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O MODERNISMO EM ALBERTO CAEIRO

Lorena Araújo de Oliveira Borges

Alberto Caeiro foi o primeiro grande heterônimo de Fernando Pessoa. De acordo com
sua biografia, ele nasceu em 16 de abril de 1889, em Lisboa. Era órfão de pai e mãe e nunca
exerceu uma profissão digna do homem moderno. Estudou até a 4ª série e levou uma vida
pobre em Ribatejo, onde escreveu O Guardador de Rebanhos e O Pastor Amoroso. De volta à
Lisboa, ele ainda produziu Os Poemas Inconjuntos antes de morrer, aos 26 anos, de
tuberculose, em 1915.
Caeiro é um poeta da objetividade, que tinha o intuito de registrar as sensações
vivenciadas sem o intermédio do pensamento (ABDALA JÚNIOR, 1994). Era um homem
ligado à natureza e, simplesmente, não era dado a qualquer tipo de pensamento filosófico que,
segundo ele, serviam apenas para obstruir a visão. “[…] é o poeta que foge para o campo,
pois, sendo poeta e nada mais, poeta por natureza, deve procurar viver simplesmente como as
flores, os regatos, as fontes, os prados, etc., que são felizes apenas porque, faltando-lhes a
capacidade de pensar, não sabem
que o são” (MOISÉS, 1999, p. 244).
Utiliza-se de versos
prosaicamente livres para se portar
contra o transcendentalismo
saudosista, uma vez que para ele as
coisas não tinham sentido oculto
algum, e a hipocrisia e falsidade da
poesia compassiva humanitária
(SARAIVA, 2008). Proclama-se um
anti-metafísico, que nega o
pensamento (responsável por um
mundo complexo e problemático) e
conclama o reconhecimento do
mundo a partir de uma objetividade

Figura 1 - Alberto Caeiro por Fernando Pessoa


visual. Considera-se um simples guardador de rebanhos, que considera a sensação como a
única realidade a ser vivida e, portanto, transformada em poesia.
Por essas características, Alberto Caeiro era considerado uma espécie de mestre tanto
para os outros heterônimos – Álvaro de Campos e Ricardo Reis – quanto para próprio Pessoa.
Ao longo de sua jovem vida, produziu 104 poemas, 49 em O Guardador de Rebanhos, 6 em
O Pastor Amoroso e 49 em Poemas Inconjuntos.

O Orfirsmo: a primeira geração modernista

O Orfismo é considerado o primeiro Modernismo português e está intimamente


associado à grande instabilidade social e política pela qual passava a primeira República,
iniciada em 1910. É importante ressaltar que esse é o momento em que a Europa se prepara
para viver a Primeira Grande Guerra, o que estava causando muitas tensões também no meio
artístico. Nesse momento, alguns escritores se reuniram em torno de um movimento estético
pós-simbolismo. Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada-Negreiros e Santa-Rita
Pintor são os nomes mais significativos dessa fase.
Em 1915, eles fundam a revista chamada Orfeu, que tinha o intuito de servir como
porta voz para os ideais estéticos daquela geração. Na abertura do número inicial, Luís de
Montalvor estabelece os princípios dessa publicação

“Puras e raras suas intenções com seu destino de Beleza é o do:


– Exílio!
Bem propriamente, ORPHEU, é um exílio de temperamentos de arte que a
querem como a um segredo ou tormento…
Nossa pretensão é formar, em grupo ou idéia, um número escolhido de
revelações em pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático
tenham em ORPHEU o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos o
conhecermo-nos
[…]
E assim, esperançados seremos em ir a deito de alguns desejos de bom gosto
e refinados propósitos em arte que isoladamente vivem por aí” (in MOISÉS,
1999, p. 230)

A intenção desse grupo era criar uma poesia que fugia ao que era proposto pelo
Simbolismo/Decadentismo. Queriam uma poesia alucinada, chocante, irritante, irreverente,
que provocasse a burguesia; queriam uma poesia que se colocasse contra o provincianismo e a
literatura estereotipada da tradição neo-simbolista e neo-romântica. Assim, a introdução do
primeiro número de Orpheu mostra, exatamente, a falta de um programa estético dessa
primeira geração modernista. “[…] pretendiam mais derrubar as formas artísticas
convencionais pelo escândalo. Também sob esse aspecto não conseguiram ser radicais por
impossibilidade ideológica. Continuavam ainda impregnados de uma religiosidade esotérica
proveniente do misticismo do decadentismo-simbolismo” (ABDALLA JÚNIOR, 1994, p.
135).
Mas essa geração também tinha outros monstros. A angústia geral que tomava conta
da Europa e do Mundo causavam uma ansiedade e um sentimento de indagação generalizado.
O homem do século XIX não poderia adentrar no século XX e isso ficou claro com o grande
conflito mundial que teve início em 1914.

A guerra de 1914 é manifestação nítida dessa crise, provocada pela


necessidade de abandonar as velhas e tradicionais formas de civilização e
cultura (de tipo burguês) e de buscar novas fórmulas substitutivas. O homem
posta-se à frente do espelho, sozinho, perante a própria imagem, e angustia-
se porque vive uma quadra de ausência de verdade absolutas capazes de
explicar-lhe a incoerência visceral e a sem-razão do existir. A anarquia
instala-se como fruto do relativismo, nascido com a grande viragem histórica
representada pela cultura romântica, de que o Modernismo é legítimo
continuador. Está-se no ápice do processo, ou no início dum estágio mais
avançado, como os anos posteriores vieram mostrar. Nessa atmosfera, a
poesia substitui os mitos, transformando-se, ela própria, num mito
(MOISÉS, 1999, p. 239-240)

É, portanto, nessa atmosfera de ter que se reinventar que o poeta modernista se


encontra. E essa necessidade vai perpassar a obra e a vida das personalidades mais ilustres
desse período.

Características do modernismo europeu

A grande instabilidade política e social característica do início do século XX, com a


crise da sociedade liberal-burguesa, representada pela Primeira Guerra Mundial e a crise de
1929, geraram uma profusão de sentimentos que deram origem aos movimentos de vanguarda
europeus. Conforme aponta Abdalla Júnior (1994) o modernismo também foi marcado pela
influência de ideologias irracionalistas do final do século XIX e início do século XX. Dentre
estas, podemos destacar:

1. O pensamento filosófico de Nietzsche: defende o surgimento de uma nova


aristocracia do pensamento, de caráter anticristão, que aceitaria o cumprimento de
um destino irracional;
2. O intuicionismo de Bergson: contra o racionalismo; em busca de um
conhecimento natural e espontâneo e não promovido pela ciência, inteligência,
técnica ou vida social;
3. O anti-humanismo de Heidegger: a existência individual como determinação do
próprio indivíduo e não como determinação social.

Dentre os movimentos de vanguarda que surgiram dessas influências, está o


Futurismo. O Futurismo é a primeira das tendências modernistas. Trata-se de um movimento
artístico e literário que surge em 1909, com a publicação do Manifesto Futurista. Rejeitava o
moralismo e o passado, com obras que se baseavam na velocidade e nos desenvolvimentos
tecnológicos do final do século XIX. No manifesto supracitado, é possível apontar algumas
características desse movimento:

“1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito à energia e à temeridade.


2. Os elementos essenciais de nossa poesia serão a coragem, a audácia e a
revolta.
3. Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade pensativa, o êxtase e o
sono, nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo
de corrida, o salto mortal, a bofetada e o soco”
(in ABDALLA JÚNIOR, 1994, p. 137).

Além de impulsionar a literatura do início do século, o Futurismo deu origem a outros


movimentos, como o Cubismo, o Cubofuturismo e o Surrealismo.

Aspectos modernistas em O Guardador de Rebanhos


Os principais temas relacionados à obra de Caeiro são o subjetivismo, o
sensacionismo, a anti-metafísica e o panteísmo naturalista. Caeiro é o poeta que se está sob
influência do intuicionismo de Bergson. Possui um caráter anti-lírico, fugindo às rimas e às
imagens que não alcancem os seus sentidos, como podemos observar abaixo.

Sou um guardador de rebanhos.


O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos


E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la


E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor


Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido da erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz

Caeiro é um poeta que pensa com os sentidos, como ele mesmo deixa claro, o que
marca a segunda característica de sua poesia: o sensacionismo. Trata-se de uma perspectiva
que reproduz sensações – que pode ser remetida à estética simbolista-decadentista –
multiplicando-as estruturalmente e fixando-as no poema com maior ambigüidade
(ABDALLA JÚNIOR, 1994). O sensacionismo aspira uma renovação puramente artística e
rejeita o postulado de destruição do passado.

Creio no mundo como num malmequer,


Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…

O Mundo não se fez para pensarmos nele


(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...


Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…
A característica anti-metafísica de Caeiro pode ser reconhecida pela recusa ao
pensamento e à compreensão, ao mistério e ao misticismo. O poeta não busca descrever
fundamentos, condições, leis ou o sentido da realidade. Preocupa-se apenas em sentir os
elementos que o cercam e falar sobre eles.

Há metafísica bastante em não pensar em nada.


O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?


Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos


E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!


O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.

Para finalizar, temos a presença de um panteísmo naturalista, uma vez que o poeta
acredita que Deus está na simplicidade de todas as coisas. Não se trata de um agnosticismo,
uma vez que este acredita que o ser humano não possui capacidade cognoscível de conhecer
ou apreender a existência ou não de Deus ou de deuses. Caeiro apreende Deus, mas apenas
por aquilo que ele pode experimentar a partir dos seus sentidos.

O único sentido íntimo das cousas


É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos


De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores


E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores


E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montesE luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,


(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Considerações finais

Foi possível observar, a partir das características apontadas, de que maneira o


Modernismo se insere na obra de Alberto Caeiro. Seja pela primazia dos sentidos frente ao
pensamento ou pelo panteísmo naturalista presente em sua obra, o poeta propõe caminhos
para a construção de um novo homem, necessário diante de todas as mudanças impostas pelo
final do século XIX e início do século XX.
Entretanto, a maior característica modernista de Caeiro se encerra em sua própria
existência. É ele, enquanto heterônimo, que contém os ares de incerteza e a angústia de um
indivíduo que se vê diante da clivagem do homem, submerso à sua condição de sujeito. É a
possibilidade de se dividir que permite a Pessoa estabelecer, por conta própria, o seu processo
de individuação, sem submergir ao peso que se colocou nas costas dessa geração de poetas.
Enquanto poeta que cinde seu ser em outros, gerando uma profusão de sujeitos, cada um
influenciado por suas próprias vivências, Pessoa permite que toda a angústia e ansiedade
características desse momento encontrem vazão, transformando-se no grande poeta do
modernismo português.

Referências Bibliográficas
ABDALA JÚNIOR, B. PASCHOALIN, M. A história social da literatura portuguesa. 2ed.
São Paulo: Ática, 1994.
CAEIRO, A. O guardador de rebanhos. 2000. Disponível em: <http://www.clube-de-
leituras.pt/upload/e_livros/clle000127.pdf>. Último acesso: 12 dez. 2013.
MOISÉS, M. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1994.
SARAIVA, A. J.; LOPES, O. História da literatura portuguesa. 15ed. Porto: Porto Ed., 2008.

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