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A VERGONHA
Compreender os nossos sentimentos não é tarefa fácil. A maioria de nós já sentiu o peso
da vergonha a determinada altura, alguns de nós fomos desonestos em relação aos nossos
sentimentos – para conosco e com os outros – por medo de sermos descobertos ou de que os
outros ficassem sabendo demasiadamente sobre nós. Em recuperação, o sentimento doloroso
vem frequentemente à superfície, e nos deixa assim se sentindo mal. Palavras como infelicidade
ou tristeza podem dar uma boa descrição desses sentimentos. Por vezes nos sentimos maus,
sem sermos de fato tão maus assim. Horas nos sentimos magoados como se algo de errado
tivesse chegado ao mais profundo de nosso ser. Sendo assim percebemos que há mais a ser
descoberto do que apenas o que o uso de drogas ou álcool pode ter feito conosco. Sentimos
que nos falta algo, que somos inadequados e vazios.
Esse sentimento crônico que nos invade muitas vezes é a vergonha. O vazio aumenta
com o derrotismo e com a necessidade constante de preenchimento. O vazio da vergonha é uma
armadilha em recuperação, que nos impede de nos sentir satisfeitos e que faz com que o fato
de não usarmos drogas, álcool, comida ou outros comportamentos compulsivos, pareça
impossível.
DE ONDE VEM A VERGONHA
Para a maioria de nós vergonha tem suas raízes na nossa infância. Há famílias que tem
problemas de adicção e emocionais, por isso muitos de nós fomos criados em famílias
disfuncionais que não sabiam corresponder às nossas necessidades emocionais e muitas vezes
físicas. Quando os pais são cronicamente depressivos ou se debatem com um problema de
alcoolismo ou de adicção, são muitas vezes incapazes de estar à altura das necessidades
emocionais de seus filhos. Quando as crianças não veem suas necessidades afetivas satisfeitas,
sentem muitas vezes, vergonha.
Uma família saudável satisfaz naturalmente as necessidades afetivas de cada um dos
seus membros. Os filhos são aceitos tal como são; são amados e valorizados. A individualidade
dos membros da família é mantida. Os pais são livres para serem adultos e os filhos, livres para
serem crianças, assim formando indivíduos que possam se tornar Pessoas.
A vergonha cresce quando a criança ou o adolescente se sente abandonado ou
desprezado, quando não recebe o carinho necessário para crescer, se desenvolver e olhar para
si mesmo como uma Pessoa. Estas crianças ou adolescentes, acabam muitas vezes por ter uma
inversão na compreensão de estados de humor e sentimentos, o que pode levar à inadequação
e sentir certa inutilidade ficando assim profundamente enraizados.
A educação inadequada durante a infância pode ter diversas formas. Para alguns de nós
era de maneira evidente, como por exemplo:
Bater em nós ou nos empurrar.
Obrigar a ter comportamentos sexuais.
Abandonar‐nos por vários dias.
Para alguns de nós era sutil e manipulativa:
Comparação com os nossos irmãos que tinham conseguido tanto.
Sujeitando a ouvir comentários depreciativos sobre a nossa masculinidade ou feminilidade.
Críticas sobre a nossa capacidade de ultrapassar ou de conseguir as coisas sozinhos.
Críticas sobre nosso aspecto ou peso.
Lembrar‐nos constantemente dos nossos erros.
Ameaçar de que nos tornaremos iguais ao nosso “pai ou mãe bêbados ou nóias e assim maus”.
As pessoas criadas inadequadamente aprendem em grande parte a estar vigilantes
quando perto dos outros, para que ninguém descubra seus sentimentos de inadequação.
Manter segredos torna‐se importante para nós, assim como resistir às descobertas, para evitar
erros.
Errar é visto como a maior evidência de inutilidade. Um erro não é visto como um
acontecimento isolado, mas sempre generalizado como uma descrição total de si mesmo “Eu
sou um erro. A minha vergonha significa que não me sinto mal em determinado momento, mas
acredito que não presto! Que sou inadequado e inútil”.
Este gênero de raciocínio promove um ciclo vicioso, em que as crianças que não são
valorizadas tornam‐se adultos que acreditam não ter valor. Duvida e nega suas emoções e deixa
de exprimir os sentimentos, de demonstrar afeto, e se tornam desconfortáveis em relação à sua
sexualidade; uma tristeza crônica, assim como apatia e medo de serem descobertos, toma o
lugar dos sentimentos de confiança e partilha.
A VERGONHA E A DEPENDÊNCIA QUÍMICA (ADICÇÃO)
A vergonha pode também começar a aparecer mais tarde. Aqueles de nós que se
debatem com uma adicção à drogas, podem sentir‐se desesperados com os problemas
emocionais a medida que o ciclo da adicção vai aumentando, e as nossas tentativas de levarmos
uma vida saudável e produtiva vão sendo derrotadas. Com a perda da esperança, este ciclo
autodestrutivo vai salientar os nossos problemas de comportamento e exagerar os sentimentos
de inutilidade.
COMPORTAMENTO AUTODESTRUTIVO
EXEMPLO: Helena está há seis meses sem usar álcool ou drogas e, no entanto sente‐se
completamente dominada por um sentimento de vazio ou dúvida. Sente‐se paralisada e não
consegue identificar ou falar sobre os seus sentimentos. Teme que a falta de confiança em si
própria seja completamente óbvia. Deixou de ter os comprimidos e o álcool para preencher o
vazio. Para se proteger, ela conta com um mecanismo de defesa rígido e, promete a si mesma
que ninguém irá saber de seus sentimentos de inutilidade e de vergonha; ninguém saberá seu
segredo. Em vez disso esforça‐se para se tornar “perfeita”.
A confiança de Helena no perfeccionismo é uma defesa constantemente usada contra a
vergonha. Na verdade, trata‐se de um sistema de crença extremamente rígido, uma espécie de
“juiz dentro de nós”, que controla, avalia e critica o nosso comportamento, pensamentos e
sentimentos. Esse juiz interior exige perfeição. Errar é desastroso! Acreditamos que para
valermos alguma coisa temos de ser bem sucedidos em todas as áreas da nossa vida.
Convencemos‐nos que somente um desempenho perfeito compensará os nossos sentimentos
mais íntimos de vergonha.
Helena está entalada entre exigências irrealistas: o enorme esforço torna impossível
para conseguir um comportamento perfeito e a sua insistência em manter secretos os seus
sentimentos de vergonha. Encontra‐se na situação do perdedor. Embora tenha deixado de usar
comprimidos, a vergonha continua a motivar comportamentos perfeccionistas que limitam a
sua capacidade de pedir a ajuda de que necessita desesperadamente.
Fábio é perseguido por sentimentos de inadequação. Exteriormente projeta a imagem
da autoconfiança. No entanto, interiormente sente‐se incompleto. Toma secretamente uma
bebida atrás da outra, esforçando inutilmente para vencer a sua adicção, preencher os
persistentes sentimentos de vazio e acalmar os sentimentos de vergonha. Quanto mais tenta
calar os seus sentimentos, mais vazio sente.
O comportamento autodestrutivo alivia a dor e nos ajuda a nos sentir temporariamente
bem, mas não resolve nenhum dos nossos problemas.
A adicção de Fábio parece, pelo menos temporariamente, preencher o vazio da
vergonha, mas tal como Helena, que conta com o perfeccionismo para disfarçar a vergonha, ao
beber Fábio não faz mais do que aumentar os seus sentimentos de inutilidade. O seu alcoolismo
engana a sua percepção da vergonha. Ambas as reações são contraproducentes. O seu
alcoolismo alivia a dor que a vergonha traz, mas apenas por um curto espaço de tempo. Helena
procura evitar os sentimentos de vergonha e afasta o propósito de procurar ajuda para seu caos
emocional, mantendo uma fachada rígida de perfeccionismo.
VERGONHA E AS SUAS CONSEQUENCIAS AUTODESTRUTIVAS
A vergonha é um problema emocional. As emoções tornam‐se um problema quando nos
impedem de alcançar alguns dos nossos objetivos mais básicos. Para muitos de nós, construir
um estilo de vida saudável implica o desenvolvimento de relações que nos preenchem ao
deixarmos de ser vulneráveis e imperfeitos com aqueles em quem confiamos ao mesmo tempo
em que aceitamos a vulnerabilidade e imperfeição dos outros. Ser humano é ser falível e menos
que perfeito. Recuperação também significa participar ativamente no mundo do trabalho, tirar
prazer em viver o dia a dia e, é claro, manter‐se abstinente. Quando um sentimento como a
vergonha nos impede de realizarmos qualquer uma destas tarefas básicas então temos um
problema emocional.
A vergonha é, portanto, um obstáculo à aprendizagem das tarefas básicas da vida.
Sensações crônicas de vazio podem minar os esforços para nos sentirmos felizes e podem
fornecer uma desculpa para uma recaída. A vergonha os mantém isolados e separados dos
outros, sabotando assim as nossas necessidades de intimidade e relações com significado,
interfere na nossa capacidade de nos relacionar com os outros como pessoas reais e imperfeitas.
A vergonha é um problema especial para as pessoas em recuperação da adicção e de
problemas emocionais. Se tivermos sentimentos não identificados de vergonha com os quais
não lidamos, estamos em risco de recair. De fato, o modo como nos comportamos ao sentirmos
vergonha é frequentemente oposto ao modo como nos comportamos em recuperação.
Recuperação é o processo que nos devolve à uma vida mais realizada, o que envolve
frequentemente menos sofrimento emocional e liberdade do comportamento adictivo.
CARACTERÍSTICAS DA VERGONHA CARACTERÍSTICAS DE RECUPERAÇÃO
Procura isolamento social e distanciamento Participa no processo social de recuperação.
emocional.
Falta de confiança em si próprio. Confia nas suas opiniões e sentimentos.
Sente a espontaneidade reprimida. Sente alegria.
Reflete os mesmos erros. Aprende com a experiência.
Baseia‐se em comportamentos rígidos Aborda os problemas com flexibilidade
Como a vergonha nos faz sentir mal e tem como resultado o nosso comportamento
autodestrutivo, é importante identificar e reduzir a vergonha como parte do nosso processo de
recuperação.
VERGONHA x CULPA
A vergonha é diferente da culpa. A culpa é um sentimento de reação contra um mau
comportamento ou uma omissão de um comportamento esperado. Por exemplo, um
adolescente pode sentir culpa por ter magoado outras pessoas, ou um pai pode sentir‐se
culpado por ter negligenciado seu filho. A culpa está geralmente limitada a um acontecimento
específico, não envolve uma avaliação do nosso valor como pessoa. Na verdade, os sentimentos
de culpa são muitas vezes saudáveis. Podem ser um sinal de que falhamos em alguma coisa ou
que precisamos olhar melhor para o nosso comportamento. Podemos aprender a olhar para a
culpa e não a temer. Ajuda a nos lembrar que somos seres humanos imperfeitos e que temos
valor, podendo aprender com os nossos erros e nos tornar pessoas que funcionam em plenitude.
Por outro lado, os sentimentos de vergonha envolvem geralmente a nossa valorização
como pessoas.
A vergonha não é uma simples reação a um acontecimento específico; mas antes uma
resposta emocional adquirida que permanece seja qual for a qualidade da nossa atuação.
Quando nos sentimos com vergonha, temos mais chances de nos isolar e de nos
distanciarmos emocionalmente, nos tornamos menos espontâneos e mais infelizes. Os
comportamentos derrotistas da vergonha reforçam os nossos sentimentos implacáveis de
angústia, vazio e inutilidade.
BOAS NOTÍCIAS
Podemos mudar os sentimentos da vergonha! Assim como a vergonha se aprende,
também pode ser “desaprendida” e substituída por atitudes, comportamentos e sentimentos
mais positivos. Podemos reduzir os sentimentos da vergonha compreendendo as suas raízes,
reconhecendo que temos vergonha e alterando conscientemente os comportamentos
relacionados com ela.
As convicções em relação a nós próprios, quer tenham sido adquiridas na infância quer
mais tarde, tendem a persistir mesmo quando a nossa adicção parou.
Quando ainda crianças, temos tendência a acreditar naquilo que os adultos nos
ensinam, especialmente quando confiamos nesses adultos, tal como nós pais, padres ou
professores. Como adolescentes, modificamos as nossas atitudes baseando‐nos nas nossas
experiências. Assim, se formos confrontados com fracassos constantes, críticas e com os nossos
novos comportamentos de adictos, aprendemos depressa a desvalorizar aquilo que somos. As
crianças e os adolescentes, pela natureza da sua juventude, tem falta da capacidade, do
conhecimento e da estabilidade emocional para compreender a complexidade das suas atitudes
e sentimentos. Como consequências disto, não são responsáveis pelo modo como fomos
tratados no passado nem como aprendemos muito cedo a nos sentir. Essencialmente não somos
responsáveis pela nossa infância. Ela é, por natureza, caracterizada pela impotência.
O mesmo se aplica à adicção e aos comportamentos compulsivos. Alguns de nós
passamos por obsessões e comportamentos compulsivos que invadiram toda a nossa
personalidade: outros passam pela experiência do descontrole em relação a certos
comportamentos tais como a bebida, drogas ou o jogo. Todos nós enfrentamos e sentimos a
destruição que vem da nossa incapacidade para modificar o nosso comportamento. Por si são,
as resoluções firmes e a força de vontade só nos levaram a tristes insucessos. Embora
quiséssemos que a dor resultante do nosso comportamento derrotista parasse, éramos
impotentes. Tal como as crianças, impotentes em relação às nossas tentativas para controlar as
complexidades das nossas atitudes, sentimentos e comportamento adictivo.
Só quando aceitamos a nossa impotência enquanto adultos e que podemos recuperar.
Em recuperação, ficamos mais conscientes dos nossos sentimentos e podemos tomar decisões
conscientes em relação ao modo como nos comportamos e sentimos. A vergonha perpetua‐se
nas nossas convicções. Não importa quando, como e onde as aprendemos, estas atitudes
baseadas na vergonha fazem agora parte de nós. O juiz interior que representa as nossas
tentativas perfeccionistas de controle pode agora ser enfrentando, diminuindo e,
eventualmente destronado. As leis do juiz não são absolutas e podem ser vencidas com uma
oposição persistente baseada na lógica e na razão.
PRINCÍPIOS DA T.E.R.
Apesar da vergonha ter as suas raízes no passado precisou lidar com ela no presente.
Um dos métodos para atacar as atitudes baseadas na vergonha é utilizar uma abordagem
baseada na autoajuda: Terapia Racional Emotiva (TER). A TER baseia‐se na premissa que os
pensamentos provocam sentimentos. Muitos de nós pensamos que os nossos sentimentos são
reações automáticas a acontecimentos isolados. Falamos muitas vezes dos sentimentos
desagradáveis como se alguém ou algo fosse responsável por eles: “Ela me deixou furiosa”.
Muitos de nós acreditamos que os acontecimentos em A causam as emoções de B.
No entanto, os sentimentos não são automáticos nem necessariamente similares ou
compatíveis com a resposta a acontecimentos semelhantes. Por exemplo, um acontecimento
(A), tal como receber um conselho em grupo pode resultar em inúmeros sentimentos diferentes
(B), que podem ir desde sentir raiva a sentir tristeza. Portanto, os sentimentos variam de
indivíduo para indivíduo e não estão automaticamente relacionados com os acontecimentos.
Como tal, as emoções não são diretamente causadas por acontecimentos. A TER nos diz que
podemos escolher o modo como interpretamos ou o que pensamos de um acontecimento em
B, que por sua vez causam um sentimento em C.
HISTÓRIA DE HELENA
Apesar de estar limpa há seis meses, Helena tem sido martirizada por pesadelos
constantes, noites sem dormir e problemas com relações. Procurou apoio num grupo
terapêutico de mulheres. Se por um lado teve a coragem de pedir ajuda, por outro lado sentiu‐
se muda e incapaz de partilhar os seus sentimentos. Helena confia a tanto tempo no seu
perfeccionismo defensivo, mantendo as pessoas à distância, que se torna agora difícil deixa‐las
se aproximarem.
Ao rever acontecimentos da sua infância, Helena lembra a história, há muito tempo
reprimida, pela sua família, história essa que envolve sentimentos dolorosos e abuso físico.
Ambos os pais de Helena foram alcoólicos. Helena está cheia de vergonha e, consequentemente,
tem o pavor de contar a sua história. Ao pensar no seu passado, Helena diz para ela própria:
“Devia ter sido capaz de parar com o abuso. Não devia ter aguentado tanto tempo. Que criança
tão antipática que eu devo ter sido para merecer este tratamento. Em que adulto horrível fui
me tornar. Ninguém pode saber.”
A ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ B ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ C ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
Acontecimento Pensamentos Sentimentos Consequências no
comportamento
Contar a história Devia ter impedido o Vergonha
abuso
Não devia ter Isolada dos
aguentado tanto companheiros evita
tempo contarem a sua
história
Devia ter sido uma
criança muito
antipática
Em que adulto
horrível fui me
tornar
Ninguém pode saber
Em consequência da sua vergonha, Helena tenta isolar‐se do grupo. O seu
comportamento é autodestrutivo, já que elimina o potencial apoio de que necessita para
enfrentar o seu segredo. O conjunto de valores de Helena em B caracteriza‐se por exigências
irrealistas combinadas com uma tendência para denegrir a sua pessoa. Os “devo” e os “tenho
que” de Helena, traduzem as suas exigências irrealistas de que deveria ter tido mais poder ou
controle.
Deprecia o seu valor culpando‐se a si própria e menosprezando‐se como pessoa. Ellen
interpreta os acontecimentos do seu passado através de um sistema de convicções que
produzem sentimentos de vergonha. O seu juiz interior formula esperanças rígidas em relação
a sua atuação e envergonha‐a quando ela se torna incapaz de alcançar esses objetivos
inatingíveis.
Felizmente para Helena, dois dos seus companheiros ajudaram‐na a abrir‐se ao
partilharem as suas próprias histórias com o grupo. Na verdade, Helena aprendeu a combater a
sua lógica baseada na vergonha (D), ao levantar questões tais como: Quem? O que? E Por quê?
A ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ B ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ C ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
Pensamentos Sentimentos Crítica
Devia ter parado com o Vergonha Quem diz que eu deveria ter
abuso parado com o abuso? Eu era
uma criança, não tinha mais
poder sobre os meus pais, do
que eles tinham sobre a
bebida.
Não devia ter alterado Vergonha Que escolhas é que eu tinha?
Não somos todos impotentes
quando crianças? Não sou
responsável pelo
comportamento dos meus
pais. Pare de fazer exigências
irreais!
Que criança antipática devo Vergonha Que provas tenho de que fui
ter sido uma criança antipática? Não
são todas as crianças
simpáticas e merecedoras?
Não são todas merecedoras
de amor e carinho?
Em que adulto terrível fui Vergonha Só porque fui criticada no
me tornar passado, não é razão para me
criticar agora. Claro que não
sou perfeita, mas que é? Não
somos todos seres humanos
falíveis e merecedores?
Ninguém pode tê‐lo Vergonha Por que? Não sou
responsável pela minha
infância. Não são os meus
pais os responsáveis pelo
comportamento? Por terem
abusado de mim no passado,
não prova que agora seja um
adulto sem valor.
ESTABELECER OBJETIVOS
À medida que a lógica de Ellen muda, fica livre para identificar os seus objetivos. Apesar
do vazio e da vergonha não desaparecerem de um dia para o outro, sente‐se cada vez mais bem
disposta e menos preocupada.
Estabeleceu o objetivo de viver uma vida produtiva, saudável, com o menos possível de
vergonha. Para ajudar a alcançar esses objetivos, Helena continua a participar no grupo
terapêutico de mulheres, e começou uma terapia individual. Entretanto, Ellen renova a sua
emergente atitude de respeito por si própria com uma afirmação: “Sou Helena, uma pessoa
falível e com valor, merecedora de respeito por mim própria e aos outros. Hoje vou me
considerar uma pessoa com valor e merecedora”.
Como o juiz interior de Helena não é facilmente combatido, elaborou um plano
concreto para ajudar a colocar em prática a sua nova afirmação. Como forma de se lembrar,
liga a sua afirmação a uma atividade diária frequente. Como bebe quatro refrescos por dia,
decidiu usar seu primeiro gole como sinal de que está na hora de repetir a sua firmação
positiva. Uma vez terminada a sua afirmação, bebe o restante do refresco como “recompensa”
pela sua nova atitude.
Mais tarde, Helena fez uma lista de atividades para atacar a vergonha com a ajuda do
seu terapeuta de grupo. Se por um lado ela compreende algumas das suas atitudes baseadas na
vergonha, também compreende que os seus sentimentos crônicos de vazio podem facilmente
colocá‐la em risco de cair de novo nos seus velhos comportamentos autodestrutivos. Embora se
sinta cada vez melhor, sabe que os problemas relacionados com a vergonha não estão
completamente resolvidos.
Helena também decidiu continuar a sua aprendizagem sobre a vergonha. Decidiu fazer
um plano especial de leitura e encontrou um terapeuta especializado em adicção e abuso
infantil. Planeja continuar o seu trabalho diário de autoafirmação. Como pretende continuar a
frequentar o grupo de terapia de mulheres, decidiu fazer pelo menos mais dois trabalhos
relacionados com a TER, a fim de ser capaz de discutir os seus problemas relacionados com a
vergonha com o resto do grupo.
É óbvio que a vergonha de Helena tem origem nas experiências da infância e as suas
atitudes exageradas sem relação a essas experiências e a si própria poderiam ter impedido o seu
progresso. Mas, ao contestar a sua lógica, Helena tornou‐se capaz de proceder às mudanças
necessárias.
A HISTÓRIA DE WILSON
Em contraste, a vergonha de Wilson não tem origem na sua infância, mas está antes,
diretamente relacionada com as consequências autodestrutivas da adicção. Quanto mais bebe,
menos se valoriza. Embora se esforce por controlar o que bebe, os esforços resultam sempre
em fracassos. Segundo Wilson, deveria ser capaz de controlar o que bebe. Wilson acredita
firmemente que é mau e que não tem qualquer valor porque não consegue parar ou reduzir a
bebida.
Jim não pode prever quando vai haver intervalos de abstinência ou intoxicações.
Começa a se ver como um degenerado moral. Pensa que se tivesse qualquer valor ou dignidade
não se degradaria a ponto de se encontrar permanentemente intoxicado e de sofrer
humilhações públicas. À medida que a sua vergonha aumenta vai se afastando cada vez mais da
família e dos amigos. Isolado, bebe ainda mais.
A convicção de Wilson de que não presta, baseia‐se na exigência que faz a si próprio de
que deveria ser capaz de controlar a bebida. O seu juiz interior exige força de vontade,
autodomínio e condena o seu valor quando Wilson se torna incapaz de controlar o seu
comportamento. A vergonha e o isolamento de Wilson são obstáculos à sua recuperação. –
afastam de si próprio todos os que poderiam ajudar.
A ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ B ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ C ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
Acontecimento Pensamentos Sentimentos Consequências no
comportamento
Beber Deveria ser capaz de Vergonha Isolamento social,
continuamente controlar a bebida. beber continuamente
É horrível não
conseguir aguentar
uma bebida.
Não passo de uma
pessoa má.
A família e os amigos de Wilson não desistiram. Através do seu apoio e compreensão,
Jim finalmente decidiu entrar em tratamento. No entanto, o juiz interior continuava a exigir o
controle total. Jim agarrava‐se à exigência irrealista de que deveria ser capaz de controlar a
bebida. Através dos esforços dos seus companheiros e da aprendizagem relacionada com o
alcoolismo, Jim começou a questionar sua lógica em (D).
B ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ C ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ D ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
Pensamentos Sentimentos Discussão
Deveria ser absolutamente Vergonha Quem diz que deveria ser
capaz de controlar o que capaz de controlar a bebida?
bebo Não é verdade que o
alcoolismo é uma doença? A
doença não tem a ver com a
força de vontade.
É horrível não ser capaz de Vergonha Claro que não consigo
aguentar uma bebida aguentar nenhuma bebida.
Para mim não se trata de
controle voluntário. Uma
vez que beba um copo só
paro quando acabar a
garrafa.
Não passo de uma pessoa má Vergonha Tenho que parar de
“exagerar”! Tenho uma
doença mas não sou uma
pessoa má.
À medida que as suas convicções em relação ao alcoolismo foi mudando, ele foi se
tornando mais consciente das exigências irrealistas que colocava à si próprio. Ao aceitar a sua
impotência perante o álcool, Wilson passou também a aceitar a sua condição humana com tudo
o que ela implica de capacidades e limitações.
A vergonha de Wilson tem origem na convicção de que precisa controlar o que é
incontrolável. Para Wilson, reconhecer as suas limitações como ser humano é uma tarefa em
curso, já não luta para ser perfeito.
COMEÇAR A AGIR
À medida que Wilson ia progredindo, o seu consultor lhe deu uma série de
recomendações úteis. A fim de reduzir a sua vergonha, Wilson precisava se tornar mais flexível
em relação às expectativas que tinha dele próprio e dos outros. Desde que Jim passou a se
aceitar como um ser humano digno e falível deixou de haver razão para continuar a dar ouvido
ao seu juiz interior. A sua falta de controle ou a impotência deixaram de ser ameaças ao seu
valor como pessoa e passaram simplesmente a fazer parte das características de um ser
humano. Quaisquer esforços para controlar o incontrolável o levariam ao fracasso, e muitas
vezes a auto recriminação e a vergonha. Tendo isto em mente, Wilson concordou em participar
das seguintes atividades:
‐ Encontrar um grupo de apoio. Wilson descobriu a necessidade de frequentar um grupo de
apoio que o ajudasse a identificar parte do seu pensamento baseado na vergonha, bem como o
seu comportamento derrotista. Chegou à conclusão que as suas atitudes continham muitas
vezes uma necessidade de controlar que minavam a aceitação do seu alcoolismo. Ele concordou
frequentar pelo menos dois grupos diferentes: AA e um grupo de terapia para homens.
‐ Fazer um trabalho da TER. Antes de completar o seu tratamento, Wilson fez um trabalho
suplementar de TER, para desafiar a sua mania de exigência, aquilo a que o seu consultor se
referia como dizer “devo” demais. Jim aprendeu que palavras como “devo” e “tenho”,
representam muitas vezes exigências irreais, e são palavras chaves que precisam ser
questionadas ao mudar as suas atitudes. Com isto em mente, Wilson começou a fazer o seu
trabalho de TER sobre sentimentos de vergonha relacionados com o seu casamento. Wilson
escreveu a palavra “vergonha” como um problema emocional em “C” (sentimentos). Wilson
sabia que os seus sentimentos de vergonha estavam intimamente ligados com o isolamento
social e a bebida. Por baixo de “A” (acontecimento), identificou um acontecimento recente que
o tornou consciente dos seus sentimentos de vergonha – lembrou‐se que o último encontro com
a sua mulher, o tinha levado a sentir uma forte vergonha. Wilson refletiu sobre os pensamentos
que teve durante o encontro com a sua mulher e os escreveu embaixo de “B” (pensamentos):
Devia ser capaz de alterar os sentimentos da minha mulher.
É horrível vê‐la chorar.
Não devia ter me tornado um alcoólico.
Sou uma pessoa horrível.
Ao compreender as ferramentas básicas da TER, Wilson questionou a sua lógica ao
escrever uma crítica ao seu pensamento embaixo de “D” (discussão).
Quem diz que eu devia ser capaz de alterar os sentimentos da minha mulher? Não posso
controlar as emoções dela.
É desagradável vê‐la chorar e gostaria que ela não tivesse que passar por isto. Talvez as lágrimas
lhe tragam algum alívio emocional.
O alcoolismo é uma doença, não é uma questão de força de vontade. “Para de dizer “devo” o
tempo todo”.
Sou um ser humano falível e digno. Tenho lutado contra esta doença horrível. Não sou uma
pessoa má.
Ao questionar o seu próprio pensamento, Wilson formulou um objetivo que o ajudasse
a guiar o seu comportamento (E). Wilson reconheceu a sua necessidade de dar apoio emocional
a mulher ao mesmo tempo em que tentava reduzir a sua vergonha. Assim, fez uma lista das
seguintes ações construtivas que deveria efetuar para alcançar o seu objetivo:
Falar sobre as minhas preocupações e apoio com a minha mulher.
Convidá‐la para participar de um “workshop” de comunicação entre casais.
Apoiar o envolvimento da minha mulher num grupo de ajuda.
Fazer mais dois trabalhos da TER para identificar problemas específicos relacionados com a
vergonha.
Wilson aprendeu depressa que, ao desafiar conscientemente as suas convicções e ao
modificar os seus comportamentos, tornava‐se capaz de reduzir os sentimentos de vergonha,
ao mesmo tempo em que oferecia apoio emocional à sua mulher. Ao aceitar a sua impotência
sobre o álcool, também reconheceu as suas outras limitações. Era com certeza uma pessoa
falível, mas não era certamente uma pessoa “má” ou “horrível”. Wilson passou a acreditar que
é humano cometer erros, ter um controle limitado sobre a sua vida e ter uma doença como o
alcoolismo. Ao aceitar a sua humanidade, Wilson deu um primeiro passo, fundamental para os
alicerces da sua recuperação, ao mesmo tempo em que começava a se libertar da auto
recriminação, das exigências irreais e dos sentimentos de vergonha.
RESUMINDO...
Seguem‐se seis coisas importantes para nos lembrarmos sobre a vergonha;
* A vergonha é um sentimento penetrante de inutilidade. A vergonha é diferente da
culpa; é uma simples reação ao nosso mau comportamento. A vergonha é, muitas vezes um
sentimento crônico de inadequação, de vazio e de dúvida em relação à nós próprios.
* A vergonha tem muitas vezes origem na infância e na adolescência, vinda de um
sistema familiar doentio. A criança ou o adolescente acreditam que as críticas que a família lhes
faz são plenamente justificadas e cresce acreditando que eles não têm nenhum valor ou
utilidade. Somos impotentes em relação àquilo que aprendemos quando crianças.
* A vergonha pode também ser uma consequência da adicção. A incapacidade de parar
ou de controlar um comportamento adictivo nos leva frequentemente a desvalorização pessoal.
* Os sentimentos intensos de vergonha resultam em comportamentos derrotistas tais
como: afastamento social, isolamento e em comportamentos adictivos, tais como não parar de
comer, jogar compulsivamente ou beber excessivamente. Portanto, a vergonha representa um
fator de risco para a recaída.
* A vergonha envolve geralmente um juiz interior que nos exige um comportamento
rígido e que nos envergonha quando não conseguimos cumprir essas exigências. A vergonha
balança muitas vezes entre as expectativas perfeccionistas e a autocondenação. O “juiz interior”
representa de fato o nosso conjunto de crenças.
* Já que a vergonha é inventada e aprendida, também pode ser “destruída” e
“desaparecida”. Usando os recursos ao nosso dispor, que incluem as ferramentas básicas da
TER, podemos reduzir com sucesso os nossos sentimentos de vergonha – isto é, sentir vergonha
menos intensamente e com menos frequência.
UM TRABALHO DA TRE (Exercício)
Agora é a sua vez! Tal como qualquer comportamento novo, você precisa praticar a
redução dos seus sentimentos de vergonha. A sua tarefa é acabar um trabalho da TER e, para
isso, talvez precise de um bloco de notas. Eis algumas sugestões a considerar quando fizer o seu
trabalho:
* Identifique a vergonha. Comece primeiro por identificar o sentimento de vergonha que o
preocupa; observe os comportamentos derrotistas geralmente relacionados com a vergonha,
seja específico; pense num exemplo retirado da sua experiência.
* Identifique o acontecimento. Em seguida identifique o acontecimento motivador. Pense numa
ocasião em que uma ação específica tenha provocado um sentimento intenso de vergonha.
Pode ter sido informação (feedback) que lhe deram durante uma terapia de grupo ou um
comentário feito pelo seu parceiro. Em qualquer dos casos, seja o mais objetivo, concreto e
específico possível, ao identificar o acontecimento (A).
* Identifique os seus pensamentos e sentimentos. A próxima tarefa é identificar os seus
pensamentos (B). Reveja os exemplos de Helena e Wilson. Geralmente, os sentimentos de
vergonha (C) são iniciados por exigências irreais, tendência para exagerar o lado negativo e
desvalorização pessoal.
Critique o seu pensamento. Questione a sua lógica (D). Aqui, critique os seus
pensamentos, conteste a sua lógica e desenvolva uma alternativa mais racional. Estabeleça
objetivos. Pense em quais são os seus objetivos menos vezes e menos intensamente. É melhor
sentir pena e remorso do que vergonha e incerteza. Reduzir a vergonha é sem dúvida um
objetivo importante para se atingir uma verdadeira recuperação. Frequentemente, este objetivo
ajuda a orientar a nossa ação construtiva.
Comece a agir.
Faça uma lista de todas as ações construtivas que pode tomar para alcançar o seu
objetivo (E). Seja o mais específico e concreto possível. Numere a lista e mantenha‐a simples, se
concentrando na ação.
Agora que acabou em exercício escrito de TER a sua próxima tarefa é partilhar este
trabalho com outros. Procure mais ajuda e opiniões em relação ao seu pensamento (B).
Pergunte aos seus companheiros se falhou alguma coisa. Talvez tenham algumas idéias que o
ajudem a questionar a sua lógica (D). Talvez algum deles tenha alguma ação a acrescentar à lista
que você fez em “E”. Use o seu trabalho de TER como catalisador para discutir os seus
sentimentos, as suas atitudes baseadas na vergonha e as suas idéias alternativas. Quanto mais
envolver outras pessoas no processo, mais rapidamente aprenderá maneiras de reduzir os seus
sentimentos de vergonha.
Não se esqueça de utilizar outros métodos de autoajuda para atacar os sentimentos de
vergonha. Lembre‐se que Helena usava afirmações para reforçar as suas atitudes de respeito
por si própria. Wilson, por exemplo, identificava as situações em que detinha o controle, e que
bloqueavam a aceitação de sua adicção e humanidade. Ambos se deram ao trabalho de informar
os respectivos padrinhos de que a vergonha era um fator de risco para recair.
Não desista facilmente. Provavelmente há muitos anos de prática de comportamentos
baseados na vergonha. Terá por isso, que praticar bastante para encontrar novos
comportamentos que o ajudem a superá‐los. Há uma série de recursos que podem ajudar:
grupos de autoajuda, terapia individual e de grupo, aconselhamento em longo prazo e grupos
de prevenção à recaída. Alterando as suas atitudes e modificando os seus comportamentos,
pode reduzir os sentimentos de vergonha, diminuir o risco de recaída e viver as alegrias de uma
vida feliz e saudável.
RAIVA
Por que nos preocupamos com a raiva? No fim das contas, não é verdade que todos nós
sentimos raiva? De fato, a raiva é um sentimento humano que todos experimentamos de vez
em quando. O principal problema está nas consequências, o que acontece quando você fica com
raiva? Se não acontece nada quando você fica com raiva, então a sua raiva não é razão para
preocupação, porque as consequências são limitadas. No entanto, se tiver atitudes derrotistas
em relação a si ou se fizer mal aos outros, e se a sua raiva tiver consequências dolorosas ou
prejudiciais, então talvez tenha razão para se preocupar com ela.
Por exemplo: você está guiando por uma autoestrada, atrás de uma pessoa que conduz
a 50 km, quando a velocidade permitida é de 80 km, e se atrasa para um encontro. Começa a
sentir‐se muito irritado por causa disso, ultrapassa impudentemente o outro carro. Põe a sua
própria vida e a dos outros em risco por causa da sua condução imprudente, ou seja,
potencialmente uma consequência muito perigosa da sua raiva.
Outro exemplo das consequências nocivas da sua raiva poderia ser o seguinte:
‐ Já é tarde, você quer ir embora do trabalho mais cedo, para jogar futebol. Começa a trabalhar
mais cedo e também trabalha na hora do almoço, para compensar o fato de sair mais cedo. No
meio da tarde, aparece o seu patrão e lhe dá uma nova tarefa, e quer que seja feita antes de
você ir embora. Você obedece, mas só acaba a tarefa muito tarde, quando já não dá mais para
jogar futebol. Enquanto o tempo vai passando, mais você se sente furioso. Quando sai do
trabalho, para num bar a caminho de casa, para aliviar um pouco da sua raiva. Acaba bebendo
demais, chega a sua casa muito tarde e tem uma discussão com a sua mulher, a quem não se
preocupou em telefonar para avisar que chegaria mais tarde.
Ou , em vez de parar num bar, pode ir diretamente para casa depois do trabalho, de
muito mau humor. Tropeça nos brinquedos das crianças, espalhados pela sala, onde os seus
filhos estiveram brincando, esperando você chegar. Despeja a sua raiva contra as crianças, as
mandando arrumarem a sala; ao ver que elas demoram a arrumar os brinquedos, você
finalmente, num ataque de fúria, ordena que elas vão para cama. Depois, senta‐se para jantar
com a sua mulher e a acusa violentamente por ser uma péssima mãe.
Para alguns de nós, as consequências dolorosas ou prejudiciais da raiva, resultam em
expressarmos abertamente contra as outras pessoas. Exemplos extremos dessas consequências
são as formas de violência doméstica e de brutalidade contra as crianças. Por outro lado, alguns
de nós podemos negar os sentir dificuldade em aceitar e falar abertamente sobre os
sentimentos de raiva, contra as outras pessoas. Podemos esconder a nossa raiva, guardando ela
para nós mesmos, engolindo ela dentro de nós. Podemos ter medo de que os outros não gostem,
se a manifestarmos francamente.
Nós reprimimos a nossa raiva, qualquer que seja a razão, fazíamos o uso de drogas para
amenizar o sentimento de raiva, ou seja, reprimíamos nossos sentimentos. Enquanto usávamos,
podemos ter nos tornado pessoas fisicamente hostis.
Outros de nós podem ter escondido os seus sentimentos de raiva, mas depois
descontam essa raiva contra pessoas que o amam.
APRENDER A COMPREENDER A RAIVA E AS SUAS CAUSAS
Aprender a lidar com a raiva de forma saudável, sem fazer mal a nós próprios ou aos
outros, é uma parte importante de nossa vida. Embora seja importante para todos nós, sermos
capazes de enfrentar de forma eficaz a nossa raiva, para alguns, isso se torna especialmente
importante.
Se estivermos em recuperação das drogas e do álcool ou de problemas emocionais,
podemos correr o risco de uma recorrência desses problemas se não aprendermos a controlar
a nossa raiva.
“Irrita‐me tanto”.
A maior parte de nós pensa que são as outras pessoas ou situações que nos fazem ficar
irritados. Achamos que o que as outras pessoas fazem ou o que nos acontece que isso é o que
causa a nossa raiva. Atiramos para cima dos outros a responsabilidade da nossa raiva “eles me
deixam loucos”. Ou achamos que temos um gênio ruim, como se fôssemos sempre desse jeito
e não poderíamos mudar. Achamos que não podemos mudar esses sentimentos perturbados
sem que as “causas” (pressões exteriores ou outras pessoas) mudem. Acusar nos permite
racionalizar a nossa raiva. Arranjamos desculpas para os nossos sentimentos de raiva, colocamos
a culpa nos outros e nos recusamos a mudar o nosso jeito.
Para alguns de nós, culpar outras pessoas ou situações pela nossa raiva nos fornece uma
desculpa para usar álcool ou drogas. Para outros, essa acusação constitui uma justificação para
a nossa raiva, e por isso não a largamos.
Contrariamente à crença comum sobre a raiva (de que os casos ou as situações é que
nos fazem ficar irritados) o que realmente nos faz sentir e pensar com raiva sobre as coisas que
nos acontecem. Aquilo que pensamos ou que contamos a nós mesmos sobre um acontecimento
é que nos faz sentir raiva, e não o acontecimento em si mesmo.
Normalmente, quando julgamos ou avaliamos qualquer coisa de forma negativa ficamos
perturbados. Se julgarmos ou avaliarmos uma coisa de forma menos negativa ou mais
positivamente, nos sentimos de forma geral, melhor.
Basicamente, não são os acontecimentos que nos perturbam, mas sim a nossa forma de
pensar sobre esses acontecimentos. Por outras palavras, sentimos como pensamos.
UM EXEMPLO
Uma mãe leva o filho de 1 ano para visitar uma amiga. A criança engatinha pelo chão
enquanto as duas mulheres conversam. Certa hora, a criança se estica até a mesinha onde estão
algumas revistas e então começa a jogar as mesmas no chão.
A mãe afasta a criança da mesa, coloca as revistas na mesa e continua a conversar com
a amiga. A criança volta a engatinhar até a mesinha, se estica, e começa de novo a jogar as
revistas no chão. A mãe observa a situação e pensa consigo mesma: “‐Ele não devia fazer isto...”
“Não devia ser tão irritante...” “Não devia interromper a minha conversa...” “Não devia me
aborrecer...” A mãe grita e bate na criança, e a criança a chorar.
A amiga também observou a criança jogando as revistas no chão e pensa com ela: “É
próprio de uma criança de 1 ano mexer nas coisas” “Teria sido melhor se eu tivesse preparado
a sala para poder receber uma criança antes de chegarem” “A criança precisa se distrair.” A
amiga diz então: “Vamos ver se encontramos outras atividades que interessam ao seu filho.”
Este exemplo demonstra como sentimos da forma como pensamos.
Com base na forma como encararam a situação, uma das mulheres ficou irritada e a
outra não. Aquilo que pensaram ou disseram a si próprias, a forma como avaliaram as
circunstância determinou o que sentiram.
Então, o que estamos dizendo realmente é que o nosso pensamento a respeito de uma
situação é que causa a nossa raiva, e não a situação em si. A maneira de pensar que provoca em
nós sentimentos de raiva tem a ver com a nossa necessidade de controle e a nossa exigência de
que tudo seja feito da nossa maneira. A sequência começa quando queremos que as coisas
corram segundo a nossa vontade, o que é um exemplo normal do egocentrismo que todos nós
temos. Quando esse desejo não se realiza e não conseguimos aquilo que queremos, podemos
ficar com raiva.
No entanto, o que acontece com a nossa raiva, é que a nossa forma de pensar muda ou
se desvia quando queremos que tudo seja exatamente do nosso jeito (tem que ser como eu
quero!). Quanto mais sentimos raiva, mais exigimos que as coisas sejam do nosso jeito, mas não
conseguimos.
EGOCENTRISMO: A necessidade de controlar “Conseguir o que quero”.
FLEXÍVEL RÍGIDO
Querer que as coisas corram como eu quero Exigir que as coisas corram como eu quero e
e não conseguir. Eu quero, desejo ou prefiro não conseguir. Devia ter, tenho que ter uma
uma coisa e não obtenho: consequência – coisa e não consigo: consequência – ira, ódio,
raiva (sentimento de perturbação normal). rancor (sentimentos de perturbação intensa).
CONSEQUÊNCIAS DA NOSSA RAIVA
As consequências da nossa raiva movida por ressentimentos ou crenças errôneas, serão
sempre tentando conseguir o que queremos sendo agressivos, verbal ou fisicamente (gritando,
berrando ou batendo). O que acontece com a nossa relação com os outros, se usarmos a raiva
para conseguir o que queremos? Como é que os outros nos veem? Evitam‐nos? Ignoram‐nos? E
como é que isto nos atinge sobre a aceitação que temos de nós próprios?
UM EXEMPLO:
É sábado de manhã e você faz questão de arrumar uma cadeira de madeira do pátio,
que se partiu. Desce até a sua oficina no porão, abre a porta e descobre que seu filho de dez
anos deixou todas as suas ferramentas espalhadas pelo porão. Observa a cena e pensa “O que
é que se passa com aquele rapaz?” “Ele deveria saber que não pode deixar as minhas jogadas
no chão”. “Ele tem que se lembrar do que eu disse sobre arrumar as coisas”. “Não devia ter feito
isso”. “As minhas ferramentas tem de ficar arrumadas como deve ser”. “Vai ver o que vai
acontecer quando chegar em casa”. Em consequência disto, você sente raiva. Procura então o
martelo e não consegue encontrá‐lo e pensa: ”Não devia perder meu tempo procurando o
martelo” e cada vez se sente mais furioso. Finalmente encontra o martelo e os pregos, e começa
a arrumar a cadeira. Com a irritação, acaba entortando um dos pregos e pensa novamente “Isto
não deveria acontecer” e fica cada vez mais furioso. Ao tentar endireitar o prego, bate com o
martelo em seu polegar e grita “Não posso aguentar isto!” Enche‐se então de raiva (fica irado e
irritado) e joga o martelo longe, que acaba batendo no banco que estava contra a janela,
quebrando o banco e a janela. Arrasta‐se pesadamente pelas escadas. Tendo por costume usar
álcool ou drogas para aliviar a sua raiva, pode ser que se dirija para uma destas saídas. Abre a
geladeira, pega uma cerveja e vai para a sala beber enquanto assiste Palmeiras x Corinthians na
TV, pelo resto da tarde. Depois se torna implicante e critica os outros membros da família até o
fim do dia. Ou, se não for dependente químico, pode talvez subir as escadas, sentar‐se numa
cadeira cozinhando a sua irritação até que seu filho de dez anos chegue em casa. Então grita
com ele dizendo‐lhe que é “um irresponsável, que não presta para nada, e que não pode confiar
nele para nada”. Depois, o manda para o quarto e o deixa de castigo por todo o fim de semana.
Nesse exemplo, foram as exigências do pai de que o filho não devia ter deixado as suas
ferramentas jogadas pelo chão e que deveria fazer as coisas do seu jeito e isso acabou o
irritando. Se ele tivesse alterado as suas exigências para as preferências, não teria ficado como
raiva. O diálogo interior poderia ter sido estruturado dessa forma:
“Teria sido melhor se ele tivesse arrumado as ferramentas quando acabou.”
“Era melhor se ele deixasse as coisas arrumadas como eu deixo.”
Com estas preferências mais realistas, o pai poderia então ter conversado com o filho a respeito
do assunto, e explicado sobre as vantagens da ordem e do respeito pelas coisas dos outros. Há
outro aspecto a considerar no desenrolar dos sentimentos de raiva. Quando ficamos com raiva
por causa daquilo que pensamos, essa raiva pode distorcer os nossos pensamentos ou
percepções sobre a situação, tal como se víssemos as coisas através de “óculos da raiva”. É difícil
observar uma situação positivamente ou com realismo quando estamos com raiva, é provável
que agir segundo estas percepções distorcidas, torne a situação ainda pior ou agrave perante as
suas consequências negativas. A maior parte de nós poderá recordar situações em que a raiva
nos impediu de observarmos e compreendermos claramente o que se estava a passar.
APRENDER A CONTROLAR NOSSA RAIVA
Como poderemos então controlar os nossos sentimentos de raiva? Se for a nossa maneia irada
de pensar que causa a nossa raiva, terá de trabalhar para modificar ou substituir os nossos
pensamentos irados de forma a reduzirmos ou controlarmos essa raiva. Podemos alternar as
exigências que estão na base dos nossos pensamentos irados (não deveria discordar de mim, eu
não devia cometer erros, tem de ser pontual) e nos esforçarmos para deixar de controlar tudo
ao nosso redor. Isto poderá parecer simples e evidente, mas como é que se aprende a modificar
a nossa forma irada de pensar? Para começar, podemos fazer um “inventário pessoal”. Fazer
um inventário pessoal sobre a nossa raiva, nos ajuda a desenvolver uma maior consciência e
compreensão quanto a sua origem, quanto às suas consequências de ficarmos amarrados a
essas situações e quanto ao que nossos sentimentos e a tomar consciência da nossa necessidade
de controle. Pode usar o esquema “ABC” para ajudar a compreender a “anatomia” da raiva.
A = Situação
O problema que nos desperta certos sentimentos que perturbam ou enraivecem.
B = Convicções
O que pensa ou o que diz a si mesmo (as suas exigências) a respeito da situação.
C = Sentimentos e ações
Como se sente (perturbado ou enraivecido) a propósito da situação por causa do que pensa, e
como se comporta ou atua por causa do que sente: as consequências derrotistas ou dolorosas.
UM EXEMPLO
A = Situação
Vou para a cozinha esperando que o meu almoço esteja pronto, antes de ir trabalhar. Encontro
minha mulher ajudando nossa filha com os deveres da escola. Sendo assim, meu almoço ainda
não está pronto.
B = Convicções
Acho que minha mulher poderia ter feito meu almoço e que minha filha deveria fazer os deveres
da escola sozinha.
C = Sentimentos e ações
Sinto‐me cheio de raiva. Grito com ela. Digo que meu trabalho é mais importante do que os
deveres da escola de uma criança e saio violentamente de casa. Chego ao trabalho muito
irritado.
Se eu tivesse analisado essa situação de forma objetiva ou realista, teria compreendido que a
minha mulher já tinha feito uma opção ao ajudar a nossa filha nos deveres da escola. As coisas
do meu jeito apenas refletiam as minhas exigências egocêntricas, e geraram a raiva que tive em
casa e levei comigo ao trabalho.
FAZER UM “DIÁRIO DE BORDO”
Como parte do processo de aprendizagem para fazer um inventário pessoal sobre a sua raiva, é
muito útil fazer um “diário de bordo”. Para começar, tome nota de acontecimentos ou situações
passadas ou recentes em que sentiu raiva. Ao descrever essa experiência, use o esquema "ABC”.
A B C
Situação Convicções Sentimentos e ações
Depois de ter alguma prática na descrição de manifestações da sua raiva, passadas ou recentes,
pode considerar útil trazer consigo um pequeno bloco para fazer um registro diário das suas
manifestações de raiva. Ao longo do dia, pode usar o esquema “ABC” para tomar nota de
exemplos dos seus sentimentos de raiva. Fazer um diário, o ajuda a desenvolver uma maior
consciência da sua raiva, das causas e consequências. Fazer um diário o ajuda também a ter
contato com os seus sentimentos.
USAR O PROCESSO “ABC” – ABRANDAR A “FERRADURA”
A primeira parte do processo ABC para o controle dos sentimentos de raiva pode ser
comparado à analogia entre a chaleira e a raiva. Podemos imaginar a nossa raiva como sendo a
água dentro de uma chaleira sobre o fogão. Se a água continuar a aquecer, sairá pela chaleira
em forma de vapor.
Com a nossa raiva acontece o mesmo (quanto mais sentimos raiva, mais provável que
ela se exteriorize abertamente). Algumas pessoas acreditam que a melhor forma de lidar com a
raiva é ficarem aliviadas, será como a chaleira.
No entanto, se apagar o fogo debaixo da chaleira não terá o jato de vapor. Aquilo que o
processo ABO nos mostra é que se “diminuirmos a chama” dos pensamentos irados que estão
“fervendo” da nossa raiva, não haverá necessidade de expelir essa raiva. Mantendo‐nos alerta
para detectar os primeiros sinais de raiva e nos dirigindo uma mensagem de auto ajuda, não
ficaremos tão “enfurecidos” que tenhamos que “despejar o vapor”.
USAR O D – PÔR EM QUESTÃO A NOSSA FORMA DE PENSAR
O passo seguinte na aprendizagem do controle da raiva consiste em acrescentar um D
ao esquema ABC, a fim de provocar uma mudança. É aqui que começamos a modificar os nossos
sentimentos de raiva ao questionarmos os nossos pensamentos irados (as nossas exigências).
Praticando o inventário pessoal ABC aprendemos a identificar os pensamentos perturbados,
exigentes e negativos que nos fazem sentir raiva. Em seguida, vamos por os seguintes tipos de
questões: Quem disse isso? Por quê? Que provas eu tenho? Haverá outra forma que me possa
ser mais útil na análise da situação? Por fim, respondemos as nossas perguntas... Voltemos
agora ao exemplo da condução previamente citado, e o colocamos em formato ABC.
UM EXEMPLO
A = Situação
Estou seguindo em uma estrada atrás de um carro que vai a 50Km tendo a estrada o
limite de 80Km e estou atrasado para um compromisso.
B = Convicções
Esta pessoa devia dirigir de acordo com o limite de velocidade. Não devia me atrasar.
Tenho que chegar a tempo para o meu compromisso.
C = Sentimento
Raiva.
D = Discussão
Quem é que disse que ele devia andar a 80Km? (fui eu). Porque ele não pode ir à minha
frente? Não há razão para que eu tenha sempre de fazer a minha vontade. Porque eu deveria
chegar na hora certa? Não vai ser nenhuma desgraça se eu chegar atrasado; iriam me
compreender. Deixe de controlar tudo a sua maneira. Talvez a pessoa esteja dirigindo o mais
rápido que é capaz. Era melhor eu esperar e ultrapassar quando seguro.
No passo D do esquema ABC, iniciamos o processo de enviar a nós mesmos algumas
mensagens novas para afastarem ou tomarem o lugar dos nossos pensamentos egocêntricos e
exigentes. Este “gênero” de mensagens novas que nos dirigimos e que nos prestam auxílio são
mais realistas e menos perturbados, e podem nos ajudar a reduzir a nossa necessidade de
controle.
RESOLVER OS PROBLEMAS – ACRESCENTAR E, F e G
Usar o esquema ABC como inventário pessoal nos ajuda a ter uma visão mais clara dos
fatores que contribuem para sentirmos raiva e saber como começar o processo de mudança.
Compreender isto nos leva a seguir os passos (E, F e G) do esquema ABC. Mantendo um
simples diário sobre a nossa raiva, podemos desenvolver uma maior consciência a seu respeito
e a respeito das suas consequências. Podemos então começar a modificar a nossa forma de
pensar irada e exigente, nos fazendo perguntas que ajudem a reduzir a raiva que sentimos.
Descobriremos que determinadas situações provavelmente nos perturbarão ou enraivecerão
menos, se colocarmos em questão a nossa forma de pensar.
Quando estivermos menos perturbados, poderemos analisar o problema claramente e
decidir como fazer para que a situação se desenrole, criando objetivos realistas para nós
mesmos (E). Podemos nos perguntar: “O que eu posso mudar nesta situação e o que eu tenho
que aceitar?” Isto se aplica na Oração da Serenidade: “Concedei‐me Senhor a serenidade
necessária, para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas que
eu posso e sabedoria para distinguir uma das outras.”
Tendo decidido aquilo que quer que aconteça, pode perguntar a si mesmo: O que eu
posso fazer de útil para obter aquilo que quero? Como consequência começa a perceber quais
são as opções construtivas (F) para alcançar os seus objetivos. Seleciona então uma opção e põe
ela em prática (G).
A = Situação
A situação problemática que está causando alguns sentimentos que o perturbam ou
enraivecem.
B = Convicções
O que pensa a respeito da situação ou o que diz dela a si mesmo (as suas exigências).
C = Sentimentos e Ações
O que sente (perturbação ou raiva) a respeito da situação por causa do que pensa, e
como age por causa do que sente (as consequências derrotistas ou dolorosas).
D = Discussão
Questionar e desafiar os pensamentos que o perturbam ou enraivecem as suas
exigências. Quem disse isso? Por quê? Haverá uma maneira mais eficaz de encarar a situação?
E = Objetivos realistas
Novos objetivos realistas em relação a situação. O que gostaria de ver acontecer? O que
quer?
F = Opções construtivas
O que poderá fazer de útil para obter o que deseja?
G = Coloque a sua opção em prática
Selecione uma opção e a coloque em prática. Ação construtiva!
UM EXEMPLO:
A = Situação
Fim de tarde. Você está na cozinha seguindo com todo o cuidado uma complicada
receita de bolo e pesando os ingredientes. De repente, os seus filhos entram na cozinha
correndo, gritando e pedindo bolachas. Eles se esticam por cima da bancada para chegar à lata
de bolachas; fazendo isso derrubam a tigela com os ingredientes que você estava pesando.
B = Convicções
Pensa consigo mesmo: “O que essas crianças têm?” “Não são capazes de ver que estou
ocupado e não posso ser interrompido?” “Não deviam entrar correndo desta maneira.” “Deviam
ter mais consideração por mim.” “Não suporto que me interrompam assim.”
C = Sentimentos e Ações
Se sente cheio de raiva. Grita com os seus filhos. Os chama de “egoístas e estourados”.
Não os deixa comer. Manda‐os para o quarto e diz a eles que não poderiam sair de lá antes que
os chame.
D = Discussão
Começa a questionar as suas exigências: Quem é que disse que eu não poderia ser
interrompido? Fui eu quem disse. As interrupções acontecem. Se eu tivesse olhado para o
relógio tinha visto que as crianças estavam chegando Por que é que não iriam correndo para
cozinha comer? Eu sei que o dia de escola é muito comprido para elas e que esperam lanchar
quando chegam a casa. Seria melhor se mostrassem mais consideração pelas minhas
necessidades, mas eu também tenho de mostrar consideração pelas necessidades delas. Era
melhor se não me interrompessem quando estou na cozinha, mas posso aguentar as
interrupções! Se sente agora desapontado e frustrado, mas não com raiva.
E = Objetivos realistas
No futuro, gostaria de poder acabar de cozinhar sem ser interrompido, mas gostaria
também de evitar ter discussões com os meus filhos quando chegam da escola.
F = Opções construtivas
Podia preparar a comida para uma ocasião em que as probabilidades de ser
interrompido fossem menores. Quando for possível, planejarei o trabalho de forma que esteja
pronto quando os meus filhos chegarem a casa. Terei alguma coisa preparada para comerem
quando chegarem.
G = Colocar as opções em prática
A próxima vez que fizer um bolo, o farei de manhã, depois do almoço talvez. Durante
esta semana, pelo menos três tardes, deixarei em lanche para quando as crianças chegarem.
Também deixarei em tempo livre para quando as crianças voltam da escola e mostrar interesse
pelas atividades que tiveram durante o dia.
Controlar a raiva que sente através do processo ABC, você terá que praticar muito até
conseguir alguns resultados. É por isso que muitos de nós nos tornamos “especialistas” em ficar
com raiva. A raiva se torna a forma habitual de lidar com situações problemáticas, quando as
coisas não acontecem como gostaríamos. O que isto significa, é que iria precisar de muita prática
para aprender a controlar a raiva através do processo ABC, e “desaprender” os seus velhos
hábitos.
MAIS SOBRE O PROCESSO ABC
Pode usar o processo ABC quando começar a sentir raiva. Começa treinando a perceber
os sinais iniciais dos seus sentimentos de raiva, e os utiliza como sinais de “STOP”. Foca‐se ao
entrar em contato com os seus sentimentos de raiva no momento exato em que começar a se
sentir perturbado. É mais fácil fazer qualquer coisa para controlar e transformar esses
sentimentos de frustração e desapontamento, quando está começando a se sentir perturbado,
do que quando já está furioso ou com um acesso de fúria.
Controlar os nossos sentimentos é como controlar um carro. É mais fácil controlar a
velocidade de um carro que vai a 20Km por hora do que daquele que vai a 80Km. Da mesma
forma, é mais fácil acalmar os nossos sentimentos antes que eles comecem realmente a se
tornar incontroláveis.
O que isto significa é que cada um de nós tem de desenvolver uma maior consciência
dos sinais ou indicações da nossa raiva, igual como cerramos os dentes e passamos mal do
estômago. As formas como cada um exterioriza a sua raiva são diferentes. Uma das primeiras
tarefas para aprendermos a controlar a raiva é aprendermos a identificar as suas manifestações
de forma que podemos usar como avisos para pararmos. Então, enviando mensagens mais
realistas, podemos nos sentir frustrados e desapontados com o comportamento das pessoas,
mas não teremos raiva nem jogaremos pragas nelas.
USAR MENSAGENS ÚTEIS
O passo seguinte no processo ABC consiste em utilizar estas pistas como sinal inicial para
sua raiva, para poder controlar este sentimento. Para fazer isto, poderá enviar uma mensagem
eficaz, que se oponham as habituais mensagens, exigentes e prejudiciais, que provocam os
sentimentos de raiva.
Uma mensagem que poderá achar particularmente eficaz é: “Devagar se vai ao longe,
não se irrite”.
De início poderá achar necessário endereçar mensagens mais longas a fim de suspender
as velhas mensagens, negativas e exigentes. Provavelmente praticou tanto a forma de pensar
com raiva que poderá ser necessário, a princípio, conversar mais consigo mesmo para conseguir
“largar” ou modificar essa forma de pensar.
Mensagens suplementares que ajudarão a melhorar a situação são aquelas que o
colocam em contato com o seu egocentrismo e necessidade de controle. Pare de ser tão
exigente. Por que é que tem que ser sempre como eu quero? Por que é que os outros não fazem
o que eu quero? Continuará a sentir alguma perturbação (querer usar a TRE não faz calar os seus
sentimentos), mas vai se sentir frustrado ao invés de sentir raiva.
Inicialmente, aprender a controlar os seus sentimentos poderá ser difícil em relação a
certas situações que o perturbaram no passado igual aqueles que envolveram problemas com o
seu parceiro (a), os seus filhos ou no seu trabalho.
Devido aos seus sentimentos de raiva, geralmente intensos no decorrer das situações,
terá que recorrer a um pequeno intervalo. Afastar‐se da situação para que isso o ajude a alterar
esse sentimento. Como parte desse intervalo, pode praticar exercícios de respiração profunda
para ajudar a descontrair ou pode querer utilizar a técnica da imagem. Poderá por exemplo,
imaginar que está num local onde se sinta em paz e com tranquilidade. A descontração e a
técnica da imagem podem ajudar a aprender a reduzir a sua agitação em situações associadas à
raiva intensa.
RESUMINDO
Depois de termos reduzido ou modificado os nossos sentimentos de raiva aplicando a
primeira parte do processo ABC, estamos agora em melhor posição para observar a situação de
forma mais realista do que através dos óculos da raiva. Podemos reavaliar ou redefinir a
situação. O que se passa realmente nessa situação? O passo seguinte dentro do processo ABC
será fazermos a nós mesmos a grande pergunta: “O que posso fazer de eficaz nessas
circunstâncias?”
É aqui que a Oração da Serenidade pode ser aplicada como um guia que nos auxilia:
“Terei eu nessa situação que me esforçar para aceitar?” “Será o comportamento das outras
pessoas?” “O que eu poderei fazer para modificar esta situação?” “Geralmente é só o meu
comportamento.” Decidi o que poderia fazer de útil, em seguida terei que analisar as opções
construtivas que irei escolher para realizar os objetivos da Oração da Serenidade. Finalmente
fazer uma opção e coloca‐la em prática.
CONTROLAR A NOSSA RAIVA – SETE BREVES PASSOS
Exige tempo e prática para aprender esse processo ABC de controle dos seus
sentimentos de raiva, ao mesmo tempo em que “desaprende” os seus velhos comportamentos
irados. A princípio irá achar que é útil trazer junto com você uma breve descrição do processo,
como aquela que se segue. Com o tempo, aprenderá por intuição a ir de um passo para outro.
Comece pelos sentimentos que o perturbam. Os identifique. Use‐os como sinais de
“STOP”. Os sentimentos que o perturbam são sinais de que está dizendo a si coisas
perturbadoras. Você poderá se tornar um melhor observador dos seus sentimentos. Isto
equivale a entrar em contato com os seus sentimentos.
Neutralize os sentimentos que o perturbam endereçando a eles uma mensagem
positiva. Coloque uma trava nos seus sentimentos. Diga para si mesmo: “Acalme‐se, simplifique.
Não fique tão nervoso.”
Identifique os pensamentos irritantes dentro da situação que estão te provocando raiva.
O que você está exigindo? O que é que está tentando controlar? Examine os pensamentos que
o perturbam. Pergunte a si mesmo: “Por que é que tem que ser como eu quero? Por que é que
o outro tem que fazer o que eu quero?” E depois responda as perguntas.
Torne a situação clara para si próprio. Pergunte‐se: “O que realmente me deixa com
raiva? Em que consistem os fatos e quais são as minhas opiniões sobre eles? Haverá uma forma
mais eficaz de encarar a situação? Pode então ficar desapontado com a situação, mas não com
raiva contra as pessoas que a criaram.
Em seguida, estabeleça para si objetivos mais realistas em relação às circunstâncias que
levantaram o problema. Pergunte a si próprio. O que posso fazer que seja eficaz a respeito desta
situação? Seja específico e concreto. Aplique a Oração da Serenidade. O que posso mudar (o
meu comportamento) e o que terei de aceitar (o comportamento dos outros) nesta situação?
Faça uma lista das opções construtivas por meio das quais pode alcançar os seus
objetivos. Pergunte‐se: “Que ações construtivas pode empreender para atingir os meus
objetivos?” Escolha uma opção construtiva para alcançar o seu objetivo e atue de acordo com
ela. O resultado final do processo ABC é uma ação positiva da sua parte.
UM EXEMPLO
A situação consiste numa conversa com a minha mulher sobre as nossas finanças.
Começamos na discordar e, depois, começamos a discutir.
Começo a detectar os primeiros sinais de raiva: estou a serrar os dentes.
Digo a mim mesmo,: “Acalme‐se, não complique. Não fique tão zangado.”
Depois digo‐me: “O que estou pensando? Ela não devia perguntar quanto é que eu
ganho. Ela não devia brigar por causa das contas. Trabalho muito – devia poder gastar o dinheiro
como bem entendesse. Ela não devia estar sempre contestando a forma como eu gasto o meu
dinheiro. Tendo identificado alguns dos pensamentos que me perturbam, começo então a
analisá‐los: Por que é que ela não se preocuparia com o dinheiro? É ela quem paga as contas.
Ela também trabalha e traz dinheiro para casa. Por que é que eu teria que gastar dinheiro só
comigo mesmo? O restante da família também quer coisas. Pare de exigir que ela faça tudo
como você quer. Pare de tentar controla‐la.
Não gosto de algumas idéias da minha mulher, nem do seu tom de voz, mas estando
mais calmo, consigo reexaminar a situação. Parece‐me que temos mesmo alguns problemas
com as nossas finanças. As contas parecem realmente estar aumentando. A minha mulher tem,
de fato, algumas preocupações legítimas com as nossas finanças. Temos ambos, as
responsabilidades neste ponto.
Pergunto então a mim mesmo: “Perante esta situação o que é que eu posso fazer que
seja eficaz? O que posso mudar para que nos tornemos mais capazes de governar as nossas
finanças de uma forma agradável para ambos?”
Faço uma lista de algumas opções que tenho:
‐ Combinar uma ocasião habitual durante a semana para falar sobre as nossas finanças.
‐ Estabelecer em conjunto algumas prioridades na forma de gastar o dinheiro.
‐ Combinar um novo orçamento familiar com a minha mulher.
‐ Rever regularmente esse orçamento e modificá‐lo quando necessário.
Para começar, a minha mulher e eu acordamos numa ocasião regular todas as semanas.,
quando não estivermos cansados e não for provável sermos incomodados, para discutir os
problemas do nosso orçamento.
USAR UM INVENTÁRIO PESSOAL PARA BATER OS RESULTADOS POSITIVOS
Controlar os sentimentos de raiva através do esquema ABC pode ser considerado como
um inventário pessoal. No início, este inventário pessoal exigirá de si muito tempo e esforço.
Começa com a utilização de um diário a fim de desenvolver uma maior conscientização das suas
causas e consequências.
A partir deste diário, poderá aprender a identificar os sentimentos que o perturbam e
estão na base da sua raiva.
Pode então prosseguir, praticando o processo ABC como meio de modificar os seus
sentimentos de raiva ao modificar também a sua forma irada de pensar.
Segue‐se a resolução dos problemas que fazem parte daquelas situações difíceis que o
perturbam.
Com a prática continuada deste processo, chegará muito provavelmente à conclusão de
que os seus esforços estão gradualmente a ser recompensados. Será mais capaz de controlar ou
de modificar a sua raiva do que a sua raiva de controlar a si.
Com a prática continuada do controle dos seus sentimentos de raiva pelo processo ABC,
poderá eventualmente, reduzi‐lo a um esquema mais simples de quatro passos.
Use os primeiros sinais de raiva como sinais de STOP.
Diga a si mesmo, acalme‐se, simplifique. Não se zangue.
Pergunte‐se: O que poderei fazer nestas circunstâncias, que seja útil?
Depois atue de acordo com as suas opções construtivas.
O processo ABC pode ser instrumento muito útil no processo de recuperação de
problemas emocionais ou de problemas relacionados com o abuso do álcool ou outras drogas.
O processo representa uma forma valiosa de enfrentar a perturbação emotiva que se encontra
muitas vezes associada aos problemas ligados ao abuso do álcool e outras drogas ou com
problemas emocionais. Se não aprender a lidar construtivamente com as perturbações
emocionais, poderá estar em risco de uma recaída, já que as situações que envolvem problemas
fazem parte inevitável da vida.
O processo ABC nos proporciona, pelo fato de não termos as nossas percepções
obscurecidas pela desordem das emoções, uma maneira diferente de ver as coisas. O nosso
sentimento a respeito das coisas modifica‐se à medida que a nossa maneira de pensar a respeito
delas se modifica – Sentimos como pensamos!
O QUE É ESPIRITUALIDADE?
Em relação aos Alcoólicos Anônimos ouvimos com frequência que “o nosso programa é
um programa espiritual”. Mas o que significa “espiritual”?
Será uma palavra que se refere só a Deus, ou talvez a religião ou tenha um significado
mais abrangente?
Muitas pessoas, ao se darem conta de que o Programa de Recuperação dos 12 Passos
dos Alcoólicos Anônimos é um programa espiritual desanimam. Interrogam‐se: “Será que tenho
que me tornar religioso para poder me recuperar?” Este capítulo destina‐se a ajudar as pessoas
em recuperação a compreenderem o que significa a palavra “espiritual” e “espiritualidade”.
Também se destina a ajudar os leitores a verem que a “espiritualidade” já faz parte das nossas
vidas sem nos darmos conta disso.
No programa dos 12 Passos de AA a palavra “espiritual” aparece ligada à palavra
“despertar”. Isto é o que acontece depois de termos feito o nosso caminho ao longo de todos
os passos tivemos um despertar espiritual, o primeiro problema que aparece no Primeiro Passo:
“Admitimos que somos impotentes perante nossa adicção e que tínhamos perdido o domínio
sobre nossas vidas”.
Apesar de a primeira vista não parecer uma constatação de um problema espiritual, mas
é na realidade!
Para podermos ver isso claramente, precisamos começar a desenvolver uma definição
de espiritualidade com a qual trabalhar. Uma das maneiras de definí‐la é constatando todas as
áreas de vida as quais a espiritualidade se liga, assim espiritualidade é: A qualidade do nosso
relacionamento com quem quer que seja de mais importante na nossa vida.
Esta simples definição pode nos ajudar a perceber como a espiritualidade faz parte da
vida de qualquer pessoa. Consideramos o seguinte raciocínio. Todos nós temos pessoas ou
coisas que são importantes para nós. Uma vez que temos estas relações importantes para
nossas vidas alguma deve ser “a mais importante”. Que este “algo” seja maneira, ou pessoa ou
grupo de pessoas, tem que existir alguma coisa que seja prioritária na nossa vida. O “quem”
quer que seja ou o que quer que seja “mais importante” define o principal foco da nossa
espiritualidade.
Podemos dizer que a espiritualidade faz parte da condição humana. Assim como todos
nós temos um lado físico e um lado emocional também temos um lado espiritual.
Reconhecemos que somos pessoas com um lado espiritual. Abre‐nos a possibilidade de
descobrirmos o quanto este lado da nossa vida nos afeta. É um erro pensarmos que não temos
um lado espiritual se não acreditarmos em Deus. Deus é apenas um dos muitos focos espirituais
possíveis. Podemos vir a descobrir na nossa vida alguns focos e efeitos espirituais muito
surpreendentes, se tivermos a coragem de explorar essa parte do nosso ser.
Uma vez que está relacionada com que (ou quem) é importante para nós; a
espiritualidade está intimamente ligada a valores, prioridades, objetivos e preocupações. Tem a
ver com o que quer que seja que está no centro da nossa vida. Gastamos muito do nosso tempo,
energia, pensamentos e nos entregamos ao nosso foco ou centro espiritual, porque a
espiritualidade tem a ver com relações que estão intimamente ligadas a coisas como amor,
confiança e compromisso. Um resultado espiritual pode ser qualquer coisa que toque a nossa
relação com os outros mais ou menos amorosos e desvelados.
Como se disse: há muitos focos espirituais possíveis. O foco da nossa espiritualidade
podia ser o álcool ou outros químicos. Quando o álcool é o foco da nossa espiritualidade tem
tendência para descrever o alcoolismo como uma doença espiritual. O alcoolismo pode ser
descrito como uma expressão destrutiva da espiritualidade. Assim, uma maneira de descrever o
problema do alcoólico, será dizer, “o álcool tornou‐se demasiado importante”. Demasiado
tempo e energia são absorvidos para beber. A relação tornou‐se um fardo tremendamente
destrutivo. Esta qualidade destrutiva cresce, e à medida que cresce, destrói o alcoólico.
O alcoolismo é descrito como uma doença progressiva. Nos termos da definição da
espiritualidade isto implica que o álcool se torna mais importante à medida que a doença
progride, e este crescimento tem muitas repercussões. Na nossa definição de espiritualidade,
quando alguma coisa aumenta na sua importância, as outras coisas têm necessariamente que
diminuir e ficar para trás. À medida que o álcool se torna mais importante, a nossa família, por
exemplo, é necessariamente negligenciada por causa desta nova e poderosa relação. A família
é apenas uma das muitas relações que é afetada pela importância crescente do álcool.
O trabalho será afetado. Ao invés de se devotar com energia e tempo inteiro ao trabalho,
o alcoolismo é capaz de viver ou utilizar outras drogas durante o trabalho. Talvez, o fato de beber
na noite anterior comece por afetar a sua capacidade de ser pontual e estar desperto durante o
trabalho. Se o alcoólico for estudante, as festas, beber ou usar outras drogas, ou até vendê‐las
para ser financeiramente possível continuar a usá‐las. Estas são apenas algumas das áreas da
vida afetadas, à medida que o álcool se torna cada vez mais importante. À medida que o
alcoolismo se torna crônico, cada vez mais relações de toda a espécie serão alteradas na vida do
alcoólico. Sabemos que se a doença progride sem ser reconhecida, causará eventualmente
enormes perdas em todas as áreas da vida e até a perda da própria vida.
Os membros da família do alcoólico podem facilmente se tornar vítimas de uma
mudança da sua própria espiritualidade. Os valores, os objetivos e as relações dos membros da
família são fatalmente afetados à medida que a doença do alcoolismo progride. À medida que
o alcoólico se torna menos responsável, os membros da família podem focar cada vez mais
energia na tentativa de o “endireitar” e fazer funcionar melhor. A sua mulher pode despejar as
garrafas na tentativa de parar o excesso de bebida; os pais podem de um momento para o outro
começar a discutir com a filha adolescente numa tentativa para que pare de usar; um adicto
numa família perturba o equilíbrio familiar. Encontrar uma solução para este problema pode
levar a uma grande perda de tempo e energia. À medida que os membros da família começam
a se preocupar com o adicto, há outros aspectos das suas vidas que começam a sofrer com isso.
Tentar lidar com o comportamento do adicto pode desviar a família de uma vida normal. A coisa
mais importante na vida da família de um adicto pode tornar‐se uma tentativa desesperada de
controlar seu uso e comportamentos decorrentes disso. Essa preocupação em “endireitar” e
controlar o adicto pode transformar‐se num doloroso foco espiritual. Uma organização de apoio
como os Programas de Familiares (Al‐anon e Nar‐anon) pode ser necessária para ajudar os
membros da família a recuperar o equilíbrio e a serenidade.
A palavra espiritualidade tem na sua raiz a palavra “espírito”. Outra maneira de pensar
em espiritualidade é nos perguntar onde se foca o espírito de cada um. “Espírito”, neste sentido,
não fará nenhuma diferença, se o considerarmos como, por exemplo, o espírito de equipe num
jogo de futebol. Um grupo de jogadores e expectadores poderá estar muito entusiasmado com
a vitória de um jogo. Um craque pode incitar de modo a criar mais entusiasmo e espírito no
grupo. O foco espiritual é energicamente dirigido para “ganhar o grande jogo”. Em outras áreas
da espiritualidade encontramos espírito e entusiasmo como sendo o reflexo exato onde se
centra a espiritualidade dessa pessoa. As coisas que na vida nos fazem brilhar os olhos e mexer
por dentro estão intimamente ligadas à espiritualidade. Espiritualidade tem a ver com as coisas
que são os grandes “amores” da nossa vida. Descobriremos que o nosso coração está
fortemente ligado às áreas espirituais da vida.
O espírito e entusiasmo pela bebida é, as vezes, óbvio na vida de um alcoólico. O
alcoolismo, quando começa, pode ser como um namoro. Para um alcoólico talvez nada se
compare ao ato de beber às escondidas ou do adicto a usar. Pode ter passado a última hora de
aula desejando ansiosamente a oportunidade de beber. Para outros alcoólicos esta relação pode
ir crescendo muito lenta e gradualmente até que, só anos depois possa dar conta desta
necessidade permanente de beber. O entusiasmo e espírito persistem muitas vezes mesmo
quando, o relacionamento com o álcool se tornou destrutivo e a energia e o entusiasmo da
pessoa em outras áreas da vida foram seriamente afetadas. No meu próprio trabalho com
pessoas em recuperação lembro‐me de inúmeros indivíduos dizendo, “Beber tornou‐se a coisa
mais importante da minha vida e isso aconteceu de tal maneira que nem me percebi. Chegou
ao ponto de já não me dar nenhum prazer, apenas me ajudar a sentir bem neste momento, mas
tinha que beber”. É este o ponto difícil em que uma pessoa está na verdade “agarrada” à bebida,
mesmo, quando ele ou ela possam dar‐se conta que beber já não funciona da mesma maneira.
Contudo, está agarrada pela impotência, dependente da própria causa da sua destruição.
Mas, como é que começam a se desenvolver essas relações espirituais destrutivas tão
poderosas? Como é que alguém pode se envolver numa relação como a acima descrita, que
pode levar à morte, suicídio ou à loucura se não tiver ajuda?
As relações espirituais evoluem da maneira como uma pessoa vive a vida e como ela
consegue lidar com as situações da sua própria vida. A nossa espiritualidade pode ter um foco
consideravelmente diferente se tivermos tido um conjunto variado de experiências de vida. Ter
o álcool e a droga como foco espiritual destrutivo na nossa vida, é o resultado da nossa
experiência com o álcool e da capacidade com que ele tem de ir ao encontro de algumas das
necessidades básicas humanas. Nem todas as pessoas reagem ao álcool e à droga da mesma
maneira, e por isso nem todos desenvolvem o mesmo tipo de relação com ele. Quando uma
pessoa começa a ligar‐se ao álcool pode ser por aquilo que ele ou ela viram ou ouviram da
experiência dos outros. Os amigos podem nos ter encorajado a beber. Eventualmente existe o
momento em que a pessoa bebe pela primeira vez e essa foi a sua primeira experiência com o
álcool. Dependendo dessa primeira experiência uma pessoa pode desenvolver um padrão de
abuso do álcool e drogas, ou beber moderadamente com pouco entusiasmo. Se a experiência
for muito negativa a pessoa pode nunca mais tornar a beber; se o interesse da pessoa pelo álcool
aumenta é porque efetivamente, ele vai ao encontro de alguma necessidade. O famoso
psicólogo Carl Jung descreveu uma vez o alcoolismo do fundador dos AA, Bill W., como uma
“doença espiritual que tem na sua base o impulso para plenitude...” Sentir‐se meio e completo
é uma necessidade humana básica.
A maneira como o álcool vai ao encontro da nossa necessidade de nos sentirmos
satisfeitos não é difícil de compreender. Se uma pessoa é naturalmente acanhada o álcool pode
ajuda‐la a tornar‐se mais ousada e desinibida. Se uma pessoa está cheia de raiva e
ressentimentos, o álcool pode ajuda‐la a acalmar‐se e encontrar alguma paz. Se uma pessoa está
sem alento, deprimida, pode ir a um bar e “esquecer de tudo”. Uma pessoa pode beber porque
gosta da imagem de quem bebe ou usa. À medida que a doença da adicção progride beber ou
usar torna‐se necessário para que se possa viver e sentir “normal”. Todos estes
comportamentos são uma tentativa para encontrar ou manter a “plenitude”.
Outra necessidade básica humana é o relacionamento com os outros. Beber é uma
atividade social. O álcool e outras drogas tendem a juntar pessoas. Olhando para trás podemos
ver os amigos apenas como “amigos do uso” ou “amigo dos copos”, mas pelo menos havia uma
espécie de “estarmos juntos”, de camaradagem. Beber era uma maneira de ter um contato
pessoal e “passar um bom bocado” ao fazê‐lo.
O álcool e as drogas enganam as pessoas porque, até certo ponto, vão de encontro de
necessidades humanas. Mas em longo prazo não o fazem da melhor maneira para o adicto. A
busca espiritual que acaba na adicção pode ter começado por um simples desejo de ser feliz.
Talvez ajude a entender a adicção como uma tentativa legítima de ser saudável e feliz. Ajuda‐
nos a evitar alguns julgamentos e críticas que possamos ter à tentação de usar contra nós ou
outros adictos em recuperação.
Um olhar mais atento para algumas das palavras que são usadas para espiritualidade
podem ajudar a aprofundar a compreensão desta palavra. Definir espiritualidade como qualquer
coisa que tem a ver com o mais importante na nossa vida. Se alguma coisa é importante para
nós isso significa que lhe damos valor e importância. O processo de dar valor a qualquer coisa
chama‐se valorização ou veneração. Quando veneramos alguma coisa estamos a falar de uma
relação com o objetivo da adoração, do tipo da que temos com Deus. Por vezes no programa
podemos ouvir alguém dizer “o álcool e as drogas tinham‐se tornado meu deus”. Muitas vezes
isto é uma constatação exata mesmo que nunca tenhamos pensado assim nesta relação. À
medida que a doença do alcoolismo progride, podemos dizer que a relação com um deus que
esquece o indivíduo. Esta relação já não é a solução perfeita porque já não vai de encontro às
necessidades da pessoa.
Mesmo que insistamos que não queremos uma relação com Deus (com um D grande),
assim como é impossível evitar a espiritualidade como um fato na nossa vida, também é
impossível evitar relacionamentos do tipo do que se tem com (um) deus. Quer os reconhecemos
claramente ou não, eles fazem parte da nossa vida. Afetam‐nos.
Uma relação do tipo da que se tem com deus, tem uma relação interessante com a
palavra “entusiasmo”, palavra essa que está ligada a espiritualidade. A palavra “entusiasmo”
vem do grego “em‐theos” que significa “em deus”. Outra maneira de vermos as coisas pelas
quais temos um grande entusiasmo é dizermos que elas refletem a nossa compreensão e relação
com o nosso deus.
Para o alcoólico cuja vida está sendo destruída. O desafio da recuperação é encontrar
uma nova relação da do tipo que se tem com deus, um novo foco para a sua espiritualidade, um
novo centro. Alguma coisa tem que substituir o álcool e as drogas como principal centro de
interesse na vida de uma pessoa. Esta é a razão pela qual a recuperação não consiste apenas em
não beber. Por a rolha na garrafa não quer dizer necessariamente que outra coisa qualquer se
tornou nosso centro de interesse da vida de uma pessoa. Somente parar de beber sem outro
crescimento e mudanças apenas frustrará uma pessoa que não aprendeu outro modo de ir ao
encontro das necessidades humanas básicas.
A irmandade de AA encara o desafio de ajudar os alcoólicos a encontrarem um novo
centro de interesse espiritual. A sua missão é muito parecida com a de ajudar alguém a saltar
de um barco que se afunda para outro barco. Pode ser muito traiçoeiro. A missão envolve o
conseguir ganhar a confiança e eventualmente o coração da pessoa. De algum modo, com a
ajuda dos Doze Passos dos AA, com a irmandade das reuniões e, nas novas relações com gente
sóbria, um alcoólico ou adicto em recuperação começará a entregar‐se a um novo centro de
interesse espiritual. A pessoa em recuperação procura ir de encontro às suas necessidades
humanas de uma maneira completamente nova à medida que descobre o modo de vida de AA.
O foco espiritual dos que estão em Anônimos, tem muito a ver com um “Poder
Superior”; “Deus, como nós o compreendemos”, e as pessoas da irmandade. Os passos Dois e
Três dos AA começam esta nova relação e iniciam o novo foco espiritual. Para o que quer que
entreguemos a nossa vontade e a nossa vida, isso tem que necessariamente ser muito
importante para nós. O Passo Três foi sabiamente deixado tão aberto quanto possível para que
ninguém seja excluído. Embora a palavra Deus esteja escrita com D maiúsculo, no Passo Três,
temos que entender que há alternativas de como este Passo pode ser abordado. Para aqueles
que não compreendem a idéia de Deus no sentido tradicional, o Terceiro Passo, pode, por
exemplo, ligar‐se ao grupo básico de AA. Um grupo de pessoas é um poder maior do que nós
mesmos, e podemos dar‐lhe o poder divino de nos mostrar o que precisamos fazer. Poderemos
ver que aceitarmos ser guiados pelas pessoas do programa pode ser melhor do que continuar o
caminho que sabemos, que acabará na destruição. Outros recém‐chegados ao programa podem
falar de Deus atuando através do grupo. Podem dizer que Deus é um espírito de amor que se
exprime pelo amparo, carinho e orientação que o grupo tem para oferecer. Haverá outros que
acreditam nisso e também ligar‐se a Deus por outros caminhos, tais como a oração e a leitura
devotada. O Passo Três permite variedade e flexibilidade na maioria como os relacionamentos
com um Poder Superior.
Quando as pessoas olham pela primeira vez para os passos Dois e Três, muitas vezes
tomam uma de duas posições extremas. A primeira é rebelarem‐se e dizerem que tal programa
não é para elas. Os seus sentimentos podem ser traduzidos por este sentimento “não quero ser
um fanático religioso! Não acredito nesta história de Deus”. A outra reação é ultrapassar
rapidamente estes passos e dizer para si próprio: “Sempre acreditaram em deus. E depois?”
Nenhum destes dois extremos ajudará muito. A espiritualidade é uma área da vida em
que precisamos descobrir muito sobre nós próprios. Não se pede a ninguém que acredite em
alguma coisa em que não pode acreditar. Acreditar não é algo que se possa forçar. Acreditamos
naquilo que acreditamos. Normalmente aquilo em que acreditamos resulta da nossa
experiência. Do que sabemos da experiência dos outros e do que nos ensinaram. O segredo da
mudança do foco espiritual é ter um espírito aberto, e nos permitir experimentar algo diferente
– muito como fazer uma experiência com a nossa vida espiritual.
A maneira que temos de experimentar algo diferente na nossa vida espiritual provém
da ajuda que as pessoas em recuperação oferecem. Não estamos sós, estamos com outras
pessoas que trabalham na sua recuperação e que podem tornar‐se amigos de verdade. A
experiência de recuperação das pessoas na irmandade dá uma informação prática, preciosa
sobre o que precisamos fazer de modo a vivermos uma vida sóbria e feliz. Dirão coisas como
“vive um dia de cada vez”. Em outras palavras não queira ultrapassar e não se preocupe hoje
com as coisas do amanhã. A força de hoje é a que precisa para os problemas de hoje, outra
maneira que as pessoas na irmandade têm de se ajudar e confrontarem‐se mutuamente com a
realidade. Muitas vezes não conseguimos ver claramente como nos magoamos a nós mesmos
com as nossas atitudes emocionais e com a maneira como pensamos nas coisas. Outras pessoas
podem nos ajudar a resolver problemas e a esclarecer a nossa situação. Outra maneira simples
de encontrar plenitude está na capacidade de falar com outra pessoa sobre como nos sentimos.
Partilhar tem o efeito de “dividir o nosso fardo” e “duplicar as nossas alegrias”. Na partilha
podemos encontrar alívio dos sentimentos negativos de desânimo, medo e raiva.
As pessoas no programa, quase sem exceção, farão igualmente parte da espiritualidade
que descobrimos à medida que recuperamos. O que aprendemos com elas e o apoio emocional
que nos podem dar são quase impossíveis de atingir numa experiência, qualquer, solitária. Um
“slogan” popular no programa é “Eu preciso das pessoas como Eu”.
Vamos olhar agora para espiritualidade x religião.
Há muita confusão no que diz respeito a relação da espiritualidade e religião. Para
complicar as coisas, as pessoas usam indiferentemente as palavras e, às vezes, com o mesmo
significado.
Melhor do que tentar definir o que é religião e o que é espiritual precisamos nos lembrar
da nossa definição de espiritualidade. Quando dizemos “espiritualidade tem a ver com a
qualidade da nossa relação com o que é mais importante na nossa vida”, não excluímos nada
nem ninguém associado à religião como sendo um foco espiritual. Por exemplo, é muito possível
ter como a coisa mais importante da nossa vida uma relação com Deus como numa tradição
religiosa. A nossa definição de espiritualidade não inclui ou exclui necessariamente tudo aquilo
que na nossa mente está associado à “religião”.
Um exemplo pode ajudar a clarificar a diferença entre ser aparentemente “religioso” e
estar espiritualmente concentrado em outra coisa.