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Em 1980, os escritores franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari publicaram o livro

Mil Platôs – Capitalismo e esquizofrenia, entre outros, com o intuito de perceber melhor a
relação entre o ser humano e a natureza. Este, é designado de uma diversidade conceitual,
dedicado ao aprofundamento ou criação de vários conceitos, como por exemplo, conceitos já
referidos em cima por José Gil, o de multiplicidade e o de devir, e outros, como o progresso
histórico e a análise crítica do capitalismo desempenhada filosoficamente.
A filosofia de Deleuze e Guattari dedica-se à compreensão da própria realidade,
focando-se principalmente nas diferenças e dicotomias entre o consciente e o inconsciente,
denominadas assim de multiplicidades. Este livro foi intencionalmente criado para a exibição
de variadas ideias propostas, por estes escritores e para a interpretação de vários fenómenos
com diferentes perspetivas, as quais são de várias temáticas, como história e biologia, e são
apresentadas por “platôs”. O título advém do seu mesmo propósito, Mil, de multiplicidade, e
Platôs, de estratos.
O livro é composto por quinze platôs e cada “platô” apresenta variadas reflexões,
debatidas desde uma interlocução com a psicanálise, e há medida que se segue para o
seguinte platô, é se dada a continuação de uma linhagem de pensamento. Assim, cada platô é
uma condição de título que marca a mudança de uma nova temática na obra onde se tolera a
invenção de relações múltiplas desses mesmos temas. Neste, estão inseridos os platôs
denominados de “Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível” e de “Acerca do
Ritornelo”.
Foi no livro Mil Platôs que o autor José Gil retirou inspiração para as suas reflexões
filosóficas. É principalmente no volume quatro que se encontra uma ligação de pensamentos
com o conteúdo trabalhado pelo autor português.
Para uma melhor compreensão do primeiro platô, dedicado à ideia de devir, Deleuze e
Guattari tomaram como exemplo o livro Moby Dick, de Herman Melville, considerando este
como “[...] uma das maiores obras-primas de devir [...]” (DELEUZE; GUATTARI, Mil
Platôs 4).
Moby Dick é uma baleia diferenciada com capacidades e características fora do
comum para um animal, e o Capitão Ahab é o protagonista do livro, capitão de um navio
baleeiro. Estes, mantêm uma fronteira que acaba por se desterritorializar, tanto a do homem
como a da baleia, saindo assim do ambiente normal, a baleia de natureza animal e o Capitão
da sua natureza humana. Esta interação entre as duas personagens cria uma relação de
simbiose, pela associação de organismos diferentes. Aqui a desterritorialização resulta do
devir-baleia do Capitão e o devir-homem de Moby Dick, pois ambos são afetados pelas
energias e potências um do outro, desorganizando toda a hierarquia padrão que se tem da
relação indivíduo e natureza.
Deleuze e Guattari ressaltam que o devir é originado da potência de agentes que saem
de um agenciamento, praticando uma desterritorialização, um conceito que também irá ser
abordado, e entrando em linhas de fuga. O devir, surge, assim, através do povoamento ou por
transmissão, fazendo com que os agentes se encaminhem para uma nova criação,
dissociando-se do que são. Esta nova criação não é conclusiva por nada ser definido, pelo
facto do devir ser movimento. É possível, então, sugerir que houve uma atração por contágio
entre o indivíduo e a baleia, o homem e o animal, pela atração que o Capitão sentiu não só
tendo em conta a baleia, mas também as potências que partem dessa relação.
“[…] o capitão Ahab tem um devir-baleia irresistível, mas que justamente contorna a
matilha ou o cardume, e passa diretamente por uma aliança monstruosa com o Único, com o
Leviatã, Moby Dick.” (DELEUZE; GUATTARI, Mil Platôs 4). O Capitão sente esta atração
inexplicável pela baleia, a qual estes autores definem como anômalo, o termo aplicado para a
atração que este tem pela “coisa”, no sentido em que é algo que não é possível definir pela
sua complexidade.
Para concluir esta temática, existe devir na relação baleia e homem. Segundo os
autores, o animal quando convive de forma amigável com o homem, tem tendência para o
imitar, existindo assim uma domesticação. Assim, a baleia, não sendo um animal
domesticado, tem a habilidade de expelir todas as potências do animal, contrariando a ideia
de que esta relação é determinada segundo as semelhanças entre os agentes.
José Gil menciona que o ser humano cada vez mais está a ser dominado pelas novas
tecnologias, existindo assim uma ligação estranha entre estes, através da captura das
máquinas para o mesmo. É através do devir que esse domínio e que essa relação é possível,
sendo este uma transformação. Deleuze e Guattari coalescem essa maquinaria da tecnologia
com a psicanálise acreditando que o devir acaba por se tornar num inconsciente maquínico,
pela necessidade de uma coligação de interações maquínicas, para a formação dos sistemas
de potência que nos cercam. Para Deleuze e Guattari o inconsciente é uma máquina formada
pela energia que circula, juntamente com peças que se interligam, sendo o devir uma questão
de matérias e intensidades. Nesse sentido, essas transformações de devir são feitas através de
maquinações, da mesma forma que as máquinas tecnológicas estão a transformar o ser
humano num ser não tão humanizado.
Segundo Deleuze e Guattari, existe uma ética dos devires, que consiste no movimento
dos mesmos, denominado de Ritornelo, o segundo platô deste volume do livro Mil Platôs.
Ritornelo é a ideia adquirida para a ação de retorno, especificamente com a construção de
territórios e todo o conceito que existe em volta de desterritorialização, sendo um
agenciamento territorial.
Para compreender melhor esta problemática, é necessário perceber o que é o território
e onde se pode aplicar este conceito de desterritorialização, tendo em conta o principal objeto
do livro, o devir. A ideia de desterritorialização consiste no abandono do território, e o
território é um conjunto de matéria em expressão. No entanto, a verdadeira questão passa pela
perceção de como se realizam estes atos: quais as suas intensidades; quais os seus
componentes.
O Ritornelo constitui-se em dois processos, os quais se interpenetram e se interligam:
a desterritorialização e a reterritorialização. Apesar de se habitar somente uma destas
conjunturas, estes ângulos interpenetram-se, sendo fundamentais para a compreensão das
práticas humanas.
Segundo Deleuze e Guattari, a desterritorialização e a reterritorialização são processos
inseparáveis. Para existir uma reterritorialização tem de existir uma desterritorialização, ou
seja, o movimento de construção do território advém do abandono de outro território e
automaticamente é necessária a construção de um novo, como que uma linha de fuga. Assim,
os agenciamentos “desterritorializam-se” e “reterritorializam-se” como novos agenciamentos
maquínicos.
Para uma melhor perceção destes conceitos, Deleuze e Guattari apresentam exemplos
como, “Uma criança, no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando […] Esta é
como o esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos”
(DELEUZE; GUATTARI, Mil Platôs 4), ou seja, surge um agenciamento territorial pela
saída do caus para a construção de um território.
“Agora, enfim, entreabrimos o círculo, nós o abrimos, [...] nós mesmos vamos para
fora, nos lançamos […] Lançamo-nos, arriscamos uma improvisação. Mas improvisar é ir de
encontro ao Mundo [...]” (DELEUZE; GUATTARI, Mil Platôs 4). Nesta situação procuram-
se outros agenciamentos pelo abandono deste agenciamento territorial.
O ritornelo sendo um agenciamento territorial, é também o próprio movimento de
passagem, ou seja, é o sair do território e o criar outro, provocado por meios de expressão,
por harmonias. Assim como o território não se separa das linhas que o atravessam, ele acaba
por estar sempre aberto ao caos e por isso tem de existir sempre uma linha de fuga. “Uma
criança cantarola para arregimentar em si as forças do trabalho escolar a ser feito. Uma dona
de casa cantarola, ou liga o rádio, ao mesmo tempo que erige as forças anti-caos de seus
afazeres. Os aparelhos de rádio ou de tevê são como um muro sonoro para cada lar, e marcam
territórios (o vizinho protesta quando está muito alto)” (DELEUZE; GUATTARI, Mil Platôs
4).
Atualmente, estes processos podem ser aplicados na sociedade. A sociedade cada vez
está mais enfraquecida socialmente, pelo constante fortalecimento tecnológico que existe na
dimensão espacial da coletividade. Hoje, vivemos numa sociedade em que as pessoas não se
procuram pessoalmente, mas sim através das redes sociais, o que acaba por originar uma
desterritorialização da vida social, de relações estabelecidas, que se transformam em relações
virtuais. Estas, são executadas através do procedimento de reterritorialização, sendo este o
principal tópico da pós-modernidade pela sociedade em rede, uma sociedade cada vez mais
dominada pelas tecnologias.
A melhor tendência que pode explicar toda esta mudança do social para o virtual é a
aplicação Tinder. Esta aplicação, consiste no encontro de duas ou mais pessoas
desconhecidas socialmente e que apenas têm contacto pela forma virtual mostrando a sua
aparência ao seu “futuro” parceiro através de uma de foto de perfil. Antes de se conhecerem
pessoalmente, passam por todo um processo virtual onde se conhecem através da aplicação e
apresentam as suas características próprias, como por exemplo, a sua altura, a sua idade, a sua
profissão, os seus hobbies, etc. Assim, conseguimos comprovar que, atualmente, a sociedade
está cada vez mais designada pelas novas tecnologias.

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