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História da Filosofia

Moderna
Material Teórico
Iluminismo

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Ms. Luciano Vieira Francisco

Revisão Textual:
Prof. Ms. Claudio Brites
Iluminismo

·· Iluminismo para inglês ver


·· “A revolução não será batizada”

Nesta Unidade, contextualizaremos o movimento iluminista nas circunstâncias


europeias, especificamente francesa, inglesa e alemã.

Para que você aproveite ao máximo o estudo e aprenda de maneira significativa é importante
tomar alguns cuidados:
Em primeiro lugar, seja organizado(a). A disciplina em ensino a distância pode ser realizada
em qualquer lugar que você tenha acesso à Internet e em qualquer horário. Dessa forma,
normalmente com a correria do dia a dia, não nos organizamos e deixamos para o último
momento o acesso ao estudo, o que implicará no não aprofundamento do material
trabalhado, ou ainda, na perda dos prazos para o lançamento das atividades solicitadas ao
longo da disciplina, atividades essas que constituirão sua nota final. Então, organize seus
estudos de maneira que entrem na sua rotina. Por exemplo, você poderá escolher um dia
ao longo da semana ou um determinado horário todos ou alguns dias e determiná-lo como
o “momento do estudo desta disciplina”.
Leia atentamente todo o conteúdo de cada Unidade, pois há indicações de materiais
complementares que ampliarão sua interpretação e auxiliarão o entendimento do tema abordado.

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Unidade: Iluminismo

Contextualização
O assunto tratado nesta Unidade serviu – talvez involuntariamente – como força intelectual
para ações bem concretas quanto violentas relacionadas a, então vangloriada, Revolução
Francesa de 1789.
A partir de princípios liberalistas em Locke, Voltaire, ou discursos mais inflamados como
de Diderot ou Rousseau, a população pegou em armas e levou a cabo a vida de outros,
entre nobreza e realeza, além de, aproveitando o calor revolucionário, adversários políticos ou
opiniões discordantes às atitudes radicais.
Curioso, porém, é notar como atualmente a opinião pública valoriza os fins revolucionários
franceses (como a deposição absolutista à força, ou a constituição de uma nova forma de
Estado), desconsiderando os meios perversos para tal êxito.
Assim, é tanto óbvia a provocação no parágrafo acima como a consciência de que esse
não foi o último episódio de apropriação intelectual de uma ideia para a sua execução de
forma distorcida e, comumente, brutal. Afinal, o mesmo ocorrera na apropriação nazista
sobre certos postulados de Nietzsche, ou mais recentemente, nas atividades do “abominável”
Estado Islâmico (EI) em sua “cruzada” sob os preceitos religiosos.
Cabe então, no topo deste século XXI, refletir se os acontecimentos de um pouco mais de duzentos
anos atrás teriam legitimado o que temos visto na imprensa ultimamente. Ou ainda – e talvez mais
importante –, se as razões filosóficas usurpadas para os acontecimentos franceses são mais nobres
que as religiosas islâmicas a ponto de legitimar-se aquele ato iluminista em detrimento da atual ação
jihadista, ou se ambos são abomináveis. Mas se são, cabe pensar o que teria sido do Ocidente se o
absolutismo francês não tivesse sido “degolado” pelo liberalismo burguês.
Ainda que sem interrogações, certamente há aqui perguntas. Incertas, porém, são as
respostas que eventualmente venham a ser dadas.

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Iluminismo para inglês ver
Embarquemos em nossa “máquina do tempo mental” para nos deslocarmos reflexivamente
a fins do século XVII, mais precisamente à Inglaterra, onde seremos recebidos pelo notório
filósofo Charles Gildon (1665-1724). Esse que, na primeira oportunidade de conversa –
provavelmente durante uma refeição que nos servirá –, ao saber de nosso objetivo de pesquisa
iluminista, estufará seus pulmões e nos afirmará sua opinião sobre esse movimento filosófico
de livre pensar:

[Do mesmo modo que Deus deu o instinto para servir de orientação aos animais], ele deu
ao homem a razão, como regra suprema e pedra de toque, para examinar e escolher em
benefício tanto do corpo como do espírito. A razão é a luz que ilumina as coisas que contribuem
para nossa felicidade ou a ela se opõem. Sem ela, vagaríamos às cegas na escuridão e
teríamos de atribuir ao puro acaso tudo o que nos acontece. É verdade que a razão não é
suficiente para levar-nos ao perfeito conhecimento de todas as coisas, mas é capaz de nos
dar os conhecimentos suficientes para nossa felicidade, mais do que precisamos deles. Não
precisamos atingir a natureza íntima das coisas, mas, já que estamos predestinados a uma
Diálogo com o Autor
existência eterna, é preciso saber tornar essa eternidade feliz, uma vez que isto depende
de nós. Ora, visto que um conhecimento desse tipo é absolutamente necessário, só posso
obtê-lo por meio de nossa guia soberana, a razão. Portanto, sendo a razão a guia suprema e
originária de cada homem, toda violação à sua liberdade de orientação significa uma violação
ao estatuto basilar da natureza, quando não do direito específico de cada homem. Assim,
os que se comportam dessa maneira são com razão rotulados de inimigos da humanidade
(GILDON apud ROVIGHI, 2002, p. 297-298).

O discurso de Gildon nos sugere uma sinopse do contexto em que desembarcamos, assim
como caracteriza o ideal revolucionário envolvido e, claro, identifica os inimigos. Vejamos:

Com o advento da perspectiva da razão humana como combustível que faz mover essa
engrenagem que se chama humanidade – energia essa esquematizada principalmente pelos
postulados racionalistas de Descartes –, a ideia de um possível operador (Deus, especialmente
o cristão) ficou em condição de xeque, seja como existência – tão debatida até então – ou
transcendência – “De onde viemos?” “O que fazemos aqui?” “Para onde vamos?”

Consequente então que houvesse avaliações e julgamentos sobre o impacto e valor que
teria esse novo paradigma de que a razão humana era, em verdade, o legítimo juiz do arbítrio,
das ações e da moral do homem, sem qualquer submissão, doutrinação ou crença em um
plano superior e além dos alcances físicos e reflexivos que o indivíduo obtinha.

Até porque essa nova forma de pensar estava embasada pelas novidades científicas,
especialmente de Newton, assim como engajamento filosófico libertário – fosse humanista, para
apedrejar os estabelecimentos dogmáticos cristãos, fosse liberalista – faceta esta emblemática
de nosso já conhecido John Locke – em atingir a zona de conforto de outra autoridade, essa
política e (supostamente) absoluta que era cada rei “escolhido por Deus”.

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Unidade: Iluminismo

Entende-se nos dicionários e livros de História por absolutismo o sistema


político de governo advindo da organização e ascensão burguesa ao longo
Glossário da Idade Média e cujos dirigentes, chamados de reis, assumem poderes sem
limitações ou restrições, dado que são alçados a tal título pela escolha e desejo
divino, autodeterminando-se “representantes de Deus na Terra”, com anuência
da igreja em troca de espaço e influência política.
Diferente da representatividade folclórica que possuem as atuais realezas,
como a inglesa e espanhola, no período contemplado nesta Unidade, tais reis
e rainhas se enxergavam com poderes políticos beirando a sobre-humanidade,
caso exemplar dos franceses Luís XIV (1638-1715), que se autointitulava “Rei
Sol”, e de seu descendente, Luís XVI (1754-1793), cujo exagerado poder lhe
fez “perder a cabeça”.

Assim, esse período histórico que nos catapultamos é importante porque traz a semente
que fecundou uma safra de pensadores e ideias radicais que eclodiriam (explodiriam mesmo
em alguns lugares da Europa) em revoluções que mudaram mais uma vez nosso modo comum
de pensar, mantendo-se em alguns aspectos até nosso nativo século XXI.
Agradecendo então a hospitalidade e os ensinamentos de Gildon, despedimo-nos desse
com a seguinte interpretação do que se propõe esse movimento nascente:

A proposição filosófica do iluminismo ratifica a unicidade da razão, ou seja, da


capacidade racional humana como primeira (e para alguns pensadores, única)
instância de julgamento da realidade e existência humana.
Assim, não caberia mais submissão a explicações e governabilidade ditas
Trocando Ideias
“superiores”, fosse diretamente divina ou por supostos representantes terrenos
de tal divindade. De modo que a consequência concreta dessa nova forma de
pensar acarretou em um radicalismo sem precedentes, abalando os alicerces
da igreja cristã e do Estado absolutista.

Nota-se na sua fisionomia uma ponta de preocupação, talvez em pensar se fora boa ideia
viajar para esse momento histórico em função do perigo que possa correr com esses insurgentes
de uma revolução prestes a ser deflagrada. Fique tranquilo(a)! Afinal, estamos na Inglaterra,
país que embora tenha fomentado diversos ideais em diferentes autores e teses, não teve nesse
momento histórico nenhuma reviravolta de guerra, data sangrenta ou evento do gênero. Na
verdade, os pensadores ingleses que contribuíram à maturação do racionalismo cartesiano
o fizeram de forma esparsa, lenta, mas nem por isso menos consistente, haja vista que a
Inglaterra foi uma das primeiras nações europeias que, além do antecipadíssimo processo de
unificação – se comparado a países como Itália e Alemanha –, também foi quem amadureceu
de forma rápida a transição do regime absolutista ao liberalista sem pomposas decapitações
de “sangue azul” ou outras formas cruéis de deposição real. Tanto que, até a atualidade, esse
país possui sua realeza “para inglês ver”, ou seja, figurativa e folclórica, apenas.
Nesse panteão de pensadores ingleses há o congraçamento teológico de William
Chillingworth (1602-1644) e John Hales (1584-1656), ambos com seu humanismo
erasmiano, que, tomando a filosofia de Erasmo de Rotterdam, propunha o “livre exame”
dos textos sagrados sem a sombra doutrinadora da igreja cristã; junto do conservadorismo

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de Thomas Hobbes (1588-1679) – esse que de tão relevante e polêmico materialista,
terá uma discussão apropriada em uma unidade futura –; e intermediado pela reticência
reflexiva de Robert Boyle (1627-1691), representante daqueles pensadores que viam
com reserva a transferência da responsabilidade existencial divina à razão do homem,
ao questioná-la em função da finitude do intelecto humano, dada a debilidade que nos
é característica e visivelmente manifestada em alguns dos conviventes desse pensador –
assim como também notável em alguns de nossos contemporâneos.
Mas foi Locke quem serviu de modelo ideal iluminista inglês, dada sua audaciosa faceta
liberalista, formulada especialmente em seus escritos sobre tolerância. Não porque esse
pensador acreditava radicalmente na razão como perspectiva ao desenvolvimento da
humanidade em relação a paradigmas anteriores, mas porque juntava o poder dessa razão a
outras crenças, como a experiência adquirida com o mundo exterior, já discutida em Unidade
anterior e que, neste contexto, o fazia crer que a leitura da realidade não é única, uma vez que
é percebida conforme a experiência de cada um e, em função disso, deveria ser harmonizada
socialmente – tolerada –, sem o determinismo de que qualquer ponto de vista seja imposto de
uma maneira, apenas, e não de outras.
Foi propondo que a tolerância era uma questão política – e não religiosa – que Locke
acendeu o pavio do discernimento entre essas duas esferas e como tais deveriam ser entendidas
e administradas separadamente, cada qual com seu peso em autoridade na realidade concreta
da humanidade. Em outras palavras, tratavam-se de dois entendimentos: um domínio da
razão, que dizia respeito a uma organização civil organizada em comum acordo social; e
o suprarracional, condizente à prática religiosa, essa que precisava ser optativa e libertária,
porque dizia respeito à individualidade e buscas internas de cada ser.

Figura 1 (ao lado) – Recepção a Guilherme


príncipe de Orange, quem assumiu o trono inglês
com a filha protestante do rei católico Jaime
II, esse deposto na Revolução Gloriosa – ou
Revolução Sem Sangue – de 1688. Trata-
se de um exemplo prático do que propusera
Locke: deposição do poder absoluto (e
católico), constituído com o mínimo de
violência deflagrada, resolvido no âmbito
político em prol de um regime tolerante (aqui
no aspecto religioso).
Fonte: media.web.britannica.com

Criticado pelo poder estabelecido, fora


contra argumentada em outras teses, como o deísmo inglês de John Toland (1670-1722),
Matthew Tindal (1657-1733) e outros pensadores, todos esses argumentado a concordância
do religioso (cristão) com a razão, o que importa neste momento é que o pensamento lockeano
foi exportado a outros pontos do continente europeu, de modo que suas releituras, assim
como associações a novas teorias formuladas nesses outros pontos, criaram condições para
tomadas não apenas de opinião, mas também de ações e revoluções – para aonde iremos,
fazendo, porém, algumas escalas.

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Unidade: Iluminismo

“A revolução não será batizada”


Enquanto a região que futuramente se tornaria a Alemanha quase que passou desapercebida
nesse momento – o momento nobre da Filosofia alemã ainda estava em estágio embrionário
–, em grande medida pela tardia tradução das obras inglesas e francesas, assim como pelo
contexto político avesso – ainda desunificado – ao que se tinha em outros países absolutistas,
cujo iluminismo fora esparsamente representado, em suma, por pensadores como Christian
Thomasius (1655-1728), quem se dedicou ao combate retórico da escolástica e intelectualização
doutrinária cristã; na Itália não fora diferente, mesmo com os primórdios de uma física galileana,
ou do pensamento de Giambattista Vico (1668-1744), talvez pela sombra da sede cristã, quase
nada de notável foi discutido no âmbito da razão iluminista, talvez e exceto pelo ímpeto do
teólogo Antonio Genovesi (1712-1769), quem em suas aulas na Universidade de Nápoles
– e em função das novidades racionalistas – defendia a liberdade do pensar, sem um ecletismo
programático característico da escolástica.
Última parada antes da aterrisagem na França iluminista, cabe ainda uma menção honrosa
à realidade holandesa. País esse que, se havia desempenhado um importante papel libertário
ao pensamento nos dois séculos anteriores, servindo de guarida a filósofos “malditos” como
Descartes e Spinoza, além de inúmeros refugiados das diversas inquisições e agitações políticas,
agregou à história do iluminismo a contribuição do francês Pierre Bayle (1647-1706), pensador
cético tanto em relação à efetividade da metafísica cristã, quanto da capacidade da razão sem
que a essa fosse estabelecido o pleno entendimento da moral.
Ao questionar a lógica de um Deus onipresente e onipotente que deixava se multiplicar as
instituições de castigo físico (prisões e miséria cometidas pelo Estado) e mental (hospícios e
doutrinas de pecados inatistas geradas pela religião), também colocava sob juízo o postulado
da evolução humana a partir da razão em meio ao convívio e aumento dessas mesmas
penúrias que mais se alastravam. Ainda que não propusesse uma solução consistente para
os problemas que formulara, os registros filosóficos de Bayle foram exportados à realidade
francesa, aumentando ainda mais o nível de insatisfação intelectual e social, residindo aí sua
grande contribuição aos livros de História e Filosofia.
E assim chegamos ao nosso principal destino historio-turístico, a França absolutista de
fins do século XVII e percurso do seguinte, governada “sob a luz” de Luís XIV, que mesmo
repressivamente ofuscante, não contivera a circulação clandestina da tradução das publicações
inglesas e holandesas, assim como de manuscritos propagandísticos e libertários – instigadores
não apenas da revolta da miserabilidade daquele país, mas também fomentando uma geração
de pensadores franceses igualmente perigosa.
Talvez o primeiro desses sendo Bernard Le Bovier de Fontenelle (1657-1757), refutando
a literatura cristã, causadora do “suplemento da razão”, ou seja, agente de um preconceito
como mal fundamental do homem daquela época, no sentido de construir uma moral tão
antiga quanto estranha às novas descobertas e realidades desvendadas pelo racionalismo e
Ciência. Há nas entrelinhas dos registros desse pensador uma acusação de superação da visão
cristã de mundo, ainda válida por conta da ignorância, preguiça ou leviandade intelectual
daqueles que a amam pela “maravilhosa” narrativa contada de uma transcendência porvir e
que justificaria esta existência de penúria.

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Foi François Marie Arouet – mais conhecido como Voltaire (1694-1778) –, contudo, o
grande divulgador na França das boas novas do liberalismo e da nascente Ciência, principalmente
porque reportava tais aspectos da Inglaterra, onde se exilou por alguns anos após, maldito na
França absolutista, ser encarcerado mais de uma vez na Bastilha, prisão que adiante a esse
momento marcou o início revolucionário francês.
Figura 2 (à esquerda) – Queda da Bastilha,
de 14 de julho de 1789. Eis um suposto clímax do
enfrentamento entre populares e forças da
realeza com a mencionada prisão ao fundo
que por duas vezes “hospedara” Voltaire e
tantos outros pensadores e inimigos políticos.
Encantado com as descobertas de Newton
e com as propostas sociais e políticas de
Locke, Voltaire escrevia contra a tirania,
hipocrisia e crueldade que testemunhara na
França, mas – e contraditoriamente ao que
Fonte: Wikimedia Commons
sofreu – acreditando que esse país poderia
superar a fase absolutista e de suas instituições viciadas na centralidade de poder nos mesmos
moldes liberalistas ingleses, ou seja, sem violência e em uma escalada controlada e racional.
Todavia, a realidade inglesa em muito diferia da francesa e, provavelmente, do resto da Europa
ocidental daquela época.
Especificamente a realidade francesa era pintada por Luís XVI, um rei tão despótico quanto
e incapaz de governar quanto fora Luís XIV. Além disso, Luís XVI era cerceado por uma corte
que debochava da Lei que herdara, junto de uma igreja com exacerbado poder, utilizado para
a perseguição da dissidência huguenote – seguidora do protestantismo calvinista –, tudo isso
sob a “cereja nesse bolo estragado” que era a alta miserabilidade da plebe. Daí que atribuíram
às ideias liberalistas de Voltaire, involuntariamente – pacifista que era, a ponto de mesmo não
concordando com uma ou outra ideia, dizer que defenderia até a morte o direito dessa ser
manifestada –, o apadrinhamento como uma das mentes revolucionárias que culminariam
com a tomada da prisão que anteriormente o detivera e eclosão dos conflitos revolucionários
e contrarrevolucionários consequentes.
Importante frisar, porém, que declarados à causa aguerrida foram outros pensadores, caso de
Denis Diderot (1713-1784), quem, além de filósofo, romancista e dramaturgo, encarregou-se
de dirigir a enciclopédia francesa, obra inspirada na versão liberalista inglesa em que imprimiu
sua visão antiautoritária, ou seja, mudando o modo como se pensava até então, por meio de
um recurso absoluto na transmissão de conhecimento do período, a partir desse formato de
obra de referência que se propõe a compilar todos os conhecimentos humanos.
Cético, Diderot negava todo estabelecimento social como verdade inquestionável ao
argumentar que o “primeiro passo para a Filosofia é a incredulidade”. Assim o fez em relação
ao ensino religioso vigente como fonte de conhecimento ao reescrever à sua ótica conceitos da
generalidade que uma publicação desse tipo abarca – enfrentando diretamente tais explicações
religiosas sobre alguns estabelecimentos da realidade –, da mesma forma que a empregou
como vitrine para os escritos de importantes e engajados pensadores da época, todos esses
reunidos sob os princípios racionalistas, da nova Ciência, humanismo e tolerância liberalista,
como Montesquieu, Voltaire e Rousseau.

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Unidade: Iluminismo

Acerca de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), cabe à conclusão expositiva deste material


teórico, pois foi o legado filosófico de Rousseau o principal alicerce do levante de 1789,
cimentado nos princípios democráticos que sua origem suíça que lhes são tão característicos.
Desapegado de uma cultura secular ou tentacular, teve mais arejada sua percepção
pluricultural (ou para alguns, acultural), assim como, ao não ter acesso ao ensino formal,
lapidou seu posicionamento crítico ao pensamento preestabelecido e de mero interesse
conceitual. Ou seja, uma infância errante, envolvida de desapego familiar (perdera a mãe
dias depois do próprio nascimento) e recorrente violência física e psicológica – características
melhor discorridas quando conversarmos sobre o romantismo, movimento influenciado por
esse pensador.
Em meio ao ambiente pré-revolucionário em que estamos, no tocante a esse pensador,
faz-se importante frisar três de suas ideias revolucionárias à época e as consequências
revolucionárias que tiveram.
A primeira diz respeito a afirmar que a sociedade não é boa, muito pelo contrário, é má.
Note se tratar de opinião totalmente divergente da discussão sobre o estado natural, em que
absolutistas argumentavam a necessidade de controle sobre a condição originalmente selvagem
do homem, ao passo que liberalistas o faziam pelo avesso, advogando que, em comum acordo,
esses selvagens se organizariam em um acordo social. Com tal afirmação, Rousseau ia na
contra mão, afirmando que os humanos eram “bons selvagens” em sua condição original, mas
corrompiam-se face aos vícios sociais e a necessidade instintiva de sobrevivência nesse meio –
um comportamento que seria mais tarde batizado por Hegel de alienação.
A consequência: sendo a sociedade nociva à maneira que estava engendrada, caberia à
coletividade “quebrar tais grilhões” e, uma vez que não pode voltar à condição original e
selvagem, tomar a liberdade tornando selvática a civilização. Em um exemplo prático e nas
palavras do próprio:
O primeiro que tendo cercado um terreno se lembrou de dizer: “Isto é meu”, e
encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador
da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores
não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas
ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Livrai-vos de
escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de
todos, e a terra de ninguém” (ROUSSEAU, 1999).

Interprete isso em um contexto revolucionário – como o francês em que estamos visitando


neste momento – e desejará “voltar para nosso presente” frente a tensão violenta que tal ideia
pode provocar.
O segundo aspecto se refere a reconhecer e valorizar os instintos naturais em detrimento da
razão, ou seja, deve-se atender nosso julgamento emocional e não o racional.
A consequência: no tocante à educação, tratava-se de, ao invés de reprimir e disciplinar (termo
este na acepção militar), encorajar os pequenos a se expressarem sobre e como quiserem, em
seio familiar, por meio da prática e oralidade, ou seja, sem intuições sociais ou instrumentos
de assimilação de informação. Uma visão simpática aos princípios do conhecimento humano
propostos por Locke, embora mais radicais que esses.

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Essa “pedagogia libertária” proposta por Rousseau é tão atual quanto multifacetada.
Pode ser comparada à pedagogia da autonomia há algumas décadas formulada por
Paulo Freire – da mesma forma que a crítica de Rousseau é facilmente assemelhada
à pedagogia do oprimido julgada por esse pensador brasileiro –, ou visões mesmo
Você sabia? europeias e atuais, caso do inglês Ken Robinson, quando afirma, em: http://www.blog.
metodologica.info/2011/04/ken-robinson-diz-que-as-escolas-acabam.html, que a atual instituição escolar
acaba com a criatividade infantil.

O terceiro e derradeiro aspecto enuncia que, estando então em nível societário, essa
coletividade, por estar junta, torna-se um ser com vontade própria, que certamente é diferente
das vontades individuais ou mesmo dos grupos favorecidos. Assim, uma vez que essa vontade
geral (ou coletiva) é manifestada – “Quando o gigante acorda”, para puxar de nossa memória
um jargão recente – essa será respeitada, ou por anuência ou por violência, diferente de
Locke, por exemplo, que defendia o direito individual, mesmo frente à coletividade.
A consequência: ainda que a proposição dessa tese para Rousseau dissesse respeito à
condição de, juntos, deliberar a forma como viveríamos, tudo de forma “civilizada” (trocadilho
proposital) como era comum em uma ágora grega ou cantão suíço de onde esse filósofo
viera, e consciente de que – ainda assim – poder-se-ia tomar decisões equivocadas; o fato é
que em um contexto como o absolutista francês do século XVIII, essa vontade geral não se
manifestaria sem exigir sacrifícios dolorosos aos que se posicionassem discordantes.
Daí que não é difícil projetar esse postulado como combustível aos corações e mentes
revolucionárias francesas que atearam fogo, arrancaram cabeças e tomaram a força o poder
que Deus havia outorgado ao décimo sexto Luís que sentara no trono francês, mesmo sob
uma Declaração de Direitos do Homem que, escrita no ano da Revolução Francesa, professava
que “todos os homens nascem livres e iguais de direitos”, ou seja, sob os preceitos da “liberdade,
igualdade e fraternidade”, que ditas originalmente por Rousseau, caracterizam esse filósofo
que, contraditoriamente, foi também o primeiro (e mais relevante) crítico desse próprio
movimento iluminista, no tocante ao seu apelo contra a superioridade da razão, que acreditava
ser menos relevante que os instintos.
Mas o momento tarda para essa discussão e para a própria integridade desta nossa viagem
mental – dado que os radicais jacobinos estão nos alcançando com suas foices e tochas –
partiremos desse cenário para, seguros, retornarmos em nossa próxima Unidade e voltarmos
a conversar com e sobre Rousseau, abordar sua faceta mais romântica, assim como outros
filósofos igualmente, além de outros nacionalistas.
Figura 3 – A Liberdade guiando o povo, de
Eugène Delacroix, pintada em 1830 em
comemoração à Revolução de Julho de
1830! Ora, por que então esta pintura é
amplamente associada à Revolução de 1789?
Porque trata-se do iluminismo, embora sobre
seu fim, que corresponde a uma consecução
de protestos e enfrentamentos civis contra
o rei Carlos X em prol de ideais, agora
sim, burgueses-liberalistas. Na verdade, a
Revolução Francesa foi se descaracterizando
nos anos seguintes até descarrilar com o Fonte: Wikimedia Commons
Estado do terror (extremista) jacobino e o golpe
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Unidade: Iluminismo

napoleônico no 18 de Brumário do calendário revolucionário francês – ou 9 de novembro de


1799. Todavia, a Revolução de 1789 é homenageada nesta pintura no detalhe do barrete –
vestuário típico do final do século XVIII – que cobre os cabelos dessa deusa e mulher do povo.

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Material Complementar
Não deixe de consultar as seguintes indicações para saber mais sobre os assuntos abordados
nesta Unidade:
Vídeos:
Para assistir: Anno 1790. Série televisiva sueca, é um drama policial situado na
Estocolmo do final do século XVIII. O personagem principal, o médico Dåådh,
é um homem simpático aos ideais iluministas e empolgado com a nova Ciência,
contudo, vê-se envolvido em uma realidade controladora, cristã e absolutista,
em que atua na investigação de casos de assassinato, usando de métodos pouco
ortodoxos. Ao assistir, perceba como, tal qual a realidade francesa à época,
edifícios em ruínas ficavam ao lado de mansões suntuosas; como prostitutas e
mendigos caminhavam pelas mesmas ruas que comerciantes ricos e mulheres
da nobreza e o efervescente embate entre abastados e miseráveis. O trailer está
disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nHgjFyPPKG8.

Livros:
Para ler: Um conto de duas cidades, de Charles Dickens, trata ao mesmo tempo
da realidade da Inglaterra e da França revolucionária do século XVIII, onde as
personagens viviam conflitos sociais em meio à germinação de movimentos que
culminariam na Revolução Francesa. Atente-se à forma como Dickens mistura
literatura com a memória histórica desses lugares.

Sites:
Para jogar: Filosofighters, proposta criativa e interativa da revista Superinteressante
para associar os princípios filosóficos de dez famosos pensadores aos populares
jogos de luta. No que diz respeito ao tema desta Unidade, a sugestão é escolher
o pensador-lutador Jean-Jacques Rousseau. Além de conhecer as teorias dos
outros nove pensadores-lutadores, é interessante notar/jogar os dois golpes de
nosso filósofo: homem natural (cujo comando é para baixo, para a direita e botão
C) e liberté (aplicado com o comando para a esquerda, para baixo, para a direita
e botão C). Acesse: http://super.abril.com.br/multimidia/filosofighters-631063.shtml.

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Unidade: Iluminismo

Referências

DARNTON, Robert. O iluminismo como negócio: história da publicação da Encyclopédie,


1775-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

MAGGEE, Bryan. História da Filosofia. 2. ed. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Loyola,
2000.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade


entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

______. Discurso sobre a desigualdade. In: Obras. São Paulo: Abril, 1979. (Coleção Os
Pensadores).

ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Moderna: da revolução científica a


Hegel. Trad. Marcos Bagno e Silvana Cobucci Leite. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2002.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Filosofia. São Paulo: Cortez, 1993. (Col. Magistério 2º Grau;
Série Formação Geral).

VOLTAIRE. Cândido. São Paulo: Nova Alexandria, 1995.

16
Anotações

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