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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de História

Análise de Fonte
Resumo:

O presente trabalho tem como objetivo fazer uma breve análise do Sermão XIV do
Rosário, do Padre Antônio Vieira, pregado pela primeira vez em 1633, na Bahia, aos escravos
na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Para isso, a obra será relacionada a
concepção de defesa da escravidão e a formulação católica do projeto de salvação.

Sobre o autor:

Padre Antônio Vieira nasceu em Lisboa, Portugal - período de União Ibérica -, no ano
de 1608. Dirigiu-se para o Brasil com seis anos de idade acompanhado dos pais, situando-se
na Bahia. Iniciou seus estudos noviciado com quinze anos de idade, ingressando na
Companhia de Jesus, quando começou a evangelizar e a escrever seus sermões, que no total
foram em torno de duzentos produzidos ao longo de sua vida. O Sermão XIV da série Maria
Rosa Mística foi o primeiro pregado por Vieira, que ainda se encontrava na condição de
noviço, ou seja, não era ainda ordenado padre “ [...] mas novo ou noviço no exercício e na
arte, é esta a primeira vez que, subido indignamente a tão sagrado lugar, há de falar dele em
público” (VIEIRA, Sermão XIV, c.1). Por ter convivido com Jesuítas em uma aldeia indígena,
partilhava de concepções contrárias a perseguição deles e de novos- cristãos - judeus
convertidos ao catolicismo - pela Inquisição. Como consequência, foi expulso, juntamente
com todos os jesuítas, do Brasil, tido como herege, sendo perseguido e preso durante dois
anos.

Vieira tornou- se um orador amplamente reconhecido pelo desenvolvimento da prosa


no período do movimento literário Barroco, em que através de sermões conceptistas propagou
as expressões ideológicas da Contra Reforma. Em seus sermões criticou o despotismo dos
colonos portugueses e as consequência da disseminação do Protestantismo na colônia,
levantando a fundamentalidade de se exercer de forma fidedigna o ofício de sacerdote, além
de serem dirigidos aos escravos negros e indígenas.

Contexto da obra:
A Reforma Protestante tem origem na Alemanha, no início do século XVI, mais
precisamente no ano de 1517, quando o monge Martinho Lutero promulgava suas famosas 95
Teses e iniciava uma verdadeira revolução, ameaçando a hegemonia que a Igreja Católica
manteve durante séculos a fio na Europa Ocidental. A obra é realizada nesse contexto que
ainda ressonava pelo mundo. Para conter o avanço do protestantismo e das críticas que
ecoavam, a Igreja Católica, por meio da Contra Reforma, realiza ações para a conquista de
novos fiéis com o intuito de manter sua influência. Devido a isso, a Companhia de Jesus foi
uma alternativa a novos fiéis, servindo também como partícipes do processo de expansão da
coroa portuguesa, catequizando e pacificando os indígenas além mar. O próprio Concílio de
Trento incentivou a adoração ao Rosário, lembrando que o Padre Antônio Vieira estava nesse
contexto, em que o Vaticano estimula a sua adoração como forma de cristianização e reforço
da lógica católica. Ou seja, não é atoa o Rosário estar presente em seu Sermão.

Outrossim, a escravização não se restringia apenas aos indígenas, a partir do século


XVII, a mão de obra escrava africana é incorporada, transformando o Brasil em uma
sociedade de fato escravista ao desenvolver a produção de açúcar nos engenhos. Devido a
isso, questões relacionadas a legitimação da escravidão são levantadas, fazendo com que a
Igreja a considere como uma via fundamental, até por que não há condenação da escravidão
propriamente na Biblia.

Análise:

No sermão são apresentados os três dias de festa - S. João, Senhora do Rosário e a


festa dos pretos - que estavam ocorrendo quando foi proferido, utilizadas como um modo de
persuasão aos pretos para embasar a ideia de que os castigos brutais sofridos por eles
deveriam ser compreendidos como uma graça Divina, sendo eleitos a serem salvos através do
batismo, não se vendo preciso que se rebelem contra a escravização. Vieira ratifica a
prescindibilidade de adorar o Rosário e de devoção a Maria - a devoção aos santos é o
primeiro reconhecimento da vida do indivíduo -, demonstrando importância da fé, não
devendo ser esquecida apesar da realidade que presenciavam, pois por meio dela não
continuariam na ignorância. Em um trecho se dirige principalmente aos pretos, em relação a
esse ponto:

“Começando, pois, pelas obrigações que nascem do vosso novo e tão alto
nascimento, a primeira e maior de todas é que deveis dar infinitas graças a Deus por
vos ter dado conhecimento dc si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos
pais e vós vivíeis como gentios, e vos ter trazidos a esta, onde, instruídos na fé,
vivais como cristãos, e vos salveis.” (VIEIRA, Sermão XIV, c.6)
Assim, Vieira defende que o cativeiro é o intermediário da salvação, um milagre para
esses escravos, servindo como um instrumento, o lugar que o indivíduo pagão vai ser salvo
pelo batismo e pela aprendizagem das noções fundamentais católicas - de fidelidade, bons
serviços, amor a Deus e disciplina -, cujo são qualidades que todo católico deve dotar.
Ademais, era obrigação dos senhores garantir a salvação de seus escravos, embora seus
corpos fossem pertencentes ao senhor, suas almas poderiam conquistar a redenção e partilhar
do reino dos céus. Via-se necessário que um represente de Deus propagasse essa mensagem
em relação a escravidão como um conciliador, pois detinha de uma autoridade, para que
compreendessem-na como um caminho para a liberdade de seus espíritos.

Contudo, percebe-se que não concordava diretamente com as atrocidades cometidas


contra os negros, mas sim, a justificativa em nome de algo maior. Fato esse que desagradou as
camadas mais elevadas da sociedade, por “[...] Antônio Vieira antipatizar com a escravidão,
transformava-o num inimigo dos senhores de engenho e dos mercadores, e esta possivelmente
tenha sido à base conspiratória que o colocou nas garras da inquisição que, por pouco não o
condena a morte por heresia” (SILVA, 2011). Em seu próprio sermão se verifica esse
posicionamento pelos três partos de Maria Santíssima, argumentando que tanto os brancos
quanto os pretos são filhos da Virgem Maria, tendo assim a mesma origem, deixando de lado
a distinção entre raças.

“Nasceram da Mãe do Altíssimo, não só os da sua nação, e naturais de Jerusalém, a


que é comparada, senão também os estranhos e os gentios -alienigenae. - E que
gentios são estes? Rahab: os cananeus, que eram brancos; Tyrus: os tírios, que eram
mais brancos ainda, e sobre todos, e em maior número que todos: populus
Aethyopum: o povo dos etíopes, que são os pretos. De maneira que vós, os pretos,
que tão humilde figura fazeis no mundo e na estimação dos homens, por vosso
próprio nome e por vossa própria nação estais escritos e matriculados nos livros de
Deus e nas Sagradas Escrituras, e não com menos titulo nem com menos foro que de
filhos da Mãe do mesmo Deus [...]” (VIEIRA, Sermão XIV, c.5).

Usando como um artifício de aproximação entre Jesus e os pretos, Vieira compara o


tratamento recebido aos escravos nos engenhos com os suplícios vividos por Jesus Cristo,
gerando de certo modo um sentimento de identificação entre esses personagens, que mesmo
sofrendo, conseguiram alcançar, no final, a salvação. Cristo serve como exemplo a esse grupo
que experienciava os mesmos males, para que assim aceitassem e não se rebelassem contra
esse sistema escravocrata.

“Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado:Imitatoribus Christi crucifixi


- porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu
na sua cruz e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a
vossa em um engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas
vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra vez
para a esponja em que lhe deram o fel. A Paixão de Cristo parte foi de noite sem
dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias.
Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo
maltratado, e vós mal-tratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas,
os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que, se for
acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio.” (VIEIRA,
Sermão XIV, c.7).

Em suma, o sermão possui posicionamentos polêmicos, tanto voltado para a


escravidão de forma a qualificá-la como um meio para um fim, como para críticas pela forma
que essa sociedade tratava os negros e também indígenas. Vieira, por meio de seu sermão,
sustenta uma concepção de apaziguador, querendo que os escravos não se rebelem em nome
de um propósito maior divino de salvar suas almas. Sendo assim, os suplícios sentidos em
vida em seus corpos seriam recompensados após a morte em seus espíritos.

Referências Bibliográficas

VIEIRA, Padre Antônio. 1633. Sermão XIV. Disponível em:


<http://www.cce.ufsc.br/%7Enupill/literatura/BT2803039.html>. Acesso em: 12 de Junho de
2021.

COSTA, Ronald Ferreira da. Latim e retórica nos sermões de Vieira: o Sermão XIV do
Rosário. Classica (Brasil), 20.2, p. 261-269, 2007.

RESUMO do "Sermão XIV da Nossa Senhora do Rosário" escrito por Padre Antônio Vieira.
[S. l.: s. n.], 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YPxfLsZDkpM.
Acesso em: 14 jun. 2021.

SILVA, Celso da. A visão do Padre Antônio Vieira sobre a escravidão. Mafuá, Florianópolis,
Santa Catarina, Brasil, n. 16, 2011.

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