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Descentralização administrativa e

contrafações
Ricardo Marcondes Martins
Doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP. Professor de Direito Administrativo da
Faculdade de Direito da PUC-SP.

Resumo: Este estudo tem por objeto o exame da descentralização


administrativa à luz da Constituição de 1988 e a identificação das
deturpações ocorridas nas últimas décadas. A vontade constitucional
de que fossem realizadas descentralizações territoriais ou geográficas
foi frustrada. A descentralização técnica ou funcional foi deturpada
pela criação de agências reguladoras e executivas, pela admissibili-
dade de consórcios públicos para o desempenho de competências
privativas e pelas concessões impróprias. A descentralização por
colaboração foi deturpada pelas parcerias público-privadas e pelas
parcerias com o Terceiro Setor. O tema da descentralização adminis-
trativa revela que a Constituição vem sofrendo constantes ataques.
A legislação infraconstitucional consagrou várias contrafações admi-
nistrativas. Ao identificá-las, espera-se que este estudo contribua
para corrigi-las e, assim, preste o necessário socorro à Constituição
de 1988.
Palavras-chave: descentralização política e administrativa; des-
centralização geográfica ou territorial; descentralização técnica ou
funcional; descentralização por colaboração; contrafações adminis-
trativas.
Sumário: 1 Introito – 2 Descentralização administrativa no texto origi-
nário da CF/88 – 3 “Novo” conceito de descentralização – 4 Deturpação
da descentralização funcional ou técnica – 5 Deturpação da descentra-
lização por colaboração – 6 Conclusões – Referências

1 Introito
A descentralização administrativa, tema próprio da organização admi-
nistrativa, sofreu profundas mudanças nos últimos trinta anos. Parte dessas
mudanças apoiou-se em regras decorrentes de Emendas constitucionais;
outra parte em regras legislativas, infraconstitucionais. Raros temas foram
alvo de tantas mudanças. Ocorre que muitas das regras que tratam da des-
centralização são próprias do texto originário e foram petrificadas. Neste
estudo, pretende-se, mais do que apresentar um panorama das alterações,
submetê-las a uma severa crítica científica. A evolução da descentralização

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administrativa dos últimos trinta anos exige cuidado dos intérpretes.


Muitas das propostas do reformador ofenderam cláusulas pétreas e mui-
tas das propostas legislativas ofenderam regras constitucionais. O tema da
descentralização administrativa revela, de modo paradigmático, como a
Constituição de 1988 sofreu e sofre ataques.1
Dividir-se-á a exposição em três partes. Na primeira, examinar-se-á o
regime da descentralização administrativa no texto originário da Constituição
de 1988; na segunda, examinar-se-ão as mudanças sofridas pela descentra-
lização funcional; na terceira, as mudanças sofridas pela descentralização
por colaboração. Este estudo, realizado para comemorar o aniversário de 30
anos das Constituição, evidenciará que não há tempo para comemoração.
A Constituição pede socorro e almeja-se, com o texto que segue, de alguma
forma socorrê-la.

2 Descentralização administrativa no texto originário da CF/88


Na linguagem comum ou natural descentralizar – des + (central
+ izar) – significa separar ou dissociar do centro os elementos que nele
se encontram, “afastar”, “distanciar”.2 Na linguagem jurídica, o termo é
empregado genericamente para se referir ao descongestionamento de pode-
res.3 Na doutrina brasileira, o tema foi objeto do exaustivo estudo de

1
Celso Antônio Bandeira de Mello, quando do aniversário de 14 anos da Constituição, afirmara:
“Dever-se-ia este ano comemorar o décimo aniversário da Constituição de 1988, dita Constituição
cidadã. Sem embargo, o que realmente se está a assistir são seus discretos funerais. Com efeito, uma
Constituição está viva quando sua fisionomia básica permanece íntegra e seus dispositivos, ou pelo
menos os principais deles, são normalmente respeitados. Se um ou outro desses requisitos deixa de
existir ou — pior que isso — se ambos desaparecem, desaparece com eles a própria Constituição.
Foi o que ocorreu com a Lei Magna Brasileira. De um lado, sofreu um processo de desconfiguração
por via de emendas que lhe subtraíram características básicas, amputando aspectos fundamentais
de seu projeto. De outro, foi sistematicamente afrontada no que tinha de mais elementar; isto é,
em seu comprometimento com os valores democráticos substanciais na tripartição do poder. Ou
seja: as normas que consagravam essa noção rudimentar, própria do Estado de Direito, sofreram e
vêm sofrendo, diuturnamente, as mais desabridas e rotineiras afrontas” (Funerais da Constituição
de 1988. In: FIOCCA, Demian; GRAU, Eros Roberto (Org.). Debate sobre a Constituição de 1988.
São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 35).
Essa análise é bastante pertinente ao tema da descentralização administrativa. Contudo, discorda-se
do ilustre Professor. Os ataques perpetrados contra a Constituição não foram suficientes para matá-la.
Do ponto de vista dogmático, as normas contrárias à Constituição são inválidas. Dessarte: o fato de a
comunidade jurídica não reconhecer a invalidade não é suficiente para matar a Constituição.
Sobre a reforma constitucional, adota-se uma posição ampliativa em relação aos limites do poder
de reforma. Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição
Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 71 a 81.
2
Cf. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello (Ed.).
Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1. reimpr. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 634.
3
Cf. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1968, p. 26.

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Celso Antônio Bandeira de Mello, realizado no capítulo terceiro de sua


tese de livre-docência.4

2.1 Descentralização x desconcentração


Logo de início, Bandeira de Mello distingue a descentralização da des-
concentração.5 Centralização consiste na organização administrativa em que
as funções são exercidas por uma pessoa única, podendo fazê-lo de forma
concentrada, em um único órgão, ou desconcentrada, com distribuição a
dois ou mais órgãos. Na desconcentração as competências são distribuídas
aos órgãos ligados ao centro por um vínculo hierárquico; na descentraliza-
ção, as funções são repartidas entre diferentes pessoas.

2.2 Descentralização política x descentralização administrativa


Distingue-se a descentralização política da descentralização administrativa.6
Na primeira, a função legislativa, de realizar ponderações autônomas no
plano abstrato,7 é atribuída a mais de uma pessoa jurídica sem que esta fique
submetida a controle administrativo de outra pessoa jurídica. Trata-se de um
tema próprio da Teoria Geral do Estado, mais especificamente, da Forma
de Estado.8 Este pode ser unitário, politicamente centralizado, ou federal,
politicamente descentralizado. Desde a primeira Constituição da República,
de 1891, o Brasil adota o modelo federal.9 Sociologicamente fomos – e
somos até hoje – um Estado unitário.10 Juridicamente, em decorrência de

4
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias, op. cit., p. 24 a 130.
5
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias, op. cit., p. 26-29.
Sobre o conceito de desconcentração vide também: FREIRE, André Luiz. O regime de direito público
na prestação de serviços públicos por pessoas privadas. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 123.
6
Cf. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias, op. cit., p. 30 a 49.
7
A doutrina tradicional fala em inovar originariamente o Direito. Sob uma perspectiva neoconstitu-
cional, toda função estatal inova a ordem jurídica. Na função administrativa também são realiza-
das ponderações no plano abstrato, mas instrumentais das ponderações legislativas. Cf. MARTINS,
Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 116-
118. O núcleo essencial da função legislativa está na realização de ponderações no plano abstrato
de modo autônomo (Idem, p. 66 a 70). Não basta a atribuição de função legislativa, alicerçada na
própria Constituição, para caracterizar-se a descentralização política; a entidade pública, dotada de
função legislativa, deve ser imune ao controle administrativo de outra entidade.
8
Por todos: MENEZES, Aderson de. Teoria geral do Estado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 181 et seq.
9
Sobre o Estado Federal vide: BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Natureza jurídica do Estado
federal. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 1948; ARAÚJO, Luiz Alberto David.
Características comuns do federalismo. In: BASTOS, Celso (Coord.). Por uma nova federação.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 39-52; BARROSO, Luís Roberto. Direito constitucional
brasileiro: o problema da Federação. Rio de Janeiro: Forense, 1982.
10
Sobre a distinção entre o aspecto sociológico e o aspecto jurídico do federalismo brasileiro vide:
MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neoconstitucional. São Paulo:
Malheiros, 2015, p. 85-87.

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uma cópia do direito norte-americano, somos um Estado federal. A cópia


foi tão escancarada que durante boa parte de sua história a denomina-
ção do Estado brasileiro foi “Estados Unidos do Brasil”; somente com a
Constituição de 1967 a denominação mudou para Brasil, e desde a EC
n. 1/69, verdadeira Constituição autônoma, para República Federativa do
Brasil.11 A Constituição de 1988 não apenas manteve a forma federativa
como a reforçou sensivelmente: primeiro, atribuiu autonomia federativa
aos Municípios;12 segundo, qualificou a forma federativa como cláusula
pétrea.13

2.3 Descentralização material x descentralização jurídica


O tema deste estudo não é a descentralização política, mas a admi-
nistrativa. Em relação à descentralização administrativa, Celso Antônio
Bandeira de Mello, com absoluta propriedade, diferencia a descentralização
como fenômeno próprio da Ciência da Administração da descentralização
como fenômeno especificamente jurídico.14 Como bem nota o aclamado
professor paulista, é bastante comum que o jurista se perca em análises
estranhas ao Direito.15 Sob o viés da Ciência da Administração, a descen-
tralização, num sentido material ou substancial, consiste numa técnica de
descongestionamento das funções, por meio da qual se repartem as funções
em centros autônomos.16 Nesse sentido, a descentralização não é um con-
ceito jurídico, mas próprio da Ciência da Administração.17 Há, porém, um
conceito jurídico de descentralização, formado pelos seguintes elementos:
1) personalidade jurídica; 2) exercício de atividades públicas; 3) ausência
de subordinação hierárquica.18 Quando se transfere uma atividade pública
a uma pessoa jurídica autônoma sem submetê-la a um controle hierárquico,
realiza-se juridicamente uma descentralização administrativa.

11
Sobre a histórica do federalismo brasileiro vide: SILVA, José Afonso da. O constitucionalismo bra-
sileiro: evolução institucional. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 269 et seq. A cópia do direito norte-­
americano é fenômeno próprio de uma cultura de colônia, magistralmente teorizada por MEMMI,
Albert. Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador. Tradução de Marcelo Jacques de
Moraes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
12
Sobre essa atribuição vide MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neocons-
titucional, op. cit., p. 87-92.
13
Sobre o caráter petrificado do federalismo brasileiro vide: MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de
direito administrativo neoconstitucional, op. cit., p. 415-421.
14
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias, op. cit., p. 49-85.
15
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias, op. cit., p. 60-63.
Em obra mais recente, o autor retoma o tema: Serviço público e concessão de serviço público. São
Paulo: Malheiros, 2017, p. 67.
16
Cf. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias, op. cit., p. 67-70.
17
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias, op. cit., p. 50.
18
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias, op. cit., p. 81-85.

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2.4 Espécies de descentralização


A doutrina diferencia três espécies de descentralização administra-
tiva: a) territorial ou geográfica; b) técnica ou funcional; c) por colaboração.
As duas primeiras são hipóteses de descentralização por pessoa pública, a
última descentralização por pessoa privada. Na descentralização territorial
ou geográfica o Estado transfere a determinada pessoa, caracterizada por
corresponder a uma região geográfica, a titularidade genérica de todo um
conjunto de atividades; na descentralização técnica ou funcional transfere
a titularidade de atividades específicas a uma pessoa jurídica não iden-
tificada por corresponder a uma delimitação geográfica, mas sim pelas
funções ou atividades desempenhadas.19 Na descentralização por colabo-
ração o Estado transfere a prestação de uma atividade pública, seja uma
função pública, seja uma atividade material, aos particulares.20

2.4.1 Descentralização geográfica ou territorial


As três espécies foram expressamente acolhidas pelo texto origi-
nário da Constituição de 1988. Em relação à descentralização geográfica ou
territorial, por um lado a Constituição extinguiu os três Territórios Federais
então existentes, por outro permitiu a criação de novos Territórios. No
art. 14 do ADCT a CF/88 transformou os Territórios de Roraima e do
Amapá em Estados; no art. 15 do ADCT a CF/88 extinguiu o Território
de Fernando de Noronha, incorporando-o ao Estado de Pernambuco.21 A
Constituição não apenas previu os Territórios no §2º do art. 18 e no art. 33,
mas se lembrou deles em dezenas de dispositivos. Apesar da nítida vontade
constituinte de que fossem criados Territórios, até a data da elaboração

19
Cf. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias, op. cit., p. 85-92;
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2017, p. 56-58; FREIRE, André Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos
por pessoas privadas, op. cit., p. 187-189. Concorda-se com André Freire quando este rejeita a
denominação descentralização por serviços como sinônima de descentralização técnica ou funcional
(Idem, p. 188, rodapé 150). A denominação é própria de um momento histórico em que quase todas
as atividades estatais eram chamadas de “serviços públicos”. Sobre esse momento, vide: MARTINS,
Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal, op. cit., p. 146-147 e
164-171. Quando se adotar um conceito técnico de serviço público (Idem, p. 200-212), a expressão
torna-se descabida.
20
Cf. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias, op. cit., p.
92-99; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública, op. cit., p. 58-62; FREIRE,
André Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos por pessoas privadas, op.
cit., p. 189-190.
21
O Território de Rondônia foi transformado em Estado antes da CF/88, pela Lei Complementar n. 41,
de 22.12.1981.

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deste estudo nenhum foi criado. Territórios Federais configuram indiscu-


tível descentralização territorial ou geográfica: pessoas jurídicas de direito
público, verdadeiras autarquias.22 Nesse tema, a vontade constituinte foi
frustrada: nem a lei complementar prevista no §2º do art. 18 foi editada.

2.4.2 Descentralização técnica ou funcional


A descentralização técnica ou funcional também aparece no texto ori-
ginário da Constituição de 1988. Não apenas no caput do art. 37, mas
em dezenas de dispositivos, a Constituição faz referência à “administração
indireta”. Em outubro de 1988 era amplamente majoritária a orientação
doutrinária de que a Administração indireta era integrada pelas autar-
quias, fundações e empresas estatais – sociedades de economia mista e
empresas públicas. Parcela da doutrina exclui da descentralização técnica
ou funcional as empresas estatais exploradoras de atividade econômica,
sob o argumento de que a atividade econômica não é própria do Estado, é
uma atividade privada exercida pelo Estado.23 A exclusão é equivocada:24
quando o Estado explora atividade econômica não desempenha uma ati-
vidade privada, regida pelo Direito privado, mas uma atividade pública,
regida, em grande medida, pelo Direito público.25 A CF/88, além de prever
a criação de autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista
e empresas públicas (art. 37, XIX), estabeleceu uma série de regras para a

22
Cf. TEMER, Michel. Território federal nas Constituições brasileiras. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1975, p. 58-63. Trata-se de tese de doutorado orientada por Celso Antônio Bandeira de Mello e
defendida na PUC-SP em 1974. Como o autor foi deputado constituinte em 1988, talvez esteja aí
um dos motivos da obsessão constituinte em lembrá-los (aparecem em mais de quarenta dispositi-
vos constitucionais).
23
Foi o que sustentou Celso Antônio Bandeira de Mello: “Se a atividade ou serviço não se qualifica
como administrativa, não há descentralização administrativa. Outrossim, como só tem sentido o
falar-se em descentralização quando o objeto a ser descentralizado compete ao centro, só em face
de atividades públicas e administrativas, que são inerentes ao Estado, é que se coloca o problema.
Logo, é despropositado cogitar de descentralização administrativa quando se tratar de atividade
de direito privado – ainda que desempenhada por uma pessoa governamental” (Prestação pública
e administração indireta. 2. ed., 3. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 11). A posição foi
acolhida por DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública, op. cit., p. 55-56;
FREIRE, André Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos por pessoas pri-
vadas, op. cit., p. 183 e 195-196.
24
Essa parece ser a posição atual de BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito adminis-
trativo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 143 e 153-154.
25
Sobre a incompatibilidade de atuação estatal com o regime privado vide: MARTINS, Ricardo Marcondes.
Princípio da liberdade das formas no Direito Administrativo. In: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio et
al. Direito administrativo e liberdade. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 641-687. Sobre a exploração de
atividade econômica pelo Estado vide: MARTINS, Ricardo Marcondes. Estatuto das empresas estatais à
luz da Constituição Federal. In: DAL POZZO, Augusto Neves; MARTINS, Ricardo Marcondes (Coord.). São
Paulo: Contracorrente, 2018, p. 74 et seq.

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“administração autárquica e fundacional” e para as “empresas públicas e


sociedades de economia mista”.

2.4.3 Descentralização por colaboração


Por fim, a descentralização por colaboração também está presente no
texto originário. O art. 175 prevê expressamente a prestação indireta de ser-
viços públicos por concessão ou permissão (descentralização de atividades
públicas) e o art. 236 prevê que os serviços notariais e de registro serão
exercidos em caráter privado (descentralização de função pública). O cons-
tituinte foi técnico: função pública é transferida por delegação; serviço
público, por concessão e permissão.26 A diferença tem efeitos dogmáticos:
como regra, a função pública é indelegável, sendo a delegação possível
quando houver expressa autorização constitucional; ao revés, os serviços
públicos são passíveis de outorga, salvo quando o contrário decorrer do
texto constitucional.27
Se, por um lado, a vontade constitucional de criação de Territórios
não foi realizada, por outro as descentralizações funcionais e por colabora-
ção foram deturpadas ao extremo. Antes de examinar essas deturpações,
faz-se necessário examinar o suposto novo conceito de descentralização.

3 “Novo” conceito de descentralização


Alfredo Gallego Anabitarte, catedrático de Direito Administrativo
da Universidade Autônoma de Madri, falecido em 10.02.2017, afirmava
que, apesar de o conceito de descentralização ser identificado usualmente
com a transferência de competências entre pessoas jurídicas, a identifi-
cação é incorreta.28 Para ele a diferenciação entre a descentralização e a
centralização deveria fundamentar-se exclusivamente no grau de depen-
dência ou independência ou, noutras palavras, no tipo de tutela que se
estabelece entre os centros competentes para decidir: se a tutela é orgânica

26
Sobre a distinção entre atividade material e função pública vide MARTINS, Ricardo Marcondes.
Regulação administrativa à luz da Constituição Federal, op. cit., p. 201-203.
27
MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal, op. cit.,
p. 201-203. O emprego constitucional do termo “delegação” para se referir à investidura no
desempenho de atividade jurídica foi observado por BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de
direito administrativo, op. cit., p. 734-735, rodapé 8. Hely Lopes Meirelles, antes de 1988, distinguia
o serviço delegado do serviço outorgado pelo tipo de descentralização: técnica ou funcional, no
primeiro caso; por colaboração, no segundo (Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1981, p. 316). A distinção não foi acolhida pela Constituição de 1988.
28
GALLEGO ANABITARTE, Alfredo. Conceptos y principios fundamentales del derecho de organización.
Madrid: Marcial Pons, 2001, p. 70.

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ou hierárquica há centralização, se a tutela é de legalidade e/ou material


ou de oportunidade há descentralização. Seria possível, então, a transfe-
rência de competências de uma pessoa jurídica a outra sem caracterizar a
descentralização: a pessoa jurídica receptora ficaria sujeita à tutela plena,
configurando uma “descentralização instrumental”, em que a perso-
nificação é puramente instrumental. Por outro lado, pode ocorrer uma
verdadeira descentralização entre um sujeito e um centro de competência
despersonalizado: o órgão exerce suas competências com plena indepen-
dência, caso dos chamados “órgãos independentes”.29
Esse “novo” conceito de descentralização foi acolhido, na doutrina
brasileira, por Alexandre Santos de Aragão, em trabalho apresentado e
aprovado no XXVI Congresso Nacional dos Procuradores do Estado, reali-
zado de 15 a 19 de outubro de 2000, no Estado de Goiás.30 Nele, o Professor
Titular de Direito Administrativo da UERJ defendeu o conceito material de
descentralização, segundo o qual a nota fundamental para sua ocorrência
é a não vinculação hierárquica, vale dizer, a outorga de “prerrogativas e
garantias suficientes ao desempenho autônomo de funções destacadas do
poder central”.31
A pergunta que se faz neste estudo é: esse é um conceito realmente
novo de descentralização? Como já afirmado, Celso Antônio Bandeira
de Mello, em sua tese de livre-docência, defendida em 1968 na PUC-SP,
tratou do conceito substancial de descentralização. Observou que não se
trata de um conceito jurídico, mas de um conceito próprio da Ciência da
Administração,32 e que aos juristas não interessa o conceito material, ape-
nas o conceito jurídico. Juridicamente, observou o ínclito professor, “sem
personalidade, não há titularidade de direitos”; logo, em face do direito,
“a independência ou liberdade administrativa, em que se consubstancia
a descentralização, só é possível escorada em um pressuposto: a perso-
nalidade jurídica”.33 O conceito material de descentralização é, portanto,
irrelevante para o Direito.

29
GALLEGO ANABITARTE, Alfredo. Conceptos y principios fundamentales del derecho de organización,
op. cit., p. 71.
30
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Descentralização administrativa: sua evolução face às reformas à Cons-
tituição de 1988. Revista de Direito Administrativo & Constitucional – A&C, Belo Horizonte, ano 3,
n. 11, jan.-mar. 2003, p. 117-145.
31
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Descentralização administrativa: sua evolução face às reformas à Cons-
tituição de 1988, op. cit., p. 125.
32
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias, op. cit., p.70-71.
33
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias, op. cit., p. 71.

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3.1 Descentralização de órgãos


Diante disso, examinam-se as duas situações propostas por
Anabitarte e Aragão: “órgãos independentes” e “pessoas sem autono-
mia”. Certos órgãos administrativos estão, de fato, alheios à estrutura
hierárquica. Deve-se, porém, fazer uma ressalva. De fato, há uma relativa
incompatibilidade entre a hierarquia e a competência técnica: órgãos que
exercem atividade técnico-científica não são hierarquicamente vinculados,
em relação às respectivas atividades técnico-científicas, aos órgãos não
especializados. Isso não significa que em relação a eles não haja hierarquia:
em tudo que se refere aos aspectos alheios à atividade técnico-científica, são
subordinados aos órgãos não especializados; no que se refere às atividades
técnico-científicas, a hierarquia dá-se apenas em relação aos órgãos espe-
cializados.34 Logo, a relativa independência dos órgãos técnicos em relação
aos órgãos não especializados não tem o condão de descentralizá-los.
Feita essa ressalva, retoma-se: de fato, certos órgãos estão, juridicamente,
alheios à hierarquia. Não é correto afirmar que existe vínculo hierárquico
entre o Ministério Público Estadual e o Governo do Estado, ou entre o
Tribunal de Contas da União e o Congresso Nacional. São órgão, de certa
forma, independentes. Há que se observar, porém, que essa “independên-
cia” é atribuída por regra constitucional originária. Deveras: é a própria
Constituição da República que os exclui da vinculação hierárquica.
Pode a norma infraconstitucional desvincular um órgão da linha
hierárquica, atribuindo-lhe autonomia ou independência? Evidente que
não. Desvincular um feixe de competências da linha hierárquica sem
atribuir-lhe personalidade jurídica consiste numa deturpação. Só o poder
constituinte pode fazê-lo. Há exigências constitucionais para criação de
um ente público (autarquias, fundações, empresas estatais): não basta a
vontade do Legislador (exigida no inciso XIX do art. 37 da CF/88), faz-se
necessária uma autonomia de gestão, de pessoal, de recursos e, também,
de responsabilidade. São subtraídos do vínculo hierárquico exatamente
pelo fato de possuírem personalidade jurídica própria. Respondem, por
exemplo, diretamente pelos danos causados. Quando não se atribui per-
sonalidade jurídica, a responsabilidade não é do órgão, mas da pessoa
jurídica a que pertence. Subtraí-lo do vínculo hierárquico sem atribuir-lhe
responsabilidade própria é uma fraude à estruturação da Administração
Pública estabelecida na Constituição de 1988 e à direção superior da

34
Por todos: OTERO, Paulo. Conceito e fundamento da hierarquia administrativo. Coimbra: Coimbra
Editora, 1992, p. 257-259.

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Administração pela Chefia do Executivo. Em suma: só norma constitu-


cional originária pode desvincular um órgão da hierarquia. Por mais que
atribua autonomia decisória a um órgão, a lei não terá o condão de des-
centralizá-lo.

3.2 Desconcentração de pessoas


Ante o exposto, o Legislador não tem como atribuir autonomia a
órgãos públicos sem violar a Constituição. Dito isso, passa-se à segunda
questão: pode criar ou autorizar a criação de entes públicos desprovidos de
autonomia? São muito comuns no direito deturpações conceituais delibera-
das. Todo conceito jurídico-positivo tem a função de sintetizar um regime
jurídico específico. É comum utilizar um conceito “A”, que se reporta um
regime jurídico “X”, para uma situação incompatível com esse regime,
apta a ser regida apenas pelo regime jurídico “Y”, que, por sua vez, é
identificado pelo conceito “B”. Trata-se das chamadas contrafações adminis-
trativas.35 É exatamente o que ocorre nesse caso: quando se cria uma pessoa
jurídica sem atribuir-lhe autonomia, ocorre, na verdade, uma contrafação
de órgão público, um órgão público disfarçado de pessoa jurídica. Por que
o Legislador estabelece esse disfarce? Evidencia-se o intuito de fugir do
controle hierárquico. Trata-se de uma evidente fraude, a ser combatida
pela comunidade jurídica. Em suma: entes administrativos desprovidos de
autonomia são contrafações de órgãos públicos.
Fixada a impertinência jurídica do conceito de descentralização
material, bem como a invalidade da descentralização de órgãos e da
desconcentração de pessoas, torna-se, finalmente, possível examinar as
deturpações que a descentralização administrativa sofrera nos últimos
trinta anos. Dividir-se-á a análise em dois grupos: primeiro; serão exami-
nadas as deturpações da descentralização funcional ou técnica; depois, as
deturpações da descentralização por colaboração.

4 Deturpação da descentralização funcional ou técnica


A descentralização funcional ou técnica foi deturpada nos últimos
anos de três maneiras: a) pela criação de agências reguladoras e agências
executivas; b) pela criação de consórcios públicos; c) pela outorga de con-
cessão de serviço público a empresas estatais. Passa-se a um breve exame
das três situações.

35
Sobre elas, vide: MARTINS, Ricardo Marcondes. Contrafações administrativas. In: MARIANO, Cynara
Monteiro et al. (Coord.). Estado, política e direito administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017,
p. 291-328.

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4.1 Agências reguladoras


Duas Emendas Constitucionais serviram de fundamento à criação
de agências reguladoras no Brasil: a EC nº 08/95 alterou o inciso XI do
art. 21 para prever a criação de um “órgão regulador” da prestação dos
serviços de telecomunicações; a EC nº 9/95 alterou o §2º do art. 177 para
prever a criação de um “órgão regulador” do monopólio referente ao
petróleo e ao gás natural. O reformador, em nenhum momento, referiu-se
às agências; o texto reformado, enfatiza-se, refere-se a “órgão regulador”.
Apesar disso, várias foram criadas. A título de exemplo, no âmbito fede-
ral destacam-se: 1) Aneel (Lei 9.427/96); 2) Anatel (Lei 9.472/97); 3) ANP
(Lei 9.478/97); 4) Anvisa (Lei 9.782/99 alterada pela Medida Provisória
2.190-34/2001); 5) ANS (Lei 9.961/00); 6) ANA (Lei 9.984/00); 7) ANTT e
ANTAQ (Lei 10.233/01); 8) ANAC (Lei 11.182/05); 9) ANCINE (Medida
Provisória 2.228-1/01). Mais recentemente, foi criada a Abram – Agência
Brasileira de Museus (Medida Provisória 850/2018). A discriminação evi-
dencia a criação de agências para as mais diversas atividades públicas:
a) controle de prestadores de serviço público; b) controle de exploradores
de monopólio; c) exercício de poder de polícia; d) realização de fomento;
e) gestão de bens públicos.36
É de evidência solar que o modelo das agências, por exemplo,
do direito norte-americano é incompatível, em grande medida, com a
Constituição brasileira vigente. Por isso, a importação do modelo, pura e
simples, é absolutamente descabida.37 Indaga-se, então, o que em termos
jurídicos caracteriza as agências reguladoras no Direito brasileiro. A res-
posta foi dada, de modo bastante claro, por Celso Antônio Bandeira de
Mello: as Agências Reguladoras, no Brasil, não passam de autarquias, com
a única especificidade de que seus dirigentes são investidos em mandatos,
não sendo, portanto, passíveis de exoneração ad nutum.38
Qual era o móvel do Legislador ao instituí-las? As fontes doutri-
nárias indicam que se pretendeu a imunização à influência política.39

36
Cf. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 174-175.
37
Por todos, vide, nesse sentido: JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras indepen-
dentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 286 et seq.
38
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 178.
39
No Direito português, afirma Vital Moreira e Fernanda Maças sobre as autoridades administrativas
independentes (AAI): “O objetivo da criação das AAI é, por conseguinte, o de garantir a neutralidade
política da gestão administrativa que desempenham, assegurando que o sector sobre o qual actuam
se desenvolva de acordo com as suas próprias regras, as regras e os critérios técnicos do setor em
causa” (Autoridades reguladoras independentes: estudo e projecto de lei-quadro. Coimbra: Coimbra
Editora, 2003, p. 29-30). Na doutrina brasileira, no mesmo sentido: MARQUES NETO, Floriano de
Azevedo. Agências reguladoras independentes: fundamentos e seu regime jurídico. 1. ed., 1. reimr.
Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 50-51 e 67-68.

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Era necessário, diziam muitos, que esses entes públicos possuíssem inde-
pendência do Poder Executivo, para “regular” o setor sem interferência
política. Coerentemente com esse propósito, muitas das leis que criaram
as agências não previram recurso hierárquico impróprio (a título de exem-
plo: Lei 9.472/97, art. 19, XXV). A pergunta é: pode o Poder Legislador
empreender uma descentralização imune ao controle administrativo?
Evidente que não. Tanto a hierarquia, a que se submetem os órgãos
desconcentrados, como a tutela, a que se submetem os entes descentra-
lizados, fundamentam-se na democracia.40 De fato: a direção superior da
Administração é atribuída, no inciso II do art. 84 da CF/88, ao Chefe do
Executivo, autoridade eleita pelo povo. Perceba-se: cabe ao Governo, che-
fiado pela autoridade eleita, ditar os rumos da Administração.
A forma como os Poderes foram estruturados pelo texto originário
da CF/88 está, em linhas gerais, petrificada, pois a separação dos Poderes é
cláusula pétrea. Ora, imunizar um ente público da tutela viola a democra-
cia e a separação dos Poderes. Só o constituinte originário poderia fazê-lo.
Assim, ainda que a literalidade da lei indique o contrário, sempre é possí-
vel o chamado controle extraordinário.41 O móvel do agente normativo, no
caso, é irrelevante. Os próprios economistas, num primeiro momento, e os
juristas, posteriormente, reconheceram que essa imunização ao controle
administrativo nem sempre gera bons frutos. É bastante comum que as
Agências sejam capturadas pelos regulados e, ao invés de atuarem em prol
do interesse público, passem a atuar em prol de seus interesses.42
Olhando para trás, a instituição das Agências Reguladoras no Brasil
seguiu um plano muito bem orquestrado. Fernando Henrique Cardoso
exerceu a Presidência da República de 1995 a 1998. Conseguiu a apro-
vação da EC nº 16/95 e possibilitou, com a nova redação dada ao §2º do
art. 14 da CF/88, a reeleição para um único período subsequente, que era

40
Como bem explica José María Rodríguez de Santiago: “Desde a perspectiva del principio democrático,
la legitimidad democrática de la actuación administrativa suele explicarse a través de una línea
directiva que va de arriba (órganos del ejecutivo con mayor legitimidad democrática: gobierno-
ministros o consejeros, etc.) hacia abajo (terminando en la burocracia funcionarial). La fijación
de criterios de actuación por parte de los órganos administrativos superiores es una de las vías
tradicionalmente utilizadas para conectar con el principio democrático la actuación administrativa”
(Metodología del derecho administrativo. Madrid: Marcial Pons, 2016, p. 115-116).
41
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria geral da interpretação jurídica: considerações críticas à
obra de Black. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura (RDAI). São Paulo, ano 1, v. 3,
p. 299-331, out.-dez. 2017, p. 317-318. O chamado “controle extraordinário” é o controle não
previsto em lei. Por todos: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, op.
cit., p. 168.
42
Sobre a teoria da captura vide MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da
Constituição Federal, op. cit., p. 98-99. Para um aprofundamento: BAGATIN, Andreia Cristina. Cap-
tura das agências reguladoras independentes. São Paulo: Saraiva, 2013.

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vedada no texto originário. Foi, então, reeleito para o mandato de 1999


a 2002. A reforma não possibilitou uma terceira reeleição. O Presidente,
então, propôs uma ampla descentralização, com a criação de uma série
de agências cujos dirigentes seriam nomeados para um mandato fixo, o
que acabou retirando do próximo Presidente da República a prerroga-
tiva de nomear os postos-chave da Administração Pública. Configurou-se,
indiretamente, uma fraude à soberania popular. Foi o que percebeu Celso
Antônio Bandeira de Mello e, numa interpretação conforme à Constituição,
com pena de ouro, assentou: “a garantia do mandato dos dirigentes des-
sas entidades só opera dentro do período governamental em que foram
nomeados”.43 Estender essa garantia para além do mandato do nomeante
importa em “fraude contra o povo”. Por evidente, o próximo Chefe do
Executivo pode optar por mantê-los no cargo, mas a decisão de substituí-los
é uma prerrogativa inerente ao mandato que o povo lhe concedeu.

4.2 Agências executivas


O fundamento constitucional das Agências executivas foi a alteração
do §8º do art. 37 pela EC n. 19/98, segundo o qual a autonomia geren-
cial, orçamentária e financeira de “órgãos” e “entidades” da Administração
direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato que tenha por
objeto a fixação de metas de desempenho. O dispositivo exige a edição de
uma lei que disponha sobre: o prazo de duração, os controles e critérios
de avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidades e
a remuneração de pessoal. Para as autarquias e fundações públicas, vigo-
ram os arts. 51 e 52 da Lei Federal 9.649/98, segundo os quais o Poder
Executivo pode qualificá-las como Agências Executivas desde que tenham
um plano estratégico de reestruturação e desenvolvimento institucional
em andamento e celebrem contrato de gestão com o respectivo Ministério
supervisor. Há na doutrina duas correntes: a minoritária entende que

43
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 180. O STF considerou
constitucional a criação de Agências Reguladoras, tendo em vista a regra da letra “f” o inciso III do
art. 52 da CF/88 que permite à lei condicionar a nomeação de cargos à aprovação do Senado Federal.
Destacam-se dois julgados: ADI 1668 MC, Relator(a) Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado
em 20/08/1998; ADI 1949, Relator(a) Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2014. No
primeiro, a Corte examinou a Lei da ANATEL e proferiu acórdão de lamentável técnica: praticamente
não possui ementa, o que dificulta bastante a compreensão do entendimento da Corte.
Alexandre Mazza defende – por analogia ao art. 12 da Lei 9.782/99, 9º da Lei 9.861/00 e 10 da Lei
9984/00, que preveem a possibilidade de exoneração imotivada do dirigente nos quatro primeiros
meses de seu mandato –, o limite temporal de quatro meses, contados do início do mandato,
para que o novo Chefe do Executivo delibere por manter ou exonerar os dirigentes nomeados no
Governo anterior (Agências reguladoras. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 168).

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esses contratos podem ser celebrados mesmo na falta da lei reguladora


do contrato de gestão;44 a majoritária considera impossível sua celebração
enquanto não editada a referida lei.45
A pergunta que se impõe é: pode a Administração direta aumentar a
autonomia da Administração indireta por meio de um contrato? A resposta
é negativa, por três razões, segundo a precisa doutrina de Celso Antônio
Bandeira de Mello: a) não é possível modificar disposições de lei por meio
de contrato administrativo; b) não pode a Administração renunciar ao
exercício de suas competências e não realizar o interesse público; c) se a
Administração possui dois caminhos para realizar o interesse público, não
pode optar pelo mais dificultoso.46 Assim, sem lei disciplinadora os “con-
tratos de gestão” não podem ser celebrados. É possível que esse instituto
seja salutar em outras culturas. No Brasil, histórica e culturalmente mar-
cado pelo clientelismo e pelo patrimonialismo, a permissão para aumentar
a autonomia por meio de contrato, dada a agentes públicos, é de duvidosa
constitucionalidade, mesmo considerando a reforma empreendida pela
EC 19/98.
Seja porque não é possível alterar o controle previsto em lei por con-
trato administrativo, seja porque não é possível celebrar contrato de gestão
em decorrência da falta de norma reguladora, do ponto de vista jurídico a
“qualificação de agência executiva” para ampliar autonomia de entes des-
centralizados é, na feliz expressão de Bandeira de Mello, “um conjunto de
expressões sonoras, retumbantes e vazias”, “um nada perante o Direito”.47
A Lei 9.648/98 alterou a Lei Geral de Licitações (Lei 8.666/93, art. 24,
§1º, atualmente com a redação dada pela Lei 12.715/12), para elevar os
percentuais de dispensa de licitação de 10% para 20% quando se tratar de
consórcios públicos, empresas estatais ou agências executivas. A qualifica-
ção de agência executiva, pelos motivos expostos, é inválida, e, por isso,
não pode gerar o efeito de duplicar o limite para dispensa de licitação.48

44
É a posição, por todos, de: ARAGÃO, Alexandre Santos de. Descentralização administrativa, op. cit.,
p. 138.
45
É a posição de BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 238;
OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Contrato de gestão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 188-191.
46
Cf. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 234-237;
MARTINS, Ricardo Marcondes. Princípio da liberdade das formas no Direito Administrativo, op. cit.,
p. 641-687.
47
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 186.
48
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 238. Mesmo se
fosse válida a qualificação, a duplicação dos limites de dispensa seria inconstitucional, pois não pode
o Legislador dispensar arbitrariamente a realização do certame. Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes.
Estudos de direito administrativo neoconstitucional, op. cit., p. 352-359.

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4.3 Consórcios públicos


Conforme dantes afirmado, a Constituição de 1988 intensificou o
peso do princípio federativo no ordenamento brasileiro: atribuiu autono-
mia federativa aos Municípios (art. 18) e petrificou a forma federativa (art.
60, §4º, I). Também já se afirmou neste estudo que o Estado brasileiro é
sociologicamente um Estado unitário, o que gera problemas jurídicos. O
fato se agrava em decorrência de dois fatores: a) a Constituição atribuiu
muitas competências materiais aos Municípios – dentre elas, é competên-
cia privativa dos Municípios todos os assuntos de interesse local49 – e foi
tímida na atribuição de receitas; b) criaram-se muitos Municípios no Brasil
sem que tivessem a mínima condição econômica de subsistência.50 Qual
seria a solução jurídica correta? A resposta é óbvia: extinguir os Municípios
cuja existência é inválida.51 Qual foi a saída proposta pelo Reformador?
Permitir que as entidades federativas que não conseguem cumprir sua
missão constitucional transfiram suas atribuições a outras entidades. Com
efeito: a EC n. 19/98 alterou o art. 241 para permitir que as entidades
federativas, por meio de “consórcios públicos” e “convênios de coopera-
ção” realizem a “gestão associada de serviços públicos”. Para regular esse
dispositivo foi editada a Lei Federal 11.107/05, conhecida como “Lei dos
Consórcios Públicos”.
A Lei 11.107/05 disciplina uma espécie de descentralização: a cria-
ção de uma nova pessoa jurídica pela realização de um consórcio público
entre duas ou mais entidades federativas. Prevê que o Consórcio pode ter
natureza autárquica, caso em que o Legislador o denominou de “associação
pública”, ou natureza de “pessoa jurídica de direito privado” (art. 1º, §1º).
A pessoa jurídica constituída pelo consórcio integrará a Administração
indireta de cada uma das entidades federativas que o compõem. A litera-
lidade da lei indica que isso só ocorre em relação às associações públicas,
o que levou parcela da doutrina à absurda conclusão de que os Consórcios

49
Sobre o tema vide: MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constitui-
ção Federal, op. cit., p. 213-214. O “interesse local”, critério previsto nos incisos I e V do art. 30
da CF/88, tem, segundo doutrina pacífica, a mesma amplitude de “peculiar interesse”, critério
consagrado nas Constituições anteriores. Segundo a tese consagrada por Sampaio Dória, inexiste
interesse exclusivamente local, o interesse local é caracterizado por ser “predominantemente” local
(Autonomia dos Municípios. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 24,
1928, p. 419-432).
50
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informa que atualmente o Brasil possui 5.570
Municípios. Sobre os dados, consulte: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/panorama. Acesso em: 29
set. 2018.
51
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neoconstitucional, op. cit.,
p. 442-444.

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com personalidade de direito privado não integrariam a Administração


Indireta.52 Para repassar recursos financeiros ao consórcio, as entidades
devem formalizar um “contrato de rateio” (art. 8º); para transferir serviços
públicos; devem formalizar um “contrato de programa” (art. 13). A pro-
posta gera vários problemas constitucionais.
O que caracteriza a forma federativa petrificada pela CF/88 não é a
concebida originariamente pelos norte-americanos, mas a consagrada pelo
texto originário da Constituição brasileira.53 É pacífico na doutrina que os
contornos da forma federativa são fixados pela divisão de competências
estabelecida no texto constitucional.54 Logo, a alteração da divisão de com-
petências originariamente estabelecida é admitida com absoluta reserva,
pois, insiste-se, a forma federativa foi petrificada. Pode o Reformador da
Constituição e o Legislador infraconstitucional autorizar que as competên-
cias privativas sejam transferidas por mero acordo político? É evidente que
não. Em relação às competências privativas, a celebração de consórcios só
é válida se realizada para suprir uma dificuldade temporária da entidade
em cumprir sua missão constitucional.55
O Decreto 6.017/07 previu a celebração de consórcios públicos para
realização de várias competências comuns (art. 3º). Em relação a elas,
a celebração de consórcios não é restringida pela petrificação da forma
federativa. Tornou-se comum a não celebração de um consórcio, nos ter-
mos estabelecidos pela Lei 11.107/05 – com aprovação do protocolo de
intenções, dentre outras exigências, pelo Parlamento de cada consorciado
(art. 5º) –, mas a celebração de um convênio. Argumenta-se que a própria
Constituição prevê a celebração de consórcios ou convênios. Nada mais
equivocado: conforme antiga regra de hermenêutica, quando o Direito
impõe um meio de realização do poder, excluem-se os outros meios.56

52
Reza o §1º do art. 6º da Lei 11.107/05: “O consórcio público com personalidade de direito público
integra a administração indireta de todos os entes da Federação consorciados”. A contrario sensu,
segundo alguns, o consórcio com personalidade de direito privado não integraria a Administração
indireta. É a posição, por todos, de: HARGER, Marcelo. Consórcios públicos na Lei 11.107/05. Belo
Horizonte: Fórum, 2007, p. 95-96. Sem desprestigiá-lo, a conclusão é absurda porque manifesta-
mente inconstitucional. A Constituição divide a Administração Pública em Direta e Indireta, não
admitindo entes públicos fora da Administração. Por todos: CARVALHO FILHO, José dos Santos.
Consórcios públicos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 39-40.
53
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neoconstitucional, op. cit.,
p. 418-419.
54
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neoconstitucional, op. cit.,
p. 418-419.
55
Trata-se de uma aplicação da teoria da troca de sujeito. Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos
de direito administrativo neoconstitucional, op. cit., p. 435-439.
56
Cf. BLACK, Henry Campbell. Construção das Constituições. Revista de Direito Administrativo e Infraes-
trutura – RDAI, São Paulo, n. 05, ano 2, p. 305-329, abr.-jun. 2018, p. 317.

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Se a Lei exige o cumprimento pelos entes federativos de uma série de


exigências para a gestão associada de suas competências, descabe fugir
delas mediante a troca de nome: “consórcio” por “convênio”. Os convênios
celebrados após a Lei 11.107/05 entre entidades federativas configuram
contrafações de consórcios públicos, inválidos por descumprimento das exi-
gências legais para sua celebração.
Por fim, faz-se uma breve observação sobre os consórcios que consti-
tuem “pessoas jurídicas de direito privado”. Pode o Legislador estabelecer
que o Estado comportar-se-á como um particular e terá sua atuação regida
pela autonomia da vontade? Os conceitos de “Estado”, de “interesse
público” e de “República” impedem a imputação arbitrária do Direito
privado à Administração Pública. Para o Estado criar uma entidade e sub-
metê-la a regras de Direito privado exige-se um fundamento racional.57
Em relação à exploração de atividade econômica esse fundamento existe: a
exploração estatal, como regra, não afasta a exploração privada, dá-se em
concorrência com ela; para que a concorrência não seja desleal, impõe-se
o parcial afastamento das regras de Direito público.58 A falta de funda-
mento racional para a submissão às regras privadas configura fuga para
o Direito privado, atentatória da Constituição.59 É o que basta para dizer:
Consórcios públicos com personalidade de direito privado são ilícitos ou,
nas incisivas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, configuram
“autêntica aberração”.60

4.4 Concessões impróprias


Por força do art. 175 da CF/88 a prestação dos serviços públicos
pode dar-se de forma direta ou indireta, sendo, no segundo caso, por con-
cessão ou permissão e sempre por licitação. Tornou-se comum no Brasil
a outorga de concessão de serviço público à empresa estatal, numa estra-
nha associação entre a descentralização funcional e a descentralização por
colaboração. A deturpação, de tão acentuada, é difícil de ser destrinchada.
O primeiro passo é distinguir duas situações: 1) concessão de um serviço
público para uma empresa estatal da entidade federativa titular do serviço;

57
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Estatuto das empresas estatais à luz da Constituição Federal, op.
cit., p. 53 et seq.
58
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Estatuto das empresas estatais à luz da Constituição Federal, op.
cit., p. 75.
59
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Estatuto das empresas estatais à luz da Constituição Federal, op.
cit., p. 60-63.
60
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 692.

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e 2) concessão de um serviço público para uma empresa estatal de entidade


federativa diversa da titular do serviço.
Antes de 1988, tornou-se corrente no Brasil a criação de empre-
sas estatais para prestar serviços públicos, realizar obras públicas e exercer
função pública. Contudo, tanto os textos constitucionais anteriores, como
o Decreto-lei 200/67, só previam a criação de empresas estatais – socieda-
des de economia mista e empresas públicas – para exploração de atividade
econômica. Nos termos há pouco explicados, a submissão de entidades
públicas às regras privadas, quando não se trata de exploração de ativi-
dade econômica, é racionalmente insustentável e, por isso, configura fuga,
inválida, para o direito privado. O texto da CF/88 é coerente com esse
entendimento: as empresas estatais são tratadas no art. 173, dispositivo
que rege a exploração de atividade econômica pelo Estado. Por isso, em
que pese terem sido criadas dezenas, senão centenas, de empresas esta-
tais para prestação de serviços públicos, com a conivência de boa parte
da doutrina,61 a criação é ilícita. Essas empresas são contrafações de autar-
quias.62 Em suma: não é válida a descentralização técnica ou funcional de
atividades administrativas diversas da exploração da atividade econômica
pela criação de empresas estatais.
Faz-se uma importante ressalva. Lamentavelmente, o texto consti-
tucional originário indicou o contrário em dois dispositivos: o inciso XI
do art. 21 previu a outorga de serviços de telecomunicações à “empresa
sob controle acionário estatal”; o art. 25 previu a outorga de serviço de gás
canalizado à “empresa estatal”. Nesses dois casos, por expressa disposição
constitucional, foram convalidadas as outorgas inválidas então existentes e
permitidas novas outorgas. As Emendas 05/95 e 08/95, respectivamente, ao
alterar os dispositivos para permitir a privatização das respectivas presta-
ções, corrigiram a distorção. Apesar disso, a reforma não merece aplausos:
ao permitir a gestão privada, inclusive por empresas estrangeiras, de seto-
res estratégicos, enfraqueceu sensivelmente a soberania nacional.
Superado esse problema, ainda que se crie uma autarquia, não é
válido outorgar a ela a prestação de um serviço por concessão ou permis-
são. O regime jurídico da descentralização técnica é incompatível com o
regime da descentralização por colaboração. Se a concessionária é grave
inadimplente, a concessão deve ser extinta por caducidade; se a autarquia

61
Em sentido contrário ao equívoco generalizado manifesta-se MUKAI, Toshio. O Direito administrativo
e os regimes jurídicos das empresas estatais. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 266.
62
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Estatuto das empresas estatais à luz da Constituição Federal, op.
cit., p. 63 et seq.

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é grave inadimplente descabe a extinção da concessão, pois, pelo prin-


cípio do paralelismo das formas, só a lei pode extinguir a autarquia. Por
conseguinte, Marçal Justen Filho tem razão quando chama as concessões
outorgadas às empresas da entidade titular do serviço de “concessões
impróprias”;63 “impróprias” porque não se trata de concessão. O ínclito
administrativista classifica-as como espécies de “concessão-descentrali-
zação”; como a concessão é uma espécie de descentralização, prefere-se
chamá-las de “concessão-delegação”.
Em relação à utilização de empresas estatais para prestação de ser-
viços públicos, Maria Sylvia Zanella Di Pietro apresenta outro entrave
constitucional: o controle da Administração direta na descentralização por
colaboração é sensivelmente mais acentuado do que o controle na descen-
tralização funcional ou técnica.64 A CF/88 exigiu que os serviços públicos
sejam prestados diretamente ou por concessão ou por permissão. Noutras
palavras: caso se opte pela prestação indireta, deve-se sujeitar o presta-
dor ao controle próprio da descentralização por colaboração, controle esse
que só se configura se o prestador for empresa privada não integrante da
Administração Pública.
Passa-se, então, ao exame da segunda situação: outorga a pessoa jurí-
dica não integrante da entidade federativa titular do serviço. Nos termos já
examinados, é possível que uma entidade federativa ajude outra a realizar
sua missão constitucional, desde que essa ajuda seja temporária, provisó-
ria. Trata-se de algo inerente ao Federalismo cooperativo. Com absoluto
acerto, Marçal Justen Filho também chama as concessões, nesses casos, de
impróprias, na modalidade de concessão-convênio.65 Hoje, a forma jurídica
instituída para a colaboração federativa é o consórcio público, disciplinado
na Lei 11.107/05. Essas concessões são, pois, contrafações de consórcios
públicos.66

63
JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Atlas, 2003, p.
125; MARTINS, Ricardo Marcondes. Estatuto das empresas estatais à luz da Constituição Federal,
op. cit., p. 69-74. Sobre a invalidade das concessões impróprias vide: MARQUES NETO, Floriano de
Azevedo. Concessões. 1. reimpr. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 321-322; GUIMARÃES, Fernando
Vernalha. Concessão de serviço público. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 166-167. Como bem observa o
último autor, trata-se de uma “composição teratológica e circular do ponto de vista da organização
administrativa do serviço público” (Idem, p. 166).
64
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública, op. cit., p. 60 e 67-68. Sobre
o controle das concessionárias de serviço público vide: MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação
administrativa à luz da Constituição Federal, op. cit., p. 304-312.
65
JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público, op. cit., p. 125.
66
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Estatuto das empresas estatais à luz da Constituição Federal, op.
cit., p. 69-74.

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Parte da doutrina admite a utilização das concessões se a empresa


participar da licitação, vale dizer, se obtiver a outorga como exploradora
de atividade econômica.67 Discorda-se: primeiro, porque a empresa estatal
não é um empresário a mais no mercado, criada para perseguir o lucro; por
força do caput do art. 173 da CF/88 sua criação só é válida se fundamen-
tada no relevante interesse coletivo ou na segurança nacional;68 segundo,
uma entidade federativa não tem competência para realizar atividades no
território de outra, a não ser a título de colaboração federativa.69 Em suma:
a participação de empresas estatais em licitação para obter outorga de ser-
viços públicos é uma grave deturpação da razão de ser da empresa estatal
e de suas competências.

5 Deturpação da descentralização por colaboração


A descentralização por colaboração também foi bastante deturpada
nos últimos anos. Destacam-se duas deturpações: a) parcerias público-­
privadas; b) ajustes com o terceiro setor. Passa-se a um rápido exame de
ambas.

5.1 Parcerias público-privadas


Nos termos dantes afirmados a CF/88 estabelece, no art. 175, que
a prestação indireta de serviços públicos deve dar-se por concessão ou
permissão. As palavras são signos e, pois, significam algo; não são ruí-
dos abertos à atribuição de qualquer significado. Muitos esquecem que
quando o constituinte usa uma palavra no Texto constitucional, ele cons-
titucionaliza o significado com que a empregou. O que significava em
outubro de 1988 “concessão”? Era corrente na doutrina a diferença entre
contrato administrativo e concessão: ao contrário do que ocorre no con-
trato administrativo, a concessão estabelece uma relação autônoma entre
concessionário e usuário, pois a remuneração do concessionário decorre
da exploração do serviço, que, regra geral, dá-se com a cobrança de tarifas.
Nos contratos administrativos, não há relação autônoma entre contratante
e usuário, pois quem remunera o contratado é a própria administração.
Quer dizer: o núcleo essencial do conceito de concessão – e, também, de

67
Por todos: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Concessões, op. cit., p. 321-322.
68
Sobre o tema: MARTINS, Ricardo Marcondes. Estatuto das empresas estatais à luz da Constituição
Federal, op. cit., p. 24 a 36 e 74 a 95.
69
Cf. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 748, rodapé 23;
GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de serviço público, op. cit., p. 168.

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permissão – é que a remuneração do concessionário decorre da própria


exploração do serviço.70
Pretendeu-se, porém, em flagrante violação do princípio licitatório,
do princípio do controle parlamentar das despesas públicas, do controle
da direção superior da administração pelo Chefe do Executivo democrati-
camente eleito, celebrar contratos administrativos por até 35 anos. Como
é evidente que a pretensão viola o texto constitucional, utilizou-se de um
ardil: propôs-se a modificação do conceito de concessão. Segundo o novo
conceito, instituído pela Lei 11.079/04, a concessão não pressuporia mais
a remuneração pela exploração do serviço, o concessionário poderia ser
remunerado total – concessão administrativa – ou parcialmente — con-
cessão patrocinada – pela Administração Pública. Apesar de a maioria da
doutrina brasileira ter aplaudido o ardil, houve vozes dissonantes: parcerias
público-privadas não passam de contrafações de contratos administrativos,
aberrantemente inconstitucionais.71

5.2 Parcerias com o terceiro setor


Há um conjunto de atividades que a Constituição qualifica simul-
taneamente como serviços públicos, denominados doutrinariamente de
“serviços sociais”, e atividades econômicas: exige que o Estado preste e
possibilita que os particulares explorem.72 Como a atividade econômica é
livre, nada impede que os particulares as explorem por benemerência. A
exploração privada dessas atividades sem intuito lucrativo foi doutrinaria-
mente chamada de “terceiro setor”.73 Do ponto de vista jurídico, quando

70
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal, op. cit.,
p. 221 a 224.
71
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Conceito de parceria público-privada à luz da Constituição.
Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura (RDAI). São Paulo, ano 2, v. 5, p. 23-47, abr.-jun.
2018. Celso Antônio Bandeira de Mello faz uma clara comparação: assim como não basta chamar
uma cadeira de alto-falante para poder irradiar sons por meio dela, não basta chamar de concessão
um contrato para transformá-lo em concessão (Curso de direito administrativo, op. cit., p. 805).
Fernando Vernalha Guimarães argumenta que não se deve impedir o Poder Público de adotar outra
política de financiamento dos serviços públicos, pois no conceito tradicional de concessão quem
financia o serviço público é apenas o usuário; não é razoável impedir o Poder Público de impor a
quem não seja usuário o dever de contribuir para o financiamento de um serviço público (Parceria
público-privada. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 104-105). Concordar-se-ia com o autor se estivesse
escrito no art. 175 da CF/88 que os serviços públicos seriam prestados de forma direta ou indireta
nos termos da lei; mas a redação é outra: serão prestados de forma direta ou indireta por concessão
ou permissão nos termos da lei. O constituinte restringiu a discricionariedade do Legislador e não
cabe à doutrina afastar a restrição sem reforma constitucional.
72
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal, op. cit.,
p. 232-235.
73
Para uma crítica a essa denominação vide MARTINS, Ricardo Marcondes. Acesso à informação e
transparência nas parcerias voluntárias. In: MOTTA, Fabrício; MÂNICA, Fernando Borges; OLIVEIRA,
Rafael Arruda. Parcerias voluntárias com o terceiro setor: as inovações da Lei nº 13.019/14. 2. ed.
Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 273 a 307, em especial p. 274-275.

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a prestação estatal é insuficiente para o atendimento de todos, o Estado


pode fomentar a iniciativa privada. Assim, o fomento à atuação privada no
campo dos serviços sociais é constitucionalmente admitido apenas em cará-
ter complementar à atuação pública.74 A política neoliberal difundida na
década de 1990 levou a uma grave deturpação: o Estado passou a se valer
dos ajustes com o terceiro setor para lhe transferir a prestação dos serviços
públicos sociais, realizando uma inválida descentralização por colaboração.
Celebram-se, então, contratos de gestão com Organizações Sociais (OS),
regidos pela Lei 9.637/98, e termos de parceria com as Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), regidos pela Lei 9.790/99.
Na comunidade jurídica vem prevalecendo o entendimento de que
não se trata de descentralização, pois nesses ajustes prevaleceria o caráter
de “fomento”.75 Em relação às Organizações Sociais, o Estado, regra geral,
repassa todos os recursos financeiros necessários para a realização da ativi-
dade, bens públicos e até servidores. É surpreendente que alguém defenda
que se trata de “ajuda” estatal à realização de uma atividade privada. Há
manifesta descentralização por colaboração, feita sem licitação, sem o con-
trole próprio das concessões. Se todo um fundo público é repassado a uma
entidade privada, essa entidade deve ser considerada pública para todos
os efeitos, enquanto a situação não seja invalidada.76 Organizações Sociais
são, portanto, autênticas contrafações de autarquias.77 Como essas entida-
des privadas não fazem absolutamente nada sem a suposta “ajuda” estatal,
não há fomento. Mesmo, porém, que este se caracterizasse, seria inválido
pela manifesta violação da proporcionalidade.78 Faz-se o registro: nos ajus-
tes de interesses paralelos a comunhão de esforços deve ser proporcional:
quando a ajuda estatal é desproporcional em relação à contribuição pri-
vada, o fomento é ilícito. Enquanto a comunidade jurídica não fizer essa
regra ser respeitada, o terceiro setor, com as devidas ressalvas, continuará
sendo um “buraco negro” de recursos públicos.

74
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria jurídica da liberdade. São Paulo: Contracorrente, 2015, p. 203.
75
Foi o que decidiu o STF na ADI 1923, Relator Min. Ayres Britto, Relator p/ Acórdão Min. Luiz Fux, Tri-
bunal Pleno, julgado em 16/04/2015, ao examinar a constitucionalidade da Lei 9.637/98. Maria Sylvia
Zanella Di Pietro (Parcerias na Administração Pública, op. cit., p. 71) e Alexandre dos Santos Aragão
(Descentralização administrativa, op. cit., p. 141-145) reconhecem que as Organizações Sociais con-
figuram uma descentralização por colaboração. Contudo, ambos negam essa caracterização para as
OSCIPs (DI PIETRO, op. cit., p. 59; ARAGÃO, op. cit., p. 142).
76
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neoconstitucional, op. cit.,
p. 131-181.
77
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neoconstitucional, op. cit., p. 144.
78
Cf. MARTINS, Ricardo Marcondes. Acesso à informação e transparência nas parcerias voluntárias,
op. cit., p. 286-287.

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6 Conclusões
1. A descentralização é política quando atribui competências legis-
lativas a uma pessoa sem sujeitá-la ao controle administrativo da entidade
central. A CF/88 consagrou-a, ao adotar a forma federativa. E mais: valori-
zou o princípio democrático ao petrificá-la e atribuir autonomia federativa
aos Municípios.
2. A descentralização é administrativa quando transfere competên-
cias públicas a outra pessoa jurídica, sujeitando-a ao controle administrativo
da administração central. Não se confunde com a desconcentração, repar-
tição de competências entre órgãos públicos, vinculados hierarquicamente.
Há três tipos de descentralização: dois deles por pessoa pública, a terri-
torial ou geográfica e a técnica ou funcional, e um por pessoa privada, a
descentralização por colaboração.
3. O suposto “novo conceito” de descentralização, chamado de
descentralização material, segundo o qual o relevante é a autonomia atri-
buída, por um lado, não é novo, e, por outro, é impertinente ao Direito.
Juridicamente, a descentralização pressupõe a atribuição de competências
a uma pessoa jurídica. Por isso, é descabida tanto a descentralização de
órgãos como a desconcentração de pessoas: só norma constitucional origi-
nária pode, de forma válida, criar “órgãos independentes”, desvinculados
da estrutura hierárquica; ademais, pessoas sem autonomia são contrafa-
ções de órgãos públicos.
4. A Constituição prevê os três tipos de descentralização adminis-
trativa. Em relação ao primeiro, previu a criação de Territórios federais.
A vontade constituinte de que eles fossem criados foi, até o presente, frus-
trada. Inexistem, atualmente, Territórios federais no Brasil.
5. Em relação à descentralização funcional ou técnica, a CF/88 divi-
diu a administração em direta e indireta e, em relação a esta, previu a
criação de autarquias, fundações e empresas estatais. Essa descentralização
sofreu uma série de deturpações nos últimos anos. A primeira deu-se com
a criação de agências reguladoras e executivas. Concluiu-se que tanto a
pretensão de imunizar as autarquias ao controle administrativo, como a
retirada da prerrogativa do Chefe do Executivo de nomear os dirigentes
autárquicos violam a CF/88.
6. Considerou-se, ademais, que a qualificação de agência executiva
atribuída às autarquias e fundações é, hoje, ilícita. Por um lado, inexiste lei
reguladora dos contratos de gestão; por outro, o aumento da autonomia
por contrato viola a legalidade e a indisponibilidade do interesse público.
7. A segunda deturpação da descentralização funcional ocorreu
com a admissibilidade generalizada de criação de consórcios públicos

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para gestão associada de competências privativas. Como a forma federa-


tiva, tal qual estabelecida pelo texto originário, foi petrificada, a CF/88 só
admite que uma entidade federativa exerça competências de outra provi-
soriamente a título de colaboração federativa. Concluiu-se, outrossim, pela
invalidade da celebração de convênios para fugir das exigências legais à
instituição de consórcios e pela invalidade da criação de consórcios com
personalidade de direito privado.
8. A terceira deturpação da descentralização funcional ocorreu com
as chamadas concessões impróprias. Concluiu-se pela invalidade da cria-
ção de empresas estatais para realizar atividades diversas da exploração de
atividade econômica. Mesmo que afastado esse entrave, é inválida a con-
cessão de um serviço público à empresa estatal da administração titular do
serviço (concessão-delegação). O regime jurídico da descentralização por
colaboração é incompatível com a descentralização funcional e a CF/88
exige que a prestação indireta de serviços públicos seja realizada por con-
cessão ou permissão.
9. Também é inválida a chamada concessão-convênio: concessão de
serviço público à empresa estatal não integrante da administração titular
do serviço. No caso, trata-se de uma contrafação de consórcio público. A
CF/88 exige que a outorga sempre se dê por licitação. Dito isso, não se
admite que empresas estatais participem da licitação como exploradoras
de atividade econômica, pois a participação viola a finalidade constitucio-
nal de sua instituição e os limites de sua competência.
10. A descentralização por colaboração também foi deturpada nas
últimas décadas, fazendo-se menção a duas hipóteses: as parcerias público-­
privadas e os ajustes com o Terceiro Setor. Conclui-se que as parcerias
público-privadas são contrafações, ilícitas, de contratos administrativos. Os
ajustes com terceiro setor não configuram fomento, mas ilícita descentra-
lização por colaboração. Por fim, concluiu-se: o fomento é ilícito quando
houver desproporção entre a ajuda pública e a contribuição privada.

Administrative decentralization and fraudulent distortions


Abstract: This paper is aimed at analyzing the administrative
decentralization in light of the Brazilian Constitution of 1988 and at
identifying distortions verified in the last decades. The constitutional
intent to undertake territorial or geographical decentralizations has
been frustrated. The technical or functional decentralization has been
distorted by the creation of regulatory and executive agencies, by the
authorization of public consortia for the exercise of acts of exclusive

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jurisdiction, and by improper concessions. Decentralization through


collaboration has been distorted by public-private partnerships and
by partnerships with the Third Sector. The subject-matter concerning
administrative decentralization demonstrates that the Constitution
has suffered constant attacks. Non-constitutional law has embraced
several administrative distortions, which this study intends to
identify, and thus contribute to cure them, so as to preserve the true
sense of the Brazilian Constitution of 1988.
Keywords: political and administrative decentralization; geographic
or territorial decentralization; technical or functional decentralization;
decentralization through collaboration; administrative fraudulent
distortions.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da


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MARTINS, Ricardo Marcondes. Descentralização administrativa e


contrafações. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 21, n. 114,
p. 47-73, mar./abr. 2019.

Recebido em: 06.10.2018


Aprovado em: 29.03.2019

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 21, n. 114, p. 47-73, mar./abr. 2019

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