Você está na página 1de 7

INCITAÇÃO E APOLOGIA AO CRIME FRENTE AOS LIMITES DA LIBERDADE

DE EXPRESSÃO TRAÇADOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Pedro Túlio Frederico CUNHA1

Os crimes de incitação e apologia ao crime estão penalmente tutelados,


respectivamente, nos arts. 286 e 287 do Código Penal brasileiro, encontrando
localização no Título IX, dos crimes contra a Paz Pública, da Parte Especial do
Código supracitado. Os dois crimes estão previstos desde a criação do Código
Penal vigente, datando-se do ano de 1940. A única mudança ao longo dos anos foi a
inserção, em 2021, do parágrafo único do art. 286 (incitação ao crime), que pune
também, com a mesma pena, quem “incita, publicamente, animosidade entre as
Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou
a sociedade.”

Preliminarmente, faz-se necessário entender a noção de Paz Pública que


esses tipos penais tutelam. Para tanto, serve-nos de elixir a exímia lição dada por
Nelson Hungria em seus Comentários ao Código Penal (1958):

Os crimes que o nosso Código alinha sob a epígrafe “Dos crimes


contra a paz pública” figuram na maioria das legislações penais como
ofensivos da “ordem pública”. O legislador pátrio, aceitando sugestão
dos Códigos francês, alemão e uruguaio, julgou mais adequada a dita
epígrafe, devendo esclarecer-se, para logo, que “paz pública” é aí
tomada em sentido subjetivo, isto é, como o sentimento coletivo de
paz que a ordem jurídica assegura. Com os crimes que ora se trata,
não se apresenta efetiva perturbação da ordem pública ou da paz
pública no sentido material, mas apenas se cria a possibilidade de tal
perturbação, decorrendo daí uma situação de alarma no seio da
coletividade, isto é, a quebra do sentimento geral de tranquilidade, de
sossego, de paz, que corresponde à confiança na continuidade
normal da ordem jurídico-social. (HUNGRIA, 1958, p. 162-163)

Com esta clara explicação apresentada, podemos em resumo definir a paz


pública como o sentimento de sossego e tranquilidade que devem imperar no meio
social. Como bem apresentado, a titulação dada pela lei penal brasileira não seguiu
os padrões internacionais de tutela (como o código penal italiano ou o argentino),
dispensando o termo “ordem pública”, uma vez que, como explicado por Nelson
Hungria, a ordem não é perturbada, não há atentados materiais na esfera pública,
somente a paz é perturbada com a sensação de alarme causada pela conduta

1
Acadêmico da Faculdade Católica Dom Orione. Curso de Direito. Matéria de Direito Penal IV.
criminosa de incitar ou fazer apologias à crimes. Por se tratar de uma denominação
terminológica “excessivamente abrangente e vaga”, conforme ensina Magalhães
Noronha (2003, p. 84), há a maior possibilidade de responsabilizar agentes pela
interferência grosseira e aterrorizante contra o sentimento de calma generalizado.

Superados os imbróglios iniciais de definir termos e tutelas do tema penal em


questão, surge-nos alguns devidos imperativos questionadores. Ora, se não há
exposição danosa em termos materiais e ninguém se lesiona a partir de uma mera
exposição de crimes, com que razão legal podemos punir agentes apenas por incitar
ou apologizar delitos? A Constituição Federal de 1988 não nos garantiu a livre
manifestação do pensamento, da comunicação e da expressão? As normas penais
em tela necessitam de atualização para ser devidamente recepcionadas pela
Constituição Federal do Brasil?

De fato, em verdade, a Carta Magna nacional cuidou-se salvaguardar a


liberdade de pensamento e expressão dela inserindo-a em seu corpo normativo por
influência dos antigos documentos e decisões que visam garantir direitos das
pessoas, à exemplo, o art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Todos os seres humanos têm direito à liberdade de opinião e


expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter
opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por
quaisquer meios e independentemente de fronteiras. (ONU, 1948)

Há jurisprudências internacionais atuais que visam petrificar o tema,


protegendo, ante à censura, as opiniões e manifestações de pensamento. Por meio
do Parecer Consultivo de n° 5/85, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
julgou que:

Proíbe-se, ainda, a censura ao abuso da liberdade de expressão por


meio de medidas preventivas. Eventuais violações podem ensejar a
responsabilidade (civil ou penal) de quem as cometeu. Mesmo nestes
casos, existe uma série de requisitos, igualmente previstos no
instrumento, para que a efetivação não viole o direito – como
observado no art. 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
de caráter taxativo.

Fernanda Rafaella Chagas Pereira (2018, p.12) interpreta que incitar é o


mesmo que estimular, instigar, encorajar, animar, logo, este tipo penal é considerado
crime de menor potencial ofensivo, com pena inferior a dois anos. Para incorrer
neste crime basta que o agente incentive publicamente à concretização de crimes de
qualquer natureza. Ademais, cita entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo,
no julgamento de uma Ação Criminal do ano de 1995:

No conceito de instigação, acham-se compreendidas tanto a


influência psíquica, representada pela determinação (induzimento),
que se concretiza em fazer surgir em terceiros um propósito criminoso
antes inexistente, quanto a instigação, que é o reforçar propósito já
existente. Instigar, como é cediço, indica cogitar, fazer com que
outros se decidam a executar um ato, ou ao menos reforçar-lhes o
propósito. Isto se faz provocando motivos impelentes, quer os
consolidando, quer anulando ou reduzindo a rejeição. Além disso,
sabe-se que a publicidade constitui elemento essencial do tipo, sem a
qual ele não se aperfeiçoa, sendo o crime formal, ou seja, consuma-
se com a incitação pública, desde que percebida por um número
indeterminado de pessoas. (TJSP, AC N°1.0297.06.004157-3/001,
Rel. Jarbas Mazzoni, 15/05/1995. RT, 718-31)

A Constituição Federal de 1988 realmente garante, como cláusula pétrea, a


liberdade de expressão, independentemente de censura ou licença, conforme inciso
IX, do art. 5°:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e
de comunicação, independentemente de censura ou licença;

Há de existir um certo parâmetro estritamente subjetivo e permeado de


conclusivas interpretações temporais no que tange à aplicabilidade e
enquadramento da conduta criminosa na prática opinativa de crime. É certo e
explícito que a liberdade de expressão é um direito assegurado nacional a
internacionalmente às pessoas, contudo, cuida-se da liberdade de exprimir opiniões
embasadas em quereres pessoais. Não há que se falar em opinião quanto ao
incitamento de práticas criminosas. Nelson Hungria, sob essa perspectiva, ensina
que:

[...] não apresenta o crime quando apenas se faz a defesa de uma


tese sobre a legitimidade ou sem-razão da incriminação de tal ou qual
fato, como, por exemplo, o homicídio eutanásico, o crime de Otelo,
etc. Não há, aqui, o animus instigandi delicti, mas apenas uma
opinião no sentido da exclusão do crime, de lege ferenda. (HUNGRIA,
1958, p. 171)

Portanto, quando o agente simplesmente apresenta uma tese de que


determinada conduta deve ser descriminalizada, não resta configurado o crime. A
intepretação do imortal doutrinador é sedimentada no Direito Brasileiro, conforme
entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, citado e opinado por
Fernando Capez (2022, p. 282) que, em decisão unânime no julgamento da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 187, excluiu do campo de
incidência da norma em tela as manifestações em favor da descriminalização de
substâncias psicotrópicas, em especial a denominada “marcha da maconha”, por
estar acobertada pelos direitos constitucionais de reunião e de livre expressão do
pensamento. Afirmou, à época, o Ministro Celso de Mello, em seu voto (seguido
pelos outros ministros), que:

“[...] o princípio da liberdade de expressão repudia a instauração de


órgãos censórios pelo poder público e a adoção de políticas
discriminatórias contra determinados pontos de vista. Os delitos de
opinião têm um viés profundamente suspeito, se analisados sob essa
perspectiva, já que impedem a emissão livre de ideias. A
possibilidade de questionar políticas públicas ou leis consideradas
injustas é essencial à sobrevivência e ao aperfeiçoamento da
democracia”. (ADPF 187, Rel. Min. Celso de Mello. 15/06/2011)

A tenuidade entre opinião e crime de incitação ou apologia aparenta ser


evidente, contudo, entendo que a separação entre o crime de incitar e o crime de
apologizar é diametralmente distinta. Enquanto o primeira cuida de punir a conduta
de instigar, provocar, estimular ou induzir, publicamente, a pratica de determinado
crime, o segundo não passa de uma mera admiração reprovável externada ao
público quanto a um crime acontecido ou ao autor de crime acontecido.

O crime de incitação trata-se do evidente risco de prática de crimes, uma vez


que a instigação gera um sentimento de vontade que poderá evoluir para a
manifestação material da conduta. Contudo, observo em sentido contrário o que se
trata do crime de apologia, já que a exaltação ou admiração por criminosos e crimes
não tem a capacidade suficiente para estimular outros a práticas materiais da
conduta já acontecida. Observe a diferença entre publicamente externar “vamos
invadir o Supremo Tribunal Federal e matar metade dos ministros!” para “admiro
muito a conduta do ex-deputado Daniel Silveira! ”. Ao meu olhar, a conduta de
apologizar é muito distante do mal que a lei observa.

Entende neste mesmo sentido, Cezar Roberto Bittencourt quando explica


que:

Na verdade, acreditamos que a “conduta” (crime de apologia de


crimes) descrita não cria nenhum alarma social, não reproduz
nenhuma repercussão perturbadora, não passando, de regra, de
simples manifestação pacífica de um pensamento, por vezes, um
desabafo, um exercício de liderança, e, na maioria dos casos, a
coletividade apenas ouve como uma das tantas pregações, forma ou
não a sua opinião, a favor ou contra, sem qualquer repercussão
positiva ou negativa no meio social. Enfim, mesmo que a suposta
conduta possa adequar-se formalmente à descrição do tipo penal,
materialmente não gera efetiva ofensa ao pretenso bem jurídico
protegido, que, aliás, é meramente produzida. (BITTENCOURT, 2019,
p. 734-735)

O doutrinador citado acima é um veemente defensor da incapacidade danosa


do crime de apologia, entretanto, defendendo a primeira corrente, porém
considerando a hipótese humorística, Marcelo André de Azevedo e Alexandre Salim
expõe que:

Se o agente, explícita ou implicitamente, exalta e defende fatos


criminosos concretos, tendo ciência que sua conduta atinge um
número indeterminado de pessoas, em tese, pode caracterizar o
crime do art. 287 do Código Penal. Por outro lado, havendo animus
jocandi, o fato será atípico. (AZEVEDO, SALIM, 2020, p.114)

Neste mesmo sentido, há a expressão de Nelson Hungria:

Nenhum crime ou seu autor, por mais nobre que seja o motivo
determinante, pode ser louvado. E todos intolerável será o exaltar, de
público, um crime estupido ou um vulgar malfeitor. Em qualquer caso,
porém, apresenta-se uma perigosa insinuação a indivíduos já
propensos à delinquência ou facilmente sugestionáveis. Não há,
entretanto, confundir apologia com simples apreciação favorável ou
defesa. (HUNGRIA, 1958, p. 172)

De fato, as considerações são de extrema importância para uma possível


análise do tipo penal em adequação aos tempos modernos e tão somente distantes
das possibilidades de censura mínima.

Por conclusão, firmo meu posicionamento acadêmico em defesa das teses de


Cezar Roberto Bittencourt, asseverando que o delito de incitar crimes é
perfeitamente distante e nada tem a ver com a defesa da liberdade de expressão,
contudo, que o delito de apologia de crimes choca-se frontalmente com os limites de
liberdade de expressão, em razão de que a liberdade de exaltar publicamente
criminosos ou crimes não possui a força necessária para promover práticas futuras
de crimes da natureza dos enaltecidos.

A motivação de tutela penal dos dois crimes é a razão preparatória das duas
condutas, todavia, na apologia de crime ou criminoso não observo que há ato
preparatório para o cometimento de crimes. A simples exaltação de crime ou
criminoso não figura como ato preparatório, mas sim como uma simples exposição
opinativa acerca de fato criminoso passado ou como glorificação de um criminoso
em si. A liberdade de expressão, conforme determinado pela Constituição Federal
de 1988, não pode estar restrita ao sentimento positivo da coletividade, mas também
deve enquadrar-se às opiniões que contrariam os entendimentos generalizados da
sociedade, caso contrário não resta disponível a compreensão de liberdade, mas
somente o direito de expressão.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Marcelo André de. SALIM, Alexandre. Direito Penal. Parte Especial. 8ª
Ed. Salvador: JusPodivm, 2020.

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. 13ª. Ed.
São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de


1988. Promulgada em Brasília, no dia 5 de outubro de 1988. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário


Oficial da União, Rio de Janeiro, 1940. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm Acesso em 07
out. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Direito Penal. Arguição de Descumprimento


de Preceito Fundamental N° 187-DF. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, 15 jun.
2011.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Especial. Volume 3. 20ª Ed. São
Paulo: SaraivaJur, 2022.

COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Parecer Consultivo de


n° 5/85. Presidente: Roberto F. Caldas. São José. 24 nov. 2017.

FRANÇA. Assembleia Geral da ONU. Nações Unidas. Declaração Universal dos


Direitos Humanos. 217 (III)A. Paris. 1948.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume IX. Rio de Janeiro:


Forense, 1958.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Direito Penal. Apelação
Criminal N° 1.0297.06.004157-3/001-Ibiraci. Relator: Des. Jarbas Mazzoni. Belo
Horizonte. 15 mai. 1995.

PEREIRA, Fernanda Rafaella Chagas. Liberdade de Expressão em face da


aplicação do artigo 286 do Código Penal brasileiro. 2018. 26 f. Artigo Acadêmico
(Bacharelado em Direito) – Centro Universitário Tabosa de Almeida, Caruaru-PE,
2018.

Você também pode gostar