Você está na página 1de 4

Finitude e Sentido de Vida

A experiência atual que estamos vivenciando tem semelhanças


com a vivida nos campos de concentração nazistas, com o
isolamento social compulsório, sendo a ameaça a mesma: a
morte, o aniquilamento pessoal. As diferenças, contudo, são
muitas: agora, o isolamento proposto é motivado pelo desejo de
preservação da vida das pessoas, que devem se isolar para não
transmitir a ameaça viral, frequentemente mortal.

Na experiência alemã da primeira metade do século XX, a


reclusão era somente de um grupo minoritário, considerado
descartável e inferior ao grupo maior. Este, por sua vez,
seria racialmente superior e fixou objetivos que deveriam ser
preservados da raça considerada inferior ou de grupos com
ideias vistas como negativas, contrárias ou perigosas. O atual
desafio, no entanto, nos iguala como seres humanos,
independentemente de eventuais características ou culturas que
nos diferenciem.

O confinamento obrigatório de hoje, imposto legalmente em


muitos casos, é também um dever ético, motivado pela
solidariedade e pela preocupação com todos os outros seres
humanos – sem distinções de raça, credo religião ou ideologia
– para preservar vidas.

Como nos campos de concentração, acabamos novamente


confrontados pela nossa existência “nua e crua” e somos
desafiados a dar nossas respostas. Agora, não se preocupar com
o outro pode ser tão danoso quanto não cuidar de si mesmo.

Viktor Frankl, criador da Logoterapia, uma escola


psicoterápica centrada no sentido da vida, sendo também uma
proposta para lidar com outros problemas que afligem o ser
humano, propugnava por um movimento que chamava de
monantropismo: “o saber em torno da unidade da humanidade, uma
unidade que ultrapassa todas as diversidades, quer as da cor
da pele, quer as da cor dos partidos”.

O desafio do novo coronavírus torna evidente o que ressaltava


Frankl. Esse vírus exige um esforço conjunto de toda a
humanidade unida, pois ficou demonstrado o quão vulneráveis
somos, já que todos podemos ser transmissores, todos podemos
ser vítimas. Fica mais uma vez assinalado que a solidariedade
é essencial ao ser humano.

Será o esforço comum e continuado que nos levará ao retorno


possível da normalidade. Que essa experiência dolorosa seja
estímulo para que a união necessária não termine quando a
doença estiver vencida, mas que seja a catalisadora de um
esforço por um novo ser humano, que melhore as condições de
vida para todos e compartilhe melhor os recursos de que já
dispomos.

A humanidade como um todo está sendo questionada pela


situação. As respostas que vínhamos dando aos problemas
humanos, olhando o estado em que vivem milhões de pessoas, nos
envergonham como raça humana e dificultam o combate ao inimigo
comum. Temáticas desafiadoras, como propriedade privada,
divisão de recursos, importância e qualidade da vida humana e
da vida em geral, direitos humanos, educação, cultura,
ciência, aspirações do ser humano e espiritualidade, para
citar somente algumas, não têm sido muito bem equacionadas.
Temos formulado muitas e grandiosas perguntas. Nossa ingente
tarefa: dar respostas que valham a pena.

Se o estado de coisas da humanidade não está satisfatório,


talvez aos jovens, aos estudantes em geral, aos universitários
em particular, que em breve estarão assumindo postos de
vanguarda e de liderança no nosso mundo futuro, talvez a esses
o questionamento seja maior e mais desafiador. Eles, com seus
desejos de mudança e visões alternativas de mundo, talvez
possam trazer contribuições importantes para novas e melhores
soluções.
As mudanças não ocorrem de um momento para outro. Precisam ser
pensadas, planejadas, executadas. Por isso, o questionamento
que for feito agora, para pensar um mundo melhor, é tão
importante. A crise que estamos vivendo não representa somente
um perigo; pode ser também uma catalisadora de mudanças que se
queiram fazer. Não será com passionalidade e ideologia que
vamos solucionar esses problemas. A ciência, a educação, as
evidências científicas e a solidariedade é que devem nos
guiar.

O objetivo principal propugnado para este momento de nossa


história é sobreviver. Mas a pergunta seguinte é mais
significativa e impactante: sobreviver para quê?

Esse questionamento é o mais significativo de nossas vidas.


Pergunta por nossos valores, pelos sentidos de nossas
existências – temáticas seguidamente inquestionadas ou
amortecidas pelo ritmo alucinante em que muitas vezes vivemos,
devido, em parte, à comunicação impessoal constantemente
renovada e não refletida proporcionada pela virtualidade de
nossas mídias. Essa realidade não nos dá tempo para a reflexão
crítica e o aprofundamento íntimo dos temas abordados. Como
dizia Sócrates, uma vida não questionada e irrefletida não
merece ser vivida.

O novo coronavírus se nos apresenta como o inimigo comum a ser


vencido. Mas o distanciamento social que temos vivido para
vencê-lo talvez também acentue a angustiante questão que virá
após a vitória: viveremos para quê? Temos que dizer sim à
vida, mas essa afirmação terá que vir acompanhada do “para
quê” dizer esse sim à vida.

Devemos aproveitar o tempo que nos está sendo dado pelo


confinamento social para refletir e burilar as respostas a
essa questão. Temos de aproveitar esta oportunidade para nos
transformarmos em seres humanos melhores e que busquem
respostas mais adequadas que resultem em ações mais eficazes e
justas para os temas dolorosos que a humanidade tem de
resolver para ser digna dessa denominação.

Ilustração de Laura Castilhos

Paulo Kroeff é psicólogo e professor aposentado do Instituto


de Psicologia da UFRGS.

Laura Castilhos é ilustradora, professora universitária e


artista plástica.

Você também pode gostar