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JUDITE

Sou instrumento da Vossa vontade. Sempre que a desmedida acomete o proceder dos
homens, tomo de minha espada sagrada e vou para o front da batalha divina.
Consagrei-me à causa do Deus único e nada posso vociferar no mundo além dessa
verdade. Quanto ao mais, guardo a sete chaves a minha pequena virtude : é ela o
sustentáculo de toda ação vindoura e possível. À uma casta viúva não é dado espargir-
se em miríades de ações e ataduras mal socorridas. Destino: meu favor maior – quanto
ao resto, devoto respeito e compromisso parcial.
Sigo apregoando o retorno da fé incondicionada: o que me consigna respeito e um
lugar de destaque na comunidade que me abriga e me vela. Eu a velo também: em
minhas orações e exortações. Emerjo nesse espaço de Epopeia somente porque tenho
uma missão. Festejam todos a libertação próxima de seus corpos, não lembrando
porém que viso sempre ao espírito e à força da fé. Sou canal do poder divino. Do Deus
do deserto, e nada mais me resta a dizer.
Minha pele não mais me pertence – pertence a uma causa. Aos poucos, à medida que
vou me decompondo, tomo os contornos de uma forma que não a minha, aquela que
me foi dado conhecer. Consciência pertence a mim de algum modo. Mulher de poucas
palavras. Uma dentre tantas dádivas.
Em minha cidade sou conhecida e reconhecida por minha túmida razão iluminada.
Com meu posso ter aprendido a cultivar a terra, dar-lhe um valor, conhecer seus
limites e, até, lutar por ela. E o que isso represente de conquista para um povo
consagrado ao amor incondicional de seu Deus.
Peregrinos da fé, não vislumbro outro sentido para essa mesma terra de dor e tantos
conflitos. Equívocos humanos – provação é nosso nome. Peregrinos da fé, não noutro
sentido. Espicular, não especular, o que faço eu. Pro-va-ção: nosso sentido e limite.
Sou uma boca que transmuda a palavra da feira em aclamação desses destemperados
melifluamente. Atuação do nada. Sem mim e outros de minha escala, estaríamos ao
sabor das estações e das maceradas determinadas de um mundo povoado de
miasmas. De tempos em tempos um enviado dos céus vem trazer cobro aos negócios
dos homens.
Sou mulher honrada, não pertenço à casta dos nobres e engalanados sacerdotes.
Ainda assim sou ouvida e minhas palavras caem em seus ouvidos, desses altivos
cavalheiros como uma mensagem de valorosa significação. Isso quer dizer muito. Atos
que não dizem fatos.
Força aglutinadora de meu incauto povo nesse pedaço de terra. Sei que sou mero
instrumento. Aguardo com sujeição o chamamento. Necessidade dos tempos. Tempos

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vindouros elucidativos no rastro da estrela... Tanto fiz que meu povo veio a tornar-se
povo no sentido que lhe emprestamos hoje, após a conquista do eu. “Assim seja”.
É noite alta, sinto-me amordaçada a essas vestes festivas que em mim me caem muito
bem. Sou investida de súbita beleza, para além de meus adornos. Um dever me abotoa
a tanta exuberância. A luxúria não faz parte de meus anseios. Saímos silenciosamente
às ruas, minha escrava e eu. Somos duas em um corpo de serviço, carregadas de
proventos que sustentar-nos-á durante essa estada no inferno de nossa provação.
Grata estou pela confiança a mim devotada, digo, à minha sensatez.
Meus rogos, tão logo interpretados, uma mensagem do próprio Deus. Somos um em
meu corpo de serva. Sua presença, a da escrava, sinto nesse desabrochar súbito de
tanto esplendor. Essa aura que me encobre e deslumbra confirma todos os presságios
e eu então enfrento o olhar impresso dos sacerdotes fixos em mim às portas da
cidade. Não mais palavras.
Silêncio sepulcral. Nada além do essencial. Seguimos nosso caminho pausando pelo ar
sôfrego de minha companheira que jamais haveria atravessado os limites da cidade ou
de nossas terras. Também meus pés estreiam nesse chão de pouca confiança. Apago a
atenção a esse murmúrio de não ter o que dizer e persisto no meu passo lento mas
constante.
A lembrança desse pedacinho de caminhada, desta trajetória é toda ela pausada pelo
arfar daquela moça, que poderia ser, e era eu! Retroajo meu olhar de recato até o
longínquo portal de minha cidade. Dias em que fui devocionalmente esposa. Acaricio
minha honestidade na espera de meu bem amado. Na chegada um afago em ambos os
cachorros na porta. Momento de minha conversão. O mesmo dia de minha convicção.
Dia a dia me acerco mais do Senhor e o temo um tanto menos dessas aproximações
um tanto mais universal. Deus é de todos. Amém!
De regra, o meu senhor se torna lei e eu desejo essas aproximações derradeiras.
Incorporo a meus dias essa urgência dos tempos de trans mudar o temor negligente
em fé perfeita. O rumorejar de palavras concentradas defluem de minha boca como de
uma fonte plantada exatamente a cumprir seu papel de provedor. Quando falo em
palavra corrida já estou nos domínios de meu cerco e não me atropelo. Cessam-se as
dúvidas e inseguranças. Um esquecimento abrevia-me o sofrimento. Sou predestinada
e acredito na punjança.
Atingir o ponto da lei para além da nobilidade de espírito requer compromisso e
urgência. A mim mesma devo a iluminação, que não é humana, que é do sagrado e não
esqueço de agradecer. O estorvo de meu povo não vale tanta guerra mas a beleza
duas servas valem. Que lástima! Trazer de volta ao seio do povo essa refulgência de
absurdidade é tarefa minha, visível à cidade. Agrada-me essas parcas referencias, essa
referência maior que a luz de ouro magistral é a Lei. O nome de meu guia.
À hora da trajetória do espírito não era nada, não se cogitava em Santíssimo. Somente
à hora da guerra. E uma história pôde ser contada.

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Somos um povo de predestinados porque O quis Aquele que nunca nos cultiva no
acaso. iluminação, povo, cidade. E uma história pode ser contada.
Somos uma tribo de predestinados. Assim O quis Aquele que tudo criou.
Nossos pais foram idólatras e se repitirmos o erro seremos derrotados de todo modo
por nossos inimigos. Predestinado. Antes de tudo é estar em constante provação.
Nada fácil uma crença sustentada na constância de um Espírito de sempre, à espreita
de um Sim.
Se se persistisse nesse sim de automação, e não de palavra própria, então se atingiria o
ponto daquela outra lei. A da grafia do próprio Senhor. Minhas pernas cambaleiam de
tanta revelação.
Sigo e sigo a estrada. É de madrugada e meu povo sofre uma ameaça. Quando um fato
desses sucede, invariavelmente o meu Deus manifesta-se através de presságios. Seu
meio é o da comunicação. Uma guerra não é só uma guerra. Nos apavoramos do
comunicado divino. Estaremos em falta?
A impiedade de meu Senhor é uma forma de educar-nos no processo do arbítrio.
Homens no caminho da lei. Daí tanta aflição no percurso. Essa minha caminhada no
abandono dos domínios estrangeiros é em tudo uma metáfora do destino itinerante
dessa minha tribo. A cidade é um acidente desse nosso persistente aprendizado do
Verbo e é uma medida a mais dada ao homem. Quase alcanço a iluminação. Meus
presságios são uma doce cantilena. Amanhã pela manhã alcançamos o acampamento
estrangeiro e então começa a batalha. Sou eu e minhas palavras encantadas e o
estrangeiro. E daí que não sou ninguém. Fora dos limites de minha cidade sou um
nada. Um vazio de mulher.
Quando me aproximo do povoado somos logo abordadas por duas sentinelas
- O meu povo está em prova. Fui investida da ingrata função de instrumento da ira
divina, e sua vontade é que todos pereçamos. Os sinais são claros e entrevem o nosso
estado real de degradação: crianças morrem de sede enquanto adultos se fartam com
o sangue do gado colhido nas ruas. Não pude mais suportar. Estou aqui para indicar ao
seu comandante o pedaço de caminho mais apropriado para alcançar os nossos
domínios sem verter mais uma gota de sangue ou verter mais uma gota de sangue ou
perder um só de seus soldados. Estou aqui porque discordo dessa nossa resistência.
Deus aponta nesses todos augúrios para a necessidade da rendição, e por isso venho
adiantar-me à vossa necessária e vindoura conquista sobre os meus.
E um deles nos disse:
- Sendo assim, siga-nos e não te arrependerás.
Não hesitei. Adornada de todos aqueles aparatos e a cesta de proventos carregados
pela ama, adentramos a tenda de Holofernes, chefe do lado de lá. Adormecida ainda,
meus olhos resplandeciam de tanto ardor. À hora pôde ser chamada de beleza
translúcida. De um brilho tal que nem minha serva foi salva do embasbaque geral.

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Paralisada. O mesmo proceder de Holofer ainda com a cabeça. Dali a mais um pouco e
já não mais me contemplava, sua algoz. Corto-lhe a cabeça! E o sangue... escorrendo
por entre minhas mãos.
Sou chamada Judite entre os meus. Três dias habitei entre eles sem que fosse
necessário refastelar-me com sua comida de pecado. O degolamento foi uma
necessidade. Consequência óbvia. Vivi mais cem anos restantes, com a mesma
honradez com que saí daquele povoado estrangeiro.

( Por Alessandra Peixoto).

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