que não saiamos dela.
Longe disso, porque localizar não significa isolar.
Eu sei que às vezes temos tendência para limitar o
estudo geográfico e histórico ‘do país natal’, a con-
finá-lo durante a instrução e a educação primária a
um círculo estreito, mesquinho, acanhadamente
nacionalista. Os factos locais levam-nos aos factos
174 Uma escola nova na Bélgica

globais: levamos a criança a apreender a dimensão


e a sequência dos factos imediatos. Ensinamo-la a
coordená-los e a compará-los com factos semelhan-
tes, mas mais impressionantes, mais importantes,
mais emocionantes, que ocorrem em ambientes dis-
tantes, dentro e fora das fronteiras. É necessário sair
do ambiente circundante, do país natal e recorrer a
todas as explicações, descrições e comparações que
podem elucidar e levar a uma melhor compreensão
da realidade geográfica. Um exemplo: levar a crian-
ça a ver realmente a diferença entre o curso de água
lento, de inclinação suave e navegável, do rio que
corre em frente da escola, e o curso rápido das Arde-
nas, quase torrencial e impróprio para a navegação;
entre a largura e a pouca profundidade dos vales fla-
mengos e o estreito encaixotamento dos riachos rá-
pidos da Valónia. E porque ficar por aqui? Não de-
vemos ir além do ponto de vista local e nacional e
colocar a criança perante factos mais gerais? Seria in-
concebível renunciar ao ensino fascinante dos gran-
des rios, como o Nilo, o Congo, o Amazonas, o Mis-
sissípi, o Ganges, o Reno. Porque não aproximar os
riachos rápidos da Valónia do exemplo impressio-
nante, surpreendente do rio do Colorado, que, desde
tempos antigos, vem serrando o planalto em que
corre e já cavou uma profundidade de 2000 metros?
A. Faria de Vasconcellos 175

d) O interesse, o movimento, a emoção


As fórmulas secas, as nomenclaturas áridas não
interessam nada à criança. Deve transformar-se a
geografia abstrata, colecionadora de nomes. O que
lhe interessa, o que a apaixona é ver as ações e rea-
ções recíprocas dos seres e da natureza, os seus es-
forços, suas lutas, suas harmonias, suas oposições e
suas vitórias. Ora os factos geográficos aprendidos
por si só não têm interesse nenhum. É preciso torná-
los vivos, animá-los e nunca os isolar do conjunto
das condições que os envolvem. O que é um rio,
uma montanha, um mar, uma cidade, um país, um
povo? Para quê uma etiqueta, um nome, se atrás
deles a criança não vê a realidade, a vida, o movi-
mento, a emoção. Ela deve sentir o que lá se passa,
o que está em jogo na relação da natureza com o
ser humano. A leitura dos relatos de viajantes reais
ou fictícios, de que falaremos, constitui um guia
admirável para todas as explorações geográficas.
É necessário que a criança não se torne passiva,
mas que se interesse pela vida da terra, compreen-
dendo-a com entusiasmo.

e) Os grandes conjuntos, as grandes sínteses


Eu já disse que inicialmente o nosso ensino da
geografia estava limitado a explorações acidentais,
ocasionais, aleatórias, de acordo com as exigências
176 Uma escola nova na Bélgica

das ciências naturais. E numa segunda etapa per-


mitimo-nos provocar coordenações, estabelecer
certos conjuntos, esboçar sínteses que têm uma
vida autossuficiente. Realçamos da geografia fí-
sica e da geografia humana elementos indispensá-
veis para clarificar certos aspetos geográficos na-
turais. Deste modo concentrando a nossa atenção
sobre um ou outro fenómeno da natureza ou sobre
uma ou outra forma de civilização, estudamos por
sua vez mais especificamente a montanha, o pla-
nalto e a planície, a natureza do solo, o mar, o clima
e as zonas de vida animal e vegetal, os povos pri-
mitivos, a civilização agrícola, a civilização indus-
trial, as cidades, as minas, os portos, os meios de
comunicação. Para a organização dessas sínteses
geográficas precisamos das outras ciências: geo-
logia, zoologia, botânica, história, física, química.
Estas coordenações são feitas quer superficial-
mente, quer em profundidade.
As explorações ocasionais, as coordenações sinté-
ticas dos principais aspetos da natureza e da civi-
lização, criando e desenvolvendo o sentido e o es-
pírito geográfico, preparam os alunos progressi-
vamente para o estudo sistemático da geografia de
vários países do mundo, do ponto de vista físico,
económico, político, comercial.
A. Faria de Vasconcellos 177

f) Meios auxiliares
Trabalhos manuais, laboratório geográfico, vi-
sitas de estudo, leituras, coleções, museu geográ-
fico, trabalhos livres, a sociedade de geografia,
conferências e monografias são de grande valor
para o ensino da geografia.
1. Trabalhos manuais. — O desenho e a modela-
gem geográficos têm uma importância capital: ma-
pas, relevos, construção de barragens, montanhas,
rios, portos, aos quais recorremos frequentemente
para coordenar, precisar e apreender os conceitos.
A cartonagem também é bastante útil para a classi-
ficação das nossas coleções de mapas, gravuras, fo-
tografias, produtos. Da mesma forma a carpintaria,
onde as crianças constroem todo o tipo de disposi-
tivos. Citarei como exemplo típico, entre outros,
um dispositivo feito de papelão e madeira desti-
nado a verificar experimentalmente a hipótese de
Suess sobre a formação do relevo terrestre [a].
Tiramos partido para o ensino da geografia, da
jardinagem e dos trabalhos agrícolas de muito va-
lor para nós. A geografia física ao ar livre, apoiada
pela geologia e sempre em relação com a geogra-
fia humana, tornam-se ciências particularmente
vivas quando fazemos numerosas e interessantes
observações e experiências sobre a diversidade
dos solos, as colheitas possíveis em cada um, a di-
versidade e utilização das encostas, a distribuição
178 Uma escola nova na Bélgica

da flora em função do solo, da exposição, da hu-


midade. Os trabalhos manuais, entendidos como
tal, e as coleções, como veremos mais tarde, cons-
tituem preciosos exercícios práticos e permitem
mesmo falar de um verdadeiro e real laboratório
geográfico.

2. Visitas de estudo. – As numerosas visitas de


estudo que fazemos, sejam dedicadas especial-
mente à zoologia, à botânica, à física ou à química,
incluem sempre o estudo de um meio geográfico
cujos elementos, aspetos e relações são postos em
evidência pelos nossos métodos de ensino.

Escusado será dizer que algumas visitas de es-


tudo são organizadas especificamente para a geo-
grafia. Graças à facilidade e ao baixo custo dos
meios de comunicação na Bélgica, pudemos per-
correr o país em todas as direções e ver de perto
a vida das regiões naturais, da população, das in-
dústrias. Os conceitos geográficos adquiridos de
forma concreta sobre os locais são assimilados e
retidos com maior facilidade. Já mencionei (p. 99)
o artigo de um aluno publicado no Boletim acerca
da preparação de uma visita de geografia de dez
dias; cinco dias são dedicados ao relevo e aos cur-
sos de água e os outros cinco à natureza do solo e
A. Faria de Vasconcellos 179

às indústrias daí derivadas.


Poucos dias antes da guerra ter rebentado, os
nossos alunos chegavam de uma visita de estudo,
também de dez dias, dedicada ao mar, estudado
a partir dos seguintes aspetos:
a) geológico e físico: salinidade, ondas, marés,
correntes; chuvas, ventos; clima, natureza e con-
torno do solo da costa; dunas, areias, cascalhos,
aluviões;
b) zoológico: fauna litoral, fauna das dunas e
da costa;
c) botânico: flora litoral, das dunas e da costa;
d) sociológico: população (carácter, costumes),
agrupamentos (casas, povoações); agricultura na
costa (os pólderes, a drenagem, as culturas, as
pastagens, as indústrias agrícolas); a vida marí-
tima (a pesca, os pescadores, os barcos de pesca,
os portos e o seu equipamento; o comércio; os fa-
róis, as instalações de socorro; a educação profis-
sional, os barcos escolas; o mercado de peixe) e,
escusado será dizer, a comovente história, trágica,
da luta contínua das comunidades costeiras con-
tra os caprichos, as hostilidades mortíferas da
terra e da água que o belga, no heroísmo de uma
resistência invencível, conseguiu domar.
3. As leituras completam da maneira mais feliz
180 Uma escola nova na Bélgica

as observações e as experiências da geografia fí-


sica e humana. Durante a etapa das explorações e
coordenações sintéticas elementares, as leituras
de viagens realizadas por viajantes fictícios (Júlio
Verne [a], Mayne Reid [b], Selma Lagerlöf [c]) ou
reais (Vasco da Gama [d], Fernão de Magalhães [e],
Cristóvão Colombo [f], Stanley [g], Savorgnan de
Brazza [h], Cook [i], Nansen [j], Sven Hedin [k],) cons-
tituem para a criança uma atração particular. As
ações, os gestos destes guias, todo o movimento
e toda a cor das suas viagens entusiasmam a
criança, excitam a sua sensibilidade recetiva e
animam aos seus olhos o ambiente geográfico. Os
nossos jovens mais velhos leem e consultam obras
especiais sobre diferentes países do mundo, obras
basicamente sobre os recursos minerais, vegetais,
animais do solo, a indústria, o trabalho, o comér-
cio. Quando a biblioteca da turma não é suficiente
para os pedidos, a Universidade Nova de Bruxe-
las e o Instituto Geográfico a ela anexo permitem-
nos generosamente – e nós agradecemo-lo cordial-
mente – que vamos buscar à sua biblioteca os li-
vros e as revistas necessários.
4. Coleções, museu geográfico. — As coleções de
imagens, gravuras, postais ilustrados, gráficos,
estatísticas, produtos, que possuímos em grande
número, ilustram, definem, animam, completam
A. Faria de Vasconcellos 181

o ensino. Servem para lembrar de forma viva as


noções adquiridas. Cada vez que fazemos uma ca-
minhada, um passeio, trazemos uma variedade de
materiais, objetos, produtos, documentos, que nos
permitem organizar pelos nossos próprios meios
e gradualmente um verdadeiro museu geográfico.
5. Trabalhos livres, sociedade de geografia. — Além
do trabalho em aula, alguns alunos continuam a rea-
lizar trabalhos livres em geografia pelos quais têm
um interesse especial. São estudos livres e pessoais.
Um desses trabalhos, tendo por tema o porto de
Antuérpia, constituiu a base de uma palestra dada
na escola. Retirei o relatório do Boletim dos alunos:
O nosso colega A. M. inaugurou a série de conferências
feitas por alunos e professores da escola. Escolheu como te-
ma de estudo o porto de Antuérpia. Querendo fazer um tra-
balho bem feito, foi a Antuérpia documentar-se e verificar
pessoalmente o que tinha lido em livros e trazer-nos as suas
impressões pessoais. Perante uma sala cheia, o jovem confe-
rencista começou por contar a história da cidade de Antuér-
pia, explicando a lenda sobre a origem do nome Antwerpen.
Seguidamente descreveu a cidade atual. Levou-nos a dar um
passeio pelo Escalda, para mostrar o rio e nos fazer entender
melhor as vantagens do porto. Visitámos os cais, com os seus
guindastes enormes, grandes enseadas, docas secas, hanga-
res, que refletem o seu comprimento e a sua vida intensa. Pu-
demos admirar o poderoso equipamento deste grande porto.
Para terminar examinou de perto o movimento, o comércio
e estabeleceu a comparação entre Antuérpia e os grandes
182 Uma escola nova na Bélgica

portos do mundo: Nova Iorque, Liverpool, Londres, Roterdão,


Hamburgo, o Havre. Numerosos documentos, mapas, estatís-
ticas e gráficos permitiram-nos conhecer melhor Antuérpia.

No momento em que a guerra rebentou, outros


trabalhos estavam concluídos ou em fase de pre-
paração, para serem apresentados em conferên-
cia: Brasil, Canadá, Argentina, Portugal, as gran-
des bacias industriais da Bélgica, do norte da
França e da Alemanha, a marinha mercante belga.
Tal como a sociedade de história natural, uma
sociedade de geografia e história foi organizada
pelos mais novos e pelos do meio. Às monografias
zoológicas e botânicas vêm juntar-se as monogra-
fias geográficas e históricas. A nossa pequena so-
ciedade de geografia realizou um trabalho cole-
tivo sobre a geografia de Bierges e da região, estu-
dando vários aspetos: industrial, agrícola, geoló-
gico, sociológico. Cada membro tinha a sua parte
especial e todos realizaram as saídas organizadas,
a fim de se documentarem. Começámos a visitar
as indústrias locais e regionais e já tínhamos no-
tado as características de uma série de fenómenos
geológicos, físicos, meteorológicos e agrícolas,
bem como a vida dos trabalhadores. Este ano pen-
sávamos desenvolver os nossos trabalhos e pes-
quisas.
A. Faria de Vasconcellos 183

Iniciação histórica
a) Pelas ciências naturais. Tal como o sentido de
espaço, falta à criança o sentido da duração, no
início da sua vida escolar. Ela não é capaz de com-
preender o significado do desenvolvimento histó-
rico. Devemos iniciá-la gradualmente e habituá-la
pouco a pouco à ideia de que as coisas, de outros
tempos, funcionavam de outra maneira. Do mesmo
modo que para a geografia, as ciências da natu-
reza constituem para a história valiosos auxiliares
para essa iniciação. O estudo do homem, do ani-
mal, da planta sugere evocações, volta a nossa
atenção para o que já passou e leva a interessantes
explorações do passado longínquo. Os pacíficos
bois que pastavam à frente da escola e o gato ador-
mecido e indiferente nunca suspeitaram que nós,
sem a sua autorização, demos um passeio imagi-
nário dos mais bem-sucedidos, à custa deles, a um
país distante e numa época em que eram adora-
dos. Um dia é o Egito que é evocado, um outro dia,
talvez amanhã, será outro país. Não há nada de
surpreendente em estarmos na Índia, montados
num elefante, e, em seguida, remontar com ele o
fluxo dos tempos para ir, como exploradores intré-
pidos, prestar homenagem à majestade poderosa
e formidável do mamute. Rosny [a], em A guerra do
fogo [b], teve o cuidado de nos transmitir em traços
184 Uma escola nova na Bélgica

inesquecíveis a vida desses ancestrais veneráveis,


já então benevolentes para com o homem.
Falo de animais, como poderia muito bem falar
de plantas ou de pedras. Mas é claro que é sobre-
tudo o homem o centro de interesse, o ponto de
partida, de onde irradiam todas as explorações,
todas as expedições que fazemos através dos tem-
pos: a sua forma de agir, a sua maneira de satisfa-
zer as suas necessidades individuais e sociais, no
que eles têm de mais simples, de mais geral, de
mais fundamental e de mais inelutável, e que é em
suma a sua maneira de viver, lutar, controlar a na-
tureza ou de lhe obedecer para a poder vencer.
b) O ponto de partida, a atualidade em história, or-
dem cronológica ou regressão, coordenações sintéticas,
sistematizações precisas. − Estas explorações e via-
gens históricas têm um carácter puramente ocasio-
nal e são feitas tendo em conta as principais áreas.
A criança ao crescer consegue compreender o
significado do desenvolvimento histórico, ad-
quire, desenvolve e aperfeiçoa o conceito de
tempo. As leituras e os passeios vieram ajudar
neste processo. Podemos abordar agora o estudo
de uma série de factos e de questões históricas re-
lacionadas com as coisas e as formas da vida so-
cial. E assim por coordenações sintéticas, vamos
A. Faria de Vasconcellos 185

agrupar dados vivos, observáveis, relacionados


com a habitação, vestuário, meios de transporte,
agricultura, indústria, comércio (mercados, moe-
das). Trata-se portanto de uma história sobre as
formas de satisfazer as necessidades mais básicas
do homem.
Baseando-nos nas realidades sociais que en-
volvem a criança, aproximando-as das de povos
menos desenvolvidos, compreendemos os nossos
antepassados mais primitivos, estabelecendo a
ideia de tempo sobre um terreno sólido e objetivo.
As nossas coordenações sintéticas baseiam-se na
atualidade social, reduzida às suas formas mais
simples, às mais necessárias, e, saltando de repente
para os tempos mais remotos, seguem a partir daí
a ordem cronológica. Como a evolução natural da
criança reproduz, embora de forma abreviada e
fragmentária, as fases pelas quais passou a huma-
nidade, o passado remoto passa a estar muito mais
ao alcance da criança do que o próprio presente.
Uma compreensão clara das condições de vida do
passado ajudá-la-ão, assim, a compreender melhor
o presente.
Depois de estabelecer essas coordenações sintéti-
cas especiais e de ter considerado estas questões frag-
mentárias da história, podemos abordar o estudo de
coordenações sintéticas mais gerais. Não são somente
186 Uma escola nova na Bélgica

coisas que nós agrupamos mas também forças. À


volta de um homem, de um herói, reconstituímos a
vida material e espiritual de uma época.
Atingido e superado este grau, os nossos alu-
nos serão capazes de realizar o estudo sistemático
da história, com os desenvolvimentos, os detalhes
e as sequências que ela exige.

c) O interesse, o movimento, a emoção constituem


os motores essenciais do nosso ensino da história.
Para isso usamos dois procedimentos:
1. Em primeiro lugar, a criança nunca é em
caso algum espectador passivo diante dos aconte-
cimentos históricos. É chamada a reconstituir ati-
vamente os factos históricos a partir de todos os
documentos que podem ser colocadas à sua dis-
posição: livros, álbuns, coleções. É também convi-
dada, nas sessões dedicadas à discussão, a comen-
tar os acontecimentos, a determinar as suas possí-
veis consequências, a tomar partido, em suma, a
tomar uma posição moral. A criança desempenha
um papel, é um ser vivo entre os seres vivos.
2. Em segundo lugar, é nas sessões que se ela-
bora o plano de aula: o das pesquisas e da docu-
mentação, que se discutem e se criticam para atin-
gir a verdade histórica. A reconstituição de factos
A. Faria de Vasconcellos 187

históricos apoia-se numa visão dramática dos acon-


tecimentos: a história é vista como uma descrição
e uma explicação das ações, esforços, lutas, pro-
gressos do homem na sua evolução ascendente.
Também a biografia dos grandes homens, de to-
dos os que puderam encarnar, simbolizar um mo-
mento, uma cena, uma época da vida histórica da
humanidade, são para nós meios preciosos de in-
tuição e de compreensão dos acontecimentos. Es-
forçamo-nos, com certeza, para situar os heróis,
para os colocar face às necessidades e às realidades
sociais que os viram nascer e que os fizeram tal
como se apresentam aos nossos olhos. Dado que o
indivíduo e o meio ambiente são forças geradoras
de ações e reações recíprocas, este duplo jogo cons-
titui a evolução, o progresso humano.
Assim o ensino da história deixa de ser o que é
geralmente nas escolas: uma exposição árida,
morta, uma nomenclatura fastidiosa de datas, no-
mes, de factos secos e estéreis.
d) Trabalhos manuais, coleções, museu histórico,
visitas de estudo, leituras, trabalhos livres, sociedade
de história, palestras, representações dramáticas
1. Os trabalhos manuais contribuem da forma
mais feliz para o ensino da história. O desenho e
a modelagem servem para representar monumen-
tos, igrejas, casas, armas, utensílios, tudo o que
188 Uma escola nova na Bélgica

lembra, simboliza e concretiza o poder material e


espiritual das épocas passadas. Constituem uma
ilustração viva do estudo da história.
A cartonagem e a carpintaria são meios precio-
sos para a preparação dos quadros e mobiliário
para guardar as coleções. Pois é óbvio que temos
muitas coleções de mapas, pinturas, gravuras, foto-
grafias, livros e álbuns ilustrados, de documentos
de toda a espécie (fósseis). Elas permitem que a
criança aprenda de uma forma mais viva as coisas
e os factos dos tempos passados e constituem uma
espécie de pequeno museu histórico em embrião.
Recordarei a este respeito a exposição consagrada
à pré-história, referida na p. 103, exposição organi-
zada pelos alunos com coleções de documentos
que recolheram durante as visitas de estudo. A so-
ciedade de história tinha programado organizar
este ano uma exposição de documentos, fotogra-
fias, mapas, gravuras, relacionados com habitação,
vestuário, meios de transporte através dos tempos.
É assim que os trabalhos manuais objetivam e ma-
terializam a noção de tempo, ao permitirem à criança
reproduzir de uma maneira concreta as formas em
que foram moldadas as forças da vida histórica.
2. As visitas de estudo desempenham também
um papel muito importante no nosso ensino da
A. Faria de Vasconcellos 189

história. Ver no local monumentos antigos, casas


antigas, ruas antigas, todos os vestígios do pas-
sado, é um dos meios mais eficazes de desenvolver
o sentido histórico e de tornar a história viva. A Bél-
gica oferece neste âmbito o mais surpreendente e o
mais variado dos campos de observação. Por toda
a parte encontramos rastos, vestígios poderosos e
brilhantes do passado. Ao lado da fábrica, encon-
tramos a igreja, o monumento, a casa com história.
Aproveitamos todas essas oportunidades. Tam-
bém nos deslocamos frequentemente para visitar
este vasto e vivo museu histórico que é a Bélgica.
Percorremos cidades e museus e em todos os luga-
res encontramos motivos para reviver o passado.
As épocas mais antigas são evocadas pelas estações
e cavernas pré-históricas de Spy [a] e de Furfooz [b],
onde fomos para nos impregnarmos da atmosfera
do sítio. Estas visitas aos vestígios do passado, bem
como às numerosas coleções do Museu do Cin-
quentenário e ao de História Natural de Bruxelas,
permitem-nos fazer o percurso desde o passado
mais distante até às épocas mais recentes.

3. As leituras – quer sejam feitas pela própria


criança ou por outrem, o que os pequenos preferem
– são absolutamente indispensáveis, seja para
completar, seja para estudar a lição, de acordo com
190 Uma escola nova na Bélgica

o plano desenvolvido para o assunto: a história


dos produtos, indústrias, instrumentos, ciências,
artes (Bleunard [a], Figuier [b], d’Avenel [c], Pelloutier
[d], Rambaud [e], Parmentier [f], Hoeffer [g], Reinach

[h], Ménard [i]), biografias de grandes homens, nar-

rativas reais ou ficcionais, contos (Rosny [j], Mas-


pero [k], Buckley [l], Butts [m], Wallace [n]), romances
históricos (Walter Scott [o], Chateaubriand [p], Mé-
rimée [q]), cenas e histórias sobre a vida, costumes,
instituições (Maspero, Ménard, Guiraud [r], Lan-
glois [s], Maruéjol [t], Froissart [u], Lenôtre [w], Lacour-
Gayet [x]), obras de história geral (Duruy [y], Lavisse
[za], Rambaud, Seignobos [zb]). Os nossos jovens têm

também à sua disposição obras mais especializa-


das, a fim de entenderem os processos de crítica e
de documentação históricas de grandes historia-
dores nacionais e estrangeiros: ao lado de Plutarco
[zc] encontramos Taine [zd], Pirenne [ze] e outros.

4. Trabalhos livres, palestras, sociedade histórica,


representações dramáticas, monografias. – As nossas
crianças realizam fora das aulas trabalhos livres
de história. Um estuda uma época que lhe inte-
ressa mais especificamente, outro um assunto
mais específico como a história do porto de An-
tuérpia ou das ferramentas agrícolas. Estes estu-
dos individuais dão lugar a palestras para toda a
escola. Um outro aluno fez uma coleção de ima-
gens sobre a história dos meios de transporte.
A. Faria de Vasconcellos 191

Já dissemos que os professores fazem confe-


rências para toda a escola sobre certos assuntos
com valor educativo. Escusado será dizer que a
história também deu a sua contribuição: história
da música na Bélgica, biografia de Houzeau de
Lehaie [a], cientista belga.
Quanto à nossa sociedade de história , como re-
sultado de ocupações mais prementes, apenas
pôde fazer o seu programa de ação: a) organizar
viagens dedicadas à história; b) organizar repre-
sentações dramáticas de interesse histórico; c)
preparar uma monografia histórica sobre Bier-
ges. Este ano ter-se-ia realizado uma atividade
maior e sem dúvida que teria cumprido a sua
missão com uma consciência igual à das outras
sociedades: a de história natural e a de geografia.

_______________
192 Uma escola nova na Bélgica

CAPÍTULO IV

EDUCAÇÃO MORAL, SOCIAL


E ARTÍSTICA

I. O meio físico e social – II. O sistema de autonomia e os


cargos sociais – III. Liberdade, autoridade, sanções,
professores – IV. O gosto, a arte, a música, o canto – V.
Educação sexual e coeducação – Resultados

A educação física e a educação intelectual não


são apenas prelúdios para a educação moral e so-
cial; se forem bem conduzidas, podem constituir
uma ampla e eficaz preparação para estas.
O objetivo da educação física e da educação in-
telectual não é apenas tornar robusto o corpo da
criança e encher o seu espírito de conhecimentos
mas também permitir-lhe adquirir qualidades de ca-
rácter, espírito de iniciativa, autonomia e responsa-
bilidade pessoal; prepará-la para se tornar senhora
de si própria, para se autodeterminar e se sentir en-
tusiasticamente solidária com os outros seres hu-
manos. Em Bierges não se fazia o ensino teórico da
moral, de que a antiga pedagogia usava e abusava.
A. Faria de Vasconcellos 193

William James [a] dizia que o ensino teórico da moral


nunca levou ninguém a ter uma boa conduta. Os
antigos já diziam que a virtude não se ensina por
palavras, adquire-se na prática pelo uso pessoal da
liberdade e não é transmitida de fora para dentro,
vem de dentro para fora. Isto leva a um novo enten-
dimento dos meios para assegurar a educação mo-
ral e a uma nova orientação da disciplina escolar.
Assim como na educação física, manual e inte-
lectual apelamos à colaboração do aluno, à sua ini-
ciativa, à sua curiosidade e ao seu interesse, tam-
bém na educação moral lhe pedimos que, a partir
da sua experiência, organize a sua vida moral e viva
de acordo com o ideal de bondade, verdade e be-
leza que foi construindo pelos seus próprios meios
e pelo seu esforço pessoal.
Isto implica que devemos conhecer e pôr em
prática vários métodos que passamos a indicar.

I. O meio físico e social


A organização, o tipo e o valor do ambiente no
qual a criança é chamada a viver e a crescer cons-
tituem um dos fatores condicionantes do seu de-
senvolvimento moral. As questões relacionadas
com o ambiente são de extrema importância e é
necessário prestar uma particular atenção para
194 Uma escola nova na Bélgica

que o meio responda, pelas solicitações e influên-


cias que exerce, à missão a que naturalmente é
chamado a desempenhar. A ação do meio, seja
ela direta ou indireta, porque é contínua, adquire
uma força e um poder a que dificilmente se é
imune, por mais que se queira. Como a vida moral
da criança deve ser resultado das suas experiên-
cias pessoais e da sua adaptação espontânea à vida
escolar e social com colegas e professores, com-
preende-se facilmente a importância que deve ser
dada à organização do meio físico e social onde a
criança tem de viver e crescer.
E este meio ambiente é muito variado. Apre-
senta aspetos que podemos classificar em duas
categorias: a) o meio físico; b) o meio humano.
No primeiro capítulo já me referi à importância
do meio físico. Vimos que um dos elementos es-
senciais do sucesso educativo de uma Escola
nova é a escolha correta do local. A nossa escola
está localizada em pleno campo, no vale do rio
Dyle cercado por colinas arborizadas, num qua-
dro natural de grande beleza, que inspira calma e
tranquilidade e convida à descontração, à bon-
dade, ao trabalho sereno e à alegria de viver. Este
ambiente exerce uma influência preciosa sobre a
A. Faria de Vasconcellos 195

criança no seu desenvolvimento físico e moral.


Os bosques, o pomar, o parque, o campo, a natu-
reza bela e rica, na qual a criança vive, exercem
sobre ela uma influência salutar, benéfica e esti-
mulante, uma influência profunda, inconsciente,
que se exerce a cada momento. O facto de viver
feliz, calma e satisfeita leva a mente a interiorizar
a paz e a beleza do ambiente natural de raízes
profundas, onde a sua alma se pode ir alimentar.
A escola é também o lar. Tal como o ambiente
natural que o rodeia, o lar também é calmo, repou-
sante e convida à paz de espírito; nada aqui é se-
melhante à escola tradicional, sobretudo a que faz
lembrar um quartel ou uma prisão.
O ar livre, o espaço, a luz, a liberdade em plena
natureza, no meio dos campos, bosques, árvores e
flores inspiram às crianças o gosto pelas coisas belas
e criam a situação ideal para garantir, naturalmente
e sem esforço, o vigor e a saúde, que são a base da
vida moral. Para além da influência benéfica que a
natureza exerce sobre o temperamento e o carácter
da criança, existem outros meios que contribuem
mais diretamente para a sua formação moral.
Os jogos, os desportos, a educação física, as
caminhadas, os passeios, as viagens constituem
preciosos auxiliares da educação moral e social
196 Uma escola nova na Bélgica

da criança; são excelentes oportunidades para de-


senvolver as capacidades físicas e morais, levar a
criança a descobrir-se a si própria, a tornar-se
forte e rija, a disciplinar-se e a autocontrolar-se, a
tornar-se corajosa, paciente e resiliente, a praticar
a solidariedade e a entreajuda numa atmosfera de
vigor, alegria e bom humor.
No primeiro capítulo já referi o valor moral do
trabalho manual nos seus diferentes tipos e as nu-
merosas qualidades que pode desenvolver nas
crianças, como a persistência, a paciência, o rigor,
a lealdade e a vontade de fazer melhor. Mostrei aí
que o trabalho manual é um poderoso meio de
educação social, se for considerado como um meio
que leva a criança a exprimir as suas ideias e a sa-
tisfazer as suas necessidades, em especial a sua ten-
dência para construir, inventar, imaginar e criar.
Na serralharia, na carpintaria, nos trabalhos agrí-
colas, a criança aprende a colaborar num esforço
coletivo para uma obra comum. Lembramos as
alegrias e dificuldades dos nossos alunos na explo-
ração agrícola da quinta da escola, que levaram a
cabo nas condições que referimos anteriormente.
Tal como o trabalho manual, também os méto-
dos da educação intelectual procuram o desenvol-
vimento das forças morais da criança e tendem a
A. Faria de Vasconcellos 197

fazer nascer nela o sentimento de que foi o traba-


lho humano que criou a ciência, e que esta só tem
valor se tiver uma vertente ética. A criança a quem
é dada a oportunidade de redescobrir a ciência e a
técnica, pela sua investigação pessoal, é capaz de
compreender todo o esforço que tem sido necessá-
rio, geração após geração, para chegar ao estado em
que nos encontramos. Essa criança percebe quanta
firmeza, paciência e coragem persistente foram ne-
cessárias para ir desvendando o desconhecido. A
criança participará na experiência da continuidade
do esforço humano em busca da verdade que ins-
pira a investigação científica. E terá igualmente
compreendido que na partilha das alegrias e das
dificuldades desta evolução ascendente nenhum
país está acima dos outros, porque o esforço cien-
tífico é um esforço social ― esforço em que indiví-
duo e sociedade felizmente se completam ― ou
seja, um esforço humano. Cada nação contribui
com a sua parte para a construção da casa comum.
A criança terá compreendido também que to-
das as ciências são um instrumento de desenvolvi-
mento social, porque as suas aplicações servem
para o progresso de todos, para melhorar em força
e beleza a vida coletiva e para enriquecer a vida
moral e material do indivíduo.
A nossa preocupação constante em Bierges é
198 Uma escola nova na Bélgica

tornar a instrução essencialmente educativa. Pro-


curamos sempre fazer com que os alunos enten-
dam que toda a ciência emana do poder físico, in-
telectual e moral do indivíduo, aumentando esse
poder ao voltar para ele, e emana também da cola-
boração social, dando-lhe expressão, e aumenta a
inteligência, a força e o interesse da vida social.
Cada objeto e cada método de ensino utilizado
na nossa escola pretende levar, em última análise, a
criança a compreender em que consiste a essência
moral da vida social, a fazê-la sentir que as noções
que adquire, como a técnica científica, são função
da solidariedade humana. O trabalho intelectual,
tal como o trabalho manual, tende a desenvolver na
criança a consciência das suas relações com o meio
social e a habituá-la a esta ideia simples, mas de um
alcance incomparável, de que o seu esforço não é
apenas individual, mas tem sempre uma repercus-
são social. Tentamos transmitir à criança a sensação
de que ao mesmo tempo que recebe as influências
do meio social, também age sobre esse meio, po-
dendo contribuir para o modificar para o bem ou
para o mal, e que todo o trabalho, ao mesmo tempo
que lhe proporciona um benefício individual, tem
também um eco na vida coletiva da escola.
Tudo em Bierges, aulas, turmas, trabalhos ma-
A. Faria de Vasconcellos 199

nuais, trabalhos agrícolas, contribui para desen-


volver, fortalecer, aumentar na criança não só a
consciência da sua personalidade, da sua autoa-
firmação e individualidade próprias mas também
o sentido social e a consciência da vida coletiva.
Nos capítulos anteriores dei vários exemplos
do nosso esforço neste sentido. Não voltarei a re-
feri-los todos. Gostaria, no entanto, de selecionar
de um conjunto de factos que formavam a nossa
vida na escola, um exemplo concreto que permi-
tirá explicar-me melhor.
Há um tanque na escola, onde as crianças pra-
ticam natação quando a estação do ano o permite.
O tanque, que é bastante grande, foi transfor-
mado em piscina, em condições que vale a pena
referir aqui para elucidar os nossos métodos.
Ao tomarem banho no tanque, as crianças aper-
ceberam-se de que a água estava suja, tinha muito
lodo e que era necessário limpá-lo, porque, dadas
as suas dimensões, seria possível transformá-lo
numa bela piscina.
Como é que isso poderia ser feito? Em que con-
dições e que meios utilizar? Isto põe problemas, le-
vanta dificuldades, implica conhecimentos e estu-
dos. Tudo isto é muito interessante para as crianças.
200 Uma escola nova na Bélgica

O primeiro passo foi convocar a assembleia ge-


ral dos alunos, a fim de tomar conhecimento do as-
sunto e naturalmente todos ficaram encantados
com a ideia. Uma comissão foi encarregada de dia-
logar comigo para fazer o que fosse necessário.
Aceitei a ideia, aprovei-a e aconselhei os alunos a
começar a trabalhar e a obter todas as informações,
documentos e competências necessárias, elabo-
rando para isso um plano de trabalho, uma exposi-
ção metódica do problema e meios para o resolver.
Foi novamente convocada a assembleia dos
alunos para dar conhecimento da minha aprova-
ção e para uma troca de impressões.
A comissão, tendo reunido todas as ideias, in-
formações de todo o tipo, elaborou um relatório
que me foi apresentado. Examinei-o, estudei-o e
numa reunião com a comissão de alunos, após
uma troca de opiniões seguida de discussão, mo-
dificámos alguns pontos, completámos outros e
elaborámos o plano de trabalho.
Em primeiro lugar era preciso esvaziar o tan-
que: um problema complicado. Era necessário re-
correr à física. Quais são os meios que a ciência pro-
porciona para tal operação? Precisávamos da ajuda
e da experiência do professor de física. Ele aprovei-
tou esta oportunidade para sugerir o estudo de
uma determinada parte da física: a hidráulica. Era
A. Faria de Vasconcellos 201

a ocasião propícia para o fazer. A ciência, colocada


ao serviço das necessidades sociais, é o melhor
meio para fazer entender a uma criança a sua utili-
dade, a sua influência social e também o seu bene-
fício para cada um.
É necessário examinar a questão do ponto de
vista da física. Antes de mais é necessário desviar
o fluxo de água que alimenta o tanque, pois de
outra forma o nosso problema seria o inverso do
tonel das Danaides. Esta parte do problema foi
engenhosamente resolvida pelas crianças, como
se fossem verdadeiros engenheiros. Também no
passado adultos conseguiram mudar o curso dos
rios, de acordo com as suas conveniências.
Assim já é possível esvaziar o tanque. Uma
operação difícil, que exige criatividade, paciência
e pesquisas. Depois de estudar os princípios que a
ciência disponibiliza, é preciso verificar os que se
aplicam neste caso concreto. Pode pensar-se o que
um professor de física bem informado e esclare-
cido – e o nosso é-o com certeza – pode explorar
numa situação destas, propondo investigações e
ensaios; como pode orientar os alunos a descobrir,
observar e comparar. Depois de ensaiar vários
métodos – o sifão e outros – um aluno propôs a
construção de uma pá holandesa, e este aparelho
foi construído pelos alunos na carpintaria. Foi
202 Uma escola nova na Bélgica

experimentada e os resultados foram totalmente


satisfatórios. No presente caso era o único meio
para resolver o problema.
Esta ideia genial surgiu de um jovem que
nunca teve qualquer intenção de ser engenheiro.
Há um pormenor interessante, porque havia um
aluno que queria mesmo ser engenheiro e os pais
também desejavam que ele o fosse. Apesar disso,
achávamos claramente que não era o curso que
lhe convinha. Ele esforçava-se imenso, fazia o
melhor que sabia: trabalhava, aplicava-se, fazia
pesquisas, ensaios, mas nada do que ele sugeria
podia ser aplicado. Pois, mais uma vez, o que im-
porta não é tanto ter muitos conhecimentos, mas
sobretudo saber aplicá-los, pô-los em prática. E
neste caso a ideia brilhante veio precisamente de
um aluno que, sem qualquer motivação especial,
tinha compreendido e melhor representava o es-
pírito da escola. Isto prova uma vez mais que a
criação não é exclusiva de especialistas e que a ro-
tina e o automatismo podem por vezes dificultar
o espírito criativo.
O tanque foi esvaziado com uma pá holandesa.
Agora é preciso limpá-lo. Como remover a enorme
quantidade de lodo? Foram ensaiados vários mé-
todos. Construímos uma espécie de draga com um
A. Faria de Vasconcellos 203

cabo colocado por cima do tanque movido por um


sistema de roldanas, mas não resultou. Tivemos de
recorrer ao método mais primitivo e rudimentar:
remover a lama à pá e transportá-la em carros de
mão. Um trabalho de paciência, duro, demorado e
sujo. Mas como tinha de ser feito, todos colaboraram.
A lama foi retirada. Não foi possível pavimen-
tar nem cimentar o chão porque ficava muito caro.
Escusado será dizer que para isto os alunos fizeram
um estudo técnico muito completo: consultaram
empresas de materiais de construção, visitaram e
consultaram especialistas, tal como tinham con-
sultado um advogado em Bruxelas quando se tra-
tou de constituir a sociedade agrícola.
Dado o elevado preço do betão, tiveram de se
contentar com cobrir o fundo do tanque com areia,
até surgir uma situação mais favorável, provavel-
mente ainda nesse ano. Também aqui foram os
alunos que o fizeram.
Chegou então o momento de encher o tanque.
Calculou-se a quantidade de água e o tempo neces-
sários para o encher e concluiu-se que infelizmente
não estaria cheio para o dia da festa dos pássaros e
das árvores. Queríamos tanto inaugurá-lo nesse
dia! Mas como? Um problema sério! Procurou-se a
solução, que se encontrou alguns dias depois.
204 Uma escola nova na Bélgica

Construiu-se um sistema de tubos ligados às tor-


neiras da casa que davam para umas calhas em
madeira construídas na carpintaria. Era a rede pú-
blica que iria fornecer a água necessária. A água
vinha desembocar num reservatório no local da
nascente até encher o tanque. Uma ideia simples,
mas foi preciso tê-la. Tudo estava pronto: as calhas
de madeira feitas na carpintaria e os tubos ligados.
Tudo estava no lugar e pronto para ser usado. E
todos estavam felizes com o projeto. De repente
pararam os trabalhos e foi convocada uma reu-
nião de emergência. Reunimo-nos. O que é que se
passava? A comissão anunciou que eu me opunha
pelas razões que passo a expor.
«É muito simples, meus amigos. Vocês esquece-
ram-se de que a água que querem usar pertence ao
município e que não pode ser utilizada sem se pe-
dir autorização. Penso que vai ser autorizado o con-
sumo da enorme quantidade de água que é neces-
sária, mas é preciso pedir essa autorização. Esta-
mos em junho e já está muito calor; não sabemos se
vamos prejudicar outros utentes, privando-os da
água de que necessitam, pois nesta época do ano o
consumo de água é muito elevado. O município
concede a cada um uma determinada quantidade
A. Faria de Vasconcellos 205

de água consoante as necessidades previstas. Não


se pode exceder essa quantidade sem autorização;
se o fizermos, poderão penalizar-nos.»
Todos compreenderam e tomaram direta-
mente consciência das exigências legítimas da so-
ciedade em que viviam. Aperceberam-se de forma
prática e viva que estão ligados por fortes laços
ao meio em que vivem.
É óbvio que o município autorizou o pedido
feito pelos alunos e o lago foi inaugurado no dia
da festa dos pássaros e das árvores. Este exemplo
mostra a aprendizagem social que os nossos alu-
nos fizeram neste caso.
Por um lado, aprendem que as ciências têm
fins sociais e promovem o progresso da vida co-
letiva, por outro, compreendem que cada ato,
cada gesto individual tem repercussões na vida
social e que ninguém pode isolar-se e abstrair-se
do meio.
Assim a educação moral e a educação social
pressupõem duas bases fundamentais:
a) Introdução na vida da escola de uma ativi-
dade social real que vivifique, alimente, inspire
todo o programa e todos os métodos de atividade
física, manual, intelectual e moral. A escola deve
206 Uma escola nova na Bélgica

estar ao serviço da vida social.


b) Organização do meio social no qual a criança
vive e cresce. Prática de uma vida social bem com-
preendida. Vamos agora analisar este segundo
ponto.

II. Sistema de autonomia [a] e cargos sociais


A vida moral não se ensina, nem a virtude é li-
ção que se aprenda de cor. Adquire-se na prática
pela experiência e constrói-se pelo uso pessoal da
liberdade. É o resultado do domínio de si próprio.
Como já dissemos, não é pela violência nem
pela rigidez de princípios e de meios nem pelo re-
curso a punições artificiais que se desenvolve a
consciência moral na criança [b]. Pelo contrário,
isso só se consegue construindo à sua volta um
ambiente e uma vida social que permitam supri-
mir as punições, sempre degradantes e humilhan-
tes, e a disciplina autoritária, mecânica, que regula
cada ato e cada gesto da criança e que só consegue
transformá-la numa máquina inconsciente e pas-
siva que age sem pensar e tomar consciência da
própria regra que lhe é imposta.
Isto não quer dizer que entre nós não haja re-
gras, regulamentos e sanções. Vou procurar mos-
trar como lidamos com esta questão.
A. Faria de Vasconcellos 207

É um facto indiscutível que as crianças são


muito mais influenciadas por outras crianças do
que por adultos. A criança está sujeita a numero-
sas solicitações do ambiente social, particular-
mente as que vêm dos seus colegas e estas são as
mais prementes e as mais ativas.
Se uma criança viver num ambiente anárquico,
incoerente, sem ordem nem regras, está entregue
a influências que podem ser prejudiciais, quer
para o seu domínio emocional quer racional. As
crianças só podem fazer à sua própria custa a ex-
periência do bem e do mal e refletir sobre as con-
sequências dos seus atos se lhes dermos uma
grande liberdade. Isto implica uma organização
do ambiente social em que elas vivem, crescem,
levando-as a construir por si próprias a sua refe-
rência moral.
Mas, repito, esta organização social deve ser
construída pelas próprias crianças. A isto chama-
mos sistema de autonomia. Os alunos formam
uma república em que partilham, segundo as
suas aptidões e o seu acordo livremente expresso,
as obrigações que têm na comunidade escolar;
nomeiam os seus representantes junto da direção
da escola e da associação de pais; votam as regras.
Assim o sistema de autonomia tem uma dupla
finalidade e permite:
208 Uma escola nova na Bélgica

a) organizar o meio social em que a criança


vive, disciplinar as suas energias, orientar certas
tendências que, deixadas ao acaso e à incoerência,
seriam prejudiciais, dada a influência marcante
que os alunos exercem uns sobre os outros;
b) criar um ambiente onde as crianças, pelos seus
próprios meios e esforços, se possam iniciar na prá-
tica de uma vida social responsável, construir pela
sua própria experiência a sua educação social e tomar
consciência, de forma objetiva e real, dos seus deveres
e direitos enquanto membros de uma coletividade.
O sistema de autonomia tem sido aplicado um
pouco por toda a parte sem que, contudo, se tenham
obtido os resultados esperados. Isto prova que não
foi organizado em condições viáveis, seja porque
as experiências não foram suficientemente ousadas
ou duraram tempo insuficiente, seja porque foram
mal compreendidas ou em vez de um verdadeiro
sistema de autonomia foi instituído um sistema de
governo por monitores com poderes delegados.
O sistema de autonomia, como o entendo, pres-
supõe os seguintes fundamentos:
a) a criação de um conjunto bem organizado de
regras, atividades físicas, hábitos e costumes morais;
b) a criação de um verdadeiro espírito social
através da divisão racional do trabalho e da coo-
peração efetiva e real do aluno na vida escolar –
A. Faria de Vasconcellos 209

isto permite-lhe aprender a viver em sociedade e


adquirir pouco a pouco o sentimento da vida co-
letiva.

1. Divisão do trabalho

Nas reuniões trimestrais os alunos distribuem


entre si os cargos necessários à vida social da es-
cola. É a assembleia dos alunos que nomeia os
que vão desempenhar as diferentes funções que
a divisão do trabalho implica.
Os cargos principais são os que estão relacio-
nados com o inventário, o cuidado e a aquisição
dos livros, produtos, instrumentos e ferramentas
necessárias para o trabalho; os contactos com for-
necedores; a contabilidade de todas as despesas;
a organização das equipas e do horário de traba-
lho; a supervisão da ordem e limpeza nos seguin-
tes locais: 1) oficina de modelagem, cartonagem,
encadernação e desenho; 2) carpintaria; 3) serra-
lharia; 4) laboratório de física e química; 5) labora-
tório de ciências naturais; 6) quatro salas de aula;
7) sala de desenho geométrico; 8) biblioteca e sala
de música; e ainda: responsabilidade pelos jar-
dins; supervisão de edifícios, compras e vendas,
direção dos trabalhos, contabilidade da quinta;
direção dos jogos; redação do Boletim da escola.
210 Uma escola nova na Bélgica

Para cada trimestre a assembleia nomeia um


presidente, cuja função é zelar pela ordem geral
dos alunos e pela execução das decisões da as-
sembleia, representar os alunos nas reuniões da
associação de pais, ou seja, coordenar os esforços
de todos, fazer a ligação entre as várias funções e
resolver certos conflitos que possam surgir.
Além destes cargos trimestrais, existem outros
em que a rotatividade é necessária para que todos
os desempenhem e adquiram hábitos básicos de
ordem e limpeza, espírito de iniciativa e sentido
de responsabilidade. Todos os meses, ou todas as
semanas, as crianças distribuem as tarefas entre
si, algumas das quais, evidentemente, são pouco
agradáveis.
Como exemplo de tarefas mensais temos a de
socorrista, a dos jogos (ordem e arrumação dos
brinquedos), a do serviço de encomendas e o jor-
nal da escola.
Quanto às tarefas semanais podemos referir as
que dizem respeito à supervisão da ordem e lim-
peza do balneário, dos arrumos do calçado, do
vestiário e das instalações sanitárias. Além disso
há ainda: o árbitro dos jogos, o responsável pelas
A. Faria de Vasconcellos 211

papeladas, os alunos encarregados de tratar e dar


de comer aos animais da quinta e da capoeira.
Quais são as características principais de toda
esta organização?
a) Em primeiro lugar constatamos que a assem-
bleia dos alunos tem um papel quase soberano.
Apenas em casos graves, onde a inexperiência dos
alunos poderia comprometer o espírito educativo
da escola, é que oponho o meu veto a decisões da
assembleia. Isso acontece muito raramente, pois
com o sistema de vida que temos em Bierges, fran-
co, aberto, leal e familiar, somos capazes de exer-
cer, por intermédio dos mais velhos, uma certa
influência, um certo controlo, uma certa orienta-
ção sobre as decisões da assembleia. Com muito
tacto, os professores, como se fossem colegas mais
velhos, podem preparar o terreno para discussões
e troca de opiniões com os mais novos.
A assembleia não tem apenas poderes consul-
tivos, compete-lhe encontrar soluções para os pro-
blemas, reservando-se o diretor o direito de veto.
b) Em segundo lugar, os alunos que aceitaram
cargos por um período determinado, um trimes-
tre, um mês ou uma semana, só podem demitir-se
em casos excecionais, examinados e com o acordo
212 Uma escola nova na Bélgica

da assembleia dos alunos. Cumpre-se assim o


princípio de que qualquer tarefa assumida livre-
mente deve ser levada até ao fim. Isso é do pró-
prio interesse da criança e cultiva nela a paciên-
cia, a perseverança e a força de vontade.
c) Em terceiro lugar, os cargos são distribuídos
segundo as capacidades físicas e psicológicas dos
alunos.
d) Em quarto lugar, os alunos desfrutam de am-
pla liberdade de ação e iniciativa no desempenho
das suas funções e, sendo assim, assumem uma
grande responsabilidade real e efetiva (p. 49-51).

2. Concentração do trabalho

Além desta cooperação na vida social da escola,


resultante da divisão do trabalho, a criança tem
talvez uma participação mais direta ainda na or-
ganização da vida escolar: organização de festas,
palestras, excursões, discussão de várias questões
relativas à vida interna da escola. Participa na ela-
boração do horário geral do estudo e dos trabalhos
manuais. Este horário é discutido em reuniões da
assembleia dos alunos, havendo por vezes altera-
ções para satisfazer desejos legítimos. Através do
trabalho manual e outras formas, as crianças cola-
boram na manutenção e melhoria dos edifícios, do
A. Faria de Vasconcellos 213

material e coleções da escola, como foi referido.


Paralelamente à vida social da escola, os alu-
nos organizam associações e grupos: clubes de jo-
gos e de campismo. O escritório de encomendas,
que cada mês está a cargo de um aluno para com-
prar material escolar (papel, lápis, borrachas, ca-
dernos, canetas e estojos, papel mata-borrão), é
gerido pelos próprios alunos, não havendo qual-
quer interferência da escola. É também a socie-
dade cooperativa que explora diretamente por
sua conta o domínio agrícola da escola (p. 64).
O leitor já terá compreendido que o nosso sis-
tema de autonomia não se aplica integralmente aos
alunos dos 7 aos 9 anos, dado que ainda estão num
estádio de evolução em que o sistema patriarcal e
familiar é para eles o mais adequado. Uma vez que
não têm nem podem ter ainda um sentido claro e
completo da vida social, para eles o grande juiz, o
sumo-sacerdote, não é a coletividade nem a assem-
bleia dos alunos, mas a “mamã Faria” ou o “papá
Faria", como dizem. A palavra do patriarca, do pai,
é tudo para eles. E é inútil querer queimar etapas.
No entanto, por mimetismo e como os mais peque-
nos gostam de se parecer com os mais velhos e fazer
como eles, também quiseram organizar-se social-
214 Uma escola nova na Bélgica

mente. Eis o que diz um homenzinho de 9 anos:


OS MAIS PEQUENOS
Após as férias de Natal, os mais pequenos decidiram
nomear entre si um presidente e procederam à eleição. Não
correu bem, pois cada um votou em si próprio, mas, quando
o Prof. Faria nos explicou que não devia ser assim e que até
era indelicado, fizemos nova votação. Fui eleito presidente
por um mês, e propus que cada aluno tivesse uma tarefa na
nossa turma para: a biblioteca, o quadro, a disciplina da
turma, o fogão da sala, a estante, as flores, as coleções. Acei-
taram a minha proposta. O Prof. Faria encarregou-nos de
cuidar de alguns animais, ou seja, de lhes dar de comer e
levá-los ao campo. Os nossos animais são uma cabra, coe-
lhos, dois cães, trinta galinhas e pombas. Todas as semanas
trocamos de animais e de coisas da nossa turma…

III. Liberdade, autoridade, sanções, professores


Além desta organização social, num ambiente
sólido de existência coletiva, onde o sentimento de
vida social se afirma e se desenvolve, cultivamos
com a mesma disposição, ardor e zelo os senti-
mentos de iniciativa, independência e responsabi-
lidade pessoal. Deixamos a criança em grande li-
berdade. Não aplicamos qualquer disciplina auto-
ritária que imponha à criança hábitos morais de
que ela não entenda nem a razão nem a finalidade.
Levamos cada criança a criar para si própria uma
regra interior, resultado das suas experiências
pessoais, e fruto da adaptação espontânea à vida
A. Faria de Vasconcellos 215

escolar, à vida social com os colegas e professores.


[a] Em todos os domínios da escola, na vida física,

no trabalho manual, nas aulas, apelamos à colabo-


ração ativa, interesse, curiosidade, iniciativa e es-
forço individual da criança. Existe liberdade de
movimento, liberdade de ação, criação, organiza-
ção, pesquisa, utilização de tudo o que a escola co-
loca à disposição do aluno. Recordo o que escrevi
sobre o trabalho manual, as aulas, os laboratórios,
os princípios da nossa educação intelectual e os
meios de a pôr em prática, adaptando-a às capaci-
dades, desenvolvimento fisiológico e psicológico
da criança. O aluno não abusa da liberdade que lhe
é concedida.
Isto não quer dizer que não exista autoridade.
A supressão das punições que degradam e humi-
lham a criança não implica que deixe de haver
sanções. Estas sanções, no entanto, não são artifi-
ciais mas naturais; a criança adquire à sua custa a
experiência do bem e do mal. É livre mas respon-
sável; pode e deve medir as consequências dos
seus atos e reparar, sempre que possível, os pre-
juízos causados. Aquele que quebra coisas subs-
titui-as com a sua mesada; o que não fez o traba-
lho na hora certa fá-lo durante os tempos livres; o
que deixa as coisas desarrumadas arruma-as;
quem suja limpa; o aluno que habitualmente se
216 Uma escola nova na Bélgica

atrasa deve começar mais cedo para chegar a ho-


ras; ao aluno que agiu mal chama-se-lhe a aten-
ção para a ação que cometeu e relembram-se-lhe
as boas ações que ele já realizou noutros momen-
tos. O contraste ilumina o caminho e faz inclinar
a balança para o lado do bem.
Em Bierges as sanções são prescritas pela as-
sembleia dos alunos que vota as leis e as regras, o
que lhes confere um carácter impessoal. E uma
vez que são voluntariamente aceites por todos,
resulta daí que todos aceitam a sua aplicação sem
rancor nem ressentimento.
O equilíbrio físico e moral é essencial numa es-
cola verdadeiramente nova, onde se tem em conta
o temperamento, as necessidades e o carácter da
criança, onde o ambiente é composto por todos os
elementos e fatores indispensáveis ao seu desenvol-
vimento. O ambiente que aí se vive é gerador de um
clima de calma, saúde e vigor físico e moral, de sim-
plicidade, cordialidade, franqueza. Para isso contri-
buem o ar fresco, a luz, o espaço, a liberdade, o tra-
balho físico e manual, uma alimentação adequada,
um número suficiente de horas de repouso, um es-
tilo de vida intelectual e métodos de ensino que
têm em conta as especificidades de cada criança.
Este ambiente natural de Bierges, muito calmo
e tranquilo, tem uma influência decisiva.
A. Faria de Vasconcellos 217

Numa Escola nova aplica-se rigorosamente o


princípio de que nenhuma criança com deficiên-
cia é aceite para bem de todos. [a]
É essencial que os pais entendam que uma Es-
cola nova não é um depósito nem o último re-
curso para os filhos quando o resto falhou.
Em Bierges não aceitei todos os candidatos e
quer os alunos quer os pais sabiam que os admi-
tidos o eram condicionalmente.
Pude, assim, criar um ambiente muito saudá-
vel e três ou quatro meses após a abertura da es-
cola havia um clima onde reinava uma vida física
e moral sólida com um elevado espírito social.
À influência indireta do meio físico e do meio
social, vem juntar-se a ação mais direta dos cole-
gas e mestres.
Dirigimo-nos em primeiro lugar aos mais velhos
que se mostram dignos de confiança, a quem pedi-
mos para exercer uma influência direta sobre os
mais pequenos e os do meio. São nomeados pela as-
sembleia dos alunos e cada um deles tem a seu cui-
dado dois ou três alunos mais novos para que che-
guem a horas às aulas e às refeições, andem com
roupa interior limpa e asseados, tenham os livros
em ordem e o caderno de despesas atualizado e no
caderno diário, revisto todos os sábados, conste o
218 Uma escola nova na Bélgica

que foi feito e esteja em dia. São como irmãos mais


velhos que ajudam os mais novos na aquisição de
hábitos elementares de ordem e limpeza. Por seu
lado, os mais velhos aprendem a ter paciência e ad-
quirem hábitos sociais de dedicação, solidariedade [a]
e tolerância [b]. Os resultados têm sido excelentes.
É desnecessário dizer que a influência dos pro-
fessores não é menos eficaz do que na pedagogia
antiga em que a criança era considerada um delin-
quente com necessidade constante de ser corrigido
e, por isso, havia métodos autoritários e policiais
permanentes.
Num estilo de vida franco, cordial e aberto, o
professor é um companheiro mais velho, um amigo
que compreende e em quem se pode confiar, que se
interessa pelos alunos, pelo que vivem e pelo que
fazem. Ele é para a criança como um irmão mais ve-
lho com mais experiência, que joga, trabalha e ri com
ela, e não como um sabichão que impõe, um polícia
que espreita, um guarda que dá ordens, um juiz
frio, severo e austero ou um carcereiro implacável.
A escola não é uma prisão. O aluno age, pensa e sente
em liberdade. Num ambiente destes a influência do
professor é mais abrangente, os seus efeitos mais
eficazes, os seus resultados mais duradouros.
É tocante ver como em Bierges os alunos vêm
A. Faria de Vasconcellos 219

facilmente ter connosco. Aconselhamo-los, direta ou


indiretamente, com espírito de persuasão, mas sem-
pre com amizade e afeto para que se esforcem de
modo a progredirem por si próprios dentro das suas
possibilidades. Sempre que as circunstâncias nos
impõem o dever de intervir e aplicar uma sanção,
cuidamos para que essa sanção seja simultanea-
mente adequada à natureza da criança, à natureza
do ato em si e às circunstâncias em que foi praticado.
Queremos sobretudo que a sanção seja compreen-
dida pelo aluno, sentindo a sua utilidade e reconhe-
cendo a relação lógica, proporcional e harmoniosa en-
tre a falta cometida e a sua reparação. O que for além
de uma sanção natural e lógica será uma punição de-
gradante que leva à humilhação e revolta da criança.[a]
Vamos supor, por exemplo, que um dos alunos
tem falta de arrumação, limpeza, atenção, aplica-
ção, espírito de trabalho, dedicação, altruísmo ou
solidariedade. Colocamo-lo num cargo em que ad-
quira, desenvolva e fortaleça os hábitos e sentimen-
tos que lhe faltam. Numa escola onde se aplica um
sistema de autonomia a sério e bem compreen-
dido não faltam oportunidades para isso.
Não o desencorajamos, ajudamo-lo. O nosso
lema é ajudar a criança a tornar-se melhor.
E a melhor maneira de garantir isso é seguir à le-
tra o belo princípio de higiene moral enunciado por
220 Uma escola nova na Bélgica

Ad. Ferrière: devemos agir de modo «que prevale-


çam as sanções positivas sobre as negativas, as ale-
grias sobre as tristezas, sobre os remorsos e sobre as
humilhações, que diminuem a força de viver e rara-
mente dão bons resultados».1 É preciso apelar aos
sentimentos de orgulho saudável e autoestima, que
têm uma influência positiva na criança e não fazê-
la viver num clima de opressão e recriminações. É
preciso mostrar-lhe que o seu erro é ocasional e não
uma doença e que com paciência e determinação
conseguirá superar-se. É por isso que em Bierges le-
vamos as crianças a prestar atenção ao seu próprio
progresso, a medir as suas forças, a apreciar e a com-
parar o seu trabalho intelectual ou o seu esforço
moral com o que conseguiram antes. Insistimos na
emulação individual, sem esquecer a emulação
social que, utilizada com muito tacto, pode tornar-
se uma poderosa alavanca da educação moral.
Também damos recompensas, mas não como
um isco que perverte o sentido ético do esforço.
Não há nenhum negócio entre aluno e professor
no início do trabalho. Além disso, a recompensa
não se segue imediatamente ao esforço realizado,
pois não convém que pareça que o professor está
a pagar uma fatura cobrada pelo aluno.

1 Projet d’école nouvelle, p. 49-50


A. Faria de Vasconcellos 221

A recompensa é uma questão que exige tacto


e delicadeza. Vamos supor que um dos alunos
acaba um trabalho livre, pessoal e que o interes-
sou. Esforçou-se e está satisfeito consigo próprio.
Mas a satisfação pessoal do dever cumprido não
é suficiente, ele precisa também da aprovação en-
corajadora dos outros. A aprovação será ainda
mais preciosa se for concretizada num ato ou
numa oferta: um livro sobre o tema estudado,
uma ferramenta de trabalho ou uma folga para se
refazer do esforço realizado. Mas é preciso muito
tacto. Não basta dar, é preciso saber dar.
No segundo capítulo (p. 105), mencionei o pro-
cesso de avaliação na escola de Bierges cujos re-
sultados me agradaram particularmente.
A fim de desenvolver o espírito crítico da
criança, de a habituar a controlar os seus atos, a
saber como os outros a veem e também para for-
talecer o seu sentimento de equidade, justiça e ge-
nerosidade, uma ou duas vezes por trimestre fa-
zemos uma apreciação do trabalho e do compor-
tamento de cada aluno, em que cada um fala de
si e ouve as opiniões que os seus colegas têm so-
bre si próprio.
Nessas discussões a criança é levada a comparar
222 Uma escola nova na Bélgica

o seu eu presente com o seu eu passado, a fazer


um exame de consciência, a olhar para si própria
e a analisar os esforços realizados, mas também a
apreciar os dos seus colegas, para aprender a ser
leal, sincera, justa, tolerante e generosa. Todos os
que tomaram parte nessas discussões ficaram
profundamente impressionados. O sentido de
sintonia psicológica, tão marcante na maioria das
crianças, atinge uma profundidade e adquire
um espírito de tolerância e de caridade bem com-
preendida que aumenta ainda mais o seu valor.

A escola tem, como já referimos [a], dezassete


professores, incluindo um contramestre serra-
lheiro e outro marceneiro. Dezassete professores
para vinte e cinco alunos! Estes números sur-
preendem e pensar-se-á que uma escola tem de
ser milionária para poder suportar as despesas de
um corpo docente tão numeroso ou então o ven-
cimento dos professores é muito baixo. Mas ne-
nhuma dessas hipóteses corresponde à realidade.
Todos os meus colaboradores são externos, ex-
ceto um. Ao contrário das outras escolas novas
onde os professores são internos, preferimos cla-
ramente a nossa solução, pelas seguintes razões:
a) Em primeiro lugar a nossa escola mantém um
A. Faria de Vasconcellos 223

carácter mais familiar, o que não aconteceria se ti-


véssemos que alojar vários professores.
b) Evitamos as dificuldades que resultam da
falta de adaptação dos professores internos ao am-
biente familiar da escola. Esta falta de adaptação
quase inevitavelmente leva a desacordos evidentes
ou ocultos que podem perturbar a ação educativa.
c) Este sistema permite ao professor ter a sua
vida própria, autónoma, em ambiente distinto do
da escola. Ter a sua vida familiar, moral e intelec-
tual, mantendo a liberdade pessoal e a indepen-
dência de espírito é indispensável para a missão
de educar que já de si é extremamente absorvente
e desgastante. O professor precisa de se recompor
e de ter um ambiente adequado às necessidades
de um adulto.
d) Aproveitamos também algo de extrema im-
portância, tanto em matéria de instrução como de
educação: o professor que não vive na escola traz
de fora um sopro vivificante de abertura, que
serve para combater o automatismo e a rotina,
sempre presentes num ambiente muito estável e
homogéneo. Os nossos professores trazem nu-
merosas e variadas impressões, sugestões, obser-
vações, ensinamentos numerosos e variados e
fazem-no ainda melhor porque vivem todos em
224 Uma escola nova na Bélgica

Bruxelas, um centro de vida intensa, intelectual,


moral e social.
e) Vendo a forma como as matérias são agrupa-
das e concentradas, o professor que vem à escola
um, dois ou três dias por semana, passa aqui a maior
parte do dia, convive com os alunos e participa nas
refeições e nos jogos. A sua influência, por assim
dizer, espaçada e não uniformemente contínua,
leva a reações mais ricas e variadas, porque há mais
interesse e mais atração nas relações que, embora
frequentes, não são permanentes, como no caso dos
professores que vivem no regime de internato.
Como o valor da vida não depende da quantidade
mas da qualidade das horas que a compõem, profes-
sores e alunos não perdem nada em relação ao co-
nhecimento mútuo nem à compreensão recíproca.
A experiência feita em Bierges teve excelentes
resultados e estamos muito satisfeitos.

IV. O gosto, a arte, a música, o canto


A formação do gosto da criança, a sua iniciação
e educação estéticas constituem um dos problemas
mais interessantes com que um professor tem de li-
dar quando está a organizar a vida de uma escola.
Como podemos despertar e fortalecer o senti-
mento de beleza nas crianças? A que meios se pode
A. Faria de Vasconcellos 225

recorrer para alcançar este fim?


Evidentemente também aqui não devemos ten-
tar medidas isoladas das que constituem a organi-
zação geral da vida escolar. Temos muitas oportu-
nidades para despertar e formar o gosto estético de
uma criança. Devemos fazê-lo a propósito de tudo
e de nada. O espírito do aluno deve respirar beleza
como os pulmões respiram o ar puro do campo.
O amor pela beleza da forma, o amor da ver-
dade e o amor do bem constituem a aliança sa-
grada das forças morais. Assim como em relação
às outras atividades ou manifestações da vida da
criança, também neste caso não se pode isolar a
formação do gosto, a iniciação estética e a cultura
artística do conjunto da vida escolar.
No dia a dia temos mil oportunidades para
chamar a atenção de uma criança para coisas belas,
ou, noutros casos, para o que se considera feio.
Mas temos que ter em conta a idade das crianças,
e é óbvio que os mesmos meios de iniciação e de
cultura estética não se aplicam a todos por igual.
Relativamente à formação do gosto, os mais pe-
quenos não ganham nada com a visita a um mu-
seu de pintura ou escultura, em ouvir um concerto
ou assistir a uma peça de teatro acima do seu en-
tendimento. Não têm desenvolvimento intelectual
226 Uma escola nova na Bélgica

para apreciarem o seu valor.


A educação artística pode ser direta ou indi-
reta. Na base desta educação está o apreço pela
ordem e a limpeza da escola, tanto nos quartos e
nas salas de aula, como nos cadernos, nos livros,
nas gavetas, na roupa e no modo de se apresen-
tar. É por aqui que começa a formação estética. É
elementar, muito simples, mas fundamental.
Em primeiro lugar o nosso objetivo é portanto
a ordem e a limpeza, a organização da casa em que
a criança vive e cresce. E porque estamos a falar da
casa, do seu interior, por toda a parte há plantas,
reproduções de quadros e estátuas e numerosas
gravuras para atrair a atenção e encantar o olhar.
Além disso, alguns dos trabalhos que os alunos
fazem – os melhores desenhos, as melhores aguare-
las, os melhores objetos esculpidos – são auxiliares
preciosos para a decoração da escola e mais concre-
tamente dos quartos das crianças e das salas de aula.
Fora da escola é a natureza, as árvores, as flo-
res, os campos, tesouros inesgotáveis de emoções
doces e reconfortantes. Ensinar a criança a obser-
var a natureza é dar o primeiro passo para que
ela comece a contemplá-la, a admirá-la, a amá-la.
É abrir o seu coração a todas as maravilhas: as das
A. Faria de Vasconcellos 227

linhas, cores, formas, sons da natureza.


Jardinagem, cultura de flores, leitura ao ar li-
vre debaixo das árvores, passeios, excursões,
acampamentos na floresta, observação e estudo
dos fenómenos naturais provocam sensações e
emoções inesquecíveis! E constituem um recurso
permanente na vida da escola.
Vivemos em plena natureza. Eu já disse que o
ambiente natural que rodeia a escola é pitoresco
e belo.
A festa da natureza é a grande festa da escola.
É a festa das aves e das árvores. É a nossa festa por
excelência. Permitam-me que a descreva em pou-
cas palavras.
É uma festa organizada pelos alunos e com-
preende as seguintes atividades:
1.º Libertação de aves, compradas pelos alunos
com a própria mesada, aos vendedores de aves. É
a libertação da prisão da gaiola e a devolução à
natureza. No nosso último festival a libertação foi
precedida por algumas palavras bem escolhidas,
inventadas, escritas e recitadas por alunos selecio-
nados para o efeito pelos colegas. Foi uma oca-
sião emocionante, que comoveu muitos adultos.
2.º Colocação de ninhos artificiais nas árvores.
Estes ninhos foram feitos pelos mais velhos na
228 Uma escola nova na Bélgica

carpintaria e oferecidos aos mais novos que, por


sua vez, os decoraram no interior com pensamen-
tos encantadores e ingénuos dirigidos às aves.
3.º Leitura de trabalhos individuais sobre as ár-
vores, recitação de poesias, cânticos em coro e mú-
sica. Uma festa divertida, bem adaptada ao gosto
das crianças, que deixa ótimas recordações.
Voltemos à questão da formação do gosto.
Os professores despertam e formam o gosto
das crianças com a cartonagem, modelagem, de-
senho, aguarelas e mesmo pintura a óleo.
Os alunos organizam todos os anos uma expo-
sição de desenhos, aguarelas, objetos modelados,
trabalhos artísticos em madeira e ferro forjado que
realizaram ao longo do ano. Alguns trabalhos são
mesmo belos. Esta exposição foi designada por eles
como o “Salão dos Independentes” e foi visitada
por um grande número de familiares e amigos.
Entre os nossos métodos favoritos, devo men-
cionar as visitas frequentes a museus e exposições
de pintura e escultura. Nessas ocasiões os alunos
mais velhos e também a maior parte dos do meio
são acompanhados por artistas amigos da escola.
Os mais velhos, para quem adquirimos assi-
naturas, assistem regularmente aos grandes con-
certos mensais na Ópera de Bruxelas, às manhãs
A. Faria de Vasconcellos 229

literárias consagradas ao teatro clássico e a persona-


lidades do teatro moderno. Além disso, têm na escola
sessões de leitura e palestras realizadas por eles ou
organizadas para eles, onde apreendem novos ele-
mentos de iniciação artística. É de referir também
que os mais pequenos organizam as suas represen-
tações teatrais. Finalmente, todas as crianças apren-
dem canto e os coros têm um efeito espetacular
nas festas e concertos que organizamos na escola.
Como se vê, o quadro de ocupações e meios no
campo da educação artística é bastante completo.

Queria ainda abordar duas questões: a da edu-


cação sexual e a da coeducação, porque ambas têm
uma importância de que o leitor, sem dúvida,
avaliará o alcance.

V. Educação sexual e coeducação

Em Bierges a sexualidade é tratada com tacto


e franqueza. Uma criança que vive no campo tem
aí uma iniciação natural e saudável. A criação de
animais, a jardinagem, o cultivo de flores colo-
cam-na naturalmente em contacto com fenóme-
nos e problemas desta ordem. O professor leva-a
a observar esses fenómenos e explica-lhos com a
mesma simplicidade com que a leva a observar e
230 Uma escola nova na Bélgica

compreender os outros fenómenos orgânicos. À


medida da idade de cada um, os nossos médicos
vão falando de todos os problemas de higiene in-
dividual e social referentes a este assunto.
Uma criança com um estilo de vida como o da
nossa escola − vida ao ar livre; alimentação ade-
quada e livre de estimulantes; banhos e duches
diários; trabalhos manuais e exercícios físicos nu-
merosos e variados que produzem um cansaço
saudável; trabalhos acompanhados de desportos
e jogos, com um programa de trabalho intelectual
sem ser excessivo, mas que leva a uma real e sau-
dável atividade moral e social e que comporta co-
nhecimentos naturais e verdadeiros de higiene
sexual − essa criança não está exposta a compro-
meter a sua saúde física e moral.
Quanto à coeducação dos sexos, de que sou um
defensor, as suas vantagens parecem óbvias. Acabo
de ler com muito interesse os argumentos dos que
são a favor e dos que são contra, e também os pon-
tos de vista sábios e objetivos que Adolphe Ferrière
desenvolve no artigo «Coéducation et mariage»,
publicado na revista Foi et Vie, n.os de 1 e 15 de junho
de 1914 [a], cuja leitura recomendo. Ferrière discute
a questão com o domínio, o bom senso e a delicadeza
que sempre põe ao tratar de temas de educação.
A. Faria de Vasconcellos 231

Apesar de ser convictamente a favor da coeduca-


ção, ainda não tive oportunidade de a introduzir
em Bierges, estando à espera do momento oportuno
para o fazer. Num país onde as questões educativas
são debatidas com extraordinária intransigência e
onde não há qualquer antecedente de coeducação,
teria sido perigoso lançar-me numa experiência que
haveria de acrescentar mais dificuldades às que já
não são poucas para criar a primeira Escola nova
na Bélgica. Mas sempre foi minha intenção intro-
duzir a coeducação, logo que a escola, pela sua au-
toridade, pelas suas experiências e pelos seus resul-
tados, possa introduzir esta inovação. Os que são
contra a coeducação apresentam três argumentos
contra os que a praticam: é aplicada por razões eco-
nómicas, oprime as raparigas submetendo-as ao
mesmo regime dos rapazes e desvia cada um dos
dois sexos daquilo que constitui o seu próprio ideal.
Pelo contrário, os factos e as experiências das esco-
las em que a coeducação é implementada em con-
dições adequadas permitem afirmar que ela tende
a assegurar a cada sexo uma evolução normal; e
que a escola mista, longe de diminuir ou extinguir
a virilidade nos meninos e a feminilidade nas me-
ninas, permite ao contrário o seu desenvolvimento
natural. As tendências e aptidões próprias de cada
232 Uma escola nova na Bélgica

sexo não se excluem nem se perdem, mas comple-


tam-se, de tal maneira que a presença recíproca e
constante de indivíduos de cada sexo é necessária
a uns e outros e consegue evitar o desenvolvi-
mento unilateral e exclusivo das inteligências e
dos caracteres.
Rapazes e raparigas ganham em conviver uns
com os outros. Como refere Burness [a], a camara-
dagem, a vida em comum e os interesses comuns
tendem a estabelecer uma base de conhecimentos
e de simpatia, ao mesmo tempo que atenuam e
retardam a tensão nervosa de origem sexual.
A coeducação cria uma camaradagem franca,
saudável e simpática entre rapazes e raparigas. Não
impede o desenvolvimento normal das tendências,
aptidões, inteligências e caracteres próprios de cada
sexo, mas, pelo contrário, favorece as suas mútuas
interações. Permite a rapazes e raparigas conhece-
rem-se uns aos outros, colaborem e entreajudem-
se. Por isso constitui uma das condições mais favo-
ráveis para levar a casamentos felizes e vigorosos.
*
* *
Algumas palavras mais antes de terminar.
Creio ter percorrido o caminho certo. Posso
concluir que com os métodos e uma vida vivida
como em Bierges as crianças se desenvolvem nas
melhores condições. As nossas viviam felizes.
A. Faria de Vasconcellos 233

Os pais diziam-me que os filhos esperavam impa-


cientemente pelo fim das férias para voltarem para
a escola. Não admira o que um deles escreveu no
Boletim dos alunos a propósito dos motivos que os
levaram a fazer a sua publicação.
Queremos por este meio dar a conhecer a nossa escola
e os novos métodos aí aplicados. Trabalhamos com prazer
e somos felizes. Os que como eu frequentaram outros colé-
gios veem a diferença melhor do que os outros; queremos
que mais crianças usufruam desta vida bela e agradável.

Quais são os resultados obtidos pela escola?


Uma vez que a escola só tem dois anos de exis-
tência, não é possível falar de conquistas definiti-
vas, de influências decisivas sobre o desenvolvi-
mento moral e intelectual dos alunos. Não ponho
em questão que em muitos casos uma boa escola e
a personalidade do diretor possam desencadear a
realização imediata das promessas contidas em
germe na natureza de uma criança. No entanto, de
um modo geral, educar só pode produzir pleno
efeito quando, a todos os outros fatores indispensá-
veis, acrescentarmos o do tempo.
Peço desculpa, mas vou citar algumas passa-
gens de cartas de um jovem que passou dois anos
connosco em Bierges e cujo desenvolvimento
foi particularmente gratificante. Chegou à escola
234 Uma escola nova na Bélgica

impulsivo, autoritário, sem vontade de ultrapas-


sar as dificuldades, desanimava com facilidade,
era inteligente, mas confuso e com tendência para
se dispersar. Em dois anos, num ambiente calo-
roso, afetuoso e organizado como o nosso, conse-
guiu, com um esforço atento e contínuo, adquirir
e desenvolver as qualidades de ordem, calma, au-
tocontrolo, iniciativa, vontade, clareza de pensa-
mento que hoje fazem dele um homem.
Aqui estão três cartas dele datadas, as duas
primeiras da Escócia e a última de Paris.

I
Stirling, 17 de janeiro de 1915
Caro professor Faria,
Mal posso encontrar palavras para descrever a minha
felicidade ao receber ontem a sua carta. Eu estava no escri-
tório e só me foi possível lê-la às duas e meia da tarde, o que
só aumentou a minha curiosidade. Depois reli-a várias ve-
zes e achei-a extremamente encorajadora e altamente edu-
cativa. Experimentei uma sensação de esperança e de gran-
de otimismo. Vejo-o a 30 km da linha de fogo, tomando
medidas para abrir uma escola provisória. Como é belo…
Teremos muitas coisas para dizer um ao outro quando
nos reencontrarmos.
Agora vou contar-lhe algumas coisas sobre a minha nova
vida e as minhas aventuras desde que saí daí.
Passei dois meses maravilhosos em Oxford, o que muito
contribuiu para aumentar os meus conhecimentos e a minha
formação. No primeiro mês frequentei os cursos de férias para
A. Faria de Vasconcellos 235

estrangeiros, indo e vindo de bicicleta. Vivia numa encanta-


dora aldeia a onze quilómetros de Oxford, onde a vida do cam-
po era maravilhosa. Todas as manhãs tinha um panorama
admirável da cidade, dos seus velhos colégios históricos, das
suas igrejas. Esta é uma cidade interessantíssima, cada coisa
tem a sua história, cada cerimónia tem uma tradição antiga.
Tínhamos três ou quatro conferências por dia, a maior
parte era por módulos extremamente instrutivos, com temas
variados: literatura inglesa, história da língua, vida política,
económica, social e sistema colonial e educativo inglês. Tirei
muitas notas. Os palestrantes eram escolhidos entre os me-
lhores professores da universidade. Duas vezes por semana
à tarde eram organizadas visitas a colégios e passeios.
Nos tempos livres jogava ténis e fazia corridas de canoa
no rio que era maravilhoso.
Organizei a minha vida muito bem e geri muito bem o
meu tempo. Dormia oito horas, trabalhava oito horas e di-
vertia-me oito horas. Dois dias por semana trabalhava 6 ho-
ras e jogava 10, estes dias eram dedicados ao ténis.
Mas o que é bom acaba depressa. Em meados de setem-
bro perdi a esperança de voltar a Bierges e queria alistar-me.
A conselho do meu pai, desisti por agora dessa ideia e come-
cei a procurar trabalho. Não foi fácil. Escrevi para todos os
meus contactos em Inglaterra e só obtive respostas negativas.
Coloquei dois anúncios no jornal, contactei cinco ou seis pes-
soas influentes, grandes agricultores, mas não consegui
nada. Até que um dia recebi uma carta de um comerciante
escocês que tinha negócios com meu pai, dizendo que um
dos seus empregados se tinha alistado e eu poderia ocupar o
seu lugar. Escrevi-lhe a perguntar qual o salário e, quando
obtive resposta, fui para Stirling. Cheguei a 1 de outubro
236 Uma escola nova na Bélgica

doente como os peixes de Jacques! Não sei porquê. Mas uma


semana depois estava instalado. Fiquei num quarto que tam-
bém serve de sala. Tem dois passos de comprido e um e meio
de largura. A cama é enorme e os quadros horríveis. A vista
da janela a leste dá para os telhados e chaminés dos vizinhos
e para o estábulo do hotel do lado. É encantador, poético!
Uma senhora vem fazer a limpeza do quarto e cozinhar
para mim. Pago-lhe 56 xelins ou 70 francos por mês para
alojamento, comida e luz. Só tenho aquecimento ao do-
mingo à noite, porque é muito caro.
A empresa onde trabalho comercializa grãos, feno e pa-
lha. Somos cerca de dez no escritório. Trabalhamos das oito e
meia da manhã até às oito e meia da noite e às vezes até às
nove ou mesmo até às nove e meia. Só paramos meia hora
para almoçar e vinte minutos para o chá. O resto do tempo
trabalhamos intensamente sem intervalo. Temos 150 a 200
cartas diárias e compramos e vendemos de 10.000 a 13.000
quintais de grão por semana. Adicione 100 a 150 toneladas de
feno por semana e poderá imaginar o trabalho que temos.
A maioria dos trabalhadores sai cedo para os mercados
das cidades vizinhas, alguns vão até 120 quilómetros de
Stirling e não regressam antes das cinco da tarde. Em se-
guida, vem o período mais agitado do dia: a correspondên-
cia. Eu escrevo ainda poucas cartas, mas copio-as e escrevo
os endereços.
De manhã trabalho no escritório, nos livros e nas amos-
tras até às onze e meia, depois vou de bicicleta a quintas, a
seis ou sete quilómetros, comprar grão descascado no dia.
À uma hora ou uma e meia almoço, depois vou a outras
quintas mais distantes, compro grão e feno se houver para
comprar e vendo bagaços, farelos, adubos químicos. Às
A. Faria de Vasconcellos 237

cinco horas regresso, tomo o chá e depois fico no escritório


até muito tarde. À noite, três vezes por semana, dou aulas
de francês a civis e a oficiais que devem ir para França. Os
oficiais não pagam nada, mas os civis pagam-me o suficiente
para com o meu salário não ter de pedir nada aos meus pais.
Aqui vão, caro professor Faria, alguns pormenores da
minha vida. Como pode ver, estou longe de sofrer de tédio
com tanto trabalho. Ultimamente senti uma grande mu-
dança. Em outubro senti-me só como se estivesse no meio
de uma floresta sombria. Aqui as pessoas são extrema-
mente reservadas e falam muito pouco. São muito fechadas
e só se abrem com os amigos. No início não conhecia nin-
guém, mas pouco a pouco tenho conhecido muita gente. Te-
nho muito mais coisas para contar, professor Faria, mas é
tarde. Adeus…
II
Stirling, 25 de abril de 1915
Caro professor Faria,
Por aqui tudo bem. A primavera chega mais tarde do
que na Bélgica, mas aproveitamo-la bem. As árvores bro-
tam e todo o campo desperta após um longo inverno…
Mudei um pouco a minha vida. Há dois meses que me
levanto às cinco ou cinco e um quarto da manhã e vou tra-
balhar num jardim a quatro ou cinco quilómetros da cidade
nos montes das redondezas que aluguei por dez xelins.
Fiz todo o trabalho sozinho, estrumei, cavei e semeei. O
jardim é grande, cerca de metade da horta de Bierges…
Há três semanas que cuido de outro jardim. É de um
amigo muito preguiçoso para trabalhar a terra. Cultivo um
terço para ele e o resto para mim e assim não pago nada…
Como vê, ocupo-me de agricultura, duas horas cada
238 Uma escola nova na Bélgica

manhã e as tardes de sábado... Estou a pensar oferecer os


produtos da horta a um jardim infantil ou a uma enferma-
ria de soldados em convalescença e poder ajudar com o
meu trabalho a manter essa instituição durante a guerra
para a qual ainda não fui chamado a tomar parte ativa…
À noite ainda tenho sete alunos civis em três turmas e
também uma turma de oficiais.
Aqui tem, caro professor Faria, uma breve descrição
da minha vida. Espero que fique contente comigo. Gosto de
mostrar que passei pelas suas mãos durante dois anos…

III
Paris, 15 de junho de 1915
Caro professor Faria,
Não sei como lhe dizer da minha alegria ao saber que o
meu irmão vai para junto de si. Agradeço-lhe sinceramente
que faça dele um homem. Estou ansioso por o ver partir
para os seus cuidados, pois sei quanto aprendi consigo e es-
tou-lhe grato para o resto da minha vida. Em Bierges não
me apercebi completamente do bem que me fez, mas
quando fiquei sozinho, nos momentos difíceis, é que me
apercebi. Se não fosse a minha experiência em Bierges,
ainda que breve, nunca teria conseguido organizar-me de
forma tão ativa, saudável e interessante. Muito obrigado,
caro professor Faria, por ter feito de mim um homem.
Regressei à Escócia para me alistar no exército; está
quase tudo pronto e na segunda-feira estarei de uniforme
e poderei enviar-lhe uma foto minha. Serei um azul em
engenharia. A vida no quartel não me atrai, mas vou de-
senrascar-me. Espero ir combater o mais rapidamente
possível para poder ter parte ativa nesta luta pela vida e
pela liberdade das pessoas que tanto amo.
A. Faria de Vasconcellos 239

Chegou ao fim esta nossa peregrinação.


A escola de Bierges não pretendeu atingir a
perfeição, era um simples laboratório para inves-
tigações pacientes e contínuas. [a]
Se alguma vez tivesse essa pretensão, isso signi-
ficaria que teria perdido o impulso vital que a sus-
tentava, ter-se-ia tornado numa pobre prisão de
fórmulas, sistemas e dogmas.
Em Bierges as janelas estão abertas a todos os
ventos. Estamos atentos e queremos responder
a todos os estímulos do futuro. Estamos vivos.
Ou melhor, desde que a guerra nos exilou da nossa
pátria espiritual, seria melhor dizer, vamos vi-
vendo. Mas podemos acrescentar com confiança:
voltaremos a viver.
A escola de Bierges foi, com certeza, uma obra de
experimentação e de análise permanentes [b], mas
foi também uma obra de síntese e idealismo, livre
de qualquer mesquinhez ou vulgaridade de pen-
samento. Pequena comunidade de trabalho, fonte
de alegrias, contribuiu entusiasticamente para
uma vida melhor. E apesar do momento atual ser
sombrio e pesado, continuamos confiantes na pe-
renidade dos valores que a humanidade cons-
truiu ao longo dos séculos, valores que serão sal-
vaguardados e reforçados por uma educação ver-
dadeiramente humana.
240 Uma escola nova na Bélgica

POSFÁCIO
« pioneiro da educação do futuro? »

Passados cem anos sobre a publicação de Une


école nouvelle en Belgique (1915) como podemos
avaliar a antevisão de A. Ferrière de que se tratava
da obra de um «pioneiro da educação do futuro» [a]?
Porque não foi traduzida antes para a língua portu-
guesa, se o fora para a inglesa em 1919 e para a espa-
nhola em 1920?
Durante estes 100 anos (1915-2015) muito do que
parecia utópico ou já está alcançado ou foi mesmo
ultrapassado, em escolas novas e noutras escolas.
Mas o que Faria de Vasconcellos fez na escola nova
de Bierges (Bélgica) em dois anos, tendo sido inter-
rompido por estar na linha da frente da primeira
grande guerra, ainda está aí para ser continuado.
Podemos apreciar, passado um século, o que um
português na Bélgica começou a fazer por uma
educação nova numa escola nova e compreender
porque não teve continuidade durante tantos anos,
por ter visto antes do tempo o que agora se vê e,
por isso, ser «pioneiro da educação do futuro».
Posfácio de C. Meireles-Coelho 241

As 30 características para conhecer uma escola


nova, enunciadas por A. Ferrière no prólogo desta
obra, tiveram em consideração não só a análise
que fez das escolas novas mais conhecidas na sua
época e que foi organizando no seu Projet d’école
nouvelle mas também e sobretudo a descrição feita
nesta obra por Faria de Vasconcellos. A ação edu-
cativa implementada na escola de Bierges foi pio-
neira do que será a educação e formação no sé-
culo XXI.

1. Laboratório de inovação para a participação


A escola de Bierges com projeto educativo pró-
prio procurava a inovação em desafios permanen-
tes com sentido educativo e formativo para os alu-
nos e preocupação com a sua educação para uma
cidadania ativa, participativa e inclusiva. [a]
A escola de Bierges… era um laboratório para inves-
tigações pacientes e contínuas… queremos responder a
todos os estímulos do futuro… foi uma obra de experi-
mentação e de análise permanentes, mas foi também
uma obra de síntese e idealismo… Pequena comunidade
de trabalho, fonte de alegrias, contribuiu entusiastica-
mente para uma vida melhor… por uma educação ver-
dadeiramente humana (p. 239). A nossa escola prepara
mesmo a criança para a vida ativa real. Isto implica
o desenvolvimento de todas as potencialidades do seu ser,
através de métodos de educação integral, visando tanto
a formação do homem como a do profissional (p. 85).
242 Uma escola nova na Bélgica

2. Educação a tempo inteiro em internato


Esta educação a tempo inteiro, em internato,
permitia instrução, educação e formação que a fa-
mília dificilmente tinha disponibilidade para asse-
gurar ou nela participar. Hoje é possível transpor-
tar diariamente os alunos entre a casa e a escola
não sendo, no entanto, fácil que os pais cuidem da
educação dos filhos, nela participem ativamente e
dela se responsabilizem. [a]
Uma Escola nova não é um depósito nem o último
recurso para os filhos quando o resto falhou (p. 217). O
ambiente que aí se vive é gerador de um clima de calma,
saúde e vigor físico e moral, de simplicidade, cordiali-
dade, franqueza (p. 216).

3. Proximidade da natureza e da cidade


Ferrière (P.E.N., 1909: 8) achava que a escola de-
via estar em pleno campo, longe das cidades e que
em adulto há tempo para se adaptar às circunstân-
cias ingratas da vida. Faria de Vasconcellos consi-
derava, porém, que a escola deve estar nos arredo-
res agrícolas de uma cidade para ter os benefícios
de ambos os meios, o rural e o urbano: A região é
agrícola, de modo que os alunos podem acompanhar de
perto as grandes aplicações da ciência à técnica e à ex-
ploração do solo… Mas se a região é agrícola, está tam-
bém nos arredores de centros industriais com uma vida
intensa, de um trabalho agitado… No campo, mas
perto de uma grande cidade (p. 26-27, 29). [b]
Posfácio de C. Meireles-Coelho 243

4. Habitação com dimensão e ambiente familiar


Neste internato havia habitação com ambiente fa-
miliar adequado ao desenvolvimento de cada um. [a]
Uma casa perfeitamente familiar, calma, repousante
… (p. 29-30).

5. Coeducação dos sexos


A coeducação era um projeto inovador e hoje
parece um facto adquirido, embora ainda não em
todas as escolas. [b]
Sempre foi minha intenção introduzir a coeduca-
ção, logo que a escola, pela sua autoridade, pelas suas
experiências e pelos seus resultados, possa introduzir
esta inovação (p. 231).
6. Trabalhos manuais para todos:
literacia, numeracia e resolução de problemas
Nesta escola eram criadas condições para cada
aluno aprender integradamente a conhecer, a fa-
zer, a viver com os outros e a ir-se tornando o que
queria e podia ser cada vez melhor. O trabalho ma-
nual, intelectual e social, associado a aprendizagens
teóricas, desenvolvia capacidades de identificar,
compreender, interpretar, calcular, avaliar, utilizar,
comunicar, problematizar e resolver problemas da
vida real ou descritos por palavras em contextos
diferenciados de modo a permitir a inclusão pro-
gressiva na sociedade. [c]
Os trabalhos manuais… constituem um fator precio-
so do desenvolvimento físico e intelectual… desenvolvem
244 Uma escola nova na Bélgica

as capacidades de observação, comparação, imaginação,


estimulam o espírito de iniciativa e de construtividade,
promovem o desenvolvimento do rigor, oferecem múlti-
plas oportunidades de aplicar numerosos conhecimentos
… são meios de expressão das necessidades, dos senti-

mentos, das ideias provenientes de aquisições escolares


das crianças e, assim, encadernar, modelar, desenhar,
trabalhar em madeira é tão importante como ler, escre-
ver e contar… É por não se considerarem estas matérias
em si só e por si só… mas enquadrando-as nas diversas
atividades intelectuais e sociais da criança, que se au-
menta o seu valor educativo… As oficinas estão organi-
zadas de modo a permitir um trabalho produtivo… Faze-
mos do trabalho um meio poderoso de educação in-
telectual e social. O conhecimento das ferramentas e
matérias-primas, a elaboração de um orçamento com es-
timativa do custo, do número de horas necessárias para
realizar o trabalho e do salário que custaria não só educa
os alunos sobre os meios de produção e os coloca em con-
tacto direto com as modalidades de vida e do trabalho hu-
mano… mas também lhes permite igualmente medir o es-
forço e a retribuição do produtor, o que lhe possibilita abrir
novos horizontes sobre as questões sociais… (p. 44, 47--54).

7. Trabalho em madeira, agricultura e criação


de animais
Nesta escola não faltava contacto e relação hu-
manos com a agricultura e os animais e o fazer coisas
para eles (casa para os coelhos, terrário, aquário). [a]
Posfácio de C. Meireles-Coelho 245

Os trabalhos manuais são adaptados à idade das


crianças. Os mais novos, de 8 a 10 anos, fazem dobra-
gem, cartonagem, modelagem, desenho. Nos trabalhos
agrícolas, tratam dos caminhos no jardim, dos seus pró-
prios campos de cultivo, dos pequenos jardins da escola
e cuidam de pequenos animais, como galinhas, coelhos
e pombos. Foram incentivados a fazer pequenas cons-
truções, como por exemplo uma pequena casa para os
coelhos… A partir dos 10 anos, juntam-se a estes traba-
lhos manuais o trabalho em madeira e depois o trabalho
em ferro (p. 45-46). A exploração agrícola, além de ser um
campo inesgotável de aquisições científicas, aplicações
práticas e desenvolvimento físico, constitui para nós
um dos agentes mais eficazes de educação social (p. 32).
As crianças ocupam-se da criação de animais… cuidam
dos animais, ocupam-se da sua alimentação, observam
as suas vidas, acompanham o seu desenvolvimento, as-
sistem aos partos, cuidam das crias, colhem os produ-
tos e transformam alguns (p. 112).

8. Trabalhos livres
O currículo não era fechado e o conteúdo não
era igual para todos, mas permitia que cada um
estudasse e desenvolvesse aquilo por que tinha
mais interesse, incentivando não a memorização
igual para todos, mas a criatividade de cada um. [a]
As nossas crianças realizam fora das aulas traba-
lhos livres de história. Um estuda uma época que lhe
interessa mais especificamente, outro um assunto mais
246 Uma escola nova na Bélgica

específico como a história do porto de Antuérpia ou das


ferramentas agrícolas. Estes estudos individuais dão
lugar a palestras para toda a escola. Um outro aluno fez
uma coleção de imagens sobre a história dos meios de
transporte (p. 190). Além do trabalho em aula, alguns
alunos continuam a realizar trabalhos livres em geo-
grafia pelos quais têm um interesse especial. São estu-
dos livres e pessoais. Um desses trabalhos… consti-
tuiu a base de uma palestra (p. 181).

9. Cultura do corpo pela ginástica natural


A educação física não se limitava a exercícios
sistemáticos de ginástica, jogos e atividades des-
portivas, mas incluía antes de mais o desenvolvi-
mento dos exercícios físicos naturais da vida de to-
dos os dias, dos trabalhos manuais e agrícolas. [a]
A frequência das refeições, a duração das horas de
sono, duches, banhos, ar livre, espaço, luz, limpeza, hi-
giene, tudo isso facilita a vida muito ativa dos nossos
alunos e permite à educação física mostrar todos os
seus bons resultados. A estas influências criativas de
energia, de força e de vigor, acrescentamos ainda os jo-
gos, os desportos, a ginástica, as caminhadas, as visitas
de estudo, as viagens, os trabalhos agrícolas e os traba-
lhos manuais… quanto mais variados forem os exercí-
cios físicos, mais eficaz será a cultura do corpo. Cada
um destes exercícios desperta e desenvolve aptidões e
energias corporais e capacidades morais e intelectuais
diferentes, contribuindo todas para o mesmo fim: fazer
Posfácio de C. Meireles-Coelho 247

de cada criança um ser humano completo (p. 35). A gi-


nástica não esgota a educação física, longe disso, é ape-
nas um meio… fazer com as crianças ginástica pela gi-
nástica apresenta para mim as mesmas desvantagens
que ler por ler, calcular por calcular… À parte isso, po-
demos encontrar e encontramos efetivamente em vá-
rias ocupações físicas movimentos naturais, concretos,
ativos, que interessam a criança, porque são meios de
expressão das suas atividades: jogos, corrida, saltos,
subida às árvores, trabalhos de jardinagem, natação,
trabalhos manuais, carpintaria, serralharia. Todas es-
tas atividades que respondem às necessidades espontâ-
neas da vida natural da criança vão muito para além
do que os melhores sistemas de ginástica podem ofere-
cer às crianças antes dos 14-15 anos. Só a partir desta
idade é que a ginástica, como um conjunto sistemático
de movimentos, pode ter um interesse real do ponto de
vista educativo, não somente para o desenvolvimento
do corpo, mas também para o do espírito… (p. 40-41).

10. Caminhadas a pé e de bicicleta, acampamentos


Os alunos não carregavam mochilas com vá-
rios quilos na ida e na vinda da escola, mas anda-
vam a pé e de bicicleta e faziam visitas de estudo,
caminhadas e acampamentos com regularidade
para viverem mais perto da natureza e da vida da
sociedade. [a]
Andamos tanto a pé como de bicicleta ou de com-
boio, quer chova quer faça sol. Todas as semanas,
248 Uma escola nova na Bélgica

especialmente no inverno, quando há menos que fazer


nos campos, costumamos sair durante duas tardes. E de
quinze em quinze dias dedicamos um dia inteiro a uma
visita de estudo. Durante o trimestre de primavera e ve-
rão, os do meio e os mais velhos saem no sábado à tarde
com as suas tendas; vão a pé ou de bicicleta, para uma
região de interesse, onde acampam (p. 40-42). Além des-
tes jogos e desportos, os nossos jovens praticam ainda
exercícios e jogos que fazem parte do escutismo (p. 38).

11. Cultura geral à medida de cada um para a vida


Toda a educação e formação pessoal e social se
destinava a formar seres humanos autónomos,
responsáveis, críticos, criativos, solidários e inter-
venientes na sociedade, pelo trabalho útil quer
pessoal quer socialmente. [a]
Cultura geral e especialização profissional devem
completar-se, entreajudar-se, esclarecer-se mutuamente, e
não opor-se uma à outra, como antagónicas ou alternati-
vas. Todo o profissional especializado tem todo o interesse
em possuir uma cultura geral, porque do ponto de vista
técnico ele ganha em mestria, flexibilidade, engenho, ca-
pacidades de atenção e reflexão, conhecimentos variados
que aumentam as suas faculdades criativas e meios de
trabalho… o trabalhador culto conhece e exerce a sua pro-
fissão com mais inteligência e habilidade… A cultura ge-
ral é necessária… também do ponto de vista humano,
pois, sob pena de se tornar uma simples engrenagem de
Posfácio de C. Meireles-Coelho 249

uma máquina sem coração e sem pensamento, nada do


que pertença aos outros homens lhe deve ser estranho. A
cultura geral dirige-se ao espírito, fonte de toda a ativi-
dade. Ela permite ao trabalhador tomar consciência do
papel social do trabalho, garante que o profissional sente
o alcance da sua atividade no seio da vida humana, en-
quanto o esforço analítico, particularista, de uma espe-
cialidade exclusiva tende a isolá-lo (p. 85-86).

12. Especialização nas especificidades de cada um


Cada um aprendia a descobrir «a ocupação que
melhor convém à sua maneira de ser e às suas apti-
dões… que melhor pode desempenhar com vanta-
gem para si e para a coletividade» [a] no caminho
que tiver que percorrer ao longo da vida. [b]
Uma educação e um ensino que não tivessem em conta
o que há de específico em cada criança – necessida-
des, interesses, potencialidades, aptidões – desviar-se-
iam do caminho certo em todos os aspetos: desenvolvi-
mento pessoal, aquisição de conhecimentos, preparação
para a vida… uma instrução geral adaptada às capaci-
dades e necessidades individuais e, a partir de uma
certa idade, com uma tendência profissional (p. 86-87).

13. Ensino baseado nos factos e nas experiências


Nesta escola aplicava-se a lição das coisas, como di-
zia Coménio (1592-1670): «só depois de observar bem
as coisas… virão as palavras para as explicar melhor».[c]
250 Uma escola nova na Bélgica

Colocamos a criança em contacto direto com as for-


mas da vida e do trabalho humano, apresentando-lhe as
coisas e os seres no seu ambiente natural. Pode observar,
ver, experimentar, agir, manipular, criar, construir…
Nada como os trabalhos manuais para colocar a criança
na presença da vida, da natureza, do trabalho (p. 70).
A primeira condição essencial de um ensino interes-
sante e vivo… é torná-lo concreto, e para isso colocamos
a criança diante das coisas, dos factos da natureza. Não
estudamos… por livros com desenhos mais ou menos es-
quemáticos, objetos mais ou menos inertes, mas pelo es-
tudo direto das realidades concretas e vivas (p. 109). As
visitas a fábricas… colocam o aluno em contacto não só
com os elementos científicos e técnicos de física e quí-
mica mas também com a parte social da vida industrial…
organização, divisão e concentração de trabalho, apti-
dões psicológicas e sociais dos trabalhadores, institui-
ções, experiências sociais. O aluno teve oportunidade de
verificar ao vivo vários fenómenos sociais (p. 146-147). Fa-
zemos questão de mostrar as coisas antes das pala-
vras. É pela observação e pela indução que a criança
descobre… (p. 168).

14. Aprendizagem baseada na atividade pessoal


Toda a escola se organizava para que cada aluno
aprendesse a conhecer fazendo e sempre com os
outros para se tornar cada vez melhor a si e à socie-
dade em que vivia, num desafio permanente para
se superar a si próprio. [a]
Posfácio de C. Meireles-Coelho 251

Acreditamos que fazemos ciência experimental quando


o professor realiza a experiência à frente dos alunos. Ora
isso não é suficiente: o facto de assistir a uma demonstra-
ção, a uma pesquisa, não tem o valor educativo e instru-
tivo da experiência feita pelo próprio aluno. Connosco o
aluno dispõe realmente de todos os instrumentos de pes-
quisa: pode empenhar-se, em sala de aula ou estudando,
quer o professor esteja ou não presente, em todas as pes-
quisas e experiências, em todos os trabalhos de documen-
tação de que possa precisar; e se deteriorar ou destruir qual-
quer instrumento, deve pagá-lo. Assim tem a responsabi-
lidade efetiva de tudo aquilo de que se serve (p. 98). Aqui
também vamos concretizar os princípios que nos são caros:
recorrer à atividade pessoal do aluno, levá-lo a obser-
var e a experimentar sobre factos da realidade concreta e
a construir explicações, sínteses, ideias gerais (p. 128).

15. O interesse da criança através da experiência


e observação direta
Desenvolvia-se o interesse da criança pela ob-
servação construída e partilhada com colegas e
professores no meio da multiplicidade e respei-
tando as especificidades e os ritmos de desenvol-
vimento de cada um. Para Herbart «o humano
chega ao conhecimento através da experiência e
ao interesse através do convívio… o interesse de-
senvolve-se com a observação e prende-se ao pre-
sente observado» [a].
Aplicamos em Bierges: a) propor à criança temas que
252 Uma escola nova na Bélgica

lhe interessam e que estão ao seu alcance, temas baseados


na realidade à sua volta, na sua observação direta e na sua
experiência, assuntos sobre a sua vida pessoal, a vida es-
colar, os animais, os homens, as plantas e as coisas do seu
ambiente. Os temas são escolhidos livremente pelo aluno,
pelo professor com o aluno ou pelo professor com a turma
(p. 158). Partindo do interesse que a criança demonstra
por tais tarefas, educa-se a sua atenção, a sua vontade e o
sentido de responsabilidade tão necessário na vida (p. 57).

16. Trabalho individual de cada aluno no grupo


O plano de trabalho (projeto) era preparado na
aula, informando, questionando, discutindo para
observar e comparar na vida real, em qualquer lugar,
nos laboratórios, nas oficinas, nos campos (p. 90). Cada
um contribuía com a sua parte no trabalho, fomen-
tando-se a multiplicidade de interesses e estratégias.
Com a recolha feita por cada um fazia-se o ponto da
situação das observações realizadas, lendo obras de
referência, discutindo, agrupando, classificando e
sistematizando observações e experiências. Por fim,
cada um fazia a sua síntese pessoal, que redigia e
por vezes apresentava em público. [a]
1º uma aula dá-se em qualquer lugar, porque a sala
de aula está em toda a parte; 2º uma aula… é uma… cons-
trução: pouco a pouco, documento após documento,
deve ser o próprio aluno a organizar todos os da-
dos em colaboração com o professor e os colegas…
Posfácio de C. Meireles-Coelho 253

durante o tempo dedicado ao estudo, o aluno passará a


limpo, em cadernos próprios, a lição preparada na sala
de aula por ele próprio, pelos colegas e pelo professor. A
redação é a última fase do trabalho (p. 89, 91).

17. Trabalho coletivo com responsabilidade


Tudo nesta escola era orientado para desenvol-
ver a personalidade, autoafirmação e individuali-
dade próprias de cada um, o sentido social e a cons-
ciência da vida coletiva. Cada membro do grupo ti-
nha as suas tarefas específicas, mas estava a par do
conjunto do projeto, responsabilizando-se pessoal-
mente pela sua parte e solidariamente pelo todo. [a]
Damos grande importância aos jogos coletivos… que
favorecem a aquisição de sentimentos de entreajuda, so-
lidariedade e disciplina, por habituarem a lutar por uma
causa comum, a do grupo, e a submeter-se a uma lei: a re-
gra do jogo (p. 36)… A aula é não só a realização e o desen-
volvimento de uma série de esforços individuais mas
também o resultado de um trabalho coletivo (p. 92)… Nos
trabalhos… a criança aprende a colaborar num esforço co-
letivo para uma obra comum (p. 197)… Mas nesta organi-
zação coletiva, cada aluno, ao ter uma tarefa específica de
acordo com o princípio da divisão do trabalho, fica a par
de todos os detalhes da operação, através de várias discus-
sões que se vão sucedendo (p. 130)… Tudo… aulas, turmas,
trabalhos… contribui para desenvolver, fortalecer, au-
mentar na criança não só a consciência da sua personali-
dade, da sua autoafirmação e individualidade próprias
254 Uma escola nova na Bélgica

mas também o sentido social e a consciência da vida cole-


tiva (p. 198)… criar um ambiente onde as crianças, pelos
seus próprios meios e esforços, se possam iniciar na prá-
tica de uma vida social responsável, construir pela
sua própria experiência a sua educação social e tomar
consciência, de forma objetiva e real, dos seus deveres e
direitos enquanto membros de uma coletividade… (p. 208).

18. Manhã e tarde com tarefas diferenciadas


Na escola a tempo inteiro os alunos participa-
vam no desenvolvimento do currículo por módu-
los e na escolha das matérias, sendo umas gerais
e outras em pequeno grupo ou individuais à me-
dida de cada um respeitando o seu desenvolvi-
mento, interesses e aptidões. [a]
As aulas são dadas de manhã, sendo a tarde reser-
vada geralmente para os trabalhos manuais, as visitas
de estudo em grupo e o trabalho e estudo individuais…
(p. 77) A nossa instrução é essencialmente educativa.
Não procuramos somente encher, mas formar o espírito
da criança. Fazemos um apelo constante à sua colabora-
ção ativa, à sua curiosidade e interesse (p. 73).

19. Uma matéria por dia de forma integrada


A atividade da escola centrava-se na aprendiza-
gem e no tempo do aluno, não no ensino e no
tempo do professor. O conhecimento da matéria a
trabalhar era da vida real e não memorizado de
livros, a aprendizagem desenvolvia-se integrada-
Posfácio de C. Meireles-Coelho 255

mente por fenómenos e problemas reais e não em


disciplinas estanques. Aprendia-se a aprender. [a]
Para evitar a dispersão e a fragmentação da atenção
… estabelecemos… uma verdadeira concentração do tra-

balho sobre um número limitado de áreas ao mesmo


tempo (p. 78). É por isso que dedicamos a manhã ou uma
parte da manhã ao estudo da mesma área ou conjunto
de áreas relacionadas intimamente entre si. Isto permite
a alunos e professores aprofundar o objeto de estudo,
tratá-lo de modo conveniente considerando-o sob dife-
rentes aspetos (p. 79)… Temos tempo suficiente para ma-
nipular, fazer experiências, realizar pesquisas. E é ape-
nas nesta condição que o trabalho é realmente produ-
tivo, porque eu não posso conceber que numa hora se
faça ciência experimental, permitindo à criança agir e
construir (p. 80)… Estudo e trabalho ganham em uni-
dade, em profundidade, e, ouso dizer, em interesse …
(p. 81) um esforço contínuo de atenção em que contribuí-
ram os olhos, os ouvidos e as mãos… (p. 82).

20. Poucas áreas por mês ou por trimestre


O currículo aberto da escola organizava-se por
áreas modulares, módulos de aprendizagem, para
o desenvolvimento da autonomia e responsabili-
dade de cada aluno que tinha em consideração o
nível das suas aptidões, capacidades, aquisições,
necessidades e interesse. [b]
Concentramos uma série de áreas… de maneira a po-
dermos estudar melhor, aprofundar as matérias que são
256 Uma escola nova na Bélgica

objeto da nossa atenção… Na primavera e verão podemos


ocupar-nos mais eficazmente da zoologia e da botânica…
e poderemos tratar a física e a química de forma mais
completa no outono e inverno. Mas… a concentração…
permite à criança estudar esses assuntos mais aprofun-
dadamente, com mais interesse, com maior proveito e
menos fadiga (p. 78-79).

21. Sistema de autonomia


Nesta escola vivia-se em democracia participa-
tiva e cidadania produtiva, uma escola de liberdade
e responsabilidade, uma escola para as crianças e
sobretudo uma escola às crianças [a].
As crianças só podem fazer à sua própria custa a ex-
periência do bem e do mal e refletir sobre as consequên-
cias dos seus atos se lhes dermos uma grande liberdade.
Isto implica uma organização do ambiente social em que
elas vivem, crescem, levando-as a construir por si pró-
prias a sua referência moral… esta organização social
deve ser construída pelas próprias crianças. A isto
chamamos sistema de autonomia. Os alunos formam
uma república em que partilham, segundo as suas apti-
dões e o seu acordo livremente expresso, as obrigações que
têm na comunidade escolar; nomeiam os seus represen-
tantes junto da direção da escola e da associação de pais;
votam as regras. Assim o sistema de autonomia tem uma
dupla finalidade e permite: a) organizar o meio social em
que a criança vive, disciplinar as suas energias, orientar
certas tendências que, deixadas ao acaso e à incoerência,
Posfácio de C. Meireles-Coelho 257

seriam prejudiciais, dada a influência marcante que os


alunos exercem uns sobre os outros; b) criar um ambiente
onde as crianças, pelos seus próprios meios e esforços, se
possam iniciar na prática de uma vida social responsável,
construir pela sua própria experiência a sua educação so-
cial e tomar consciência, de forma objetiva e real, dos seus
deveres e direitos enquanto membros de uma coletivi-
dade (p. 207-208)… Obra do sistema de autonomia e de soli-
dariedade, a sociedade cooperativa agrícola da escola… (p.
67). O tanque… (p. 199). A vida moral não se ensina, nem a
virtude é lição que se aprenda de cor. Adquire-se na prá-
tica pela experiência e constrói-se pelo uso pessoal da li-
berdade… (p. 206). Queríamos realizar completamente a
fórmula: a escola às crianças (p. 24).

22. Os alunos elegem os chefes


A assembleia dos alunos permite uma partici-
pação e representação efetiva dos alunos na vida
da escola, sendo eles próprios a escolher os chefes
e fazer as regras de convívio para todos cumprirem,
podendo o diretor vetar decisões essenciais quanto
ao espírito educativo da escola. [a]
Os alunos distribuem entre si os cargos necessá-
rios à vida social da escola. É a assembleia dos alunos que
nomeia os que vão desempenhar as diferentes funções… a
assembleia nomeia um presidente, cuja função é zelar
pela ordem geral dos alunos e pela execução das decisões
da assembleia, representar os alunos nas reuniões da as-
sociação de pais, ou seja, coordenar os esforços de todos,
258 Uma escola nova na Bélgica

fazer a ligação entre as várias funções e resolver certos


conflitos que possam surgir… A assembleia dos alunos
tem um papel quase soberano. Apenas em casos graves,
onde a inexperiência dos alunos poderia comprometer o
espírito educativo da escola, é que oponho o meu veto a
decisões da assembleia (p. 209-211).

23. Rotatividade nos cargos sociais


A rotatividade no exercício dos cargos e funções
possibilita que cada um aprenda pela experiência o
sentido da cidadania responsável e da solidarie-
dade em múltiplos aspetos. [a]
Além destes cargos trimestrais, existem outros em que
a rotatividade é necessária para que todos os desem-
penhem e adquiram hábitos básicos de ordem e limpeza,
espírito de iniciativa e sentido de responsabilidade (p. 210).

24. Recompensas como oportunidades para


desenvolver a criatividade
As recompensas eram estímulo para chegar mais
longe naquilo em que cada um já é bom e não o pré-
mio por ter ganho na competição com os outros. [b]
Também damos recompensas, mas não como um isco
que perverte o sentido ético do esforço. Não há nenhum
“negócio” entre aluno e professor no início do trabalho.
Além disso, a recompensa não se segue imediatamente
ao esforço realizado, pois não convém que pareça que o
professor está a pagar uma fatura cobrada pelo aluno…
Um dos alunos acaba um trabalho livre, pessoal e que o
Posfácio de C. Meireles-Coelho 259

interessou. Esforçou-se e está satisfeito consigo próprio.


Mas a satisfação pessoal do dever cumprido não é sufi-
ciente, ele precisa também da aprovação encoraja-
dora dos outros. A aprovação será ainda mais preciosa
se for concretizada num ato ou numa oferta: um livro
sobre o tema estudado, uma ferramenta de trabalho ou
uma folga para se refazer do esforço realizado… (p. 220).

25. Sanções para melhorar o que ainda falta


As sanções eram oportunidades de melhorar
aquilo em que ainda não se é bom e não um castigo
para reforçar a culpabilidade e a exclusão. [a]
As sanções são prescritas pela assembleia dos alunos
que vota as leis e as regras, o que lhes confere um carác-
ter impessoal. E uma vez que são voluntariamente acei-
tes por todos, resulta daí que todos aceitam a sua aplica-
ção sem rancor nem ressentimento (p. 216)… Não aplica-
mos qualquer disciplina autoritária que imponha à criança
hábitos morais de que ela não entenda nem a razão nem a
finalidade (p. 214)… A supressão das punições que degra-
dam e humilham a criança não implica que deixe de haver
sanções. Estas sanções, no entanto, não são artificiais mas
naturais; a criança adquire à sua custa a experiência do
bem e do mal. É livre mas responsável; pode e deve medir
as consequências dos seus atos e reparar, sempre que
possível, os prejuízos causados. Aquele que quebra coisas
substitui-as com a sua mesada; o que não fez o trabalho
na hora certa fá-lo durante os tempos livres; o que deixa
as coisas desarrumadas arruma-as; quem suja limpa; o
260 Uma escola nova na Bélgica

aluno que habitualmente se atrasa deve começar mais


cedo para chegar a horas; ao aluno que agiu mal chama-
se-lhe a atenção para a ação que cometeu e relembram-se-
lhe as boas ações que ele já realizou noutros momentos (p.
215-216).

26. Emulação consigo próprio


Cada criança era ajudada a tornar-se cada vez
melhor no contrarrelógio individual de cada uma
consigo própria, tomando consciência dos pro-
gressos que já fez e dos que ainda tem para fazer
e também dos que os outros vão fazendo. [a]
Sempre que as circunstâncias nos impõem o dever de
intervir e aplicar uma sanção, cuidamos para que essa
sanção seja simultaneamente adequada à natureza da
criança, à natureza do ato em si e às circunstâncias em
que foi praticado. Queremos sobretudo que a sanção seja
compreendida pelo aluno, sentindo a sua utilidade e re-
conhecendo a relação lógica, proporcional e harmoniosa
entre a falta cometida e a sua reparação.… Um dos alu-
nos tem falta de arrumação, limpeza, atenção, aplicação,
espírito de trabalho, dedicação, altruísmo ou solidarie-
dade. Colocamo-lo num cargo em que adquira, desen-
volva e fortaleça os hábitos e sentimentos que lhe fal-
tam… Não o desencorajamos, ajudamo-lo. O nosso
lema é ajudar a criança a tornar-se melhor (p. 219)…
A criança é levada a comparar o seu eu presente com o
seu eu passado, a fazer um exame de consciência, a olhar
para si própria e a analisar os esforços realizados, mas
Posfácio de C. Meireles-Coelho 261

também a apreciar os dos seus colegas, para aprender a


ser leal, sincera, justa, tolerante e generosa… (p. 221-222).

27. Um ambiente de beleza, verdade e bondade


Nesta escola estava-se perto da cidade e do que
de melhor ela pode ter, mas dava-se primazia à na-
tureza, ao que é natural, belo, verdadeiro e bom e
que constituía o clima da escola, fundamentando
a educação para os valores estéticos e morais. [a]
O amor pela beleza da forma, o amor da verdade e o
amor do bem constituem a aliança sagrada das forças
morais. Assim como em relação às outras atividades ou
manifestações da vida da criança, também neste caso
não se pode isolar a formação do gosto, a iniciação esté-
tica e a cultura artística do conjunto da vida escolar. No
dia a dia temos mil oportunidades para chamar a aten-
ção de uma criança para coisas belas, ou, noutros casos,
para o que se considera feio. Mas temos que ter em conta
a idade das crianças… Em primeiro lugar o nosso obje-
tivo é portanto a ordem e a limpeza, a organização da
casa em que a criança vive e cresce… por toda a parte há
plantas, reproduções de quadros e estátuas e numerosas
gravuras… os melhores desenhos, as melhores aguarelas,
os melhores objetos esculpidos… Fora da escola é a natu-
reza, as árvores, as flores, os campos, tesouros inesgotá-
veis de emoções doces e reconfortantes. Ensinar a criança
a observar a natureza é dar o primeiro passo para que
ela comece a contemplá-la, a admirá-la, a amá-la. É
abrir o seu coração a todas as maravilhas: as das linhas,
262 Uma escola nova na Bélgica

cores, formas, sons da natureza. Jardinagem, cultura de


flores, leitura ao ar livre debaixo das árvores, passeios,
excursões, acampamentos na floresta, observação e es-
tudo dos fenómenos naturais provocam sensações e
emoções inesquecíveis! E constituem um recurso per-
manente na vida da escola. Vivemos em plena natu-
reza… o ambiente natural que rodeia a escola é agradável
e belo (p. 225-229).

28. Música e canto, sobretudo o coral


O canto e os coros permitiam expressividade
pessoal, coesão social e espetáculo. [a]
Todas as crianças aprendem canto e os coros têm
um efeito espetacular nas festas e concertos que orga-
nizamos na escola (p. 239).

29. Educação moral por reflexão sobre a experiência


A educação moral não era feita sobretudo por
narrativas de exemplos a imitar mas pela reflexão
pessoal e social sobre o bem e o mal da própria ex-
periência e das narrativas. [b]
Assim como na educação física, manual e intelec-
tual apelamos à colaboração do aluno, à sua iniciativa,
à sua curiosidade e ao seu interesse, também na educa-
ção moral lhe pedimos que, a partir da sua experiência,
organize a sua vida moral e viva de acordo com o ideal
de bondade, verdade e beleza que foi construindo pelos
seus próprios meios e pelo seu esforço pessoal (p. 193)…
Como a vida moral da criança deve ser resultado das
Posfácio de C. Meireles-Coelho 263

suas experiências pessoais e da sua adaptação espontâ-


nea à vida escolar e social com colegas e professores,
compreende-se facilmente a importância que deve ser
dada à organização do meio físico e social onde a criança
tem de viver e crescer (p. 194)… os jogos, os desportos, a
educação física, as caminhadas, os passeios, as viagens
constituem preciosos auxiliares da educação moral e so-
cial da criança; são excelentes oportunidades para de-
senvolver as capacidades físicas e morais, levar a criança
a descobrir-se a si própria, a tornar-se forte e rija, a
disciplinar-se e a autocontrolar-se, a tornar-se cora-
josa, paciente e resiliente, a praticar a solidariedade e a
entreajuda numa atmosfera de vigor, alegria e bom hu-
mor… o trabalho manual nos seus diferentes tipos e as
numerosas qualidades que pode desenvolver nas crian-
ças, como a persistência, a paciência, o rigor, a lealdade
e a vontade de fazer melhor (p. 195-196)… A vida moral…
adquire-se na prática pela experiência e constrói-
se pelo uso pessoal da liberdade (p. 206)… Leva-
mos cada criança a criar para si própria uma regra in-
terior, resultado das suas experiências pessoais (p. 214)…
a criança adquire à sua custa a experiência do bem e do
mal (p. 215).

30. Crença desmedida no progresso da humanidade


Acreditava-se que a humanidade tinha vindo
a progredir ao longo dos tempos e que pela edu-
cação esse progresso é salvaguardado e reforçado,
transcendendo sobre os humanos o Espírito de
264 Uma escola nova na Bélgica

paz, justiça, solidariedade, tolerância e bondade. [a]


Temos todos uma pátria comum, mais vasta e ampla,
a pátria humana em que todos os povos, cada um à sua
maneira, se esforçam no sentido do progresso liberta-
dor para mais solidariedade, bondade e justiça… o
homem… foi-se enriquecendo pelo progresso para mais
beleza e bondade, que lhe permitiram olhar mais alto,
para a cultura dos valores supremos do espírito… acima
dos homens e das nações permanece o espírito humano.
Apesar de todos os horrores e de todas as atrocidades,
nunca aceitaremos que apaguem a chama eterna que,
na subida para as alturas, ilumina o caminho comum
(p. 22)… E apesar do momento atual ser sombrio e pe-
sado, continuamos confiantes na perenidade dos valo-
res que a humanidade construiu ao longo dos séculos,
valores que serão salvaguardados e reforçados por
uma educação verdadeiramente humana (p. 239).

Amargurado com o ambiente de guerra na Eu-


ropa, Faria de Vasconcellos aceitou a proposta de
Ferrière e Claparède para ir apoiar a criação de
escolas novas em Cuba (1915-1917), donde passou
à Bolívia (1917-1920), aí particularmente dedicado
à formação de professores e educadores. A es-
posa belga não o acompanhou.
Posfácio de C. Meireles-Coelho 265

As “escolas novas” de Abbotsholme School,


Bedales School, École des Roches, Hermann Lietz
Schule, Odenwaldschule têm portais na Internet.

Da escola nova de Faria de Vasconcellos, em


Bierges na Bélgica, ficou este livro.

Uma escola nova diferente das outras e que não


perdurou? Comparando o Projet d’école nouvelle [a]
com o Prefácio de Ferrière, as 30 características das
escolas novas tiveram uma contribuição decisiva
com a experiência da escola nova de Faria de Vas-
concellos? Comparando o Prefácio com o Posfácio
podemos verificar que as 30 características de uma
escola nova enunciadas por Ferrière foram quali-
tativamente superadas na escola nova de Faria de
Vasconcellos? O que podemos refletir um século
depois desta experiência pedagógica pioneira para
a educação do século XXI? A escola nova que Fa-
ria de Vasconcellos criou na Bélgica foi mesmo
pioneira da educação do futuro?

julho de 2015 Carlos Meireles-Coelho


NOTAS sobre Uma Escola nova na Bélgica

Página 4[a]: A. Faria de Vasconcellos (1880-1939) é o nome


do autor usado no original e nas traduções desta obra.
António de Sena Faria de Vasconcelos Azevedo nasceu
a 02-03-1880 em Castelo Branco. Filho e neto de magis-
trados obteve a 12-06-1900 o grau de bacharel em leis e
a 12-06-1901 o grau de bacharel formado pela Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra.

A. Faria de Vasconcellos em junho de 1901


(de foto gentilmente cedida por sua filha Águeda Sena)

Nesse dia entregou o diploma ao pai e depois partiu


para Paris. Em 1902 inscreveu-se na Faculdade de Ciên-
cias Sociais da Universidade Nova de Bruxelas (UNB) e
publicou em 1903 La Psychologie des foules infantiles. A
22/24-03-1904 apresentou a tese de doutoramento em
Uma escola nova na Bélgica 267

Ciências Sociais intitulada Esquisse d’une théorie de la sen-


sibilité sociale. De 1904 a 1914 foi professor de psicologia
e pedagogia na UNB. Fundador da Liga de Educação
Nacional (1908), em Lisboa, publicou Lições de pedologia e
pedagogia experimental (1909) [purl.pt/134], proferidas na
Sociedade de Geografia. De 1912 a 1914 foi membro da
Comissão Executiva da Sociedade Belga de Pedotecnia.
Em 1912 criou a Escola nova de Bierges-les-Wavre, con-
trolada pelas tropas alemãs em agosto de 1914, tendo-se
exilado na Suíça. Trabalhou em Genebra no Institut
Jean-Jacques Rousseau e fez três palestras sobre o que
fora a experiência da Escola nova de Bierges, que deram
origem ao livro Une École nouvelle en Belgique (1915).

A. Faria de Vasconcellos
(de foto gentilmente cedida por sua filha Águeda Sena)

De outubro de 1915 a outubro de 1920 trabalhou na Amé-


rica Latina no domínio da educação nova e da formação
de professores. Foi consultor para a educação em Cuba
(1915-1917) e Bolívia (1917-1920), onde foi diretor e profes-
sor na Escola Normal de Sucre. Em finais de 1920 veio a
Portugal, fixando-se em Lisboa. Esteve ligado à Univer-
sidade Popular Portuguesa (1921-1933) [− O que deve ser a
Universidade Popular Portuguesa. Educação popular, revista
mensal, órgão da Universidade Popular Portuguesa, abril de
268 Notas sobre

1921], à Escola Normal Superior (1921-1930) [− Problemas es-


colares, Lisboa: Seara Nova, 1921, 1929. − Problemas escolares: I e
II série, Lisboa: Empresa de Publicidade Seara Nova, 1934] e à
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1922-1939)
[− Lições de psicologia geral, Lisboa: Guimarães & C.ª, 1924. − Li-
ções de psicologia: curso professado na Faculdade de Letras, Lisboa:
Guimarães & C.ª, 1925]. Foi cofundador da Seara Nova, do
chamado “Grupo da Seara Nova” (1921-1925). Foi coautor
principal da Proposta de lei sobre a reorganização da educação
nacional, conhecida por projeto de “Reforma Camoesas”,
apresentada na sala das sessões da Câmara dos deputados
a 21 de junho de 1923 pelo ministro da Instrução Pública
João José da Conceição Camoesas (DG, II s., 2 de julho de 1923,
p. 2258-2271). Foi fundador e primeiro diretor do Instituto
de Orientação Profissional Maria Luísa Barbosa de Car-
valho (1925-1939) e diretor do Boletim do Instituto de Orien-
tação Profissional (1928-04 a 1938-12). Publicou a Biblioteca
de Cultura Pedagógica (Lisboa: Livraria Clássica Editora,
1932-1939) com 15 pequenos livros para possibilitar o
«contacto com as doutrinas, as iniciativas e as técnicas pe-
dagógicas mais modernas», entre eles (Escolas novas) As
escolas de Wirth, de Hetherington, de Johnson e de Grundtwig.
Colaborou em vários periódicos. Morreu em Lisboa a
11-08-1939. ― Na capa da versão original desta obra usou
os seguintes títulos debaixo do seu nome: «Diretor da Es-
cola nova de Bierges-les-Wavre (Bélgica), Professor na Uni-
versidade Nova de Bruxelas». ― A Fundação Calouste
Gulbenkian, com apresentação do Prof. J. Ferreira Marques
(1936-2015), editou as Obras Completas de Faria de Vas-
concelos, em 7 volumes: I - 1900-1909 (1986), II - 1915-1920
(2000), III - 1921-1925 (2006), IV - 1925-1933 (2009), V - 1933-1935
(2010), VI - 1936-1939 (2010), VII - Adenda (2011).
Uma escola nova na Bélgica 269

4[b]: Adolphe Ferrière (Genebra, 1879-1960, Genebra)


[ibe.unesco.org/publications/ThinkersPdf/ferriere.pdf ]
fundou em 1899 o Bureau international des Écoles nou-
velles (B.I.E.N.). Publicou em 1909: − Project d’école nou-
velle, 7[a] e − L'école nouvelle en Allemagne: Hermann Lietz,
19[a]. Em 1912, com Édouard Claparède e Pierre Bovet,
fundaram o Institut Jean-Jacques Rousseau. Faria de Vas-
concellos vinha colaborando com Claparède no Labora-
tório de Psicologia Experimental e com Ferrière, no curso
de Pedagogia e no B.I.E.N. Em 1915 fez o Prefácio de Une
École nouvelle en Belgique. Publicou em 1920: − Transfor-
mons l’école, Neuchâtel: Delachaux et Niestlé. / Transformemos a
escola: apelo aos pais e às autoridades, trad. A. Viana de Lemos, J. Fer-
reira da Costa, pref. A. Sérgio, Paris: Liv. Truchy-Leroy, 1928.
Foi cofundador da Liga Internacional para a Educação
Nova (L.I.E.N.) no Congresso de Calais (1921) e redator de
POUR L’ÈRE NOUVELLE: revue internationale d’éducation
nouvelle unicaen.fr/recherche/mrsh/sites/all/modules/ereNou-
velle/pdf/ 1925-15.pdf Publicou em 1921: − L’autonomie des
écoliers, Neuchâtel: Delachaux et Niestlé. Publicou em 1922:
− L’école active, Neuchâtel: Forum, Delachaux et Niestlé, 1946.
/ A escola ativa, Porto: Editora Educação Nacional, 1934;
Lisboa: Aster, 1965. Publicou em 1924: − Pratique de l’école
active, Neuchâtel: Editions Forum. Em 1925 foi cofundador,
com Bovet e Claparède, do Bureau international d'éduca-
tion (BIE) que passou a fazer parte da Unesco em 1969. Pu-
blicou em 1931: − L'école sur mesure à la mesure du maître,
Neuchâtel: Delachaux et Niestlé. / A escola por medida pelo
molde do professor, Porto: Editora Educação Nacional, 1934.
Na capa da versão original desta obra constam os seguin-
tes títulos debaixo do seu nome: «Doutor em sociologia,
270 Notas sobre

Professor no Instituto Jean-Jacques Rousseau, Diretor do


Bureau international des Écoles nouvelles». [− Gerber, Rémy, et
al. (1981) Autour d'Adolphe Ferrière et de l'éducation nouvelle. Genève:
Université de Genève, Faculté de Psychologie et des Sciences de
l'Éducation, 105 p.] archive-ouverte.unige.ch/ unige:33396.

4[c]: Carlos Meireles-Coelho (Porto, 1947-), professor as-


sociado do Departamento de Educação da Universi-
dade de Aveiro.
4[d]: Ana Cotovio (Coimbra, 1968-), professora de portu-
guês e de francês do ensino básico e secundário.
4[e]: Lúcia Ferreira (Figueira de Lorvão, Penacova, 1972-),
professora do ensino básico e de educação especial.
6[a]: Maurice Eden Paul (1865-1944) e Cedar Paul, Ger-
trude Mary Davenport (1880-1972) escreveram no panfleto
Independent Working Class Education – Thoughts and Sug-
gestions: “He who has the school has the future” (1918) [mar-
xists.org/archive/paul-eden&cedar/1918/x01/thoughts.htm]:
«O tsunami de guerra que cobriu o mais infeliz país, a
Bélgica, desfez a promissora escola nova de Faria de Vas-
concellos e levou-o para a terra distante da Bolívia. Mas
ele deixou as suas experiências em Bierges num admirá-
vel volume, traduzido do francês pelos autores deste
panfleto com o título A New School in Belgium.»
6[b]: Domingo Barnés Salinas (Sevilha, 1879-1940, Méxi-
co), pedagogo e político, foi ministro da Instrução Pú-
blica e Belas Artes durante a 2.ª República Espanhola e
saneado de professor da Universidade de Madrid de-
pois da guerra civil de Espanha, exilando-se no México.
6[c]: Ferreira Gomes, Joaquim (1980). Uma proposta de
Lei para a criação de «Escolas Novas» apresentada no
Uma escola nova na Bélgica 271

Parlamento da 1.ª República, p. 249-254. Estudos para a


História da Educação no séc. XIX. Coimbra: Almedina.

7[a]: Ferrière, Ad. (1909). Projet d’école nouvelle, Saint Blaise:


Foyer solidariste, imp. Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 64 p.
Este pequeno livro faz uma primeira síntese teorizante
sobre o que são (e as que devem ser consideradas) escolas
novas a partir das observações feitas por Ferrière até 1909.
«Logo que para isso nos sejam fornecidos os meios, temos
a intenção de abrir na Suíça francófona uma escola nova si-
tuada no campo, segundo o modelo das escolas similares
da Suíça, da Alemanha, de França e de Inglaterra.» (p. 16).
Ferrière quis ser um pedagogo de prática educativa di-
reta na escola nova, mas a sua surdez progressiva não lho
permitiu. Não se tornou um pedagogo teórico («de teorias
preconcebidas»), mas especialista teorizante (a partir da «sín-
tese prática») da educação nova. Faria de Vasconcellos
abriu e desenvolveu em Bierges, por sua própria conta, de
1912 a 1914, a escola que Ferrière gostaria de ter fundado.

7[b]: Bierges-lez-Wawre no original.

7[c]: A 28-06-1914 o arquiduque Francisco Fernando, her-


deiro do trono austríaco, foi assassinado em Sarajevo por
um estudante nacionalista bósnio. A Áustria, acusando
os sérvios de estarem por detrás do atentado e com o apoio
da Alemanha, declarou guerra à Sérvia. A Sérvia era alia-
da da Rússia e em pouco mais de duas semanas se forma-
ram dois blocos de alianças: a Tríplice Aliança (Dreibund,
Triple Alliance, constituída por Alemanha, império Austro-Hún-
garo e Itália) e Tríplice Entente (Triple Entente, constituída
por França, Rússia e Inglaterra). A 1 de agosto de 1914 a Ale-
manha de Guilherme II declarou guerra à Rússia; a 2 a
272 Notas sobre

Bélgica, país neutral, recebeu um ultimato da Alemanha;


a 3 a Alemanha declarou guerra à França; a 4 o exército
alemão invadiu a Bélgica; a 6 o exército francês entrou na
Bélgica; a 7 o exército alemão entrou em Liège, que con-
trolou a 16, a 20 tomou Bruxelas e a 21 Charleroi e a região
de Bierges-les-Wavre ficou sob controlo alemão na zona
de confronto militar com as tropas da Tríplice Entente.

7[d]: O ideal da Escola nova pode concretizar-se em al-


gumas características ou traços característicos.

8[a]: Os 30 princípios ou características da Escola nova


ou Educação nova foram publicados pela primeira vez
no prefácio de A. Ferrière desta obra e foram por ele re-
caracterizados em 2.ª versão [L’École nouvelle type, 1916], em
3.ª versão [L’École nouvelle et le Bureau international des Écoles
nouvelles, Neuchâtel, Bâle, 1919] e em 4.ª versão (e última) no
artigo “L’ École nouvelle et le Bureau international des
Écoles nouvelles” no n.º 15 de abril de 1925, p. 2-8, da
Pour L’ère nouvelle, unicaen.fr/recherche/mrsh/sites/all/mo-
dules/ereNouvelle/pdf/ 1925-15.pdf. Esta recaracterização
de 1925 consta das notas a cada um dos 30 princípios.

8[b]: No n.º 15 de abril de 1925, da Pour L’ère nouvelle, p. 4,


Ferrière redefine como programa mínimo: «A Escola
nova é antes de mais um internato de tipo familiar situado
no campo, onde a experiência pessoal da criança está na
base quer da sua educação intelectual (com particular
recurso a trabalhos manuais) quer da sua educação mo-
ral pela prática do sistema de autonomia relativa dos alu-
nos.» Em 1909, o Projet d’école nouvelle (P.E.N.) começa
assim, referindo-se ao que achava essencial: «A educa-
ção nova responde a uma necessidade cada vez mais
Uma escola nova na Bélgica 273

premente. Representando um retorno a uma vida mais


natural, saudável, mais em harmonia com as necessida-
des da criança e, simultaneamente, uma preparação
mais completa para a vida contemporânea, ela está na
continuidade da linha do progresso…» (P.E.N., p. 5).

8[c]: «autonomie», usava-se então como referência o sis-


tema do self-government. Ver 15[a] e 67[a].

8[d]: Ao Bureau international des Écoles nouvelles (B.I.E.N.),


criado em 1899 por Adolphe Ferrière, com sede na sua pró-
pria casa, foi associada a Ligue internationale pour l’éducation
nouvelle (L.I.E.N.), fundada a 06-08-1921 no Congresso de
Calais (de 30 de julho a 12 de agosto de 1921). A L.I.E.N. teve,
até fevereiro de 1947, como órgão de comunicação a
«POUR L’ÈRE NOUVELLE. Revue internationale d'éducation nou-
velle» Pour l’ère nouvelle: unicaen.fr/recherche/mrsh/pen?year=1922.
Do n.º 1 de janeiro de 1922 até ao n.º 80 de agosto-setem-
bro de 1932 desta revista consta na declaração de princí-
pios: «− 1. A finalidade essencial de toda educação é pre-
parar a criança para querer e realizar na sua vida a supre-
macia do espírito; a educação deve, por isso, qualquer
que seja o ponto de vista em que se coloque o educador,
ter como objetivo manter e aumentar a energia espiritual
da criança. − 2. Toda a educação deve respeitar a indivi-
dualidade da criança. Essa individualidade só pode de-
senvolver-se por uma disciplina que leve à libertação de
poderes espirituais que estão nela. − 3. Os estudos e, de
uma maneira geral, a aprendizagem da vida devem acom-
panhar os interesses da própria criança, ou seja, os que
despertam espontaneamente na criança e encontram a sua
expressão nas várias atividades manuais, intelectuais,
estéticas, sociais e outras. − 4. Cada idade tem o seu cará-
ter próprio. Isso requer que a disciplina pessoal e a disci-
274 Notas sobre

plina coletiva sejam organizadas pelas próprias crianças


com a colaboração dos professores; e devem procurar re-
forçar o sentimento das responsabilidades individuais e
sociais. − 5. A competição egoísta deve desaparecer da
educação e ser substituída pela cooperação que ensina a
criança a colocar a sua individualidade ao serviço da co-
munidade. − 6. A coeducação defendida pela Liga - coe-
ducação que significa instrução e educação em comum -
exclui o tratamento idêntico aplicado em ambos os sexos,
mas implica uma colaboração que permite a cada sexo
exercer livremente sobre o outro uma influência salutar.
− 7. A educação nova prepara, na criança, não apenas o fu-
turo cidadão capaz de cumprir os seus deveres para com
a sua família, os seus próximos, a sua nação e toda a hu-
manidade, mas também o ser humano consciente da sua
dignidade.»

9[a]: Em Portugal, foi apresentada ao parlamento a pro-


posta de fundação, a título experimental, de Escolas novas
portuguesas [Diário do Governo n.º 101 de 1913, 1 de maio, p.
1600-1601, dre.pt/application/file/4594], pelo deputado do
Partido Evolucionista Dr. Vítor José de Deus Macedo Pinto,
sendo a proposta da autoria de João Diogo (1868-1923), di-
retor do Colégio de Nossa Senhora da Boavista (Porto). [Lo-
pes, Artur Augusto (1937). João Diogo: o precursor da Escola nova em
Portugal. Porto: Marânus]. A proposta foi rejeitada.

10[a]: Em Pour l’ère nouvelle, n.º 15, abril de 1925, p. 4, uni-


caen.fr/recherche/mrsh/sites/all/modules/ereNouvelle/pdf/
1925-15.pdf, Ferrière (1925) recaracteriza este princípio
do seguinte modo: «ORGANIZAÇÃO − 1. A Escola nova é
um laboratório de pedagogia prática. − A. Pioneira das
escolas do Estado, prepara o terreno experimentando a
eficácia dos novos métodos. − B. Apoia-se nos dados da
Uma escola nova na Bélgica 275

psicologia da criança e nas necessidades do seu corpo e


do seu espírito. − C. Procura preparar as crianças para a
vida moderna com as suas exigências materiais e mo-
rais.» Em 1909 Ferrière chamava indistintamente à es-
cola nova «escola moderna» (P.E.N., p. 8).
10[b]: «2. A Escola nova é um internato. − A. Só a influên-
cia total do meio permite realizar uma educação inte-
gral. − B. A Escola nova dirige-se sobretudo a crianças
privadas de família ou cujas famílias não podem asse-
gurar a educação de acordo com as exigências da ciência
moderna. − C. Procura fazer a ponte entre a vida fami-
liar e a vida social agrupando as crianças em «famílias»
adotivas, partindo dos afetos espontâneos das crian-
ças.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 4-5.
10[c]: «3. A Escola nova está situada no campo. − A. O
campo é o meio natural da criança. Aí encontra a calma
de que o seu sistema nervoso necessita. − B. Possibilidade
de se entregar a divertimentos ancestrais e a trabalhos
agrícolas. − C. Para os adolescentes é desejável a proximi-
dade de uma cidade para a sua educação intelectual e ar-
tística (museus, concertos, etc.)» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 5.
10[d]: «4. A Escola nova agrupa os alunos em casas se-
paradas. − A. Os grupos de dez a quinze alunos vivem
sob a direção material e moral de um educador ou de
uma educadora. − B. O elemento feminino não deve es-
tar excluído da educação dos rapazes nem o elemento
masculino da educação das meninas. − C. Os hábitos de
ordem e as relações de intimidade só são possíveis num
ambiente restrito. Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 5.
11[a]: «5. A Escola nova pratica quase sempre a coedu-
276 Notas sobre

cação dos sexos. − A. Deixados em conjunto desde pe-


queninos e educados segundo as necessidades particu-
lares de cada sexo, os meninos e as meninas vivem como
camaradas. − B. São excluídos os elementos que não
convêm à coeducação ou a que a coeducação não con-
vém. − C. Evitando ‘recalcamentos‘ patológicos, a coe-
ducação prepara casamentos sadios e felizes.» Pour l’ère
nouvelle, 1925, 15, 5.

11[b]: «VIDA FÍSICA − 6. A Escola nova organiza trabalhos


manuais. − A. Os trabalhos manuais são obrigatórios
para todos os alunos e são feitos, habitualmente, das 14 às
16h. − B. Os trabalhos manuais não pretendem uma fina-
lidade profissional, mas fins educativos.− C. Os trabalhos
manuais apresentam uma utilidade real para o indivíduo
ou a comunidade.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 5.
11[c]: carpintaria-marcenaria, trabalho em madeira.
11[d]: «7. A Escola nova atribui uma importância especial
à: − A. carpintaria que desenvolve: a) a destreza e preci-
são manuais; b) o sentido de observação exata; c) o rigor
e o autocontrolo. − B. cultura do solo: a) contacto com a
natureza; b) conhecimento das leis da natureza; c) saúde
e força física; d) utilidade básica. − C. criação de pequenos
animais: a) proteger e observar os seres mais pequenos;
b) hábitos de perseverança; c) observações científicas
possíveis; d) utilidade.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 5.
11[e]: «8. A Escola nova promove trabalhos livres das
crianças. − A. Concursos e exposições de trabalhos dos
alunos. − B. Desenvolvimento dos gostos individuais. − C.
Desenvolvimento da iniciativa pela obrigação de esco-
lher no exercício da liberdade.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 5.
Uma escola nova na Bélgica 277

11[f]: Ver gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5690602t/f469.image


e gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5690602t/ f486.image.
12[a]: «9. A Escola nova assegura a cultura do corpo pela
ginástica natural. − A. Praticada em tronco nu ou mes-
mo em corpo nu, combate e afasta as doenças. − B. Torna
a criança flexível e hábil sem a cansar. − C. Associa-se
aos jogos e aos desportos. Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 5.
12[b]: «10. A Escola nova cultiva as viagens, a pé ou de
bicicleta, com acampamento em tendas e cozinha ao ar
livre. − A. Preparação das viagens com antecedência e a
tomada de notas durante a viagem. − B. Apoio ao es-
tudo: geografia local ou de países estrangeiros, visitas a
monumentos, fábricas e centros de produção. − C. Cul-
tura da força física, persistência, aprendizagem da en-
treajuda. Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 5-6.
12[c]: «VIDA INTELECTUAL − 11. A Escola nova alarga
pela cultura geral a cultura do espírito e da razão − A.
Método científico: observação, hipótese, verificação, lei.
− B. Um núcleo de áreas de estudo obrigatórias propor-
ciona uma educação integral. − C. Não a uma instrução
enciclopédica feita de conhecimentos memorizados,
mas antes a capacidade de desenvolver, pela influência
do meio e dos livros, de dentro para fora, todas as po-
tencialidades inatas.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 6.
12[d]: Georges Hébert (1875-1957) introduziu o método
natural em educação física, baseado no desenvolvimento
completo do indivíduo e não na ginástica especializada.
13[a]: «12. A Escola nova acrescenta à cultura geral uma
especialização: − A. Cursos especiais periódicos de es-
colha livre mas com obrigação de escolher. − B. Primeiro
278 Notas sobre

especialização espontânea: cultura dos gostos prepon-


derantes de cada criança. − C. Depois especialização re-
fletida: cultura sistemática desenvolvendo os interesses
e faculdades do adolescente num sentido profissionali-
zante.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 6.
13[b]: «13. A Escola nova baseia o seu ensino em factos e
experiências. − A. Observações pessoais da natureza. − B.
Observações das indústrias humanas e das organizações
sociais. − C. Experiências científicas de culturas e criação e
trabalhos em laboratório: trabalhos qualitativos na criança
e quantitativos no adolescente.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 6.
13[c]: «14. A Escola nova recorre à atividade pessoal da
criança. − A. Associação de um trabalho concreto à
maior parte dos estudos abstratos. − B. Utilização do de-
senho como adjuvante de todos os ramos de estudo. − C.
Tem-se dito: saber é prever. Podemos dizer com mais
forte razão: saber é poder.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 6.
13[d]: obras de Ad. Ferrière.
14[a]: «15. A Escola nova estabelece o seu programa a par-
tir dos interesses espontâneos da criança. − A. Primeira in-
fância: 4 a 6 anos, idade de interesses difusos ou idade do
jogo. − B. Segunda infância: 7 a 9 anos, idade de interesses
ligados a objetos concretos imediatos; 10 a 12 anos, idade
de interesses especializados concretos ou idade das mono-
grafias. − C. Adolescência: 13 a 15 anos, idade de interesses
abstratos empíricos; 16 a 18 anos, idade de interesses abs-
tratos complexos. Preparação do futuro pai, economista
privado, cidadão e profissional.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 6.
14[b]: «VIDA INTELECTUAL − 16. A Escola nova recorre ao
Uma escola nova na Bélgica 279

trabalho individual dos alunos. − A. Procura de docu-


mentos (em factos, livros, jornais, museus). − B. Classifica-
ção de documentos (classificadores por categorias, fichas,
repertórios). − C. Elaboração individual de documentos
(cadernos ilustrados, ordem lógica dos assuntos, trabalhos
pessoais, conferências). Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 6.

14[c]: «17. A Escola nova recorre ao trabalho coletivo dos


alunos. − A. São postos em comum os materiais reunidos
sobre um mesmo assunto. − B. Investigação das ligações
sugeridas pelo tema tratado no tempo e no espaço. − C.
Investigação das aplicações: utilidade (nas crianças), sis-
tematização científica (nos adolescentes).» Pour l’ère nouvelle,
1925, 15, 6.

14[d]: «18. Na Escola nova o ensino propriamente dito


está limitado ao período da manhã. − A. Das 8h00 ao
meio dia são quatro horas. 24 horas por semana devem
ser suficientes para um trabalho mais intensivo do que
extensivo. − B. Há estudo pessoal das 16h30 às 18h00, os
mais pequenos não têm estudo, os do meio têm estudo
de repetição, os mais velhos têm estudo de elaboração.
− C. A aula será mais uma aula de laboratório ou uma
aula de museu que um lugar para a abstração pura. Pour
l’ère nouvelle, 1925, 15, 6-7.

14[e]: «19. Na Escola nova estudam-se poucas matérias


por dia. − A. O interesse continuado não é favorecido
pela divisão de matérias a estudar. − B. A variedade
nasce não tanto dos assuntos tratados, mas da maneira
de os tratar. − C. Uma maior concentração assegura um
rendimento superior: mais efeitos úteis por menos es-
forços inúteis.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 7.
280 Notas sobre

14[f]: «20. Na Escola nova estudam-se poucas áreas por


mês ou por trimestre. − A. Sistema semelhante aos cursos
universitários. − B. Horário individual de cada aluno. − C.
Os alunos são agrupados não segundo a idade, mas
tendo em consideração o avanço nas matérias estudadas.
Condição de concentração e eficácia dos estudos.» Pour
l’ère nouvelle, 1925, 15, 7.

15[a]: self-government. William Reuben George (1866-


1936) relata em The Junior Republic: its history and ideals
como surgiu e foi aplicado pela primeira vez o método
do self-government. New-York: Appleton, 1911. babel.ha-
thitrust.org/cgi/pt?id=uc1.$b812051;view=1up;seq=1

15[b]: «EDUCAÇÃO SOCIAL − 21. A Escola nova constitui


em alguns casos uma república escolar. − A. A assembleia-
geral toma todas as decisões importantes sobre a vida da
escola. − B. As leis são os meios para regular o trabalho da
comunidade tendo em vista o progresso espiritual de
cada indivíduo. − C. Este regime supõe uma influência
moral preponderante do diretor sobre os líderes naturais
da pequena república. Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 7.

15[c]: «22. Na Escola nova procede-se à eleição de che-


fes. − A. Os chefes têm uma responsabilidade social de-
finida que tem para eles um elevado valor educativo. −
B. Os alunos preferem ser conduzidos pelos seus chefes
a sê-lo por adultos. − C. Os professores são assim liber-
tados da parte disciplinar e podem dedicar-se inteira-
mente ao desenvolvimento intelectual e moral dos alu-
nos.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 7.

16[a]: «23. A Escola nova reparte entre os alunos os cargos


sociais. − A. Colaboração efetiva de cada um para o bom
Uma escola nova na Bélgica 281

funcionamento do todo. − B. Aprendizagem da solidarie-


dade e da entreajuda social. − C. Seleção dos mais capazes
que serão escolhidos como chefes.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 7.
16[b]: «24. A Escola nova age por recompensas ou sanções
positivas. As recompensas consistem em dar oportunida-
des às mentes criadoras para aumentar o seu poder cria-
tivo. − B. As recompensas aplicam-se apenas aos trabalhos
livres e favorecem assim o espírito de iniciativa. − C. Não
há recompensas baseadas na competição. Nos jogos o que
interessa é merecer a vitória.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 7.
16[c]: «25. A Escola nova age por correções ou sanções
negativas. − A. As correções estão, tanto quanto possí-
vel, em proporção direta com a falta cometida. − B. As
correções visam colocar a criança em situação de, por
meios apropriados, alcançar o objetivo adequado, que
não atingiu ou atingiu de forma não satisfatória. − C.
Para os casos graves, não há sanções previstas no có-
digo, mas uma ação moral pessoal exercida por um
adulto, amigo do culpado.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 7.
16[d]: «EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E MORAL − 26. A Escola nova
faz ressaltar a emulação. − A. A entreajuda, através dos
serviços voluntários, tem uma eficácia de primeira gran-
deza. − B. Apenas neste caso pode avaliar-se com notas
apropriadas. − C. Em todos os casos, deve avaliar-se o tra-
balho atual do aluno comparando-o com o seu trabalho
passado e não com o de outros.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 8.
16[e]: Ellen Key (1849-1926): Skönhet för alla (Beleza para
todos). Stockholm, 1899. − Barnets Århundrade. Stockholm,
1900 / Le siècle de l’enfant. Paris: Flammarion, 1900 / The Century
of the Child. New York – London: G.P. Putnam’s Sons, 1909.
282 Notas sobre

16[f]: «27. A Escola nova deve ser um ambiente de beleza.


− A. A ordem é a condição primeira, o ponto de partida.
− B. Os trabalhos manuais, em especial os de arte indus-
trial, que praticamos, assim como as obras deste género
de que nos rodeamos, contribuem para a beleza do meio
ambiente. − C. Enfim o contacto com as obras-primas da
arte e, para os alunos mais dotados, a prática da arte
pura satisfazem as necessidades estéticas de ordem es-
piritual.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 8.

17[a]: «28. A Escola nova cultiva a música em grupo. − A.


Por audições diárias de obras-primas depois da refeição
do meio-dia; − B. Pela prática frequente do canto em
grupo; − C. Pela prática frequente da orquestra; estas ati-
vidades concertadas do domínio afetivo exercem uma
profunda e purificadora influência naqueles que gostam
de música e contribuem para apertar os laços coletivos
pela emoção que delas emana.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 8.

17[b]: «29. A Escola nova faz a educação da consciência


moral: − A. Fazendo a leitura da noite ou contando histó-
rias da vida fictícia ou real. − B. Provocando com isso rea-
ções espontâneas da sua consciência, verdadeiros juízos
de valor. − C. Associando-as assim praticamente a esses
juízos de valor que tornam mais forte a sua consciência e
orientam para o bem.» Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 8.

17[c]: «30. A Escola nova faz a educação da razão prá-


tica: − A. Provocando nos adolescentes reflexões e estu-
dos sobre as leis naturais do progresso espiritual, indi-
vidual e social. − B. Associando a essas reflexões de um
lado a biologia, a psicologia e a fisiologia e do outro a
história e a sociologia. − C. Fazendo convergir toda a
Uma escola nova na Bélgica 283

vida do pensamento para o crescimento do poder do


espírito, o que é propriamente, coloquemo-nos ou não
numa perspetiva confessional, a educação religiosa.»
Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 8.

18[a]: Em Ferrière (1925): Pour l’ère nouvelle, 1925, 15, 3,


lê-se: «Observemos seis Escolas novas de entre as mais
conhecidas…», acrescentando o que marcamos com itá-
lico (de entre as mais) e enumera apenas as cinco primei-
ras, não referindo a escola de Bierges, que fora fechada
no final do 2.º ano de idade em 1914.

18[b]: Escola d’Abbotsholme, Abbotsholme School (Roces-


ter, Inglaterra), fundada em 1889 e dirigida por Cecil
Reddie (1858-1932); foi a primeira «Escola nova», assim
chamada. [– Abbotsholme, London: George Allen, 1900], a que
chamou «new school» (escola nova), onde pretendia
pôr em prática as ideias de Johann Gotllieb Fichte (1762-
1814) [– Discursos à nação alemã, Lisboa: Círculo de Leitores, 2009]
e a teoria do interesse de Johann Friedrich Herbart (1776-
1841) [– Herbart, J. F. Pedagogia geral, Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2003]. Cecil Reddie era frontalmente contra a
coeducação. archive.org/stream/
abbotsholme00redd#page/n7/mode/2up

18[c]: Escola de Bedales, Bedales School (Steep, Petersfield,


Inglaterra), fundada em 1893 e dirigida por John Haden
Badley (1865-1967), antigo educador em Abbotsholme,
como primeira escola pública com coeducação, sendo a
esposa do diretor defensora do movimento feminista e
sufragista.

18[d]: Escola des Roches, École des Roches (Verneuil-sur-


284 Notas sobre

Avre, França), fundada em 1899 por Edmond Demolins


(1852-1907), que importou o nome e a ideia de «école nou-
velle» para França, a partir das escolas inglesas d’Abbots-
holme e de Bedales, sendo depois dirigida por Georges
Bertier (1877-1962). Foram os dois livros de Demolins que
motivaram Ferrière a fundar o B.I.E.N. em 1899, ver 4[b].
[– Demolins, E. (1897) À quoi tient la supériorité des Anglo-Saxons? Li-
brairie Firmin Didot. gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k75268s/f1.image –
(1898) Éducation nouvelle: L’école nouvelle; Librairie Firmin Didot.
gallicalabs.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5524835z/f10.image]

19[a]: Escolas da Fundação Hermann Lietz, Hermann


Lietz Schulen (Alemanha), fundadas por Hermann Lietz
(1868-1919): Landerziehungsheime / Internato no campo
em Ilsenburg (1898), em Haubinda (1901) e em Biebers-
tein Hessen (1904), seguindo o modelo educativo apli-
cado por Cecil Reddie na Escola d’Abbotsholme. Her-
mann Lietz. [– Ferrière, A. (1909) L'école nouvelle en Allema-
gne: Hermann Lietz, Lausanne: Georges Bridel & Cie]. Ferrière
passou (como professor voluntário de língua francesa)
7 meses na escola de Ilsenburg e 11 meses na de Hau-
binda com Lietz, que considerou o seu mestre pedagó-
gico.
19[b]: Escola d’Odenwald, Odenwaldschule (Oberham-
bach, Heppenheim, Alemanha), fundada em 1910 e diri-
gida por Paul Geheeb (1870-1961), que trabalhou nas es-
colas Cecil Reddie e Hermann Lietz. Com a ascensão ao
poder na Alemanha do partido nacional-socialista
(1933), Paul Geheeb com a esposa, Edith Geheeb Cassirer
(1885-1982), e alguns alunos emigraram para a Suíça e aí
fundaram em 1934 a «École d’Humanité».
Uma escola nova na Bélgica 285

19[c]: Escola nova de Bierges (Bélgica), fundada em ou-


tubro de 1912 por Faria de Vasconcellos, encerrou em
agosto de 1914, com a ocupação militar alemã da região
de Bruxelas, tendo-se Faria de Vasconcellos refugiado
em Genebra (Suíça), donde partiu para a América Latina
(1915-1920), regressando em 1920 a Portugal.

19[d]: Ferrière considerava que a Escola de Bierges, em-


bora fosse cotada com 28,5 em 30, estava a caminho de
cumprir plenamente todas as 30 características da es-
cola nova modelo. Quanto ao alojamento dos alunos,
onde foi considerado que atingira apenas parcialmente
(0,5) a característica 4 casas com ambiente e dimensão
familiar, considerou que o ambiente era familiar mas
que na dimensão ultrapassava a de uma família de 10/15
pessoas, ver 24[a]; no entanto, ainda estava na fase de
instalação e havia projetos para construir novos edifí-
cios tanto da parte da direção (p. 24) como dos próprios
alunos (p. 55). Quanto à característica 5 coeducação, que
foi considerada como não existente (0), a posição de Fa-
ria de Vasconcellos era claramente a favor dela e tinha
nos seus planos introduzi-la logo que a escola estivesse
firmemente implantada e isso fosse permitido num país
extraordinariamente intransigente (p. 231). Em relação
às restantes características pode verificar-se uma quali-
dade que ultrapassava o melhor daquele tempo, daí
Adolphe Ferrière ter prognosticado no final do Prefácio
que esta escola nova de Faria de Vasconcellos era pio-
neira de uma educação que ainda estaria para vir.
286 Notas sobre

1: laboratório de pedagogia prática


OR GANIZAÇÃO

2: internato
3: situada no campo
4: casas separadas com grupo de 10 a 15 alunos
5: coeducação dos sexos
6: trabalhos manuais obrigatórios para todos
VIDA FÍSICA

7: carpintaria, cultura do solo e criação de animais


8: trabalhos livres
9: ginástica natural
10: viagens, a pé ou de bicicleta, com acampamentos
VIDA INTELECTUAL

11: cultura geral


12: especialização
13: partir de factos e de experiências
14: atividade pessoal da criança
15: segundo os interesses espontâneos da criança
16: trabalho individual dos alunos
ORGANIZAÇÃO DOS

17: trabalho coletivo dos alunos


ESTUDOS

18: ensino limitado ao período da manhã


19: poucas matérias por dia
20: poucas áreas por mês ou por trimestre
21: república escolar
EDUCAÇÃO SOCIAL

22: eleição dos chefes


23: repartição dos cargos sociais entre os alunos
24: recompensas para desenvolver a criatividade
25: correções para melhorar o que falta
26: emulação consigo próprio
ARTÍSTICA E MORAL
EDUCAÇÃO

27: ambiente de beleza


28: música em grupo
29: educação da consciência moral
30: educação da razão prática
Uma escola nova na Bélgica 287

Roc hes Lietz Abbotsholme Bedales Bierges Odenwald

1899-, fr 1898-, de 1889-, uk 1893-, uk 1912-14, be 1910-, de

1 1 1 1 1 1 1
2 2 2 2 2 2 2
3 3 3 3 3 3 3
4 (4) 4 • (4) (4) 4
5 5 • • 5 • 5
6 6 6 6 6 6 6
7 (7) 7 7 7 7 7
8 (8) (8) • 8 8 8
9 (9) 9 9 9 9 9
10 (10) 10 10 10 10 10
11 11 11 11 11 11 11
12 • (12) (12) 12 12 12
13 (13) 13 13 13 13 13
14 • • 14 (14) 14 14
15 • • 15 (15) 15 15
16 • • (16) (16) 16 16
17 • 17 17 17 17 17
18 (18) 18 18 18 18 18
19 • • • • 19 19
20 • • • • 20 20
21 • • • • 21 21
22 22 22 22 22 22 22
23 23 23 23 23 23 23
24 24 24 (24) 24 24 24
25 25 25 25 25 25 25
26 26 26 26 26 26 26
27 27 27 27 27 27 27
28 28 28 28 28 28 28
29 29 29 29 29 29 29
30 30 30 30 30 30 30
17,5 22 22,5 25 28,5 30
288 Notas sobre

19[e]: A Universidade Nova de Bruxelas (1894-1919) sur-


giu da dissidência progressista e socializante da Univer-
sidade Livre de Bruxelas (ULB), onde se reintegrou. A ULB
foi criada em 1834 com cunho liberal conservador, agnós-
tico e anticlerical, ligada ao Grande Oriente da Bélgica,
para responder à refundação da Universidade Católica
de Lovaina em 1834.
19[f]: Faria de Vasconcellos casou-se (1.º casamento em 30-05-
1906 em Woluwe-Saint-Lambert, Bruxelas) com Eugénie Marie
Joséphine Leurquin (Huy, 18-04-1877-) de quem teve a filha
Jenny Leurquin Faria de Vasconcellos (1904-1924), tendo-se
divorciado em Lisboa por sentença de 27-06-1923 (art. 4º -
5.º e 6.º do Decreto de 3-11-1910, DR n.º 26 de 4-11-1910). E ca-
sou-se (2.º casamento em 20-09-1923 na 2.ª Conservatória do Re-
gisto Civil de Lisboa) com Nazária Celsa Camacho Quiroga
(Itapaya, Cochabamba, Bolívia, 1895-1995) de quem teve os
filhos Maria do Céu Águeda Camacho de Sena Faria de
Vasconcelos (Lisboa, 1921-) e Gonçalo Manuel Camacho
de Sena Faria de Vasconcelos (Coimbra, 1924-2008, Lisboa).
20[a]: «…pioneiro da educação do futuro.» Passado um
século já se pode compreender melhor a sua ação edu-
cativa. Este tema é abordado no Posfácio.
20[b]: O seu chalé de Les Pléiades sur Blonay, numa
quinta de 30 hectares, ficava no extremo oriental do Lac
Léman e Genève no extremo ocidental. Foi construído
em 1913 e na primavera de 1914 Ferrière e a sua mulher
(desde 1910-06-02) Isabelle Bugnion (1885-1969) mudaram-
se para lá, tendo sido aí acolhido Faria de Vasconcellos
em 1914-1915. A 01-04-1918 um incêndio devorou esse
chalé e a documentação de Ferrière.
20[c]: Institut Jean-Jacques Rousseau fundado em 1912
Uma escola nova na Bélgica 289

por Édouard Claparède (1873-1940), Pierre Bovet (1878-1944)


e Adolphe Ferrière (1879-1960), hoje Faculté de Psychologie
et des Sciences de l’Éducation de l'Université de Genève.
20[d]: Genève.
20[e]: O tom familiar da edição original é conservado.
21[a]: melhor do que trabalhos manuais será trabalho ma-
nual ou educação para o trabalho. Ao longo da obra valoriza-
se o trabalho como meio de desenvolver a autonomia, a
responsabilidade, o empreendedorismo e a inclusão so-
cial. A 1.ª palestra (1.º capítulo) andou à volta deste tema
principal (p. 44, 51, 54). Ver 51[b].
21[b]: em agosto de 1914 Faria de Vasconcellos, ao ver a
sua escola de Bierges controlada pelas tropas alemãs, exi-
lou-se em Genebra, onde trabalhou no Institut Jean-Jac-
ques Rousseau com A. Ferrière e E. Claparède. Aí profe-
riu três conferências em fevereiro e março de 1915 sobre
a experiência da escola nova de Bierges-les-Wavre, e que
deram origem ao livro Une École Nouvelle en Belgique. Du-
rante um século esta obra foi esquecida ou simplesmente
ignorada. Podemos hoje lê-la em português e compreen-
der quanto foi «pioneira».
22[a]: «A dignidade do ser humano é também de ordem
cósmica e planetária. O aparecimento do ser humano na
Terra é uma das etapas da história do Universo… Todo o
ser humano tem direito a uma nacionalidade, mas, a tí-
tulo de habitante da Terra, é simultaneamente um ser
transnacional…» (art. 8.º). Carta da Transdisciplinaridade,
Convento da Arrábida, 06-11-1994. http://www.gthidro.ufsc.br/ar-
quivos/CARTA-DA-TRANSDISCIPLINARIDADE.pdf

22[b]: «A obra é marcada por essa tensão, tão característica


290 Notas sobre

do movimento da educação nova, entre a desconfiança e a


crença na educação escolar.» A. Nóvoa (2005), Evidentemente.
Porto: Asa. repositorio.ul.pt/bitstream/10451/4810/1/9789724142142.pdf
22[c]: Segundo A. Nóvoa (2005), Evidentemente, revela
«uma crença desmedida na regeneração da humanidade
através de um novo impulso educativo».
23[a]: causeries, conversas: 1.ª transcrita no capítulo 1, 2.ª
transcrita no capítulo 2, 3.ª transcrita nos capítulos 3 e 4.
23[b]: onde os alunos aprendiam a publicar artigos e a
dar a conhecer a sua escola e a eles próprios, ver p. 159.
24[a]: A Escola de Bierges começou o 1.º ano (1912) com
9 alunos, o 2.º ano (1913) com 25 alunos e o para o 3.º ano
(1914) já havia 35 inscrições na Páscoa anterior. Previa
não ir além de 60 (ver p. 74).
24[b]: A escola às crianças ou a escola para as crianças?
Todas as escolas são, pelo menos teoricamente, para as
crianças e foi essa a tradução inglesa e espanhola: the school
for the child, la Escuela para los niños. Também J. Ferreira Go-
mes em «A. Faria de Vasconcelos (1880-1939)» [Estudos de
história e de pedagogia. Coimbra: Almedina, 1984; p. 119-140] tra-
duz: a escola para as crianças. O original diz l’école aux en-
fants e não l’école pour les enfants. A versão original pode
ser traduzida das duas maneiras, no entanto, é intuito de
toda a obra ser inovadora, dirigida para a autoeducação,
e «realizar completamente a fórmula» em que a «educa-
ção e instrução» da criança é o centro, não só como objeto
mas sobretudo como sujeito da sua própria educação.
25[a]: como conselho de curadores e conselho científico.
25[b]: Jules-Gabriel Compayré (Albi, Tarn, 1843-1913, Pa-
ris), teórico da pedagogia, professor na Escola Normal
Uma escola nova na Bélgica 291

de Fontenay-aux-Roses / Saint Cloud, reitor da Acade-


mia de Lyon, inspetor-geral da Instrução Pública: – His-
toire critique des doctrines de l'éducation: depuis le seizième siècle.
2 vol. Paris: Hachette, 1879, 1904 (7.e éd.) – Cours de pédagogie
théorique et pratique. Paris: Librairie Classique Paul Delaplane,
1885, 1899 (15.e éd.). – L'instruction civique. Paris: Lib. C. P. De-
laplane, 1888 (7.e éd.) – Cours de morale théorique et pratique. Pa-
ris: Lib. C. P. Delaplane, 1887. – L'évolution intellectuelle et mo-
rale de l'enfant. Paris: Hachette, 1893, 1913 (6.e éd.). – L'adoles-
cence: études de psychologie et de pédagogie. Paris: F. Alcan, 1909.
25[c]: Ovide Decroly (1871-1932) fundou em 1906 a So-
ciéte de Pédotechnie e em 1907 em Bruxelas a École de
l’Ermitage, onde desenvolveu a teoria dos centros de in-
teresse. Os programas escolares devem adaptar-se à
psicologia da criança e corresponder às exigências da
vida individual e social. A escola deve fornecer à criança
conhecimentos essenciais da prática da vida: «a escola
pela vida e a vida pela escola».
25[d]: Guillaume De Greef (1842-1924), professor e reitor
da Universidade Nova da Bruxelas (UNB), assegurava
as ligações da UNB com o Grande Oriente da Bélgica.
25[e]: Victor Devogel, diretor das escolas de Saint-Gil-
les, Bruxelas.
25[f]: Tobie Jonckheere (1878-1958), professor na Facul-
dade de Filosofia e Letras da Universidade de Bruxelas
e diretor da Escola Normal.
25[h]: Maurice Mæterlinck (1862-1949), belga, prémio
Nobel da literature em 1911. Ver 154[a].
25[i]: A. Nyns, inspetor escolar em Bruxelas.
25[j]: Manuel de Oliveira Lima (1867-1928), escritor, «amigo
dos livros», diplomata cultural, embaixador do Brasil na
292 Notas sobre

Bélgica, funag.gov.br/loja/download/863-Oliveira_Lima_e_as_Re-
lacoes_Exteriores_do_Brasil.pdf
25[k]: N. Smelten, diretora de escola, secretária-geral da
Liga de Ensino e da Sociedade Belga de Pedotecnia.
25[l]: Dr. Paul Sollier (1861-1933), psiquiatra neurolo-
gista, professor da UNB.
25[m]: Medard Carolus Schuyten (1866-1948), pedólogo
belga, diretor do Departamento de Pedologia de An-
tuérpia e professor de Pedologia na UNB (1899-1923).
25[n]: Émile Adolphe Gustave Verhæren (1855-1916), es-
tudante na U. Católica de Lovaina, e mais tarde próximo
do grupo da UNB pelo socialismo utópico, openli-
brary.org/works/OL1233852W/Les_d%C3%A9buts_litt%C3
%A9raires_d'Emile_Verhaeren_%C3%A0_Louvain,
25[o]: Ver p. 222.
26[a]: Compayré, G., Une école nouvelle et les jardins
d’adolescents. L’Éducateur moderne, mai 1913, p. 193.
26[b]: Edifício onde funcionou a escola nova de Bierges

Château des Vallées, foi construído entre 1870 e 1876


Uma escola nova na Bélgica 293

por um construtor que quase se arruinou e o vendeu a


M. Ravet, que lhe deu o nome de Château Ravet. Fica a
cerca de 30 km a sudeste de Bruxelas, na rue Joseph
Francis 60, B-1301 Bierges: 50º42'32.16''N 4º35'27.94''E.

26[c]: Gembloux a 18 km a su-sudeste de Bierges.


27[a]: Constantin Meunier (1831-1905), pintor e escultor
belga autor de obras sobre o mundo do trabalho.
27[b]: Ver 23[a].
27[c]: estação de Bierges-Walibi ou Wavre com mu-
dança em Ottignies para Bruxelas.
33[a]: Ver p. 62- 67, 151, 213.
34[b]: «docteur» (designação dada ao médico, aqui em sen-
tido metafórico). A palavra paramédico (ou socorrista) pa-
rece ser a que melhor traduz o que se quer dizer.
37[a]: savate. 37[b]: boxing. 38[a]: wrestling
38[b]: Royal Camping et Caravaning Club de Belgique.
39[a]: Robert Baden-Powell (1857-1941). Scouting for Boys,
1908. — Éclaireurs. Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 1912,
294 Notas sobre

tradução de Pierre Bovet (1878-1965). — Escutismo para rapazes,


V. N. Famalicão: Fraternidade Mundial, 1954. — Escotismo para
rapazes, Lisboa: Associação dos Escoteiros de Portugal, 2010.
— Escutismo para rapazes, Corpo Nacional de Escutas, 2013.
39[b]: Boys-Scouts de Belgique, fundados em 1910, per-
tencem aos Scouts et Guides Pluralistes de Belgique.
39[c]: Pe(h)r Henrik Ling (1776-1839) precursor da edu-
cação física e da massagem sueca.
39[d]: Friederich Wilhelm Müller, Eugene Sandow
(1867-1925), pioneiro da musculação.
39[e]: ver 12[d].
44[a]: ver 21[a].
45[a]: oficina de modelagem e cartonagem

47[a]: Pensava-se que a função da escola era instruir e não


educar, como se pensa ainda que a função da escola é ins-
truir e educar mas não formar. «Educar é preparar para a
vida solidária» diz R. Dottrens (1893-1984) em Educar e ins-
truir, Lisboa: Estampa, 1974 (or 1966). Na escola nova de Fa-
.

ria de Vasconcellos o aluno aprendia e aprendia a aprender


Uma escola nova na Bélgica 295

pela instrução, educação e formação integradas. «A nossa


instrução é essencialmente educativa» (p. 73). «A escola
deve estar ao serviço da vida social.» (p. 205-206). Ver, 244[a].

48[a]: oficina de carpintaria a partir dos 10 anos (p. 47).

48[b]: oficina de serralharia e forja para os mais velhos

51[a]: bien né, of good instincts, bien nacido


51[b]: Ver Liliana Gomes (2010), O conceito de escola de tra-
296 Notas sobre

balho segundo Georg Kerschensteiner, dissertação de Mestrado


em Ciências da Educação, Aveiro: Universidade de Aveiro.
ria.ua.pt/handle/10773/3614
55[a]: «É a nossa escola, fomos nós que a fizemos!»
58[a]: nastúrcios, nasturtiums, tropaeolum majus
58[b]: grands soleils, sunflowers, helianthus annuus
58[c]: myosotis alpestris, forget-me-nots
58[d]: chrysanthemum
58[e]: saxifraga umbrosa, désespoirs du peintre
62[a]: nas outras traduções manteve-se o nome original
«La Fermière»; procurou-se aqui mostrar a atualidade do
tema e do nome: «A Quinta Pedagógica».
67[a]: self-government, «governo de si próprio». Obras
Completas de Faria de Vasconcelos, II, 243-249 e IV, 361-375.
68[a]: beaux!, splendid!, hermosos!
69[a]: Dr. Cecil Reddie, ver 18[b]
70[a]: «A educação física e sensorial deve preceder a
chamada educação intelectual. Antes de tudo, é preciso
ensinar a criança a aprender; os sentidos são os primei-
ros instrumentos do conhecimento. Já Michelet dizia
que antes de ensinar a criança a ler é preciso ensiná-la a
ver. É indispensável fundar a sua educação sobre o de-
senvolvimento sistemático e regular da atividade sen-
sorial e muscular.» Lições de pedologia e pedagogia ex-
perimental, 187. Ver 25[c].
71[a]: Segundo a lei biogenética da recapitulação de E.
Haeckel (1834-1919) a evolução de cada indivíduo reca-
pitula e evolução da sua espécie; aplicando-se esse prin-
Uma escola nova na Bélgica 297

cípio à aprendizagem, a criança seguirá os passos da hu-


manidade na construção do seu conhecimento.
73[a]: é já o novo conceito de literacia, unesdoc.unesco.
org/images/0013/001362/136246e.pdf.
74[a]: Ver 24[a].
75[a]: Na escola de currículo aberto e flexível «o aluno
pode transitar dum ano para o outro segundo as suas
aptidões especiais e o seu adiantamento, sucedendo as-
sim que possa estudar certas matérias que pertencem a
um ano superior, outras que pertencem a um ano infe-
rior. A classificação será pois móvel.» Obras Completas de
Faria de Vasconcelos, III, 29.
76[a]: a tempo parcial. Ver p. 222.
81[a]: «a harmonia na diferença» (art. 1.º-1-1), ver 218[b].
81[b]: Ver p. 256.
82[a]: «Quando eu, para educar a criança, recorro à sua
curiosidade, ao seu interesse, quando pretendo fortifi-
car a sua atenção fazendo apelo a motores próprios da
sua idade e da sua inteligência, eu educo o esforço da
criança porque lanço mão dos únicos meios capazes de
fixar a sua atenção, de a manter, de a provocar, mas o
que eu não faço é… educá-la pelo esforço… não é edu-
cando pelo esforço que se educa o esforço. A educação
pelo esforço cansa, fatiga e aborrece…» Lições de pedo-
logia e pedagogia experimental, 345. Ver 25[c].
82[b]: Ver p. 256.
86[a]: «Mas que não se confunda a cultura geral com a
cultura enciclopédica exaustiva e estéril. A verdadeira
cultura deve ser antes de tudo a do juízo, da razão e da
inteligência.» Projet d’école nouvelle, p. 25.
298 Notas sobre

103[a]: «O professor deve… passar do papel de solista ao


de acompanhante, tornando-se não mais alguém que
transmite conhecimentos, mas aquele que ajuda os seus
alunos a encontrar, organizar e gerir o saber, guiando
mas não modelando os espíritos, e demonstrando
grande firmeza quanto aos valores fundamentais que
devem orientar toda a vida.» (p. 155) Jacques Delors et al.
(1996 or.). Educação: um tesouro a descobrir. S. Paulo: Cor-
tez, 1997. http://ftp.infoeuropa.eurocid.pt/data-
base/000046001-000047000/000046258.pdf
109[a]: «Most children are instinctively naturalists, and
were they encouraged would readily pass from careless
observations to careful and deliberate ones.» H. Spencer
(1820-1903) An Autobiography, I. New York: Appleton, 1904, p. 80.
babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=mdp.39015015402210;view=2up;seq=122
114[a]: Pâquerette, bellis perennis, malmequer, margarida,
daisy. Páscoa diz-se Pâques.

115[d]: sala dos aquários, terrários, microscópio, disseca-


ção e coleções.

115[a]: carabes, carabidae, carabus – 115[b]: hannetons,


Uma escola nova na Bélgica 299

cockchafers – 115[c]: nécrophores, burying beetles


115[e]: peixes dourados, carassius auratus – 115[f]: cyprinus
carpio – 115[g]: tanches, tench – 115[h]: squalius – 115[i]:
lepomis gibbosus – 115[j]: ictalurus punctatus – 115[k]: co-
bitis taenia – 115[l]: gasterosteus aculeatus – 115[m]: newts
– 115[n]: hydrophilidae – 115[o]: dytiscus marginalis –
115[p]: water-boatmen – 115[q]: common snails – 115[r]:
limnées – 115[s]: planorbidae – 115[t]: sangsues, leeches
117[a]: jardim de recreio

117[b]: pomar
300 Notas sobre

118[a]: museu de história natural de Bruxelas


118[b]: museu colonial de Tervueren.
120[a]: 50°51′18″N 4°21′55″E.
120[b]: 118[b]
121[a]: para construção de ferrovias ou rodovias ou
para valas de drenagem
126[a]: «O educador deve não só ajudar e dirigir a criança
no caminho que a natureza lhe traçou, mas estimular,
acordar as faculdades de segunda ordem. O educador
deve suscitar, excitar todas as energias, deve aumentar
o capital de forças, chamando à vida todas aquelas que
adormecidas ou fracas servirão de auxiliares poderosos
na luta pela vida… O educador, desde que nota uma
predisposição interessante, deve aproveitá-la e servir-
se dela para agir sobre outras funções. Estimular e de-
senvolver o maior número delas é aumentar as probabi-
lidades de triunfo e de felicidade na vida.» Lições de
pedologia e pedagogia experimental, 257. Ver 25[c].
129[a]: guia do programa de estudos.
131[a] Pêndulo de Foucault
131[b] telegrafia sem fios, posto de rádio
137[a]: 50°28'53"N 4°8'15"E
139[a]: 50°35'23"N 5°58'27"E
140[a]: 51°21'30"N 3°11'0"E
147[a]: Ver p. 251.
149[a]: Charles-Ange Laisant (1841-1920), militar, mate-
mático, presidente da Société Mathématique de France
(1888) e cofundador com Henri Fehr (1899) da revista pe-
dagógica L'Enseignement Mathématique.
Uma escola nova na Bélgica 301

149[b]: Charles Méray (1835-1911), professor de matemá-


tica na Universidade de Dijon.
149[c]: Margarete Truan-Borsche (-1955), pedagoga diretora
da secção preparatória da Escola nova de Bedales, 18[c]:
Die ersten Schritte zur Entwicklung der logischen und
mathematischen Begriffe in Zeitschrift fur Philosophie und
Pädagogik, 19.1912, 369-385, 417-433, 485-503. (Langensalza, Beyer)
151[a]: «La fermière», «A quinta pedagógica». Ver 62[a].
151[b]: literacia financeira
154[a]: O pássaro azul de Maurice Mæterlinck (1862-1949),
ebooksgratuits.com/pdf/maeterlinck_maurice_oiseau_bleu.pdf,
peça de teatro escrita em 1908 nesse ano estreada em
Moscovo e em 1911 em Paris, em cinema The Blue Bird
(1918 e 1940), youtube.com/watch?v=fK7aEvdRR6Y. Ver 25[h]
155[a]: A hora dos contos, 1921. Obras Completas de Faria
de Vasconcelos, III, 11-12.
156[a]: Jules Verne (1828-1905) escreveu mais de 100 li-
vros de ficção científica, muitos deles postos em filme.
156[b]: Thomas Mayne-Reid (1818-1883), romancista
156[c]: James Fenimore Cooper (1789-1851), romancista.
156[d]: Edmundo De Amicis (1846-1908), escritor de lite-
ratura infantil.
156[e]: Jean-Henri Fabre (1823-1915), entomólogo.
156[f]: Théophile Moreux (1867-1954), Abbé Moreux, as-
trónomo e meteorologista, escritor.
156[g]: Rudyard Kipling (1865-1936), escritor e poeta, intro-
duziu os contos curtos, com clássicos da literatura infantil.
156[h]: Herbert George Wells (1866-1946), escritor de fic-
ção científica.
302 Notas sobre

156[i]: Lev Nikolayevich (Leão) Tolstoi (1828-1910), escritor.


156[j]: Alphonse Daudet (1840-1897), romancista.
156[k]: André Theuriet (1833-1907), romancista, poeta e
dramaturgo.
156[l]: F. Blondiau [– Triomphe de l'énergie morale. Liège: Bé-
nard, 1909; Bruxelles: J. Lebègue et Cie, 1912.]
gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k65706205
156[m]: William Shakespeare (1564-1616), dramaturgo,
poeta.
156[n]: Victor Hugo (1802-1885), novelista, ensaísta, dra-
maturgo, poeta.
156[o]: Eugène Demolder (1862-1919), romancista.
156[p]: Ver 25[h] e 154[a].
156[q]: Gaston Maspero (1846-1916), egiptólogo francês.
156[r]: Albert Giraud, Émile Albert Kayenberg (1860-
1929), poeta simbolista belga.
156[s]: Maurice Maindron (1857-1911), entomólogo.
156[t]: Jules Michelet (1798-1874), historiador francês.
156[u]: Jules Renard (1864-1910), romancista, dramaturgo.
156[v]: Isaac Ridler Butts (1795-1882), babel.hathi-
trust.org/cgi/pt?id=uc2.ark:/13960/t6930r710;view=1up;seq=11
156[w]: Jean-Martin Charcot (1825-1893), médico, pro-
fessor de medicina, pioneiro da neurologia.
156[x]: Adrien de Gerlache (1866-1934), comandante
do navio «Bélgica», visualiseur.bnf.fr/Visualiseur? Desti-
nation=Gallica&O=NUMM-73530
156[y]: Arnold Henry Savage Landor (1865-1924), explo-
rador, antropólogo.
Uma escola nova na Bélgica 303

156[za]: Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), ro-


mancista, poeta, dramaturgo.
156[zb]: Dante Alighieri (1265-1321), poeta, escritor
156[zc]: Henrik Ibsen (1828-1906), dramaturgo, poeta.
156[zd]: Ralph Waldo Emerson (1803-1882), ensaísta, fi-
lósofo.
168[a]: Ver 249[c].
173[a]: Rupicapra Pyrenaïca. – 173[b]: lama glama.
177[a]: Eduard Suess (1831-1914) Das Antlitz der Erde. Prag
Wiem: F. Tempsky Leipzig: G. Fraytag, 1885, 1888, 1901 (3 vol.) /
The face of the earth. Oxford: Clarendon Press, 1904. / La face de la
terre. Paris: Armand Colin, 1909. / A face da terra. Ver Gondwana.
180[a]: Ver 156[a]. – 180[b]: Ver 156[b].
180[c]: Selma Lagerlöf (1858-1940), Nobel da literatura (1909):
− A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia.
180[d]: Vasco da Gama (1460-1524), navegador, explorador.
180[e]: Fernão de Magalhães (1480-1521), navegador, ex-
plorador.
180[f]: Cristóvão Colombo (1451-1506), navegador, ex-
plorador.
180[g]: Henry Morton Stanley (1841-1904), explorador.
180[h]: Pierre Savorgnan de Brazza (1852-1905), oficial da
marinha, explorador.
180[i]: James Cook (1728-1779), navegador, explorador.
180[j]: Fridtjof Nansen (1861-1930), explorador do polo norte.
180[k]: Sven Hedin (1865-1952), explorador, geógrafo.
183[a]: J.-H. Rosny Aîné, Joseph Henri Honoré Boex,
(1856-1940), um fundador da ficção científica.
304 Notas sobre

183[b]: La guerre du feu: le roman des âges farouches. Paris:


E. Fasquelle, 1911; Rouge & Or, 2012. / A guerra do fogo.
Lisboa: Verbo, 1960; Presença, 1985.
189[a]: 50°28'48"N 4°40'28''E
189[b]: 50°12'49"N 4°57'21''E
190[a]: Albert Bleunard (1852-1905), autor de obras de di-
vulgação e de romances de ficção científica.
190[b]: Louis Figuier (1819-1894), divulgador da ciência.
190[c]: Georges d’Avenel (1855-1939), historiador.
190[d]: Fernand Pelloutier (1867-1901), sindicalista revo-
lucionário.
190[e]: Alfred Nicolas Rambaud (1842-1905), historiador.
190[f]: Antoine Parmentier (1737-1813), farmacêutico mi-
litar, nutricionista.
190[g]: Jean-Chrétien-Ferdinand Hœf(f)er (1811-1878),
médico, escritor, historiador das ciências.
190[h]: Salomon Reinach (1858-1932), especialista de his-
tória das religiões.
190[i]: Louis Ménard, (L. de Senneville) (1822-1901), es-
critor, helenista, poeta, pintor.
190[j]: Ver 183[a].
190[k]: Ver 156[q].
190[l]: Arabella Buckley (1840-1929), pedagoga, escritora
de ciência.
190[m]: Ver 156[v].
190[n]: Alfred Russel Wallace (1823-1913), naturalista,
biólogo, biogeógrafo, antropólogo, explorador.
Uma escola nova na Bélgica 305

190[o]: Walter Scott (1771-1832), criador do romance his-


tórico.
190[p]: François-René de Chateaubriand (1768-1848), es-
critor, ensaísta.
190[q]: Prosper Mérimée (1803-1870), historiador.
190[r]: Paul Guiraud (1850-1907), professor de história.
190[s]: Hyacinthe Langlois (1777-1837), artista, pintor.
190[t]: Gaston Maruéjol (1847-1912), historiador.
190[u]: Jean Froissart (1337-1405), cronista, menestrel.
190[w]: André Lenôtre (1613-1700), jardineiro paisagista.
190[x]: Georges Lacour-Gayet (1856-1935), historiador.
190[y]: Victor Duruy (1811-1894), historiador e político.
190[za]: Ernest Lavisse (1842-1922), historiador.
190[zb]: Charles Seignobos (1854-1942), historiador.
190[zc]: Plutarchus (46-120), historiador, biógrafo.
190[zd]: Hippolyte Taine (1828-1893), historiador.
190[ze]: Henri Pirenne (1862-1935), historiador.
191[a]: Jean-Charles Houzeau de Lehaie (1820-1888),
astrónomo.
193[a]: William James (1842-1910), um dos fundadores
da psicologia americana, filósofo do pragmatismo.
206[a]: Ver 15[a] e 67[a].
206[b]: «A punição, como todo o sistema repressivo, pro-
duz efeitos contraproducentes. O melhor meio para cor-
rigir os defeitos da criança consiste num sistema preven-
tivo que influa sobre os fatores que os determinam…» Li-
ções de pedologia e pedagogia experimental, 470. Ver 16[c].
306 Notas sobre

215[a]: «O erro capital que se comete querendo que a crian-


ça faça esforço por simples amor do dever, por simples
respeito da disciplina abstrata, provém de se esquecer
que a criança não é um homem, e que aos nossos valores
morais correspondem na criança outros valores.» Lições
de pedologia e pedagogia experimental, 502. Ver 25[c].
217[a]: Os princípios da escola nova, nomeadamente a
valorização do trabalho manual, eram uma inovação
para aplicar a todos e não apenas (ou sobretudo) aos
mais fracos, portadores de qualquer deficiência, como
ainda há quem pense e defenda. Perante a tendência
maniqueísta de atribuir o trabalho manual aos portado-
res de deficiência compreende-se que a sua inclusão pu-
desse «acrescentar mais dificuldades às que já não são
poucas para criar a primeira Escola nova», como dizia
Faria de Vasconcellos em relação à coeducação (p. 231).
218[a]: Ver 254[a].
218[b]: «…A prática da tolerância significa que toda
pessoa tem a livre escolha de suas convicções e aceita
que o outro desfrute da mesma liberdade…» (art. 1.º)
Declaração de Princípios sobre a Tolerância, aprovada pela
Conferência Geral da UNESCO em sua 28.ª reunião, Pa-
ris, 16 de novembro de 1995. unesdoc.unesco.org/ima-
ges/0013/001315/131524porb.pdf.

219[a]: «… Sob o ponto de vista psíquico a punição é


uma violação da personalidade da criança, destrói a sua
sensibilidade, avilta-lhe o carácter, enfraquece-lhe a
confiança em si própria, habituando-a à submissão pas-
siva e à hipocrisia…» Lições de pedologia e pedagogia expe-
rimental, 471. Ver 25[c].
Uma escola nova na Bélgica 307

222[a]: Ver p. 25.


230[a]: 1.er juin 1914, p. 167-175: gallica.bnf.fr/ark:/
12148/bpt6k5690602t/f469.image; 15 juin 1914, p. 184-191:
gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5690602t/f486.image.

232[a]: Burness G.-F. (1912). La coéducation dans les écoles


secondaires. Thèse de doctorat de l’Université de Lille.
Lille: C. Robbe.
239[a, b]: Segundo A. Nóvoa (2005), Evidentemente: «De-
pois de um século de teorias pedagógicas, importava,
agora, explicar concretamente o que se fazia, esperando
que esta ilustração fosse inspiradora e contribuísse para
lançar a semente da escola nova… Era preciso passar das
ideias às práticas e, ao mesmo tempo, transformar as
práticas num laboratório de experimentação.» reposito-
rio.ul.pt/bitstream/10451/4810/1/9789724142142.pdf

240[a]: no final do prefácio: p. 20.


241[a]: «1. Toda a pessoa tem direito à educação… O en-
sino técnico e profissional deve ser generalizado… 2. A
educação deve visar à plena expansão da personalidade
humana e ao reforço dos direitos humanos e das liber-
dades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a
tolerância e a amizade entre todas… e todos… 3. Aos
pais pertence a prioridade do direito de escolher o gé-
nero de educação a dar aos filhos.» (art. 26.º) Declaração
Universal dos Direitos Humanos, Assembleia-Geral
das Nações Unidas, Paris, 10-12-1948.
242[a]: «Para o desenvolvimento completo e harmo-
nioso da sua personalidade, a criança precisa de amor e
compreensão. Criar-se-á, sempre que possível, aos cui-
dados e sob a responsabilidade dos pais e, em qualquer
308 Notas sobre

caso, num ambiente de afeto e de segurança moral e ma-


terial…» Declaração dos Direitos da Criança, 6.º, Assem-
bleia-Geral das Nações Unidas, 20-11-1959. .
un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/1386(XIV)

242[b]: rural urbano, aldeia cidade, village life city life: «a


escola deve estar situada na periferia dos centros de po-
pulação e dispor, além das instalações interiores para
aulas, laboratórios, oficinas, etc., de terreno suficiente
para: a) um vasto campo de jogos; b) jardins escolares».
Obras Completas de Faria de Vasconcelos, III, 24.
243[a]: Ver 241[a].
243[b]: gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-
dh/tidhuniversais/dm-conv-edcmulheres.html; unes-
doc.unesco.org/images/0022/002278/227859E.pdf;
ohchr.org/Documents/HRBodies/CEDAW/WomensRigh-
tEducation/UNESCO_UNwomen.pdf

243[c]: «o objetivo do desenvolvimento é a realização in-


tegral do ser humano em toda a riqueza da sua persona-
lidade, complexidade das suas formas de expressão e
variedade de compromissos: indivíduo, membro de
uma família e de uma comunidade, cidadão e produtor,
inventor de técnicas e criador de sonhos… (XVI) abolir as
distinções rígidas entre diferentes tipos ensino (geral,
científico, técnico e profissional) dando à educação bá-
sica e secundária um caráter simultaneamente teórico,
tecnológico, prático e manual.» E. Faure… (1972) Lear-
ning to be (p. 195) / Apprendre à être (p. 220) / Aprender a ser,
Lisboa – S. Paulo: Bertrand, Dif. Ed. do Livro, 1974. unes-
doc.unesco.org/images/0000/000018/001801e.Pdf unes-
doc.unesco.org/images/0013/001329/132982f.pdf. – «Cada
pessoa (criança, jovem ou adulto) deve estar em condições
Uma escola nova na Bélgica 309

de aproveitar as oportunidades educativas voltadas


para satisfazer as suas necessidades básicas de aprendi-
zagem. Essas necessidades compreendem os instru-
mentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura
e a escrita, a expressão oral, o cálculo, a resolução de proble-
mas) e os conteúdos básicos da aprendizagem (como co-
nhecimentos, competências, valores e atitudes), necessários
para que os seres humanos possam sobreviver, desen-
volver plenamente as suas potencialidades, viver e tra-
balhar com dignidade, participar plenamente do desen-
volvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar deci-
sões fundamentadas e continuar a aprender…» (art. 1.º)
Declaração mundial sobre Educação para todos: satisfação das
necessidades básicas de aprendizagem. Jomtien, 1990, 1998.
unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por.pdf –
«Não se trata apenas de aproximar a escola do mundo
do trabalho mas de dar aos adolescentes os meios de
enfrentar as realidades sociais e profissionais…» (p.122).
Delors. Educação: um tesouro a descobrir. – «Os trabalhos
manuais devem responder às condições seguintes: … h)
ser úteis e práticos, tendo aplicação imediata na vida do
lar e da escola… terão um caráter essencialmente educa-
tivo e não profissional… serão considerados como prin-
cípios de educação e não como ramos de ensino…»
Obras Completas de Faria de Vasconcelos, III, 26.

244[a]: «Acompanhar e até antecipar-se às transforma-


ções tecnológicas que afetam permanentemente a natu-
reza e a organização do trabalho tornou-se primordial.
Em todos os setores, mesmo na agricultura, sente-se a
necessidade de competências evolutivas articuladas
com o saber e com o saber-fazer mais atualizado (p. 71)…
310 Notas sobre

melhorar as competências na área da agricultura não


acarretam grandes despesas e pode fazer-se tanto ao ní-
vel da educação básica como do ensino secundário… o
ensino secundário relacionado com o setor industrial
deve desenvolver-se em estreita relação com o setor do
emprego» (p. 136). Delors. Educação: um tesouro a descobrir.
245[a]: «À educação cabe fornecer… os mapas de um
mundo complexo e constantemente agitado e, ao
mesmo tempo, a bússola que permita navegar através
dele» (p. 89). Delors. Educação: um tesouro a descobrir.
246[a]: vida ativa, active life, trabalho manual, agricul-
tura, jardinagem, exercício físico, natação, desportos.
247[a]: andar a pé e de bicicleta, caminhadas, pedestria-
nismo, caminheirismo, escutismo, campismo.
248[a]: «A educação ao longo de toda a vida baseia-se
em quatro pilares: aprender a conhecer, aprender a fa-
zer, aprender a viver juntos, aprender a ser» (p. 101). De-
lors. Educação: um tesouro a descobrir.
249[a]: Obras Completas de Faria de Vasconcelos, III, 15.
249[b]: «educação ao longo de toda a vida… é a condição
para um domínio mais perfeito dos ritmos e dos tempos
da pessoa humana» (p. 104). Delors. Educação: um tesouro
a descobrir.
249[c]: Ver p. 147 e 168[a]. – «convém insistir no papel
formador do ensino das ciências e, nesta perspetiva, de-
finir uma educação que saiba, desde a mais tenra idade,
por meios por vezes muito simples como a tradicional
“lição das coisas”, despertar a curiosidade das crianças,
desenvolver o seu sentido de observação e iniciá-las na
atitude de tipo experimental» (p. 83). Delors. Educação:
Uma escola nova na Bélgica 311

um tesouro a descobrir.
250[a]: «Recomendação: Centrar a atividade educativa
no aluno para, à medida que vai amadurecendo, lhe
permitir uma cada vez maior liberdade de decidir por
si mesmo o que quer aprender, como e onde o quer
aprender…» (p. 220) Faure. Aprender a ser.
251[a]: Herbart, Johann Friedrich. Pedagogia Geral. Lis-
boa: Fundação C. Gulbenkian, 2003, p. 69, 76.
252[a]: «sociedade educativa, onde tudo pode ser oca-
sião para aprender e desenvolver os próprios talentos»
(p. 117). Delors. Educação: um tesouro a descobrir.
253[a]: «determinados valores fundamentais são essen-
ciais para as relações internacionais no século XXI. Entre
eles figuram: — A liberdade…—A igualdade…— A solida-
riedade. Os problemas mundiais devem ser enfrentados
de modo a que os custos e as responsabilidades sejam
distribuídos com justiça, de acordo com os princípios
fundamentais da equidade e da justiça social. Os que so-
frem, ou os que beneficiam menos, merecem a ajuda dos
que beneficiam mais. — A tolerância… — Respeito pela
natureza… — Responsabilidade comum…» Declaração do
Milénio das Nações Unidas, Assembleia Geral das UN de
08-09-2000. unric.org/html/portuguese/uninfo/DecdoMil.pdf
254[a]: «Os programas de estudo, ainda que devam con-
ter um conjunto de noções fundamentais cuja aquisição é
indispensável para todas as crianças, não serão unifor-
mes para todo o país… Os trabalhos manuais e as ciências
naturais… (são) o centro de organização e de distribuição
das matérias.» Obras Completas de Faria de Vasconcelos, III, 28.
255[a]: currículo aberto, flexível e integrador por módulos,
312 Notas sobre

ver 75[a].

255[b]: ver 24[b] «O principal objetivo da educação moral


deve ser ajudar cada indivíduo a construir a sua persona-
lidade autónoma e a tornar-se ativo, responsável e criati-
vamente envolvido na vida da sociedade… deve ter como
objeto o ser humano nas suas relações consigo mesmo,
com a natureza e com os seus semelhantes.» (26). A escola e
a educação moral face aos imperativos do mundo contemporâneo,
Paris: Unesco, 1978, ED-78/CONF.631/4. unesdoc.unesco.org/
images/0003/000301/030114eb.pdf; unesdoc.unesco.org/images/
0003/000301/030114FB.pdf

256[a]: Ver 8[c], 15[a], 67[a].

257[a]: «participação ativa na gestão da escola… os alu-


nos podem assim tomar consciência das suas contribui-
ções para com a sociedade e sentirem-se satisfeitos pe-
los seus esforços» (18). Unesco, A escola e a educação moral
face aos imperativos do mundo contemporâneo.

258[a]: «os métodos de formação ponham os alunos dian-


te de escolhas reais e lhes ofereçam possibilidades de ex-
perimentar soluções para tentar resolver situações que
põem problemas. O direito a errar devia ser reconhecido
e a pluralidade de opções aceite.» (37). Unesco, A escola e a
educação moral face aos imperativos do mundo contemporâneo.

258[b] e 259[a]: «Depois de considerar os interesses dos


outros, os alunos deviam ser exortados a agir de acordo
com as suas convicções, segundo a sua idade e grau de
maturidade, e aprender a viver com as consequências
dos seus atos.» (15) Unesco, A escola e a educação moral face
aos imperativos do mundo contemporâneo.
Uma escola nova na Bélgica 313

260[a]: autoavaliação do aluno para a autonomia e a res-


ponsabilidade pessoal e social.
261[a]: beleza, verdade e bondade
262[a]: música em grupo
262[b]: «Crianças muito jovens… poderão começar a
construir uma atitude positiva lendo histórias simples
ou fábulas que contenham uma mensagem moral. Os
mais velhos, especialmente os adolescentes, são capa-
zes de raciocínios abstratos e é preciso oferecer-lhes
possibilidades de refletir sobre problemas reais que di-
gam respeito à comunidade, ao país e ao mundo em que
vivem.» (33) Unesco, A escola e a educação moral face aos im-
perativos do mundo contemporâneo.
264[a]: Ver 22[b]. «Não basta reunir Homo sapiens e Homo
faber, é ainda necessário que ele se sinta em harmonia
com os outros e consigo próprio: Homo concors… O
nosso tempo… não pode ser senão o do homem total; quer
dizer, todos os homens e todo o homem (tudo o que é
humano).» Faure. Aprender a ser, p. 40.
314[a]: Ver p. 239.
315[a]: Obras Completas de Faria de Vasconcelos, I, 93.
316[a]: Ver p. 7.
318[a]: Ver p. 72-73.
319[a]: Ver trilogia Ciência – Tecnologia – Sociedade
(entrevista): http://aia-cts.web.ua.pt/?page_id=355.

julho de 2015 Carlos Meireles-Coelho


314 António S. Nóvoa

O tempo da Educação Nova

“Em Bierges as janelas estão abertas a todos os


ventos. Estamos atentos e queremos responder a
todos os estímulos do futuro. Estamos vivos.” [a]

Foi preciso chegar ao centenário de Une école nou-


velle en Belgique, para que esta obra maior de Faria de
Vasconcelos fosse traduzida para português. Graças
ao trabalho de Carlos Meireles-Coelho temos dispo-
nível um livro marcante, daquele que é, com Antó-
nio Sérgio, o autor mais importante do nosso pano-
rama pedagógico da primeira metade do século XX.
Curiosamente, o texto mais conhecido de Antó-
nio Sérgio, a Educação cívica, também foi publicado
no mesmo ano, em 1915. São dois livros escritos em
Genebra, no ambiente do Instituto Jean-Jacques
Rousseau, o epicentro da Educação Nova.
Carlos Meireles-Coelho oferece-nos não só a tra-
dução de Uma escola nova na Bélgica, mas também um
conjunto de anotações e apontamentos, históricos,
biográficos e bibliográficos, de grande interesse e
utilidade para compreender o pensamento de Faria
de Vasconcelos e a experiência pedagógica da escola
de Bierges-les-Wavre.
Logo nos primeiros escritos, entre 1900 e 1902, com
pouco mais de vinte anos de idade, Faria de Vascon-
celos revela as suas preocupações com a educação,
deixando um “apelo à iniciativa da elite intelectual
O tempo da educação nova 315

do nosso país, aos estabelecimentos de ensino, a todas


as vontades esclarecidas para que encetem a obra de
regeneração de um povo pela sua educação moral e
social de forma que pelo pensamento e vida em co-
mum se formem corações e espíritos de eleição” [a].
Nunca mais abandonará as preocupações educa-
tivas, nos anos em que viveu na Bélgica (até 1914), e
depois na Suíça (1915), Cuba (1915-1917) e Bolívia (1917-
1920), até se fixar definitivamente em Portugal, onde
participa, logo em 1921, no grupo de A Seara Nova.
São múltiplas as actividades e iniciativas de Faria
de Vasconcelos, até à sua morte em 1939, em particu-
lar nas universidades populares e na Universidade de
Lisboa, na imprensa e no campo da orientação profis-
sional, felizmente bem documentadas nas Obras com-
pletas, publicadas pela Fundação Calouste Gulben-
kian, por iniciativa de J. Ferreira Marques. É impor-
tante referir, também, o seu papel na preparação de
planos e reformas para a educação, em particular na
Proposta de lei sobre a reorganização da educação nacional,
mais conhecida por “Reforma Camoesas”, que foi
apresentada ao Parlamento em 21 de Junho de 1923,
mas que nem sequer chegou a ser discutida. Todavia,
ficou, no imaginário nacional, como a consagração de
um ideário que juntava as correntes da educação po-
pular e as novas perspectivas científicas, sendo recor-
dada, desde então, como a grande “oportunidade
perdida” para reformar o ensino em Portugal.
Neste breve apontamento quero apenas registar
a importância de Uma escola nova na Bélgica, também
316 António S. Nóvoa

pelo significado de, no prefácio, Adolphe Ferrière


ter publicado, pela primeira vez, os famosos Trinta
princípios de uma escola nova modelo, que serviam para
aferir da conformidade de cada experiência com os
ideais traçados pelo “Bureau international des écoles
nouvelles”: “Têm-me perguntado com frequência
em que consiste exactamente uma Escola nova e o
que a caracteriza. A definição que tenho dado não
foi suficiente para evitar mal-entendidos. A partir de
agora vou aconselhar a leitura da obra do meu co-
lega e amigo, professor Faria de Vasconcellos. A sua
escola de Bierges-les-Wavre na Bélgica, cujo desen-
volvimento foi tragicamente interrompido pela
guerra, era uma Escola nova modelo”. [a]
Este duplo exercício, programático e prático, é tí-
pico do movimento da Educação Nova. Por um lado,
definem-se grandes princípios, por outro, apresen-
tam-se experiências concretas que os ilustram. O li-
vro de Faria de Vasconcelos constitui um dos pri-
meiros e mais notáveis exemplos desta estratégia de
difusão mundial de um ideário pedagógico.
Hoje, sabemos que a Educação Nova se impôs
como forma dominante de pensar a educação, ainda
que muitos dos seus princípios continuem por con-
cretizar. Na verdade, os temas que a Educação Nova
propõe transformaram-se numa vulgata que, de uma
ou de outra forma, pais e professores vão repetir ao
longo do século XX.
A nossa maneira de pensar a infância, a educação
e a pedagogia baseia-se, fundamentalmente, neste
O tempo da educação nova 317

ideário que aparece claramente exposto, pela pri-


meira vez, no livro de Faria de Vasconcelos. Daí a
sua importância, não só para Portugal, mas para a
compreensão da pedagogia contemporânea.
Mesmo com um século de atraso, a publicação
em português de Uma escola nova na Bélgica adquire,
por tudo o que fica dito, uma grande importância.
Faria de Vasconcelos definiu-se muitas vezes como
“psicologista”, assim como António Sérgio se defi-
nia como “pedagogista”. Um e outro assentavam os
seus princípios na afirmação de uma pedagogia com
“um carácter e um espírito nitidamente científico”.
Acreditavam, e nisso seguiam os seus colegas do
Instituto Jean-Jacques Rousseau, que a pedagogia ti-
nha entrado, definitivamente, “na fase do método
científico, libertando-se do empirismo”.
Faria de Vasconcelos é, sem dúvida, o educador
português mais conhecido no estrangeiro. A sua
obra constitui uma referência obrigatória para quem
quer estudar as dinâmicas da Educação Nova no
princípio do século XX.
Cem anos depois precisamos de abrir novas jane-
las, a todos os ventos, para assim responder aos es-
tímulos do futuro. São outros os tempos, são outros
os caminhos, mas precisamos de ter a mesma ousa-
dia de pensamento e de acção que este livro de Faria
de Vasconcelos revela, pois só assim estaremos à al-
tura das novas soluções que o século XXI nos exige.

5 de Julho de 2015 António S. Nóvoa


318 Isabel P. Martins

Aprender em contextos reais

“A criança… que é conduzida pela sua experiên-


cia pessoal a reconstruir este todo… não aprende
simplesmente, mas sabe como e porque usar os
conhecimentos. Isto tem um significado muito
elevado na vida, porque não importa só possuir
conhecimentos, mas sobretudo saber servir-se
deles, saber utilizá-los, saber aplicá-los.” [a]

Terá cabimento analisar as perspetivas de ensino


das ciências veiculadas por Uma Escola Nova, um
século antes, visto que as mudanças a nível científico
e tecnológico foram tão apreciáveis que nada na es-
cola e, em particular, no ensino das ciências estará
na mesma?
A visão de ensino das ciências que Faria de Vascon-
celos apresenta já tinha a ver com duas ideias-chave
cruciais para a aprendizagem das ciências: a experi-
mentação e a integração de saberes. Para isso os alu-
nos abordavam situações reais, do quotidiano pró-
ximo e progressivamente mais distante, e isso exigia
a problematização das situações e a discussão dos
problemas num intercâmbio e articulação de pontos
de vista, ideias, conhecimentos e saberes. O interesse
dos alunos pelos temas seria fundamental para que a
aprendizagem resultasse. Mais, para além dos sabe-
res específicos próprios dos temas em estudo, Faria
de Vasconcelos advogava um estatuto sublime para
as ciências no currículo: a sua capacidade de estimu-
larem o desenvolvimento intelectual e o pensamento
Aprender em contextos reais 319

crítico do aluno. Estas ideias estão, afinal, de acordo


com a investigação em educação em ciências ao de-
fender que mais do que ensinar conteúdos há que
ensinar competências de saber pensar, questionar,
ponderar e saber valorizar princípios.
Faria de Vasconcelos foi pioneiro ao defender que
o trabalho prático, para o ser, teria de ser executado
pelo próprio aluno e que as competências práticas e
técnicas não seriam alcançadas observando apenas
demonstrações feitas pelo professor, ainda que rigo-
rosas. Mais, o trabalho prático individual e em grupo
poderia ser executado em ambientes naturais mas
também em laboratórios e oficinas e que desde os
primeiros anos deveriam ser proporcionadas opor-
tunidades para os alunos irem aprendendo ciências,
ao nível da sua compreensão, observando, compa-
rando, experimentando, classificando e sistemati-
zando. Seguindo o caminho do concreto para o abs-
trato, do particular para o geral, o aluno alcançaria
as “ideias gerais”, aquelas que para cada nível etário
deveriam ser caraterizadas.
Ensinar será um propósito da escola, tornar essa
aprendizagem estimulante será um objetivo de todos
os professores, que a aprendizagem das ciências tem
de ser feita a partir de questões abertas em situações
reais e destina-se a preparar melhores cidadãos é
descrito por Faria de Vasconcelos de forma pioneira,
há um século atrás, neste livro. [a]

8 de julho de 2015 Isabel P. Martins


320 Uma escola nova na Bélgica

Índice

Prefácio de Adolphe Ferrière ……………………...…...…….. 7

Capítulo I: Meio ambiente. Educação física ……............ 21


Fundação da escola, 23 — Localização, 25 — Edifícios, 29
— Higiene do corpo, 31 — Educação física, 35 — Trabalhos
manuais, 44 — Trabalhos agrícolas, 56.
Capitulo II: A Educação intelectual ………..........….……. 69
O homem e a terra, evolução das necessidades da criança
e da humanidade, 70 — QUESTÕES DE ORGANIZAÇÃO: —
Turmas pequenas, 73 — Classes móveis, horários indivi-
duais, 74 — Aulas de curta duração, 76 — Número redu-
zido matérias ao mesmo tempo, 78 — Interdependência
das áreas, 82 — Cultura geral e especialização, 84 — MÉTO-
DOS DE TRABALHO: — Aulas e trabalho individual, 88 —
Conferências de alunos e professores, 93 — Biblioteca, co-
leções, documentos, laboratórios, oficinas, 93 — Visitas de
estudo, 98 — Avaliação do trabalho, notas e boletins, 104
Capítulo III: Alguns processos de ensino ……..…....… 108
Ciências naturais: zoologia, 108 — botânica, 119 — geolo-
gia, 121 — Física e química, 128 — Matemáticas, 147 — Lín-
guas: língua materna, 152 — línguas estrangeiras, 169 —
Geografia e história, 171.
Capítulo IV: Educação moral, social e artística …....…. 192
O meio físico e social, 193 — Sistema de autonomia e car-
gos sociais, 206 — Liberdade, autoridade, sanções, profes-
sores, 214 — O gosto, a arte, a música, o canto, 224 — Edu-
cação sexual e coeducação, 229 — Resultados, 233.

Posfácio e Notas de Carlos Meireles-Coelho …........….. 240

O tempo da Educação Nova de António S. Nóvoa ….... 314


Aprender em contextos reais de Isabel P. Martins ….... 318

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