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Arsenio Meira14/10/2013

Saramago e a arte de justapor os sentidos do nonsense sem


temer o precipício

Saramago pode viciar. No bom sentido, claro. O luso não veio a


passeio, e mesmo ainda incipiente em seu universo, já senti o
impacto que um livro seu pode causar

Neste "As intermitências da morte", lido neste domingo dia


13.10.2013, em que peguei o livro pela manhã e só parei quase
agora, fiquei com a nítida sensação dessa urgência que um grande
escritor pode provocar em alguns dos seus leitores. (Podem me
chamar de maluco. "De perto, ninguém é normal".

O ponto de partida deste romance levou-me à premissa kafkiana: o


que aconteceria se, pois Saramago cria um país onde, com a virada
do ano, ninguém mais morre. Nem no primeiro dia do ano, nem no
segundo, nem no terceiro. E por aí vai. A euforia é geral, bandeiras
são colocadas à mostra para comemorar a eternidade. Só faltou a
banda passar, sob a batuta de Chico Buarque de Hollanda... Mas
logo os problemas começam a surgir. A velhice vai se prolongando, o
corpo se esvaecendo sem nunca chegar ao fim. Hospitais e asilos
ficam lotados, sistema de aposentadorias, funerárias e seguradoras
explodem. Colapso na terra do sem fim.

Como não há mortes, não pode haver ressurreição e sem isso a


retórica da igreja perde sentido. Os padres ficam mudos, parece-me
a mensagem, e a clássica e bela frase de um verso do poeta inglês
John Donne, popularizada por Papa Hemingway, "não me perguntes
por quem os sinos dobram" é sumariamente despejada de qualquer
utilidade. Ou seja, a eternidade ceifa o lirismo e as liturgias

Enquanto os aludidos percalços vão se desenvolvendo, Saramago


aproveita para dar suas alfinetadas. Mostra e fustiga o
establishment, retratando a grande Imprensa sob o viés marrom do
jornalismo preocupado com as vendagens ao invés das notícias e o
jogo de interesses que rege a política, e que causa desarranjos na
coletividade, pois cada grupo quer, nem que seja à fórceps, sua
parte do bolo, sem sequer admitir umas sobras a título de migalhas
para a malta...

Mas é através da criação da máphia, encarregada de levar


moribundos até o outro lado da fronteira para que descansem em
paz, que o autor desmascara o poder, expondo a sua fragilidade
perante os interesses econômicos, expressão cediça, mas
incontornável. A narrativa é impessoal, conta a história de um país
como um todo, sem se apegar a personagens. Alguns poucos
aparecem como exemplo, não tem rostos nem nomes, apenas
cargos e parentesco.

Só lá pela metade do livro é que o protagonista dá as caras; mas


mesmo sua ausência não modifica essa surpresa, porquanto esse tal
protagonista nunca este propriamente ausente da trama. Pelo
contrário

A morte, através de uma carta enviada ao diretor de uma emissora


de televisão, explica seus motivos de inatividade e anuncia que
voltará à ativa, mas passará a avisar os futuros mortos uma semana
antes, para que estes possam se despedir e resolver pendências,
como um testamento, um pedido de perdão, uma checada no último
best seller, o filme que não se pode deixar de rever, um último trago,
enfim, até mesmo para quem queira construir uma nova babel, mas
sequer iniciou por falta de tempo, cotidiano insano, trabalho, filhos,
obrigações, poderá, ao menos, iniciar este projeto e deixar um
legado

Com a presença da personagem morte, na figura de um esqueleto


embrulhado num lençol, a narrativa perde qualquer vínculo com a
realidade e abraço o nonsense. Reforçando o meu ponto de vista,
não é como "A Metamorfose" de Kafka; nem pensem que Saramago
enveredou pelo realismo fantástico de García-Marquez, não obstante
a primeira parte do livro, onde você sabe que aquilo não existe, mas
mesmo assim você aceita, embarca na história como se pelo menos
ali, naquele universo, tais acontecimentos pudessem realmente
acontecer

Já a segunda parte de "As intermitências da morte" vai além, quebra


o pacto de tolerância ficcional entre autor e leitor, fazendo com que a
gente desconfie. É como se Saramago quisesse testar o seu poder
de persuasão e só não destrói as sementes plantadas na primeira
parte, por conta do seu controle e maestria em narrar histórias.

Daí a advertência do início deste breve resenha. Tamanha é a


naturalidade e arte com as quais Saramago contrói o enredo (um
enredo ora picaresco, ora dramático, ora irônico, ora reflexivo), que
ele pode viciar. Só um craque como ele para esticar a corda e burilar
o nonsense sem temer o precipício.

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