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a última perda me brutalizou. parte da minha humanidade foi roubada.

sempre fui tão


profundamente sentimental que me desfazia por nada. mas agora o fluxo segue seu caminho.
é claro que me importo com os mais próximos. mas acho difícil demonstrar. há uma parede na
frente. eu sempre quis ser tão forte de modo que nada seria capaz de me abalar. agora. eu
sou. tão forte. que nada me abala. e tudo que quero é serenidade.

- dormência.

O fim da tarde traz seu manto alaranjado, predizendo o anoitecer álgido que anuncia o
inverno. É chegado o tempo da Criança da Promessa, quando o Deus Brilhante renasce através
da Deusa. Antes dele, a Escuridão.

O fino tecido azul celeste esvoaça através do vento gelado que a natureza lança em sua
direção. Ao fundo os montes, antes verdes, agora criam uma ilusão monocromática de brancos
e seus nuances. Nas pontas dos dedos a caneca fervilha, servindo seu vapor à temperatura
negativa.

— Está frio aqui fora. – Achilla falou enquanto deixava uma manta sobre os ombros da
vasílissa. — Deveria ao menos cobrir esses braços. Também tinha trazido algo para beber mas
vejo que quanto a isso cheguei atrasada. – mostrou o recipiente com chá quente que trazia em
mãos.

— É bom que me faz companhia. – Andromakhé finalmente se pronunciou, indicando a cadeira


próxima para que a somatophylake se sentasse. — Estive pensando... nos conhecemos desde
crianças, você entende sobre a Cólquida quase tanto quanto eu. Nada te faz pensar que nos
autointitulamos independentes do mundo lá fora, mas ainda assim sofremos com as regras
falocentrais tanto quanto aqueles que repudiamos? As nossas próprias leis...

— Senhora, como membro das forças secretas não é conveniente que eu converse sobre
política. – a filha de Lamaria cortou, continuando com tom mais ameno e fazendo um breve
gesto de cabeça em reverência. — Principalmente com a minha basílissa.

— Até onde sei seu turno já acabou. Não desejo falar com a minha ypolochagós mas sim com
uma amiga, será que pra isso acontecer eu vou ter que te despedir?

— Não precisa, eu já entendi. – sacudiu a cabeça, levando o líquido aos lábios seguindo o
mesmo gesto de Ann. — A Grande Imandra nos guiou para essa Terra através de Geia, a
Sagrada Mãe justamente porque sua época foi açoitada pelos desejos dos Homens. Nós nunca
fomos indiferentes do mundo exterior e nossa simples existência atraiu a ganância deles. Com
o tempo é difícil não nos misturarmos, mudamos nossos comportamentos e nos adaptamos.
Por mais que tentemos seguir o Princípio Orientador, fomos maculadas porque é impossível
fugir desta era. Fazemos parte da mesma Egrégora.

Embora tenha se interrompido, estava claro que a mulher desejava falar algo mais. Porém, por
questões de princípio e respeito não ultrapassou seus limites.

Agora o cobalto sem estrelas tracejava cada ponto celeste, no alto a lua solitária banhava um
lado da face da filha de Zeus, tornando em sombras sua outra metade. Um sorriso indecifrável
brotou no canto dos seus lábios, apesar de parecer pensativa, uma aura sinuosa circundava
seu ser.

— Eu sei o que quer dizer, mesmo não tendo coragem de prosseguir. Não há Sagrado sem o
Profano, e isso é o que norteia a Kharis Universal. Oferecemos aos deuses para que eles nos
deem suas bençãos: a prática circular de doação voluntária. Isso significa que não adianta nos
fechar e cobrir os olhos para o que está lá fora, jurando para nós mesmas que vivemos em
uma sociedade superior. – A Que Combate Homens, esse era o significado de seu nome; agora
parecia quase literal mediante o semblante de seu rosto. — Precisamos influenciar o máximo
de seres mortais e mágicos para que os deuses também possam mudar e assim sermos livres
verdadeiramente. Eu entendo o que minha mãe iniciou quando escolheu meu pai celestial,
ainda assim... Estou farta de ser silenciada por um sistema tão poderoso que mesmo invisível
ainda nos coage com a falsa liberdade.

— Parece que você não precisava da minha opinião. – a herdeira Svan comentou. — Vejo que
esse tempo aqui sozinha com o céu e os astros a fizera refletir e já tinha algo em mente.

— Precisamente. – respondeu sem rodeios.

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