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TERÇAS NA SOCIEDADE: “Semeando a Psicanálise – Clinicando”

25 de Setembro de 2012

A Clínica Borderline e Funcionamento Mental Primitivo

Paulo de Moraes M. Ribeiro


Membro Efetivo da SBPSP e Analista Didata da SBPRP

I. O que é Borderline?

Muitas vezes é difícil distinguir o Transtorno de Personalidade Bordeline de outros


diagnósticos psiquiátricos. Ao final dos anos 30 e ao longo dos anos 40, os psiquiatras
clínicos começaram a descrever pacientes que não eram suficientemente doentes para
serem diagnosticados como esquizofrênicos, mas eram demasiadamente perturbados para
um tratamento psicanalítico clássico. Num esforço de captar o estado ‘intermediário’ típico
desses pacientes, alguns pesquisadores referiram-se a esse grupo como tendo uma
esquizofrenia pseudoneurótica, caracterizada por um padrão sintomático de “pan-
neurose”, “panansiedade” e “pansexualidade” (Hoch e Polatin, 1949). Outros, (Robert
Knight, 1954) caracterizaram esse grupo mal definido focalizando seus prejuízos no
funcionamento egóico, incluindo a incapacidade de fazer planos realistas, de defender-se
contra os próprios impulsos primitivos e a predominância de pensamento de processo
primário sobre o pensamento de processo secundário. Uma análise global dos dados que
surgiram destas publicações indicou a existência de quatro subgrupos de pacientes
fronteiriços (boderline), que ocuparam um continuum desde a “fronteira psicótica” até a
“fronteira neurótica”.
Gundersom e Singer (1975) revisaram a literatura descritiva e delinearam seis
características básicas para um diagnóstico objetivo de pacientes boderline: 1- afeto
intenso, de natureza predominantemente deprimida ou raivosa, 2- impulsividade, 3-
adaptação superficial à situações sociais (o que ajuda a diferenciar esses pacientes dos
esquizofrênicos), 4- episódios psicóticos transitórios, 5- propensão ao pensamento frouxo
em testes projetivos ou outras situações não-estruturadas, e 6- padrão oscilante de
relacionamentos que vai de extrema dependência à superficialidade fugaz.

1
Muitos desses critérios são inter-relacionados. O paciente bordeline é consumido pelo
estabelecimento de relações interpessoais que, em sua fantasia, não corram qualquer risco
de serem abandonados ou rejeitados. Uma vez que as pessoas com transtorno de
personalidade bordeline tem dificuldade em confiar nos outros, muitas vezes elas
experimentam uma ansiedade que beira o pânico, relacionado à convicção de que estão
prestes a serem rejeitados a qualquer momento. Para evitar ficar sozinhas (abandonadas),
poderão recorrer a cortar os pulsos ou outros comportamentos autodestrutivos para
provocar atitudes ‘salvadoras’ da pessoa a quem estão vinculados; através do ‘salvamento’,
voltam a se sentir amadas e desejadas. Uso abusivo de medicamentos e comportamento
bulímico também são comportamentos autodestrutivos comuns entre os pacientes com
transtornos de personalidade bordeline. Afetos disfóricos, tais como raiva e depressão,
derivam da sensação de que os outros não tomam conta de suas necessidades.
Comportamentos impulsivos, como atuações sexuais e abuso de substâncias (drogas),
também podem estar relacionados às suas tentativas desesperadas de evitar a solidão.
Esse padrão de relacionamento interpessoal obviamente resulta em uma fraca
adaptação social, embora esses indivíduos superficialmente possam parecer interagir numa
base aceitável. Muito de suas distorções cognitivas ou deficiências do teste de realidade
ocorre também no contexto de relacionamentos interpessoais. Na ausência da presença
reasseguradora de pessoas queridas, podem tornar-se francamente paranoides ao
imaginarem que estão prestes a ser abandonados. Ocasionalmente, um comportamento
predominantemente depressivo, geralmente em pessoas muito inteligentes, ocupa a
posição central no quadro, mas isto está relacionado à percepção da realidade de sua
condição precária e seu sentimento de incapacidade para executar mudanças evolutivas;
nestes casos, a ideação suicida e mesmo o risco real de morte costumam ser significativos.
Foi Otto Kernberg (1967, 1975) quem caracterizou os pacientes bordeline de uma
perspectiva psicanalítica. Utilizando uma abordagem combinada de psicologia do ego e
relações objetais, cunhou o termo organização de personalidade bordeline para englobar
um grupo de pacientes que apresentavam padrões característicos de fraqueza egóica,
operações defensivas primitivas e relações objetais problemáticas. Ele observou uma
variedade de sintomas obsessivo-compulsivos, fobias múltiplas, reações dissociativas,
preocupação hipocondríaca, sintomas conversivos, tendências paranoides, sexualidade
perversa polimorfa e abuso de substancias.

1. Manifestações inespecíficas de fragilidade egóica. Um aspecto do funcionamento do


ego é a capacidade de postergar a descarga de impulsos (Princípio do Prazer) e
modular realisticamente (Princípio da Realidade) os afetos, por exemplo, a
ansiedade. Os pacientes bordeline falham em reunir forças egóicas para realizar tais

2
atividades, tem dificuldades em sublimar seus impulsos e utilizar o pensamento para
guiar seu comportamento.
2. Desvio para pensamento de processo primário. Na ausência de uma estrutura
continente ou sob a pressão de fortes afetos esses pacientes tendem a regredir a um
pensamento semelhante ao do psicótico. Entretanto, diferentemente destes, o teste
de realidade geralmente está preservado.
3. Operações defensivas características. A principal defesa costuma ser a dissociação,
vista como um processo ativo de separar as representações internas de afetos
contraditórios voltados contra elas. As operações de dissociação no bordeline
manifestam-se clinicamente da seguinte forma: a) existe a expressão alternante de
comportamentos e atitudes contraditórios, vista pelo paciente como mera falta de
preocupação ou leve negação, b) existe uma compartimentalização de todas as
pessoas no ambiente como “totalmente boas” e “totalmente más”, com frequentes
oscilações para um mesmo indivíduo, e c) há coexistência de visões e imagens
contraditórias de si próprio (representações do self) que podem se alternar. 1 Outras
defesas, como idealização primitiva, onipotência e desvalorização, similarmente
refletem tendências dissociativas. A identificação projetiva, na qual as
representações do self ou as representações do objeto são dissociadas e projetadas
nos outros, numa tentativa de controle, constitui uma defesa comum.
4. Relações objetais patológicas. Como resultado da dissociação, o bordeline não vê os
outros como tendo uma mistura de qualidades positivas e negativas, mas divide-as
em extremos polares e as vê “como deuses ou como demônios; santas ou putas”.
Esses indivíduos não conseguem integrar os aspectos libidinais e agressivos em si
mesmos ou nos outros. Suas percepções dos outros podem alternar a qualquer
momento entre idealização e desvalorização, o que pode ser altamente perturbador
para qualquer um que se relacione com eles. De modo similar, a incapacidade de
integrar representações positivas e negativas do self resulta em difusão do seu senso
de identidade, o que é desesperador para essas pessoas a as leva a serem tragadas às
camadas mais primitivas de seu psiquismo, visando restaurar seu senso de existência
(vide adiante).

II. De onde vem a configuração borderline?


Morte é curva na estrada,
Morrer é só não ser visto.
2
F. Pessoa

1
Ex: Um “sacerdote celibatário” pode coexistir com um pedófilo promíscuo e bissexual. Diante de um exame de sífilis positivo
referiu isso ser impossível uma vez que era “um celibatário, um ser de Deus”; quando confrontado pelas suas vítimas com seu
comportamento promíscuo referiu ser “apenas um ser humano, portanto, sujeito à falhas...” 4. [Gabbard, G. (1992)]
2

A morte é a curva da estrada,


Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.

A terra é feita de céu.


A mentira não tem ninho.
3
O poema de Fernando Pessoa revela como a protomente (a mente primitiva ou
primordial) sente as separações. Enquanto o objeto está sob o foco da visão ele existe, está
ali, fazendo companhia, depois, ao fazer a curva na estrada e sair do campo de visão ele
deixa de existir, morre, surgindo uma ansiedade avassaladora de que sem o objeto
amado/necessitado o self também irá deixar de existir. Nesta dimensão do psiquismo é
como se o indivíduo ainda estivesse fusionado ao objeto, quase como era na época da vida
intrauterina, quando o cordão umbilical unia concretamente feto e mãe, atendendo todas
as necessidades do feto.
A psicanalista M. Mahler (1979) descreveu algumas fases evolutivas do desenvolvimento
emocional, que se inicia num polo simbiótico no qual não há separação mãe/bebê e evolui
para uma fase intermediária na qual começa a surgir gradativamente a percepção no
lactente da mãe como ser separado dele, diferenciando-os até se alcançar uma
individuação completa, na qual a mãe e o lactente são sentidos como seres física e
psiquicamente separados, unidos por vínculos afetivos e não sensoriais. Kernberg (1975) via
o paciente bordeline como alguém que atravessou exitosamente a “fase simbiótica” de
Mahler (de modo que o self e o objeto podem ser distinguidos), mas que acabou por ficar
fixado à “fase de separação-individuação”. Situava a “subfase de reaproximação”, que
ocorre aproximadamente entre 16 e 30 meses de idade, como o sítio cronológico dessa
crise evolutiva. Nesse estágio, a criança fica alarmada quanto ao potencial de sua mãe para
desaparecer, e por vezes exibe uma frenética preocupação quanto à sua localização, como
se ela nunca mais fosse voltar. Do ponto de vista evolutivo, os pacientes bordelines podem
ser vistos como revivendo repetidamente uma antiga crise infantil, os indivíduos são
incapazes de tolerar períodos de solidão e temem serem abandonados pelo objeto
amado/necessitado.
A fixação à “subfase de reaproximação” está relacionada a alguma perturbação na
disponibilidade emocional da mãe durante esse período crítico (falhas na capacidade para
holding e rêverie), ou devido a uma baixa tolerância às frustrações na criança (fator
constitucional), ou mesmo uma combinação de ambos os fatores. As crianças saudáveis
geralmente conseguem tolerar melhor as separações porque, ao longo das sucessivas
experiências gratificadoras junto ao seio/mãe, internalizaram uma imagem inteira e
tranquilizadora de sua mãe, que as sustenta durante os períodos de ausência física do
objeto (a “capacidade para estar só” 3 de Winnicott, 1958). Uma vez que os pacientes
boderline não dispõem dessa imago internalizada, eles têm pouca ou nenhuma constância
objetal, o que contribui significativamente para a sua intolerância à separação e à solidão.

Nunca ninguém se perdeu.


Tudo é verdade e caminho.

Fernando Pessoa [ In: Poesias. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).]
3
A Capacidade de estar só: A capacidade de estar só diz respeito ao êxito durante o período em que a mãe atravessa o estado
de preocupação materna primária e o bebê a fase de dependência absoluta. Baseia-se no paradoxo de estar só na presença do
outro (não invasivo). A experiência de estar só na presença do outro tem suas raízes na relação precoce mãe-bebê, e implica
experiências positivas de, por exemplo, ser capaz de brincar livremente e sem interferência externa, por sentir-se amparado por
um meio ambiente protetor e não intrusivo. É expressão de saúde e maturidade emocional. O sentimento de solidão, por sua
vez, aponta uma falha na experiência de estar só na presença de uma mãe/outro fundamental.

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III. A Clínica Borderline

Devido a esta configuração complexa, a clínica junto ao analisando borderline precisa ser
constantemente individualizada. Não será possível, pelo menos no início da análise de um
borderline grave, o analista ater-se rigidamente às regras técnicas clássicas. Estes pacientes
frequentemente entram em estados de desespero nos quais o analista será convidado, na
transferência, a ser não só uma ‘mãe’, mas algo mais aquém disto: ser uma espécie de
‘útero’ do analisando. Se essa demanda for uma necessidade do analisando,
diferentemente de um desejo seu, ela pode ser atendida, naturalmente, dentro de limites
realísticos e com o mínimo possível de alterações no setting proposto por Freud.
Sob o ponto de vista clássico, essas convocações transferenciais seriam entendidas pelo
analista como actings (atuações) a serem apenas interpretados ao analisando e jamais
correspondidos. Muitas vezes essas comunicações primitivas são confundidas com ataques
invejosos à capacidade de pensar do analista, mas pode não tratar-se disto, e sim de
comunicações de partes muito arcaicas da protomente, de uma época em que a linguagem
verbal ainda estava longe de se estabelecer. Nesta dimensão, a única maneira da pessoa se
comunicar é através de ações, por exemplo, fazendo o analista sentir na pele as emoções
que a pessoa não tem como narrar verbalmente.

Essas pessoas ainda se encontram em dimensões pré-simbólicas da mente e precisam


desenvolver o que Bion chamou de “aparelho para pensar os pensamentos” 4 (Bion, 1962);
para, somente a partir de então, uma análise mais clássica poder se estabelecer.
4
Nós não nascemos pensando, segundo Bion, os pensamentos nos precedem, eles existem antes de nós e temos que
desenvolver a capacidade para pensa-los. Isso se dá através da introjeção de fatores e funções da personalidade na relação
continente-contido junto ao seio/mãe. O objeto, o seio, se oferece ao bebê como ‘alimento’ mental. Como? Sonhando! Somos
seres multidimensionais, e em nossa trajetória desde a concepção em algum lugar da trompa de falópio materna até os dias
atuais, abarcamos uma infinidade de experiências sensoriais e emocionais que ficam à disposição de nossas rêveries (sonhos).
Por exemplo: imaginemos um recém-nascido que acorda de madrugada gritando; seus berros são identificações projetivas em
busca de um continente. Sua mãe acorda e no caminho para o berço, sente seu próprio coração disparado e pensa “Nossa!
Quanto medo!”. Sem que ela perceba, em sua mente surgem imagens de uma carnificina que ela recentemente viu nos jornais,
e inconscientemente conjetura que seu bebê pudesse estar sonhando com momentos dramáticos do seu parto, quando estava a
rasgar a mãe de dentro para fora, ambos correndo risco de vida... Ao chegar ao berço, coloca a criança no colo, com o ouvido
voltado para seu peito esquerdo, onde ele é capaz de ouvir o (já conhecido) ritmo das batidas do seu coração. Ao mesmo
tempo, faz movimentos suaves embalando o bebê, dizendo “Não é para tanto, mamãe está aqui, papai está aqui. Nós estamos
com você...”. Também cantarola uma velha cantiga de ninar: “Boi, boi, boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de
careta...”, num tom de voz tranquilo, acolhendo o ‘boi da cara preta’ (a angústia de aniquilamento) e dando-lhe ritmo, melodia e
contenção. Através da rêverie (neste caso, com uma cena de carnificina), o objeto usa seu manancial de elementos α
(armazenados na forma de experiências emocionais, imagens mnêmicas, músicas, cantigas da infância, poemas, odores, etc.)
para sonhar e decodificar a projeção de bebê, transformando-a em elementos α assimiláveis pela mente incipiente, assim
restaurando o senso de continuidade (Ogden, 1989) que fora perturbado pelo conteúdo indigesto. Repetidas experiências dessa
5
O modelo clínico abaixo se propõe ilustrar fenômenos desta ordem:
Elisa, uma jovem pintora, procurou análise numa incapacitante crise depressiva que a
fez abandonar seus estudos no exterior e retornar aos cuidados dos pais em São Paulo
(onde a atendi). Não conseguia sentir interesse por absolutamente nada em sua vida, não
tinha mais convívio social, não se alimentava adequadamente e sua higiene pessoal era
precária; nada lhe fazia diferença, “nem para bom, nem para ruim... é tudo a mesma coisa”,
como dizia. Queria cessar seu sofrimento, mas quase não tinha esperança que isso fosse
possível, frequentemente me pedia para auxiliá-la na sua morte, que segundo ela seria uma
eutanásia, pois se sentia “inviável”.
Filha primogênita de um casal idoso, Elisa sempre se sentiu indesejada, durante sua
gestação “quase foi abortada espontaneamente” por duas ou três vezes. Dizia que foi
sempre a primeira da classe, pois, segundo seu mito pessoal, seu pai lhe dizia que “mulher,
ou era bonita ou inteligente, e como ela era feia só lhe restava ser inteligente”. Chegou a se
formar em três faculdades de renome, nunca conseguido exercer nenhum trabalho. Elisa
nasceu com várias pequenas deformidades físicas (malformações congênitas) que se
relacionavam com sua ideia de feiura e rejeição; esta configuração lhe trazia uma certeza
quase absoluta que jamais seria desejada ou amada por ninguém.
Entretanto, Elisa chegou para sua primeira entrevista causando impacto: estava vestida
com calça de camuflagem do exército, coturno preto, camiseta escura muito justa e uma
bolsa bordada, contrastando com o restante. Tinha vários piercings no rosto e tatuagens
pelo corpo. O cabelo era extremamente curto, mas em alguns pontos era tingido de azul e
se alongava para cima, parecendo uma ‘Estátua da Liberdade bizarra’. Esse foi seu figurino
por um bom tempo.
Era impossível ela não ser notada, o que contrastava com a depressão na qual se sentia
um zumbi, uma morta-viva ambulante, inexistente. Quando conseguia sair da cama,
produzia-se assim para sair à rua, o que obviamente atraia olhares alheios. Fomos notando
que, num primeiro momento, os olhares estranhamente a reconfortavam; entretanto, com
a evolução do contato consigo mesma, Elisa passou a ouvir os comentários que suscitava na
rua (“Nossa Senhora! Deixaram a porta do hospício aberta!” ou “Credo! Aquilo ali é um
homem ou uma mulher?”) e passou a sentir vergonha da exposição. A análise revelou que
através destes exageros visuais ela se projetava em todas as direções numa busca
desesperada por algum contato, mesmo que fosse pejorativo, pois o que precisava eram
evidências de estar viva: ‘Sou vista, logo existo!’.
Um exemplo de como Elisa se comunicava através de ações: certa vez chegou para uma
sessão com uma pintura em cartolina que havia feito numa oficina em grupo. Entregou-me
a obra, avisando que ainda não estava terminada. Na obra, do lado esquerdo havia uma
mulher nua, com seios fartos, as pernas e braços abertos, como se estivesse em queda
livre; no lado direito observava-se as pernas de um homem com um grande pênis no
centro, em destaque. Apesar da desproporção de tamanho entre as duas figuras, parecia
haver um movimento da mulher em direção ao pênis. O fundo era todo manchado de

qualidade, via identificação introjetiva, alimentam a mente em nascimento com fatores e funções da personalidade que vão
tecendo seu continente (Ribeiro, 2006).
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vermelho, uma “menstruação”, segundo ela. A obra fora exposta aos colegas da oficina,
que fizeram chacotas sobre sua sexualidade, ofendendo-a.
Minha primeira reação diante da pintura foi de desgosto, depois, espontaneamente,
lembrei-me de uma sessão recente na qual a dinâmica exigida por ela era ‘homossexual’:
sermos duas mulheres, sem diferenças anatômicas ou mentais. Qualquer alteridade entre
nós era sentida como violência de minha parte. Dizia que por eu não ser mulher (ou ela não
ser homem) eu não poderia compreendê-la completamente. E, no entanto, agora ela
estava trazendo essa representação visual das diferenças entre nós. Pensei também nessas
figuras representando masculino/pai e feminino/mãe dentro dela, talvez em busca de
alguma integração. Lentamente, fui me envolvendo com a pintura, apreciando-a; quando já
a estava admirando, perguntei o que a fez dizer que não estava acabada.
Ela me pediu de volta a cartolina e calmamente a rasgou no meio, separando-a em duas
partes, depois pegou a parte do genital masculino e a picotou em inúmeros pequenos
pedaços. Senti um forte impacto emocional. Fiquei taquicárdico. Inicialmente, senti a
agressão diretamente contra mim, cheguei a pensar se deveria usar de alguma ação para
impedi-la de destruir a obra; no entanto, contive-me e esperei observando em silêncio, eu,
restaurando as batidas de meu coração, e ela, passando a derramar lágrimas mudas. Depois
de alguns minutos, Elisa, religiosamente recolheu os pequenos fragmentos jogados ao
chão, juntando todos e me entregando a obra “terminada”: a parte esquerda (a mulher em
queda livre) e os fragmentos picados.
Frente a áreas pré-verbais da mente, o analisando irá tentar convocar o analista a sentir
toda uma gama de emoções presentes, fazendo-o contracenar com ele um drama ainda
não narrado verbalmente (os chamados “enactments” descritos por Jacobs, 1991 e
Cassorla, 2005). Estas atuações são ferramentas de comunicação, se soubermos ‘ouvi-las’
como tal.
Neste “happening”1 Elisa convidou-me a contracenar com ela múltiplas dimensões de
sua mente, sobrepostas:
• Num plano primitivo, Elisa trazia o ódio que sentia das diferenças, sejam elas sexuais
ou não, pois lhe remetiam à assimetria de rêverie nunca alcançada na relação com o
seio primitivo. Essa “falha básica” (Balint) a fez sentir-se separada do objeto numa fase
precoce demais, gerando a demanda por estados fusionais (homossexuais) vida a fora,
numa tentativa desesperada de reencontrar o objeto prematuramente perdido.
• Noutro plano, vislumbramos sua concepção da cena primária: um encontro violento,
hemorrágico, desproporcional e anti-criativo, que ao invés de gerar uma nova vida,
concebe um aborto, uma menstruação.
• Noutro plano, identificada com a mulher que cai em direção ao pênis, Elisa expressa
seu desejo sexual edípico, de caráter doloroso, infértil e descartável (menstrual).
• Ainda, através da violência contra o masculino, ela expressa sua impossibilidade de
identificação com o pai e com as funções masculinas de sua personalidade.
• Noutro plano ainda, traz seu sentimento de impossibilidade de privacidade, seu
‘setting interno’ vaza para todos os lados, gerando chacotas sobre o que deveria ser
tratado com consideração e respeito.

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• E, entre outras múltiplas dimensões, ao encenar este happening em minha presença,
Elisa traz sua esperança de que na atualidade da experiência emocional ali comigo,
conteúdos primitivos (sem representação, pré-verbais) possam sofrer transformações
em pensamento.
Atirando em todas as direções, estas projeções visam encontrar um continente que as
acolham, para assim sofrerem a influência da função α do continente/analista,
potencialmente capaz de colaborar em sua evolução.
Trago um fragmento de uma sessão de Elisa. Neste período de sua análise
observávamos que lhe era praticamente impossível sustentar certas experiências
emocionais ao longo do tempo, mesmo que prazerosas. Elisa havia sido
recentemente reconhecida como uma promissora artista plástica e estava
participando de uma exposição na mais respeitada galeria de arte da cidade, mas
alegrias como esta duravam pouco, logo não significavam mais nada: prazer e dor
eram-lhe a mesma coisa. Era comum haver encontros nos quais predominavam um
forte padrão de auto-piedade pelos seus sintomas tão incapacitantes, tornando a
sessão um monólogo depressivo de difícil manejo.
Abordagens através de modelos mais clássicos, como interpretações
transferenciais no aqui e agora, pareciam surtir pouco efeito. Elas eram reconhecidas
como verdades, mas nestes momentos, a experiência emocional da dupla parecia
empobrecer, como se eu estivesse conversando com seu falso self e não com ela.
Passei então a trabalhar com Elisa de forma mais lúdica, não levava tão a sério suas
queixas e comecei a ‘brincar’ com o material que ela trazia, procurando usar de
humor para desintoxicá-lo de componentes superegóicos ego-assassino (Bion, 1967).
Para sua irritação, e num outro plano também prazer, sua auto-piedade ganhou o
nome de “a velha mania de coitadização de si mesma”, ou de “o bom e velho vício
pela doença”. Eu compreendia (e ela também!) que este padrão de funcionamento
de apego ao patológico representava a morada mais profunda do seu sentimento de
identidade, pois fora no umbral que ela parece ter se constituído como “pessoa”
(Winnicott, 1962, 1963), ou seja, como um indivíduo único e exclusivo nesse mundo;
e era para lá que ela retornava quando se perdia e precisava voltar a sentir-se si
mesma (o “Eu-dade/I-ness” do Ogden, 1996).
Quando Elisa trazia sonhos, minha atenção voltava-se mais para os possíveis usos
destes na sessão do que para a interpretação de seus conteúdos. Ludicamente, usava
elementos do sonho para criarmos conversas bem humoradas, diferentes das
costumeiras culpabilizações dos pais, super-valorização dos sintomas incapacitantes,
etc. Tentávamos, ao ‘brincar’ juntos, criar um sonho-a-dois (Cassorla, 2005b, 2009).
Sessão: Ao abrir a porta, encontrei Elisa me esperando como de costume:
cabisbaixa, encolhida na poltrona e com as pernas tremendo. Essa cena visava
causar-me impacto emocional. Usei, como costumava, seu segundo nome para
chamá-la:
E: Ai!... Infelizmente sou eu mesma... (com certo humor)
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Entrou com passos lentos e sentou-se no divã. Disse-lhe, também com humor, que
no dia seguinte iria chamá-la pelo seu primeiro nome, para ver se assim ela não se
arrependeria de ser ela mesma, ao que ela me respondeu que então, iria olhar para
os lados e nem entrar, pois aí não ia ser nem ela mesmo, feliz ou infelizmente... Ela
sorriu. Após um longo suspiro, continuou:
E: Hoje nós temos quatro horas, né?
P: Você ‘tá me dizendo que hoje temos bastante trabalho pela frente... Então
vamos lá!
E: Ai! A porra dessa minha ansiedade não passa! Agora dei pra tremer... Olha
minhas mãos! Ontem eu consegui dormir um pouco à tarde, depois acordei, e não
consegui dormir mais, até tarde da noite... Inferno! Depois, fui acordar às cinco da
madrugada... E no meio da tarde fui perceber que o que eu queria é cama...
O verbo no tempo presente denotava que ali também Elisa queria é ficar na cama-
divã, dormindo, meio morta, convidando-me para repetirmos sua compulsão de
‘auto-coitadização’. Pensei: como sair dessa sinuca educadamente, sem
interpretações moralistas ou super-egóicas que poderiam nos levar a uma sutil
dinâmica sado-masoquista? Optei por dizer-lhe: Você disse porra, porra de
ansiedade, mas você sabe o que é porra?
E: Aquilo branco... sêmen... (encabulada)
P: É, mas podemos diferenciar porra de sêmen e pensar que porra é o sêmen que
foi estragado, jogado fora, desperdiçado. Sêmen vem de sementes... É aquilo que, se
for plantado e bem cuidado, frutifica. É importante a gente diferenciar bem porra de
sêmen; às vezes a sua ansiedade vira porra e deixa de ser uma ansiedade ligada à
criatividade, ideias novas, etc...
E: Ai! Ontem, minha cabeça não parava de pensar na loja que a minha mãe quer
me dar... Desgraçada!... Acho que eu não tenho jeito para isso... pra trabalhar... Aí, fui
pro meu quarto, mas eu não queria lá... Aí, a hora que eu percebi, estava no quarto
da minha irmã, lá é mais escurinho... Mas não é só uma questão de escuro... A cama
dela fica encostada na parede, num cantinho, atrás de um armário meio
escondidinho... Aí eu me cobri, me encolhi toda, e foi lá que eu consegui dormir.
Acordei de madrugada e, como não tinha nada pra fazer, resolvi criar coragem e
colocar algumas ideias no papel.
Sentou-se e retirou da bolsa alguns papéis. Ao falar, dava tapas nos papéis. Disse-
lhe: E então, você vai ficar batendo neles ou vai me mostrar?
Sorriu meio sem graça e me entregou os papéis, que tinham desenhos bem
humorados compondo o logo que criou para sua loja e uma lista de itens que
pretendia manufaturar para vender. A lista tinha oito itens, sendo o último: Socorro!
Disse-lhe que aqueles papéis continham sêmen do tipo sementes que, se bem
cuidadas, podiam gerar frutos. Provoquei-a: Você pensa que é só sua irmã que pode
ser a bem sucedida da família? É, bebé?

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Neste momento, lembrou-se abruptamente de um sonho que tivera naquela
noite: Sonhei que a minha irmã sofreu um acidente, talvez um acidente de carro, que
a deixou paralítica. Ela estava numa espécie de sala de fisioterapia, numa cadeira de
rodas, diante de uma esteira. Ela tinha que fazer aquela esteira para ficar boa. Parece
que eu sei que a lesão dela é de bom prognóstico, e que, se ela se esforçar bastante,
poderá sair desta... Então eu resolvo ajudar minha irmã de qualquer maneira, e falo
energicamente que é para ela sair da daquela cadeira e andar naquela esteira! Já!
Ajudo ela se levantar, com aquele corpo grande dela em relação ao meu,
pequenininho. Aí ela começa a andar na esteira, mas sente uma dor intensa no pé,
terrível, quer desistir, mas eu brigo com ela: “Você tem que aguentar!”. Nesse
momento o fisioterapeuta olha bem calmamente para ela e diz a respeito da dor no
pé: “Isso é um bom sinal, dor é um bom sinal”.
Perguntei-lhe como era essa questão de dor ser um bom sinal e ela explicou que
achava que tinha relação com a manutenção das ligações neurológicas, com não ter
rompido de vez os neurônios.
P: Ah! E é o psico-terapeuta, e não o fisio-terapeuta, que diz isso, não é?!
E: É! Eu não tinha me tocado que era você! Eu já tinha percebido que a minha irmã
e eu éramos a mesma pessoa, mas eu não tinha me tocado que era você! Que ódio, é
você que fica sempre dizendo isso! (risos)

Termino esta comunicação com duas frases que penso colaboram com a prática
clínica junto aos analisando borderlines:

A posição do analista é semelhante à do pintor, que


através de sua arte, acrescenta algo à experiência de seu público.
W. Bion (1965)

O natural é o brincar,
e o seu fenômeno altamente aperfeiçoado é a Psicanálise.
D. Winnicott (1971)

Referências bibliográficas:
1. BION, W. R. (1962). Learning from Experience. London: Karnac Books, 1984.
2. _________ (1965). Transformations. London: Karnac Books, 1984.
3. CASSORLA, R. M. S. (2005). “From bastion to enactment: the ‘non-dream’ in the theater of analysis”. International Journal of Phychoanalysis,
86(3), 2005.
4. Gabbard, G. (1992). Psiquiatria Psicodinâmica na Prática Clínica. 14: 246-255.1992
5. Gunderson, Singer (1975). Defining bordeline patients: an overview. Am. J. Psychiatriy. 132:1-10,1975.
6. Hoch P, Polatin P. (1949): Pseudoneurotic forms of schizophrenia. Psychiatry Q. 23:248-276, 1949.
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