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Sumário

coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
Wilson Gomes

entrevista Fatima Bezerra

dossiê Sexologia política


Apresentação
A política sexual do bolsonarismo
O ignoródio ao gozo do outro
Quando a mentira é serva da homofobia

artigo
Expressão e posição

estante cult
Sobrevivendo no inferno: ainda e sempre
Uma cidadezinha qualquer do sertão
Grito metálico

cinema
Coordenadas de uma estética: cinema e ditadura

colaboraram nesta edição

coluna
As bases de uma consciência preta
bianca santana
Voo 1055 com destino a Congonhas cancelado. Por entre os gritos e risos da
classe média barulhenta, sigo na leitura de Steve Biko. Eu faria isso no avião, ou
em casa ou no hotel. Tudo bem fazer no aeroporto. Na verdade, pode ser que eu
dormisse no avião. Em casa seria interrompida, certamente. Melhor o aeroporto.
“O papel do branco liberal na história do preto na África do Sul é bem curioso.
A maioria das organizações pretas estavam sob a direção de brancos. Fiéis à sua
imagem, os brancos liberais sempre sabiam o que era bom para os pretos e
diziam isso a eles. O mais incrível é o fato de os pretos terem acreditado neles
durante tanto tempo.” Teria Biko ouvido sobre intelectual branco da zona oeste
paulistana querendo fazer trabalho de base nas periferias? Exu! De quem a
flecha atirada hoje acerta ontem o bicho.
Meia para aquecer os pés, mesmo ficando ridículo com a Melissa, mas
estou confortável. A caixa de Bis que comprei para a praia e sobrou na bolsa
pelo tanto de biscoito Globo e mate que botei para dentro foi boa companhia.
Biko escrevia ao voltar de suas excursões pelas universidades sul-africanas. Por
que não escrevi depois da viagem a Madri e Zaragoza? Tomei notas, pensei em
fazer relatório para as companheiras, mas fui tragada. Abre o computador na fila
da remarcação do voo mesmo. Menos ridículo escrever apoiada no carrinho de
bagagem que as conversas dessa gente raivosa na fila.
Tive um sonho essa noite. Com a escritora Cidinha da Silva e a deputada
eleita Áurea Carolina. Elas ensinavam coisas para mulheres. Era um restaurante?
Não lembro o que falavam, mas era importante. Atenção ao que publicam essas
duas. Na noite anterior havia tido um outro sonho. E está divertido escrever
freneticamente assim, de pé, no aeroporto, apoiada no carrinho de bagagem. A
moça de trás tenta ler. A mala de mão chique que ganhei como recompensa por
ser jurada em prêmio de educação vai com as roupas. A mala de lona que veio
dobradinha na mala de mão agora volta cheia de macumba que comprei no
Mercadão de Madureira.
Além do cigarro de palha do caboclo, do fumo cheiroso da preta velha,
todas as ervas para banho recomendadas por Mãe Celina de Xangô durante o
WOW – Festival Mulheres do Mundo –, que aconteceu no Rio entre 16 e 18 de
novembro. Vence tudo, alecrim, manjericão, eucalipto, macaçá, colônia, levante.
O axé das ervas vai ajudar na proteção ainda mais necessária destes tempos.
Macerar bem as folhas em água fria, coar e usar um pouco por dia. Três, sete,
catorze ou vinte e um dias consecutivos. Diluir um tanto e jogar no corpo todo, a
partir da cabeça. Eu mesma pretendo tomar esse banho de cheiro por mais
tempo. Até, pelo menos, o primeiro de janeiro. Seja para o que for, precisaremos
estar protegidas.
A oficina “O poder das ervas”, de mãe Celina, foi uma das cerca de cento e
cinquenta atividades realizadas na Praça Mauá, região portuária do Rio durante o
Festival. Mulheres de diversas idades, cabelos, tons de pele e origem social
partilhavam saberes e experiências nas salas do Museu de Arte do Rio (MAR),
do Museu do Amanhã, do Armazém 1 e da própria praça. Além das oficinas,
rodas de conversa, palestras e shows de que participei, as trocas informais
permitiram aprendizado e nutrição para a vida. Não é sempre que a gente se
hospeda no quarto ao lado de Conceição Evaristo, toma café da manhã com
Sueli Carneiro ou Nalu Faria, senta na van ao lado de Sandra Quilombola,
assiste à Elza Soares passando o som no meio da tarde em uma praça vazia. E
ainda ganha uma tarde de praia e afeto com Carol Rocha. Objetivo de renovar
energias alcançado. Apesar dos fantasmas.
Em um dos sonhos noturnos, eu dirigia um carro, minha filha Cecília estava
no banco de trás. Talvez os meninos também estivessem. Vem um homem com
um revólver na mão, abro o vidro, ele anuncia o assalto. Eu sei que o tiro não vai
sair. Respondo, calmamente, que não vou entregar nada. Todo mundo está
cansado de saber que precisa entregar tudo. Ciça, tão calma quanto eu, me
pergunta o que está acontecendo. Viro para responder a ela sobre a tentativa de
assalto, mas que está tudo bem. Sou interrompida pelos disparos. Susto do
assaltante. Ele aperta o gatilho e da arma só sai barulho. Eu sabia. Vou explicar
para ele que sabia. Mas acordo? É o que lembro do sonho. Da minha
tranquilidade, da tranquilidade da Ciça e do espanto do moço de quem a arma
não funciona.
Acabado o Festival, visita à Maré. Território de dezesseis favelas tantas
vezes chamado de complexo. Mas aprendi por lá que #marécomplexo é também
#marésimples. Tem porta de casa lotada de vasos de plantas, assim como no
território de onde venho. Lojas que vendem de tudo. Placas de vende-se nas
casas. Moto subindo e descendo. Bastante gente indo ou vindo. Meninos com
fuzil nas costas ou pesando coca no meio da rua. Meninos mesmo, no máximo
14 anos. Igrejas evangélicas. Escolas. ONGs enxugando gelo na tentativa
genuína de transformar aquela realidade. Vejo tudo e sinto Marielle, cria daquela
favela.
Somente em 2017 aconteceram quarenta e uma operações policiais por lá. E
operação policial não é visita preventiva, vocês devem saber. É carro blindado,
armamento pesado, jovens fardados, pagos pelo Estado para torturar e matar.
Quarenta e duas pessoas morreram em confrontos armados, uma a cada nove
dias, em média. Cinquenta e sete pessoas feridas: quarenta e uma em operações
policiais, dezesseis entre grupos armados. Nos dias em que o Estado chega para
matar, deixa de oferecer serviços básicos. Quarenta e cinco dias de atividades
suspensas nos postos de saúde e trinta e cinco dias com as escolas fechadas. Isso
significa que uma criança da Maré, ao final de nove anos de ensino fundamental,
passa mais ou menos um ano e meio sem aula. Não é desesperador pensar nesses
dados? Imagina vivê-los. Por anos e anos e anos. Inclusive nos governos que
defendemos. É mesmo tão difícil compreender o voto de pretos e pobres em
Bolsonaro?
“Portanto, enquanto os pretos estiverem sofrendo de um complexo de
inferioridade – consequência de trezentos anos de deliberada opressão, desprezo
e escárnio –, são inúteis como construtores de uma sociedade normal na qual a
pessoa não seja nada mais do que um ser humano para o seu próprio bem.
Assim, como prelúdio ao que possa vir em seguida, é necessário estabelecer as
bases de uma Consciência Preta tão forte que os pretos possam aprender e se
autoafirmar e a reivindicar os seus justos direitos”, grafou Biko no conhecido
Alma preta em pele branca?. Como incentivar essa tomada de consciência? E se
ela for tão intensa, crescente e certeira que permita eleger vereadora, 46 anos
depois do texto escrito, uma favelada da Maré com consciência preta? No Brasil,
país sem lei de segregação racial como as da África do Sul, essa mulher negra
pode levar quatro tiros na cara. E oito meses depois, ainda não saberemos quem
matou Marielle Franco.

coluna
Assalto e assédio audiovisuais
marcia tiburi

A sociedade do espetáculo é aquela em que a imagem é o capital. Ela vale mais


do que tudo. Quem não tem o capital “imagem”, o capital para “aparecer” e,
desse modo, provar que é alguém no mundo das imagens, se sente mal. Se
instaura, por meio dessa nova forma do capital, um grande mal-estar na
civilização, caracterizado pela vergonha de ser quem se é quando não se é “belo,
branco e rico” ou suas variações. A medida do autoritarismo estético é lançada
sobre todas as cabeças e corpos e quem não puder se adaptar está morto. Os
distúrbios de imagens de nosso tempo são sintomas de um sofrimento para
adaptar-se.
O desejo de “fazer parte” gera sofrimento, mas também perversão. No caso
do capitalismo, o sistema gera seus próprios criminosos. O crime é inerente à
lógica do capitalismo baseado na prática da exploração do outro. A corrupção é
sua natureza sempre disfarçada. O outro coisificado, o outro que não merece
“direitos” é o objeto de uma violência previamente consentida. O que é de cada
um, no sentido existencial, deve ser eliminado.
É nesse contexto que podemos falar de assédio audiovisual e de assalto
audiovisual. O capitalismo sempre foi expropriação e exploração do trabalho,
mas agora, no atual estágio em que a imagem é o capital, ele é também
expropriação e exploração da imagem de uma forma diretamente violenta.
Surgem, nesse sistema esteticamente controlado, novos tipos de
transgressores. Assediadores e assaltantes de imagens que, como qualquer
criminoso, violentam o que está ao seu alcance, mas sempre se aproveitando do
fator capital-imagem. Desde o velho apresentador de televisão que assedia
sexualmente a jovem cantora até o ex-namorado que faz chantagem com
“nudes”, estamos na esfera do assédio audiovisual.
Já o jovem que chega com um telefone celular diante de alguém e grava sua
imagem sem autorização é um assaltante midiático. Muitas vezes, esse
transgressor desconhece as regras que regulam o direito de imagem e a
necessidade de autorização para que ela possa ser gravada e exibida. Mistura de
assediador e assaltante, é comum que esse transgressor, munido de uma
violência que lhe foi concedida desde os primeiros anos de idade quando ganhou
seu primeiro celular, saia por aí a gravar aqueles cuja imagem ele inveja e, por
isso mesmo, quer destruir. A mania de selfies com celebridades é da ordem dessa
capitalização, mas só é assalto se não for consentida.
O assaltante audiovisual usa as tecnologias como armas. O telefone, o
tablet, o computador são armas. A internet, um ambiente criminoso. Mas, como
acontece com todo jovem transgressor, ele não criou o crime sozinho. É apenas
uma vítima na escala do crime em que grandes empresas de comunicação, da
televisão à internet, dominam o mercado e colocam pessoas a agir como
criminosas.
O assaltante de imagens busca roubar a cena, justamente o que ele não tem,
aquilo que ele almeja desde que foi capturado pelos princípios do capitalismo,
todos eles voltados ao esvaziamento da subjetividade. Poderia ser um relógio,
uma carteira, uma bolsa, poderia ser até mesmo um celular, mas é apenas um
momento, um rosto, uma cena o que se está a roubar.
“Bandidos midiáticos” organizam emboscadas e torturas midiáticas e
podem chegar a matar. A morte pela imagem é uma morte típica do nosso
tempo. Se trata de matar reputações que nada mais são do que valorizações pela
imagem sem as quais não se pode existir no mundo do espetáculo.
Enquanto isso, a indústria das fake news cresce para acabar de vez com a
capacidade humana de pensar. As corporações midiáticas praticam o novo
grande crime antes exclusivamente operado pelos bancos.

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A política brasileira explicada pelo irrealismo
wilson gomes

Na democracia, não manda quem tem juízo, mas quem tem mandato. A
democracia não é um sistema projetado para que governe o melhor, mas quem
ganha a eleição. Não é eleito quem merece vencer, mas quem consegue mais
votos. Na democracia, em suma, não bastar estar certo, é preciso ser popular.
Isso deveria ser bastante para que as pessoas temperassem com uma
considerável dose de realismo as suas expectativas sobre o regime democrático.
E para impor uma perspectiva realista sobre eleições democráticas e o que delas
resulta. Um realismo são e consequente deveria fazer as pessoas entenderem
que, em regimes democráticos, ganhar eleições não é menos importante do que
ter princípios, conseguir mandatos no Executivo e no Legislativo não é menos
relevante do que ter razão, convencer a maioria dos eleitores não é menos
necessário do que ter superioridade moral.
Isso não quer dizer que adotar princípios elevados e defender causas
orientadas por valores reconhecidamente universais sejam desimportantes e que
se possa produzir democracias consistentes e sociedades dirigidas ao bem
comum por meio do vale-tudo, em que os comportamentos na disputa política
são julgados apenas em função do êxito ou do fracasso eleitoral. O realismo
político é uma coisa, a Realpolitik, a prática política do qual são drenados
princípios e valores até que nada reste a não ser estratégia e táticas, é a sua
degradação. Esse ultrarrealismo levaria à posição parodiada por uma fala célebre
de Groucho Marx: “Esses são os meus princípios, e se você não gosta deles...
bem, eu tenho outros.”
A esquerda acadêmica continua ótima em criticar a Realpolitik,
considerada, com razão, uma forma degradada e desprezível de prática política.
Fugindo do ultrarrealismo, contudo, em vez de parar em alguma forma de
realismo consequente e equilibrado, acaba se refugiando em uma espécie de
idealismo. Que consiste justamente em perder de vista o fato de que, ao fim e ao
cabo, o meio que confere a algumas pessoas o direito de exercer mandatos
legítimos em uma legislatura não leva em conta méritos, valores ou princípios,
mas simplesmente o número. Assim, se você quiser governar, precisa se
transformar em maioria. Se você tem um projeto incrível de sociedade, é melhor
convencer disso a maioria dos seus concidadãos, porque se os méritos do seu
projeto não forem materializados em votos não poderão ser levados em
consideração na hora da aferição de que projetos serão realmente
implementados.
Naturalmente, esse não é um problema apenas da esquerda acadêmica e
nem necessariamente é um problema conceitual. Aécio Neves, por exemplo, está
na origem da profunda crise política que se arrasta no Brasil há anos porque ele,
o PSDB e os seus aliados se convenceram de que o neto de Tancredo merecia
mais ser presidente da República em 2014 do que Dilma Rousseff. Como as
urnas não compartilharam nem refletiram tal convicção, malditas sejam as urnas
e os minúsculos homens vermelhos que as sabotaram. Uma vez que o
instrumento de que a democracia se dota para determinar quem irá governar, o
voto, ignorou os presumidos direitos que Aécio tinha de ser presidente da
República, o realismo mandaria que o derrotado fizesse as pazes com a realidade
ou até mesmo que negociasse com ela, enquanto o idealismo lhe disse que aquilo
não tinha cabimento, que alguma coisa de muito errado havia de ter sucedido, ou
com as urnas ou com a lisura do processo eleitoral ou com os estúpidos eleitores
do PT. Deu no que deu: a conspiração pelo impeachment, o truque para tirar da
soberania popular a última palavra sobre quem governa, a completa
desestabilização do sistema político brasileiro, o sentimento antipolítica, a perda
de controle sobre o antipetismo, a renovação conservadora do sistema político
nessa disputa, a eleição de Bolsonaro.
Quando, em 2013, multidões ganharam as ruas para “protestar contra tudo
isso que está aí”, na iluminada e solidária expressão de uma âncora da TV
Globo, a um determinado momento ficou claro que, por maiores que fossem as
diferenças internas entre os protestantes, havia convergência no fato de que se
debitava na conta do governo e do sistema político quase toda a insatisfação que
movia a massa. A esquerda acadêmica correu aos simpósios para celebrar o
nascimento de uma nova política, realizada por massas generosas e autogeridas,
conduzida por novos atores sociais fora do sistema político convencional e,
sobretudo, atravessada por pautas e práticas não tradicionais, como as novas
agendas identitárias e os “coletivos” que as sustentavam. E, claro, decretando,
pela enésima vez, a crise da democracia representativa, já no seu estertor.
Era a 54ª Legislatura na Câmara e no Senado (2011-2015) que,
naturalmente, tinha feições medonhas no que tange a patrimonialismo,
clientelismo e corrupção. Como a meninada havia ocupado as ruas físicas e as
praças digitais “para mudar o Brasil”, todas as esperanças repousavam na
promessa de que a 55ª estaria, enfim, à altura do merecimento das forças do
gigante que, finalmente, havia acordado. O fato é que, sob todos os aspectos, a
55ª Legislatura (2015-2019) que a substituiu depois da primeira eleição realizada
ainda sob o efeito da Primavera Brasileira, em 2014, tinha traços ainda piores do
que a Legislatura que a precedeu, com considerável crescimento das famigeradas
bancadas da Bala, Boi e Bíblia. Aparentemente, o mesmo furor moral contra
tudo o que estava aí, que foi às praças entre 2013 e 2014, protestando,
quebrando, incendiando, ocupando, demonstrando, resolveu não visitar as
cabines eleitorais em 2014, em grande parte porque lhe movia a convicção que
há sempre mais legitimidade nas ruas que nas urnas. E assim, mais uma vez,
quem fez barricadas perdeu de quem fez bancadas, quem cuidava de ter razão
não se preocupou em ter votos e a vida como ela é seguiu o seu rumo.
E continuou aprontando das suas, pois a mesma fúria santa, a mesma
indignação moral, produziu entre 2015 e 2018 o impeachment, o governo Temer,
a vitória do bolsonarismo e, para rematar, a 56ª Legislatura, a assustadora
“renovação conservadora” do Congresso Nacional, que promete fazer a 54ª
Legislatura parecer um convento de freiras piedosas e devotas. E, claro, tudo vai
para a conta da democracia, não da alienação idealista que não dá a mínima
chance a um saudável realismo político.
Por fim, até o início de setembro muitos amigos de esquerda não abriam
mão do seu “lulonhilismo” eleitoral (“ou Lula nada”, “eleição sem Lula é
golpe”) e reagiam energicamente contra quem lhes dizia que, do ponto de vista
estratégico, esta decisão poderia resultar em uma tragédia eleitoral, grudados na
certeza de que “mais importante que ganhar eleições são os princípios”. E
mesmo quando se fez a certeza jurídica de que o nome do ex-presidente não
estaria na urna eletrônica, aguentaram firmemente o princípio segundo o qual o
candidato tinha que ser Lula por uma questão de direito, de justiça, de reparação.
Terminada a eleição e confirmado o desastre, agora vem a parte amarga e
patética, como a confirmação de que genéricos de Olavo de Carvalho, o
tresloucado astrólogo que se decretou filósofo e cuja colagem de sandices e
cretinices, para espanto geral, alimenta ideologicamente o bolsonarismo, vão
controlar as Relações Exteriores e a Educação. Ora, se nos repugna malucos
ultraconservadores assumindo o status de ministros de Estado, teria sido vencer
a eleição. Mas se a prioridade era ter razão, exigir um desagravo ou ter
superioridade moral, não há propriamente do que reclamar, pois não?
entrevista Fatima Bezerra
“Para a democracia se consolidar, precisamos de
mulheres na política”
amanda massuela

Desde o fim de outubro, o nome da senadora Fátima Bezerra (PT) ganhou dois
predicados: única mulher eleita para um governo estadual nas eleições de 2018 e
governadora mais votada da história do Rio Grande do Norte. A paraibana de 63
anos, nascida no município de Nova Palmeira, filha de uma parteira e de um
pequeno agricultor, recebeu mais de 1,2 milhão de votos, tornando-se também a
primeira a se eleger ao governo daquele estado tendo ultrapassado os seis dígitos
no resultado das urnas.
Pedagoga formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), Bezerra tem um longo histórico de atuação no campo da educação: deu
aulas nas redes estadual e municipal de Natal nos anos 1980; foi duas vezes
presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Rio Grande do
Norte e uma das fundadoras do Fórum Estadual dos Servidores Públicos, além
de ter participado do congresso de construção da UNE, em Salvador, em 1979.
Com dois mandatos como deputada estadual (1994 e 1998), três como
deputada federal (2002, 2006 e 2010) e um como senadora (2015), assume, em
1º de janeiro de 2019, o governo de um Estado considerado pioneiro na
participação das mulheres na política: vieram de lá o primeiro voto feminino, em
1927, com a professora Celina Guimarães Vianna; a primeira prefeita da
América Latina, Alzira Soriano, em 1929, e o maior número de governadoras na
história da redemocratização – Bezerra é a terceira, precedida por Wilma de
Faria (PSB) e Rosalba Ciarlini (DEM). Mas é também o estado com o maior
número de mortes de mulheres (uma taxa de 8,4 por 100 mil habitantes, segundo
dados mais recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública) e casos de
estupro registrados no Sistema Único de Saúde (4.088 em 2016, segundo o Atlas
da Violência de 2018).
“Isso tem a ver com toda a cultura do patriarcado, que alimenta o traço
machista da sociedade, machismo que, inclusive, ainda é muito forte nos espaços
de decisão política como os legislativos”, diz à CULT, por telefone, de Brasília,
onde cumpre mandato como senadora. Nesta entrevista, ela relembra sua
trajetória política, critica o projeto de “censura” do Escola Sem Partido e afirma
que “para a democracia se consolidar, precisamos das mulheres na política”.
Foi no ambiente da universidade que você deu seus primeiros passos na
política, nos anos 1970. Como foi esse envolvimento?
Eu diria que o contato com a política de forma mais ampla se dá no movimento
social, quando eu começo a minha militância no sindicato dos professores. Sou
uma migrante (saí da Paraíba para o Rio Grande do Norte) de família de origem
pobre, que passou sempre muitas dificuldades na vida. Na minha adolescência,
por exemplo, fiquei uns dois anos sem estudar porque na cidadezinha em que eu
morava não tinha mais condições de dar continuidade aos estudos. Mas o fato é
que vou para Natal morar em casa de família e ali começo a minha vida. Sempre
estudei em escola pública, depois ingressei na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, cursei Pedagogia e iniciei minha participação no movimento
social na luta pela defesa da educação pública e na valorização do magistério.
E por que decidiu entrar para a política institucional?
Foi uma decorrência natural, acho que isso tem a ver com a minha condição de
classe: venho de uma geração de nordestinos que viu a seca de perto. Eu não
conheço a seca pelo livro de história, eu vivi a seca na minha adolescência lá no
Seridó Paraibano. Eu vivi aqueles tempos em que não morria só gado, morria
gente. Vivi a falta d’água, a falta de comida. Trago na minha história a
dificuldade de não ter o direito de estudar. Essa minha condição, do ponto de
vista de origem social, fez aflorar um sentimento de justiça. E isso naturalmente
tinha mais é que desaguar na luta social, e mais natural ainda é que desaguasse
no PT, um partido em que cabe o meu sonho de justiça, de um mundo livre de
qualquer tipo de opressão, de discriminação e de preconceito. É por aí. Minha
mãe era parteira, meu pai era agricultor, uma família de formação católica que
preservava muito os valores da solidariedade, do respeito. Eles dividiam o pouco
que a gente tinha com os que tinham menos que nós. Minha mãe não ganhava
nenhuma remuneração, mas era um trabalho que fazia com muita dedicação, e o
mais bonito era que quanto mais pobrezinha fosse a mulher mais ela a acolhia
com carinho, porque no fundo ela sentia aquela fragilidade. Às vezes ela levava
da nossa própria casa alguns mantimentos, porque sabia que a família não tinha
uma comidinha, um pedacinho de carne para fazer um caldo. Esse é o meu
contexto, que eu coloco para você com o sentimento do realismo. Foi isso o que
me estimulou para a luta social, e depois para a participação política, vendo
sempre o exercício da militância como um instrumento de luta em prol da
justiça, para melhorar a vida das pessoas. É assim que eu vejo o exercício da
política, não como um ato de promoção pessoal; de vaidade, isso eu não trago na
minha história de maneira nenhuma. Trago a política como um exercício que me
permite lutar pelas causas em que eu acredito, que têm como filosofia geral uma
sociedade livre, justa e solidária.
Como parlamentar com histórico na defesa da educação, como vê a
insistência no projeto Escola Sem Partido?
Esse projeto é um desserviço à educação democrática e cidadã que nós
defendemos, ancorada nos princípios da liberdade, da solidariedade humana e do
exercício da cidadania. É um desserviço porque atenta contra a nossa própria
Constituição e contra a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
que preservam a liberdade de cátedra, de ensinar e de aprender. A minha
esperança e a minha confiança, enquanto professora e educadora que sou, é que
essas ideias não vão prosperar. Além da forte mobilização social que há no
conjunto da sociedade contrária a essa ideia estapafúrdia, o Poder Judiciário e o
Ministério Público, por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão,
vêm se manifestando contra esse Projeto de Lei, inclusive destacando que ele
nasce completamente eivado de inconstitucionalidade. O que o Brasil precisa
não é de Escola Sem Partido, mas de escola com professores bem remunerados,
com condições dignas de trabalho. É preciso que nosso sistema educacional
avance com condições adequadas para que os estudantes possam ter pleno
desenvolvimento.
No Maranhão, o governador Flavio Dino editou um decreto reafirmando a
liberdade de pensamento de professores e funcionários nas escolas da rede
estadual. É uma iniciativa possível em seu governo?
Sem dúvida nenhuma. A escola é um espaço do pluralismo de ideias, e não pode
ficar ilhada na sociedade. Nossos professores têm que estar preparados para lidar
com a realidade da forma como ela se apresenta. E a escola tem o papel de
promover a solidariedade, o respeito à diversidade, do qual ela não pode abdicar
de maneira alguma. O que o Escola Sem Partido traz no seu bojo é a censura, é
disso que se trata. É uma mordaça que querem colocar na boca dos professores,
um absurdo totalmente na contramão do processo civilizatório. Parabenizei
Flavio Dino e repito: se necessário for, no Rio Grande do Norte tomaremos
medidas semelhantes. Espero, inclusive, que essa atitude sirva de exemplo para o
restante do país.
Você costuma lembrar que o Rio Grande do Norte é a terra de Nísia
Floresta, considerada a primeira educadora feminista do Brasil. É uma
referência para você?
Sim, para nós mulheres que não abdicamos de maneira nenhuma da utopia que é
a igualdade de oportunidades. Foi uma mulher revolucionária para a sua época,
que cumpriu um importante papel se a gente considerar que as mulheres, durante
muito tempo, não tinham sequer direito ao estudo. É uma referência. O Rio
Grande do Norte, aliás, é pioneiro na luta pela participação das mulheres na
política. O primeiro voto feminino se deu lá e a primeira mulher prefeita da
América Latina também saiu do Rio Grande do Norte.
Mas há críticas de que esse pioneirismo não se traduziu em ganho para a
pauta das mulheres – é o Estado com o maior número de casos de estupro
registrados no SUS, segundo o Atlas da Violência de 2018. Como pretende
enfrentar isso?
É verdade, o Rio Grande do Norte ostenta o título de estado mais violento do
Brasil e, nesse contexto, o número de atos de violência contra a mulher é muito
significativo. Isso tem a ver com toda a cultura do patriarcado, que alimenta o
traço machista da sociedade, machismo que, inclusive, ainda é muito forte nos
espaços de decisão política como os legislativos. Um dos nossos principais
desafios a partir do ano que vem será ter uma política de segurança pública
eficiente para diminuir esses índices, e queremos adotar ações voltadas para a
proteção das mulheres. Não temos, por exemplo, estrutura para acolher as
mulheres vítimas de violência. A Patrulha Maria da Penha só funciona durante a
semana e de forma precária, pois falta pessoal. As delegacias de atendimento
especializado, além de serem insuficientes, padecem de condições mínimas de
trabalho. Vamos ter uma rede de proteção dos direitos das mulheres, que passa
pela instituição de casas abrigo, colocar em funcionamento pleno a Patrulha
Maria da Penha, fortalecer e ampliar as delegacias da mulher que existem,
fortalecer também a Secretaria Estadual de Mulheres para que ela dialogue com
as demais estruturas de poder no Rio Grande do Norte. Também quero muito
que, com o novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica), os municípios tenham condições de ampliar a oferta de
creches, que dão condições para as mulheres buscarem lugar no mercado de
trabalho sabendo que estão deixando seus filhos bem cuidados. Todo esforço nós
faremos para que elas possam viver uma vida sem violência.
Você mencionou o machismo nos espaços de decisão política. Nas eleições
deste ano, de cada dez candidatos, apenas três eram mulheres, segundo
dados do TSE. Quais barreiras as mulheres enfrentam já no acesso à
política institucional?
Não tem como desconsiderar a dupla, tripla jornada de trabalho. E, em que pese
todo o esforço dos movimentos de mulheres dos mais variados que temos em
nosso país – aliás, as mulheres têm tido um papel até de vanguarda na luta em
defesa da cidadania e em defesa da democracia –, infelizmente temos
instituições ainda muito avessas à compreensão de que, para a democracia se
consolidar, precisamos das mulheres na política. Tivemos uma lei de cotas, tudo
bem, foi importante, mas se revelou insuficiente, porque não basta dizer que
30% das vagas nas eleições devem ser destinadas a mulheres. Temos que
avançar, como fizeram outros países que, além de definir um mínimo de
candidaturas, estabeleceram um mínimo de assentos. Sequer temos uma
legislação que assegure uma participação, por menor que seja, na mesa diretora
do Legislativo nacional; sequer conseguimos a aprovação de propostas que
tramitam aqui dentro para garantir no mínimo 10% das vagas do Congresso
Nacional às mulheres. Que dirá paridade? Recentemente virou lei que 30% do
fundo partidário será destinado a candidaturas de mulheres, e isso causou
polêmica, com alguns partidos querendo burlar essa lei. As mudanças só
acontecerão se vier um movimento de fora para dentro. Temos que enxergar a
realidade como ela é, e intensificar a mobilização social e política para romper
com esse défice de representação.
Você é a terceira mulher a assumir o governo do Rio Grande do Norte, mas
a primeira de origem popular. Isso aumenta sua responsabilidade em
melhorar a vida da classe trabalhadora, das mulheres e das minorias?
Sim, claro. Evidente que, eleita governadora, vou governar para todos, os que
votaram em mim e os que não votaram, por isso tenho dito que vai ser um
governo pautado pelo diálogo, um traço muito forte da minha história de vida, de
militância da luta social e política, saber ouvir as pessoas, o próprio movimento
social já me ensinava isso. No parlamento, aprimorei isso mais ainda, porque ali
você ouve os pontos de vista mais díspares, é a casa dos contrários. Então você
tem que desenvolver a capacidade de escutar e, a partir daí, exercitar o diálogo
com vistas a construir consensos. É exatamente isso o que vou fazer no governo.
É essa mesma posição que pretende manter com o presidente eleito Jair
Bolsonaro?
Veja bem, nessa hora eu tenho que separar questões de natureza ideológica e
diferenças de natureza partidária. Eu sou governadora do Rio Grande do Norte,
essa é a missão que eu recebi, assim como Bolsonaro foi eleito presidente do
Brasil. Se dependesse do Norte e do Nordeste, o presidente seria o professor
Fernando Haddad, mas a maioria elegeu Bolsonaro. Meu relacionamento com
ele será de natureza institucional, com respeito ao presidente, assim como ele
tem que respeitar os governadores, e todos temos que respeitar a democracia.
Nesse sentido, vou atuar junto ao Fórum dos Governadores do Nordeste e serei
incansável na defesa dos interesses do povo do Rio Grande do Norte.
dossiê Sexologia política
Apresentação
marcia tiburi

O sexo, por tanto tempo perseguido e demonizado, tantas vezes falado e


pesquisado, vem sendo deixado de lado em muitas análises que se beneficiariam
de uma atenção maior ao seu âmbito. Tornado algo banal e corriqueiro, presença
cada vez mais comum nos programas e novelas de televisão, o sexo vem sendo
subestimado em nossa vida social. É como se, de tanto aparecer, ele tivesse
perdido a sua força. Ninguém mais quer saber de sexo. Todo o interesse que
havia nao sexo dos jovens, dos casais, dos burgueses, das mulheres, dos
religiosos, dos amantes deixou de ser importante diante de um único tema, a
perversão da pedofilia.
Hoje em dia só se fala em pedofilia. Como se tudo o que diz respeito ao
sexo estivesse bem, exceto a pedofilia. A propósito, seu uso estratégico na
campanha presidencial brasileira, com a fabricação de uma imagem perversa de
uma “mamadeira em forma de pênis”, se não chegou a substituir o uso
estratégico dado à corrupção na fabricação de inimigos, certamente reforça a
ideia de que a esquerda é o mal. A estratégia dos grupos que criaram essa
mamadeira e dedicam-se a sustentar a mentira do “kit-gay” segue sem limites ao
imaginário voltado à produção de uma narrativa da perversão da esquerda. A
esquerda corrupta e pedófila é traduzida para o cidadão comum como a imagem
do mal. Resta, a quem tiver tempo, divagar sobre o uso que se deu a esse objeto
pornográfico em posse dos adultos que o inventaram.
A questão da pedofilia é das mais sérias e graves. Ela representa um limite
para a compreensão, sobretudo porque as crianças são sujeitos vitimados que não
têm como defender ou responder por si mesmos. Não há espaço para nos
dedicarmos a esse tema no momento. Mas é importante levantar a questão para
que possamos compreender o horizonte ao qual dedicamos nossa atenção.
Por muito tempo, o Brasil levou fama de país liberado sexualmente. Ainda
em vigência fora do país, a imagem dos trópicos erotizados mostra mais do que
uma mera fantasia. Está sempre em jogo o interesse ou a projeção dos
colonizadores na sexualidade dos colonizados que, segundo os clichês de
sempre, viveriam soltos em praias, matas e ilhas selvagens, a gastar seu tempo
infinito em orgias longe de culpas cristãs. O campo do desejo é o campo de mil
projeções, onde surge todo tipo de delírio. Os índices de assassinatos de pessoas
LGBTs e de feminicídios, de estupros e violência doméstica sempre relacionadas
também à questão de gênero, demonstram a falta de sentido dessas fantasias.
Misoginia, homofobia, LGBTfobia são provas de que não estamos de bem com o
desejo em termos coletivos e culturais, de que há algo que ainda não foi
elaborado entre nós no campo da sexualidade. A proximidade entre sexualidade
e morte é uma pista que devemos seguir para entender o estágio atual do
autoritarismo brasileiro.
O poder se coloca entre a sexualidade e a morte em seu lugar mais
confortável. Se seguirmos Foucault em suas investigações históricas e filosóficas
sobre a sexualidade, podemos entendê-la como o conjunto dos discursos e
práticas, as tentativas de compreender e teorizar, o imaginário e o simbólico em
torno da ideia de sexo. Sexo é o que se diz e o que se faz, o que se imagina, o
que se usa, o que se troca, se dá ou se vende em seu nome. Sexo é o objeto de
teorias, de pesquisas, de leis e instituições. Sexo é um objeto de poder, ou até
mesmo uma forma de poder.
Assim como o gênero, sexo pode nos servir como categoria de análise
válida para pensar a nossa época. Precisamos falar mais em sexo, em identidades
e diferenças sexuais, em violências e abusos envolvendo o lugar do sexo. É
preciso falar de sexo como categoria de análise, assim como se deve falar de
capital, de Deus e de poder. Perceber a função dessas categorias em nossa vidas
é o caminho da nossa libertação de dominações e violências que nos são
impostas.
Aquilo que é tratado pelo senso comum ou pelas instituições de maneira
fundamentalista deve ser sempre investigado criticamente. A pergunta que
podemos nos colocar, portanto, diz respeito ao que essas categorias têm a nos
dizer quando somos corpos viventes e sobreviventes que lutam contra opressões
em nome de direitos básicos, tais como simplesmente existir.
Ora, quando falamos de sexo estamos também a falar de vida, de desejo, de
potencialidades, de erotismos, de ludicidades e, necessariamente, de todo um
modo de estar no mundo que, em termos simples, foi chamado de alegria de
viver, algo que se perdeu do cotidiano ao ser transformado em mercadoria ao
alcance apenas do capital.
Há uma aliança entre sexo e poder, uma aliança sustentada em um acordo
de aparências que devemos compreender. O sexo tem sido mantido em um nível
inconsciente e, justamente por meio disso, livrado da responsabilidade que,
assumida, reinscreveria o sexo na ordem do desejo e o salvaria da ordem do
poder no qual ele é usado contra a própria vida. É porque o sexo está a serviço
do poder, porque foi sequestrado por ele, que o desejo vai mal. Na guerra de
todos contra todos, que se torna cada vez mais visível, devemos voltar a Freud.
À oposição entre pulsão de vida e de morte. Tânatos impera contra Eros em
nossa cultura. A morte é um princípio, um ambiente mais atraente do que a vida
porque, de fato, não há mais espaço e tempo para o prazer. Mas por que o prazer
se perdeu dando lugar ao que chamamos de “gozo perverso”? O gozo do ódio e
da ignorância? O gozo da maldade?
Uma análise mais profunda da sexualidade em nossa época se faz mais do
que necessária. Para isso, é urgente uma ciência adequada ao objeto. Darei a ela
o nome provisório de sexologia política. Essa ciência interdisciplinar surge a
partir dos esforços da psicanálise, da estética, da filosofia, da antropologia, da
semiótica, da reflexão no campo da ética e da ciência política. Essa ciência não
busca apenas o conhecimento, mas um enfrentamento dos fantasmas que são
produzidos por sujeitos especializados em mistificar nossas vidas humanas,
simples e crédulas. Com o objetivo de descortinar as relações entre sexo e poder
é que criamos a sexologia política e oferecemos, os trabalhos que seguem,
alguns sinais iniciais do que essa ciência pode vir a ser.
Muitos dizem não acreditar nas promessas hiperautoritárias de
cancelamento de direitos e até matanças de opositores feitas pelo novo
presidente do Brasil e alguns governadores eleitos nos estados. Há quem, da
boca para fora ou de fato, concorde com o assassinato em massa, mas muita
gente não acredita que se possa chegar a tanto. É certo que os motivos pelos
quais não se pode acreditar no que vem sendo pregado envolve, de um lado, a
negação do horror. O desejo de que o que se promete não aconteça ou a aposta
de que as pessoas eleitas não sejam tão loucas ou tão más pode ser real.
Curiosa, no entanto, é a manifestação de não se acreditar nas promessas,
quando esses candidatos, na verdade, não prometiam muito mais do que isso.
Quem saberia dar resposta à pergunta sobre o que eles realmente prometiam
além da aniquilação do inimigo? Ora, levar a sério a “descrença” é urgente
quando ela se torna um fator eleitoral no ato em que se elegem candidatos sem
outras propostas além de matar seus opositores.
De fato, o ódio a um “inimigo”, essa outra figura que emerge na política
contemporânea, vem sendo fundamental há anos no Brasil. Por menos
impactante que seja a descrença quando comparada ao ódio, ela pode não ser
muito diferente dele. Sua função concreta é a de servir de desculpa para dar aval
à matança. Se ainda se pode ter alguma vergonha em relação ao ódio que se
sente, e certa culpa, a descrença vem a apaziguar de toda culpa. Aquele que diz
“não acreditar” vive menos o seu próprio ódio no instante em que ele é
recalcado. Aquele que não acredita talvez não seja nem cínico, nem hipócrita,
nem simplesmente uma vítima do seu próprio recalque. Talvez ele nos revele
uma outra categoria importante para a análise política, a covardia. Tão covarde
quanto aquele que ameaça matar enquanto posa de valentão é aquele que diz não
acreditar para não posar de culpado.
Ao falarmos de covardia, nos referimos a um vício moral por oposição à
virtude da coragem. Covarde é a figura de uma negação. Do sujeito “em cima do
muro” ao que disfarça, há o fraco que enfrenta os mais fracos para parecer forte.
Mas a covardia é mais do que uma filosofia das virtudes morais poderia nos
sugerir. A covardia é também uma tática do poder muito bem utilizada e
administrada. Há uma figura da covardia complexa no Brasil, aquele que se
mostra valentão ameaçando matar e ao mesmo tempo conta com um covarde que
não quer acreditar. Em geral, o cínico que está no poder é também um covarde
que convence um outro, que coloca esse outro na posição de otário. Esperto, ele
vive de administrar um grande escamoteamento.
Mas não é só o elo que une cínicos e otários, ou mistificadores e descrentes,
o que está em jogo. A maior parte dos que não elegeram o mal também não
acreditam que ele seja possível. Sabemos que, na Alemanha nazista, muitos não
acreditaram, sejam alemães ou judeus, sejam sobreviventes ou vítimas. A
descrença acoberta a covardia e, por isso mesmo, é valorizada.
Tendo isso em vista, podemos nos colocar a questão sexual. No Brasil das
últimas décadas, os jogos de poder político se fazem como jogos sexuais. Jogos
em que a linguagem sexual assume uma característica eminentemente política de
um modo que nos obriga à análise.
É nesse sentido que coragem e covardia são mais do que problemas morais,
são problemas políticos. Podemos falar de coragem ou covardia para respeitar a
democracia, por exemplo. Mas devemos, a partir dessas categorias, levantar
outra hipótese que pode nos ajudar a descortinar os jogos de poder político no
Brasil. Isso porque a questão da oposição entre coragem e covardia encontrou
uma configuração que até agora permanece não analisada.
Coragem e covardia são também categorias que nos permitem pensar a
sexualidade. Levando a sério que o sexo é um dispositivo de poder, tal como
expresso na teoria de Foucault, gostaria de sustentar que há entre nós jogos de
poder que são, em tudo, não apenas aplicação do dispositivo, ou seja, um certo
uso que se faz do sexo, por exemplo, tornando-o algo incompreensível e sempre
passível de uma “vontade de saber”. É verdade que o sexo se confunde com o
poder e é por ele usado, mas do mesmo modo o sexo também usa o poder. Nesse
caso, o sexo não seria algo simplesmente submetido ao poder. Hetero e
homossexualidade são “cenas” do poder ou de um contrapoder. A
heterossexualidade é a ideologia em vigência. Ideologia, por sua vez, nada mais
é do que a grande mentira na qual todos estão mergulhados como se ela fosse a
grande verdade. Isso não quer dizer que a homossexualidade seja a verdade,
apenas que, na lógica do poder, ela faz outro papel.
Em certa época se falou muito de “orgulho gay”, mas hoje em dia podemos
falar em algo como “coragem LGBT”. A coragem é a capacidade de assumir, de
não esconder, em oposição à covardia que sempre escamoteia. A coragem LGBT
vem sendo fortemente combatida há séculos e com mais força há anos no Brasil
autoritário, pois ela rompe com regras de um jogo previamente estabelecido
pelos representantes da heterossexualidade compulsória que estão desde sempre
no poder, pelos donos do poder que fazem a cena da heterossexualidade. O
poder tradicional se sustenta por meio da aparência da heterossexualidade como
podemos ver no estilo “tradição, família, propriedade”, ele mesma uma pura
ideologia, um arranjo mais estético do que moral.
Todos os que vociferam contra a vida alheia querem não apenas que os outros
morram, mas querem também morrer. A subjetividade à qual demos o nome de
fascista é esfacelada, efeito de um grande rombo produzido por relações doentias
e más. Sejam os fascistas de Estado, aqueles que ocupam cargos de poder, sejam
os “fascistas em potencial” do dia a dia, todos têm um profundo rombo na
subjetividade. Esse rombo interno é ocultado por um véu de agressividade que se
torna estilo de ser e de viver e, no limite, objeto de mistificação. A agressividade
é um valor que os otários submissos reconhecem em seu líder cínico autoritário.
Ora, o que uma subjetividade fascista deseja é o que ela justamente projeta
para fora de si por meio da linguagem e de seus atos. O desejo de morrer. Ela
sabe quais são seus próprios crimes. Ela é movida pelo desejo de matar, um
desejo de matar que é projeção de um desejo infinitamente mais radical, o de
morrer. Não há Deus, drogas, dinheiro que seja suficiente para conter esse desejo
irrealizável, pois o sujeito está já morto. Quem possa vir a conter esse desejo
com alguma promessa de vida deve ser eliminado. Pois viver também não é
possível.
Dito tudo isso, podemos falar do uso político da sexualidade nos últimos anos.
Não foi por acaso que Dilma Rousseff foi objeto de tanta misoginia. Sexo é uma
categoria de análise tanto quanto gênero, e também ajuda a entender o seu caso.
Mas ajuda a entender também a ascensão de Bolsonaro.
A homofobia mostra-se hoje como um padrão bastante manipulável no
contexto autoritário. Ela não é mais rejeitada ou ocultada por vergonha. Com
Jean Wyllys, a homossexualidade foi objeto de preconceito, mas não por si
mesma. O mal de Jean foi declarar-se a partir de seu “orgulho gay”, a coragem
LGBT de nossos dias. Ao declarar-se como o único deputado que assume sua
homossexualidade, ele quebrou com um acordo prévio sobre o ocultamento da
homossexualidade que garante o poder derivado da cena “tradição, família,
propriedade”. Ele rompeu com a hipocrisia e praticou a maior heresia possível,
uma heresia tão imensa quanto ser uma mulher incorruptível e de esquerda,
como Dilma Rousseff, e ousar ser presidenta de uma república autoritária e
machista comandada por corporações midiáticas.
Há uma camada mais complexa e incontornável da sexualidade, ela diz
respeito ao desejo, mas a um desejo que, deixando de ser vivido de modo
saudável, se deixa corromper em ódio. Esse desejo se expressa como ordem de
matar. Ora, o ódio é um afeto marcado por projeções. Odeia-se aquilo que se
deseja e não se pode ter por falta de autorização externa ou interna. Destruir
aquilo que se deseja e não se pode ter é uma regra do inconsciente. Que o Brasil
seja o campeão em assassinatos de pessoas LGBTs é um sintoma de algo que
nossa sexologia política deve nos ajudar a compreender e superar.

A política sexual do bolsonarismo


Renan Quinalha

A eleição de Jair Bolsonaro para presidente, em campanha baseada na


combinação indigesta de discursos de ódio com fake news, tem despertado
diversas análises com o objetivo de compreender essa vitória algo surpreendente.
Afinal, como seria possível aclamar chefe da nação um candidato que
desqualifica a democracia, vocifera preconceitos e estimula violências contra
diversos grupos vulneráveis?
A questão é complexa e demanda uma reflexão em distintos níveis e
frentes. Certamente, há fatores determinantes que vão desde a violência
estrutural naturalizada na formação da pouco cordial sociedade brasileira até o
colapso institucional da Nova República, passando pelo antipetismo alimentado
pela mídia e por setores do Judiciário em uma cruzada hipócrita contra a
corrupção nos últimos anos. Todas essas variáveis são decisivas, mas uma
dimensão ainda é negligenciada no debate público sobre a emergência do
fascismo tupiniquim atual: sua íntima associação com uma política moral e
sexual determinada.
É verdade que todos os regimes políticos e formas de governo dispõem, em
maior ou menor grau, de normas e instituições para regular dimensões da vida
familiar e sexual de seus cidadãos. A invasão da esfera particular não é uma
exclusividade de ditaduras. No entanto, quanto mais fechado e conservador é o
regime político, maior a tendência em intensificar modos de controle nos
espaços públicos e privados. A partir dessa perspectiva, pode-se afirmar que um
indicador fundamental do grau de liberdade, inclusão e democracia de um
determinado regime ou governo é a maneira como integra ou não uma agenda de
diversidade sexual e de gênero nos discursos oficiais e nas políticas públicas.
Ainda é cedo para afirmar, com precisão, como será o iminente governo
Bolsonaro no campo da sexualidade. Mas abundam declarações do futuro
presidente, há anos pregando violência descarada contra homossexuais. No país
em que mais se matam LGBTs no mundo todo, o horizonte de uma provável
LGBTfobia cada vez mais institucionalizada nas agências estatais e tolerada na
sociedade é preocupante.
No entanto, guardada a singularidade do atual momento histórico, não é
exatamente inédito o uso de políticas sexuais para o autoritarismo político. As
analogias com a ditadura civil-militar de 1964 são não apenas incontornáveis,
mas necessárias quando temos um presidente cujo maior herói é Carlos Alberto
Brilhante Ustra, mais notório torturador do Brasil recente, assim reconhecido por
Comissões da Verdade e pelo próprio Judiciário.
A retórica moralidade pública e dos bons costumes foi central na
construção da estrutura ideológica que deu sustentação à ditadura. A defesa das
tradições, a proteção da família, o cultivo dos valores religiosos cristãos foram
todos, a um só tempo, motes que animaram uma verdadeira cruzada repressiva
contra setores classificados como indesejáveis e considerados ameaçadores à
ordem moral e sexual então vigente.
As diversas manifestações da Marcha da Família com Deus pela Liberdade,
ocorridas entre março e junho de 1964, foram um prenúncio revelador do que
estaria por vir. Católicos conservadores, grupos femininos de direita, moralistas
de ocasião, grandes proprietários rurais e outros ramos do empresariado, bem
como outras camadas das classes médias insufladas pelo discurso do combate à
“corrupção” e à “ameaça comunista”, ocuparam as ruas de diversas cidades
brasileiras contra o governo João Goulart clamando por uma intervenção
redentora das Forças Armadas e, a partir de abril, efetivamente em apoio ao
golpe civil-militar.
A agenda de valores conservadores desses setores que realizavam algumas
das maiores manifestações públicas de nossa história política, de certo modo,
mobilizava anseios antigos, mas também atualizava uma reação contra as
mudanças atravessadas pela sociedade brasileira daquela época. Com efeito, para
além das políticas progressistas e nacionalistas propostas pelo governo Goulart,
tais como as Reformas de Base, desde a década de 1930 estavam em curso
transformações culturais mais profundas decorrentes do processo de urbanização
e modernização no Brasil, que desestabilizavam as relações tradicionais em
diferentes planos. Os costumes e as sexualidades não passavam incólumes aos
agitados anos 1960.
Assim, as elites militares que capitanearam o golpe, com o apoio decisivo
de setores civis, não demoraram a catalisar esse sentimento reacionário difuso
em um discurso coeso capaz de justificar ideologicamente o novo regime em
perfeita sintonia com as demandas por mais segurança, solidez das tradições e
respeito à ordem que se estava perdendo ao longo do tortuoso caminho do
desenvolvimento. O discurso marcadamente anticomunista, em prol da
segurança nacional, apresentou-se em perfeita congruência histórica com a ânsia
conservadora pela preservação da família e dos valores cristãos.
Os Atos Institucionais foram instrumentos legais relevantes na montagem
da nova institucionalidade, materializando um atrelamento estrutural entre moral
e política que foi constitutivo da ordem autoritária. O AI-1, de 9 de abril de
1964, que veio à tona para “fixar o conceito do movimento civil e militar” que
tomou o poder, esclarecia, de partida, a tarefa de “reconstrução econômica,
financeira, política e moral do Brasil”, bem como “toma[va] as urgentes medidas
destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não
só na cúpula de governo como nas suas dependências administrativas”. Já o AI-
2, de 27 de outubro de 1965, reforçava os já enunciados “propósitos de
recuperação econômica, financeira, política e moral do Brasil”, bem como o
desafio de “preservar a honra nacional”.
Por sua vez, o mais duro dos atos, o AI-5, outorgado em 13 de dezembro de
1968, em seus “considerados”, já anunciava a necessidade de preservação de
uma “autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à
dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias
às tradições do nosso povo, na luta contra a corrupção”.
A partir desta breve exegese legal, é possível notar, claramente, um
discurso que consagra uma “ordem”, inspirada pelos “ideais superiores da
Revolução” e pela “honra nacional”, que devia ser defendida contra qualquer
ameaça de “subversão” e de “corrupção”, seja ela “política”, “cultural” ou
“moral”. A “democracia” deles não era apenas ocidental e capitalista, mas
também cristã, e precisaria estar permanentemente alerta contra os riscos criados
e alimentados por conspiradores de fora e de dentro das fronteiras nacionais.
Tratou-se de uma verdadeira “utopia autoritária”, com pretensões de
totalidade e de alcance absoluto de todas as dimensões da vida social. Um
regime ditatorial, em verdade, não é apenas uma forma de organização de um
governo orientado para a supressão de direitos e liberdades como um fim em si
mesmo, mas se abate sobre os corpos social, político e individual como um
verdadeiro laboratório de subjetividades para forjar uma sociedade à sua própria
imagem. Quaisquer obstáculos a serem trilhados, nesse sentido, para realizar a
vocação de grandeza do Brasil, deveriam ser removidos, eliminados.
As semelhanças dos discursos atuais de Bolsonaro com essa retórica
moralista não são mera coincidência, mas sim a continuidade de um mesmo
ímpeto e projeto de controle social de corpos e desejos. A patrulha moral do
passado se concretiza em signos vazios e transbordantes entoados como mantras:
“Escola Sem Partido”, “ideologia de gênero”, “kit gay”, “maioria contra
minorias” e “defesa da família”.
O bolsonarismo, em sua dimensão sexual, é a atualização dessa tradição
regressiva na forma de uma reação violenta diante das novas gramáticas morais e
das profundas mudanças operadas pelas lutas dos movimentos LGBT, feminista
e negro no Brasil. São mudanças culturais profundas operadas por essas lutas nas
últimas décadas, que desafiaram a hegemonia biopolítica do homem branco,
heterossexual, cisgênero e proprietário. E que sigam desafiando, porque governo
nenhum poderá ocultar o que os próprios desejos já revelaram.

O ignoródio ao gozo do outro


Antonio Quinet

Estamos vivendo um tempo de incitação ao ódio e à violência. Esse tempo não


começou ontem. Ele é velho como o mundo. A diferença dos tempos atuais para
os velhos tempos de sempre é que há hoje um discurso legitimador do ódio e da
violência que apresenta uma sinistra evolução do mal dirigido ao outro: o mal é
autorizado, banalizado e em seguida legalizado. E a intolerância ao diferente não
é excepcional, e sim regra. O ódio – que pode se expressar do xingamento ao
linchamento, do tapa ao assassinato – está ligado à estrutura subjetiva e social da
relação do sujeito com o outro como diferente e a sua forma de gozar. O
tratamento do ódio pode ir em duas direções: a da inclusão ou da exclusão do
outro nos laços sociais que constituem a pólis, cidade dos discursos.
Lacan detectou o ódio presente desde o estádio do espelho formador do eu,
mostrando que o eu se constitui sempre acoplado ao outro, que é o eu-ideal que o
sujeito projeta em seus semelhantes com os quais vive se comparando e
rivalizando. O eu nunca vem sozinho, ele é geminado ao eu-ideal visto como o
outro ameaçador. Esse outro é portanto igual e rival, pois compete com o sujeito
por um lugar ao sol no desejo do outro. Competição imaginária, dentro da lógica
“você ou eu” numa luta de puro prestígio, como qualificou Lacan, comandada
pela pulsão de morte. É o raciocínio da exclusão do outro por ele ter tomado o
meu lugar – justificativa, por exemplo, para expulsar o estrangeiro que veio
ocupar o lugar do nativo da terra. “O médico cubano veio tirar o meu trabalho”,
disseram alguns médicos brasileiros; ou como nos oitenta, quando eu trabalhava
na França, uma colega me falou a mesma frase: “Vocês estrangeiros vêm pegar
nosso trabalho”. Nada de novo. Só o mesmo absurdo.
Há um outro aspecto a ser introduzido no âmbito do registro do imaginário
que é o narcisismo da pequena diferença. É a pequena diferença, que Freud
aponta inicialmente como sendo a diferença anatômica dos sexos, cujo
fundamento é a ameaça de castração para os meninos e a inveja/desejo de pênis
para as meninas. Pequena mesmo, pois ambos são castrados. A diferença se trata
mesmo das formas de gozar: do todo fálico e não todo fálico que não tem nada a
ver com a anatomia. E todos, homens e mulheres (anatomicamente falando)
padecem da ameaça de castração da inveja do falo. Esse imaginário da diferença
fálica faz crer na superioridade de um sexo sobre o outro, que aparece na
violência do machismo e da misoginia. Isso vai do desprezo pelas mulheres (até
por elas mesmas) até o feminicídio.
Mas o fundamento do ódio está para além do imaginário e, sim, no real, no
campo do gozo. Apontar isso não significa desprezar o registro do imaginário,
pois todos os registros estão articulados.
Como um afeto do real, o ódio é uma paixão junto com o amor e a
ignorância, segundo Lacan. O ódio nunca vem sozinho, ele vem acoplado com o
amor, como Lacan, seguindo Freud, apontou com o termo de hainamoration,
enamoródio; ou junto com a paixão da ignorância, que podemos chamar de o
ignoródio. Que é a combinatória de paixões explorada pela extrema direita: a
estimulação do ódio, da violência, do medo e da ignorância. Assim, o debate é
substituído pelo insulto, a razão pela paixão da violência, os argumentos pelos
memes, a inteligência pela boçalidade. Fabricaram as mentiras do kit gay, de que
artistas mamam na lei Rouanet, de que as escolas públicas e universidades estão
infiltradas de comunistas para passarem goela abaixo um Estado neopetencostal,
uma escola sem partido, a destruição da saúde pública e do ensino público em
prol do capital e a implantação de um governo ultraliberal com a eliminação do
bem público em prol dos bens privados.
O ignoródio se associa à ignomínia, palavra que vem do latim e faz
referência à afronta pública. A etimologia do termo está relacionada a in-nomen
(“sem nome”), uma vez que é mesmo esse o efeito que causam as ações
desonrosas que se conhecem como ignomínias. O ignoródio está no fundamento
de ações ignominiosas. A ignomínia é uma ofensa que se realiza de forma
pública e, em geral, procura expor as debilidades do próximo para que este sinta
vergonha e se sinta inferiorizado. Ela é considerada uma injustiça e atenta contra
a civilidade dos laços sociais de respeito e consideração pelo outro. O ignoródio
visa ao outro pela ofensa ou pela violência como um “sem-nome”, para destituí-
lo do nome que o humaniza, despojá-lo do nome que o institui como sujeito,
para tratá-lo como um objeto, seja ele mulher, no caso da ignorância odienta do
machismo e da misoginia, seja gay, no caso de homofobia e atos
homoterroristas, seja negro, pardo, índio, no caso de racismo. A paixão do ódio
pelo diferente associado à ignorância da diferença (que faz do outro um
radicalmente outro) é uma modalidade de gozo regida pelo supereu (ou
superego) que, com sua ferocidade, ordena: ignora e goza! Gozo sádico atuado
com palavras, gestos ou atos. Esse gozo do ignoródio atinge em cheio a massa
que se transforma numa turba, definida por Adorno, como “uma multidão de
milhares de pessoas transformadas em disseminadores de ódio”.
Como que ignoródio se expressa na psicologia das massas com sua ex-
sistência libidinal? E mais propriamente no âmbito da política, que é o campo do
gozo na cidade dos discursos que denominamos de pólis? Freud, em A
psicologia das massas, diz: “A massa é extraordinariamente influenciável e
crédula, é acrítica, [...] não conhece dúvida nem incerteza. Ela vai prontamente a
extremos; a suspeita exteriorizada se transforma de imediato em certeza
indiscutível, um germe de antipatia se torna um ódio selvagem. [...] O que exige
de seus heróis é fortaleza, até mesmo violência. Quer ser dominada e oprimida,
quer temer os seus senhores. No fundo, inteiramente conservadora, tem profunda
aversão a todos os progressos e inovações, e ilimitada reverência pela tradição”.
Vemos então que a massa é dominada pelas paixões do ódio e da ignorância, ou
seja, o ignoródio que se manifesta em paixões que violentam o outro: racismo,
machismo, homofobia etc.
Assim, o outro que não é espelho, e sim real, como radicalmente outro por
estar no lugar do objeto (objeto causa de desejo e causa de horror) reduzido a sua
versão de abjeto: alvo de abjeção, violentação e eliminação. Por quê? Porque a
existência desse outro é uma ameaça a minha existência identitária, pois esse
outro está na extremidade da polaridade de meu ser como objeto na estrutura.
Pois eu não sou apenas sujeito, sou também objeto separado de mim mesmo
como sujeito que encontro no outro, que me causa desejo ou angústia, atração ou
repulsa. Assim, esse outro, o qual posso encontrar na rua como respondendo do
lugar de objeto de gozo, é parte de mim. Metade de mim, metade isolada,
exilada, arrancada, adorada de mim, como bem disse Chico Buarque. A outra
pessoa pode então encarnar esse objeto de desejo que posso aceitar ou rejeitar,
adorar ou ejetar. E pode se transformar num “abjeto”, pois eles perturbam a
ordem das coisas, fazem efração na hipocrisia da tradição conservadora.
Em A psicologia das massas, Freud aponta dois tipos de formação da
massa: aquela constituída pela identificação com o líder situado no lugar ideal do
eu de cada indivíduo, e aquela formada pela constituição de um inimigo comum.
A primeira é movida pelo amor e a segunda pelo ódio; em uma, a servidão
voluntária é prova de amor, e na outra a obediência cega no ataque ao inimigo é
prova de lealdade. Esses dois tipos de formação de massa não se excluem – eles
se encontram no fascismo.
Há também coisas que despertam a indignação e a revolta motivadas pelo
ódio ao tirano. É o que Freud nos ensinou com o mito de Totem e tabu. O ódio
dos filhos escravizados pela tirania paterna levou ao assassinato do pai e à
subsequente instauração da lei (impessoal) esvaziada do gozo do tirano. E assim,
diz Freud, foi miticamente fundada a civilização com a lei organizando a
sociedade e exigindo certa renúncia ao gozo em prol dos laços sociais.
Por outro lado, identificação com o um do líder forma a unidade da massa
disposta a tudo – até a matar – em nome do líder venerado, e assim pode passar
ao ato as palavras do líder e atacar o outro, liberando as amarras da pulsão da
crueldade que, como na guerra, se satisfaz no inimigo objetalizado. O que é
visado pelo ódio como expressão da intolerância à diferença é o gozo outro que
deve ser varrido – isso é racismo, segundo a definição de Lacan. Assim, na
narrativa fascista atual, o negro é hostilizado devido a sua “malandragem”, a sua
“promiscuidade”, porque “não serve para nada nem para procriar”, ou o gay por
seu gozo fora da norma, que só é gay por não ter recebido “porrada”, o índio por
sua “indolência” e “preguiça”, e as mulheres “vagabundas”, as “que ficam de
peito de fora na manifestação do #EleNão”, como foi veiculado caluniosamente
pelas fake news etc.
Esse ódio pode vir, portanto, junto com a ignorância, nos dois sentidos do
termo (o não querer saber e o agir com violência) e se tornar a dupla paixão do
ignoródio: atacar seus alvos para fazer os gays voltarem para o armário, as
mulheres para o tanque, os negros para a senzala e os opositores do regime para
a clandestinidade e porões sombrios das calamidades.
Diferentemente dos filhos do pai primevo de Totem e tabu, que se revoltam
e matam o tiranossauro do mito freudiano, os filhos do pai fascista se identificam
com este, e passam a perseguir os inimigos apontado pelo Mito, pois participam
da força-tarefa de “acabar com os vagabundos”, seguindo a promessa
transformada em imperativo: “Faremos uma limpeza como nunca foi feita.” Esse
projeto de eugenia visa a limpar todo o gozo considerado anômalo, fazer as
minorias se curvarem à maioria, eliminar os opositores, criminalizar os ativistas
e os movimentos sociais e instalar a ordem e o progresso em nome da família, da
pátria, de deus e do capital.
Realmente é preciso estar atento e forte para ir contra o calafrio, o
calabouço e o cala-boca. E lutar pela diversidade, pelo debate versus o embate,
pela livre associação de pessoas e ideias, pela transmissão da memória, pelo
sujeito do desejo que é sujeito da história e do desejo e pela singularidade do
sintoma de cada um que é sua maneira de gozar do inconsciente.

Quando a mentira é serva da homofobia


Jean Wyllys

Uma leitura das campanhas dos candidatos e candidatas de direita e de extrema


direita que se elegeram muito bem-votadas para a Câmara Federal ou para as
Assembleias Legislativas já nos permite notar que eles e elas usaram fake news
me envolvendo e se colocaram como contrapontos a quem chamavam e chamam
de “pai da ideologia de gênero” e “pai do kit gay”. Sobretudo essas duas últimas
mentiras, propagadas à exaustão sob um financiamento subterrâneo ainda não
explicado pela nossa Justiça Eleitoral, transformaram-me em pária para a
maioria dos eleitores e, consequentemente, em motivo de voto para candidatos
em todo Brasil que deliberadamente me atacavam.
Percebi, então, numa primeira leitura dos resultados, que o trampolim dessa
virada é a homofobia ou a homolesbotransfobia (muito mais que o racismo, sem
querer fazer aqui hierarquias de opressões, até porque estas quando se articulam
são piores). Nós, LGBTs, é que estamos em quase todas as fake news que as
campanhas de Jair Bolsonaro, de seus filhos e de outros candidatos e candidatas
de extrema direita produziram subterraneamente – e sob o olhar atônito, para não
dizer complacente, da imprensa e das Justiças Eleitoral e Criminal – contra
pessoas de esquerda que se dedicaram minimamente à comunidade LGBT (Erika
Kokay, Maria do Rosário, Manuela d`Ávila e eu. Nesse sentido, as fake news
contra Haddad, candidato à Presidência da República pelo PT, envolviam-nos de
alguma forma, a mim em especial).
A homofobia combinada com o antipetismo fizeram o pêndulo eleitoral ir
para a direita e para a extrema direita. Não apenas brancos ricos e de classe
média – com filhos LGBTs ou não – votaram na extrema direita preocupados
com a “ideologia de gênero” e a dissolução dos valores heteronormativos:
também negros e trabalhadores pobres, moradores de favelas e de periferias,
votaram em massa em candidatos e candidatas que têm a homofobia como
bandeira política explícita, mesmo quando alertados de que essas figuras
ajudaram ou ajudarão a derrubar seus direitos sociais e trabalhistas. Não só
trabalhadoras e trabalhadores brancos, mas também pretos e pardos vítimas do
racismo sistêmico não se importaram de ter menos serviços de saúde nem 13°
salário, na esperança de que a “ameaça da baderna gay” seja contida por esses
em quem votaram maciçamente, apavorados com as fake news que receberam
por WhatsApp, nas quais acreditaram ou fingiram acreditar.
Não se tratou e não se trata de uma luta de classes, ainda que os benefícios
petistas à classe trabalhadora tenham feito alguma diferença no resultado das
eleições no Nordeste. Trata-se mais de um ataque às minorias sexuais, objeto do
ressentimento e da inveja dos que acham que gozam menos do que nós, LGBTs.
Essa é uma leitura ou interpretação da conjuntura que deveria parecer óbvia
aos partidos de esquerda porque os elementos estão aí, mas que não é feita por
outros do “nosso campo” porque a esquerda e centro-esquerda também estão
cheias desses valores homofóbicos. A homofobia é ubíqua e é o denominador
comum da ampla maioria de uma nação assentada sobre preconceitos e valores
morais que o progresso material conseguiu no máximo encobrir. O que
aconteceu comigo nessa eleição é sintomático disso. Fui vítima de um milhão de
fake news!
Parte da comunidade LGBT do Rio de Janeiro, beneficiada com minha
atuação na Câmara (da conquista, de fato, do casamento igualitário à defesa da
política de tratamento da AIDS), mas alienada da luta que garantiu seus poucos
direitos, cheia de homofobia internalizada, de vergonha de si, não só não
defendeu simbolicamente nosso mandato mas se engajou no ódio à política de
identidade, como se pudesse haver direitos sem política.
Eu me reelegi porque resisti e porque gente bacana resistiu junto comigo e
ao meu lado contra as mentiras, as ameaças e a escrotidão. Porque sou
resistência desde menino, quando, além da miséria material em que vivia,
precisa enfrentar os insultos e o bullying homofóbicos vindos dos que conviviam
comigo na mesma situação de pobreza extrema.
Novas fake news virão nesse sentido. Vou me limitar a desmenti-las e
identificar seus autores para agir contra eles. O que virá pra cima de nós é
tenebroso. Da “cura gay” à proibição do casamento igualitário, passando pelo
banimento do tema da diversidade de gênero nas escolas. Seremos sacrificados,
junto com a agenda da legalização do aborto. Oxalá os colegas que foram eleitos
para a Câmara Federal ajudem na resistência da manutenção desses direitos e
temas. Oxalá tomara!
E mais uma vez haverá em “nosso campo” quem vá revirar os olhos diante
desta análise, não comentar e fingir que se trata de outra coisa.
A campanha de Bolsonaro foi feita na base da mentira e muita gente está
percebendo isso agora. Mas, mesmo assim, não porque tenha concluído que
“mamadeiras-pênis” jamais seriam distribuídas em creches num governo petista
ou que o “kit gay” não passa de um delírio homofóbico, já que a
homossexualidade não é fruto de proselitismo. Muita gente está se dando conta
de que sua vitória se deve a fake news por conta de bravatas perpetradas pelo
presidente eleito em outras áreas, como a das relações internacionais, por
exemplo.
Em determinada fase da campanha, o Tribunal Superior Eleitoral proibiu ao
então candidato continuar espalhando a mentira que ele batizou de “kit gay”, e
ordenou ao Facebook e a outras mídias sociais deletar uma série de postagens
com essa farsa. A decisão foi correta, mas chegou com mais de sete anos de
atraso! O “kit gay” foi inventado em 2011 (associando-me de imediato a essa
mentira).
Graças à mentira chamada “kit gay”, e por associá-la a mim, pessoa
nacionalmente conhecida devido a um programa de tevê popular, Bolsonaro
deixou de ser apenas um deputado medíocre do baixo clero e passou a ter
alguma relevância no cenário político. Se alguma providência tivesse sido
tomada à época, se não houvesse no Brasil uma secular homofobia institucional
que endossa – e serve de terreno fértil para – as múltiplas violências contra as
pessoas LGBTs, Bolsonaro não teria chegado à Presidência da República.
Milhões de pessoas acreditaram e ainda acreditam nessa mentira e em
muitas outras que o presidente eleito criou. E as reputações destruídas? Quem
vai reparar o dano?
Os brasileiros vão se dar conta por meio da dor. Então, apesar de mais vidas
serem sacrificadas – e quero estar errado em meus prognósticos – restará essa
coisa boa: acabaremos de vez com essas duas mentiras; e o país se verá
doravante como o que é, e então poderemos enfrentar esses males com mais
clareza e consciência: o machismo, o racismo e principalmente a homofobia.
É como se o inimigo tivesse perdido o manto da invisibilidade que lhe deu e
lhe dava vantagem historicamente, inclusive a de estar entre nós (e, em alguns
casos, dentro de quem sempre tratamos como parceiro). É o que resta de bom
desse momento trágico. E não podemos desperdiçar essa ajuda que as forças
espirituais e superiores nos deram.
Não podemos mais tratar os fascistas com condescendência e sabemos
quem eles são.

artigo
Expressão e posição
Danilo Santos de Miranda

Sinais reincidentes indicam mudanças no pensamento sobre cultura na sociedade


brasileira. É tentador caracterizar apressadamente essa situação como uma mera
adesão ao obscurantismo, sem atentar para as conexões necessárias entre cultura
e visão de mundo. Cabe àqueles que defendem uma visão de mundo democrática
justificar sob quais critérios é legítimo afirmar que vivemos um retrocesso. Cabe
a nós uma tarefa árdua: defender aquilo que nos parecia suficientemente
consolidado, argumentar acerca do que se impõe como uma obviedade quando a
referência é a abertura à diversidade dos modos de existir.
Até alguns anos atrás, era possível enxergar o debate sobre cultura no Brasil
como uma trajetória ambivalente, marcada por idas e vindas, mas
paulatinamente inclusiva. Vale sublinhar que essa trajetória não se deu de forma
isolada, pois refletiu e influenciou discussões que aconteceram em nível global.
Desde meados do século 19 e ao longo do século 20, a compreensão sobre o que
seria “cultura” foi se ampliando. Descolava-se pouco a pouco de uma acepção
classista e eurocêntrica, segundo a qual apenas alguns estratos sociais e
determinados povos teriam uma vida cultural digna de ser assim nominada; aos
demais, eram reservados adjetivos como “primitivo”, “ingênuo”, “rudimentar”,
além da desconfiança de que fossem capazes de produzir bens simbólicos
complexos e originais.
Não foram poucos os que colaboraram para redefinir o conceito de cultura,
dotando-o de um alcance antropológico. No Brasil, reconhece-se o pioneirismo
da contribuição de Mário de Andrade, defensor de um olhar para as
manifestações populares que fosse isento de preconceitos, mas também de
complacência. Reconhece-se igualmente a relevância das contribuições de
pensadores que, ao se tornarem gestores públicos de cultura, mantiveram acesa a
possibilidade de uma leitura transversal do fenômeno cultural, como Aloísio
Magalhães, Celso Furtado, Marilena Chaui e Gilberto Gil. As políticas públicas
no país acabaram por se tornar permeáveis a tal perspectiva e, no início dos anos
2000, institucionaliza-se de modo mais veemente a ideia de que todos os
indivíduos e comunidades são criadores de sentido – portanto, de cultura.
É importante notar que há uma segunda faceta em tais processos: não se
trata apenas de reconhecer que todos produzem cultura; trata-se principalmente
de perceber que produzimos cultura o tempo todo. Em outras palavras, a cultura
não constitui um atributo de privilegiados, nem uma prática excepcional a
ocupar momentos de ócio. A cultura confunde-se com a própria existência
humana, organizando o cotidiano de pessoas e coletividades.
Nessa perspectiva, atenua-se uma polarização que, de algum modo,
simplifica a interpretação das dinâmicas culturais. Refiro-me às articulações
entre duas dimensões, que a sociedade ocidental só fez apartar: de um lado, a
notável criatividade presente no universo das linguagens artísticas e das
manifestações culturais de grupos diversos; de outro, as maneiras de conversar,
se vestir, trabalhar, comer, crer, se emocionar – modalidades do existir que
organizam nosso dia a dia, impedindo que ele seja uma sucessão de reações
instintivas ao ambiente.
A cultura é trama de continuidades e rupturas. Os indivíduos reelaboram
permanentemente o meio cultural que habitam, sejam eles artistas ou não – o que
há é uma diferença de grau, não de qualidade, entre pessoas com distintas
propensões à inventividade. Mas não há humanidade sem o complexo jogo entre
aceitar e subverter, construindo uma rede de micronegociações que nos envolve.
Como escreve Michel de Certeau em A cultura no plural: “Cada cultura prolifera
em suas margens. Produzem-se irrupções, que designamos como ‘criações’
relativamente a estagnações. Bolhas saltando do pântano, milhares de sóis
explodindo e se apagando na superfície da sociedade. No imaginário oficial, elas
figuram como exceções ou marginalismos. Uma ideologia de proprietários
separa o autor, o criador e a obra. Mas na realidade, a criação é uma proliferação
disseminada. Pulula. Uma festa multiforme se infiltra em todas as partes, festa
também nas ruas e nas casas (...)”.
A institucionalização da cultura não dá conta dessa complexidade – e isso é
uma boa notícia. Afinal, não é possível nem desejável que o poder público
pretenda normatizar algo que é, em essência, fluxo. Mas cabe sim às políticas
públicas dar indicações precisas de quais assimetrias são intoleráveis, atuando
para minimizá-las. Para isso, deve operar tendo em vista dois princípios
inegociáveis: os direitos culturais e a diversidade cultural. Isso significa, em
linhas gerais, que cabe aos estados democráticos garantir o exercício da
cidadania cultural e impedir que o convívio entre diferentes signifique opressão
entre desiguais.
Uma política cultural transcende em muito a ação do órgão gestor por ela
responsável, seja ele um ministério, uma secretaria ou uma autarquia. Entretanto,
um país sinaliza claramente a relevância que confere à cultura por meio das
escolhas que faz, e não esqueçamos que a ausência de uma política cultural é
uma das formas mais incisivas (e cruéis) de se praticar uma política cultural.
Após décadas marcadas por lentos avanços no campo cultural conquistados
à custa de embates cotidianos pelos grupos diversos que compõem a sociedade
brasileira, deixando claro o parentesco entre cultura e política, vivemos um
impasse eloquente.
A centralidade da cultura é um dado de realidade. Deve constituir, portanto,
um argumento político inegociável. Negligenciar esse argumento impacta não
apenas o estímulo à criação artística, a sobrevivência de modos de vida
vulneráveis, a valorização do patrimônio cultural e da memória coletiva; impacta
agendas transversais ligadas à educação para a autonomia, ao desenvolvimento
científico-tecnológico, à sustentabilidade dos territórios e à viabilidade das
cidades.
Instâncias da sociedade civil organizada – categoria na qual se encontra o
Sesc, instituição criada em 1946 com a missão de contribuir para a qualidade de
vida dos trabalhadores do comércio de bens e serviços, seus dependentes e da
sociedade em geral – podem e devem se comprometer com a defesa da ideia de
que a cultura é condição básica da existência coletiva, e não um artigo supérfluo.
Nenhuma estrutura governamental parece suficiente para suprir isoladamente as
demandas do campo do simbólico, haja vista a magnitude dos problemas
oriundos de um país ainda amarrado à sua triste tradição de desigualdade e
autoritarismo.
Na circunstância atual, há sinais persistentes a apontar que uma lenta e
gradual construção elaborada por inúmeras mãos, corações e mentes,
reconhecendo na cultura seu protagonismo, corre riscos. A atuação do Estado e
da sociedade civil, pensados como agentes complementares na salvaguarda dos
direitos culturais, sofre questionamentos baseados numa visão restritiva e
excludente da cultura. Tal visão ameaça aspectos básicos da vida democrática,
como a liberdade de expressão e a manutenção de modos de vida minoritários.
A leitura crítica do tempo presente explicita a urgência de um
esclarecimento fundamental: defender a cultura não significa a defesa de um
determinado setor. Trata-se da defesa de certa concepção de humanidade,
segundo a qual os seres humanos são concebidos como sujeitos nos quais
residem as únicas possibilidades de sentido do mundo. O que não for isso, será
apenas uso e descarte.

estante cult
Sobrevivendo no inferno: ainda e sempre
tarso de melo

Primeiros círculos
Na Divina comédia, como se sabe, entramos pelo inferno: é lá, entre as mais
terríveis formas de punição e sofrimento, que vamos dar os primeiros passos
com Dante e seus guias. Na obra dos Racionais MC’s, também estamos no
inferno desde o início, sem ter, no entanto, a perspectiva do purgatório, muito
menos do paraíso. Nossos guias – Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay –
são quatro jovens negros da periferia de São Paulo, cantando no meio das
regiões mais violentas do país, onde a morte, a dor, a opressão, a miséria, a fome
e a desesperança atingem milhares de pessoas. Ali, a trilha entre o além-túmulo e
o aquém-túmulo é minúscula – e escorregadia.
Compreendo todos que têm afirmado que Sobrevivendo no inferno, disco de
1997, é o ponto alto da produção do grupo, mas gosto de ouvir a obra dos
Racionais como um conjunto totalmente coeso sob as diversas feições (de forma
e de conteúdo) que já assumiu em discos diferentes. Nessa perspectiva, não ouço
Sobrevivendo no inferno como o auge da carreira; ouço-o como um ponto de
maturidade, entre tantos (normalmente correspondentes aos discos em estúdio),
de uma carreira que se distingue justamente por ter iniciado em altíssimo nível e,
desde então, conseguido refletir sobre suas próprias contradições para voar ainda
mais alto a partir delas.
Chama atenção, na capa do disco de 1997, o gerúndio: naquele momento,
os Racionais sabem que continuam sobrevivendo no inferno (“contrariando as
estatísticas”, como Mano Brown canta), porque sobreviver no inferno é o que
une as vozes dos Racionais e as de seus milhões de fãs da primeira à mais
recente gravação. Toda a obra dos Racionais, a seu modo, é um sobrevivendo no
inferno. Por isso, a meu ver, antes de entrar nos diversos círculos do disco de
1997, é preciso voltar quase dez anos e ouvir com atenção as primeiras
gravações do grupo e tudo que fizeram desde então.
A primeira aparição dos Racionais MC’s em disco se deu na coletânea
Consciência Black – Vol. 1, da Zimbabwe. É importante notar que o grupo surge
numa coletânea, como tantas outras que foram lançadas à época, quase sempre
por “equipes” que promoviam os famosos “bailes black”, como a própria
Zimbabwe, Kaskatas e Chic Show. As coletâneas, além de serem uma forma de
driblar restrições orçamentárias de produtores e grupos que estavam longe de
viver a pujança das grandes gravadoras e artistas da época (como as estrelas do
rock nacional), eram também uma oportunidade de testar os sucessos de uma
geração importante, mas de qualidade muito variada, criando condições para que
se projetassem dos bailes para as rádios e que, a partir dali, pudessem fazer os
bailes mais fortes, lançar outros artistas e assim sucessivamente, fortalecendo
toda a cena black que se armava em torno das “equipes”.
No entanto, assim como ainda hoje não gostam de subir ao palco apenas
para festejar, os Racionais entraram na coletânea Consciência Black com os dois
pés no peito do porteiro: “Pânico na Zona Sul” e “Tempos difíceis”, em meio às
letras leves e à batida dançante de alguns “melôs” (com exceção de Sharylaine e
Criminal Master, cujas letras justificavam a presença num disco que levava na
capa a palavra “consciência”), colocavam na mesa não apenas os temas a que o
grupo se dedicaria, mas também uma forma de fazer rap, de tocar e cantar, que
marcaria os trabalhos do grupo e, com seu sucesso, a maior parte do rap nacional
até os dias atuais.
Não considero exagerado afirmar que os Racionais daquelas primeiras
gravações já apresentam, ainda que em forma parcialmente desenvolvida, a
complexidade estética dos seus melhores momentos posteriores. Procure aí essas
gravações e faça um teste: ao ouvi-las, tente abstrair a letra e reparar apenas na
música – nos sons todos – que toca ao fundo. Não é apenas uma “base” sobre a
qual os rappers colocam suas vozes: há um baile acontecendo ali, nos samplers e
scratches, enquanto as letras vão retratando a vida terrível a que aquele povo,
que merece ser feliz, é submetido. E esse mesmo teste pode ser feito com quase
todas as músicas dos Racionais desde então. Claro, dali em diante, a cada disco,
os Racionais têm acesso a mais recursos musicais e técnicos, o que deixa suas
músicas com mais camadas, mas o nó baile-fúria se mantém.
É inegável que, com suas letras, os Racionais querem chamar o povo preto
à consciência, e o fazem de diversas maneiras, nem sempre explícitas, durante as
três décadas (até aqui!) de existência do grupo, mas, ao reparar no “baile” que
toca sob as letras, constatamos algo ainda mais brilhante: aqueles quatro jovens,
todos com cerca de 20 anos, sabiam desde o início que chamar à consciência
não poderia ficar apenas nas palavras, mas também na forma como a cultura
negra seria valorizada como um todo junto às suas letras fortes, com destaque,
claro, para a música negra.
O grupo de 1989 é o mesmo que vai, depois de duas décadas, deixar seus
shows cada vez mais “dançantes”. Basta lembrar que, no disco/DVD ao vivo Mil
trutas, mil tretas (2006), Brown exalta o “som de preto” e diz que quer “ver os
pretos dançar, ser feliz”. Ou o batuque que abre “Quanto vale o show”, no disco
Cores & Valores (2014): “a primeira coisa que eu aprendi a fazer na minha
vida”. E nem preciso falar do disco solo de Mano Brown, Boogie Naipe (2016):
baile total!
Se as equipes do “baile black” chamaram os Racionais para subirem ao
palco (e eles subiram, colocando “peso” e algum amargor na festa), trinta anos
depois é a vez dos Racionais chamarem o “baile black” para seu palco,
devolvendo a leveza, o suingue e, principalmente, os temas e sonhos que tiveram
que “esconder” num primeiro momento. Em entrevista recente, Mano Brown
traçou, com precisão, um arco que ajuda a entender as três décadas de baile e
fúria dos Racionais MC’s:
“E hoje, passados os anos, eu penso: o que um moleque de 21 anos podia
fazer de tão mal contra o sistema, fora aquele rap? Era a arte do blefe: eu pesava
70 quilos, não tinha dinheiro pra pegar um ônibus e já ameaçava o sistema. E o
sistema acreditou. Entendeu? O que eu poderia fazer contra, mais, fora aquilo
ali? Sei lá, pegar uma arma, virar assaltante, morrer rápido? Então... a leveza da
música, o lado leve, que ninguém percebia, era a idade que a gente tinha. A
gente não tinha condições de fazer muita coisa fora a música. Hoje em dia eu
tenho condições de fazer muito mais. Até falando de amor. Eu sou muito mais
perigoso.”
Na mosca: o percurso dos Racionais é justamente a longa caminhada que
vai dessa “arte do blefe” até o momento em que, falando de amor, o rap pode ser
ainda mais “perigoso”, sempre andando à beira do abismo de possibilidades de
“morrer rápido” que era e ainda é a vida dos jovens negros na periferia de São
Paulo. Como “periferia é periferia em qualquer lugar”, não demorou para que
aquele moleque de 70 quilos e seus parceiros entrassem no coração de milhões
de jovens em todo o país, fazendo com que a história do grupo se confunda com
a história de toda a sua geração.
Não posso me deter aqui nas diversas formas que esse nó entre baile e fúria
assumiu nas gravações seguintes dos Racionais até Sobrevivendo no inferno (e,
claro, dele em diante), então deixo aqui como sugestão esse teste de audição que,
ao menos num primeiro momento, comete a crueldade de fatiar os Racionais
para ser capaz de reconhecer a grandeza do projeto estético do grupo: ouvir só a
letra, ouvir só a música (por música, aqui, entenda-se todo o complexo de sons –
sirenes, tiros, freadas, choro, rádio etc. – que espalharam pelos discos) e, depois,
fazer a audição integral da música, ou melhor, dançar no ritmo dela, mas sempre
dançar com fúria.
Nos EPs Holocausto urbano (1990) e Escolha o seu caminho (1992), além
de “Pânico na Zona Sul” e “Tempos difíceis”, o grupo apresenta outras seis
faixas que confirmam essa fusão entre o discurso que se propõe a conscientizar
os iguais (sobre questões raciais e sociais) e o avanço estético do grupo, que vai
colocando ainda mais camadas musicais entre a base e a letra das músicas. “Voz
ativa”, por exemplo, leva essa dupla pancada – letra e música – ao extremo: “Eu
tenho algo a dizer/ E explicar pra você/ Mas não garanto porém/ Que engraçado
eu serei dessa vez”. Enquanto Brown, Blue e Edi Rock cantam uma letra que
resume numa espécie de manifesto as ideias que vinham aperfeiçoando até ali,
desafiando o racismo em diversos níveis da sociedade brasileira e lançando
inclusive suas lideranças, o DJ KL Jay leva o baile também ao extremo,
colocando para dançar a “juventude negra que agora tem voz ativa”.
Raio X do Brasil (1993), primeiro LP do grupo, em que estão algumas das
faixas que projetam definitivamente os Racionais – “Fim de semana no parque”,
“Mano na porta do bar” e “Homem na estrada”, entre outras que já faziam a
fama do grupo nos anos anteriores –, é uma obra-prima que consolida o que os
Racionais significariam na cultura brasileira dali em diante: ninguém mais
poderia falar de música e de arte em geral no Brasil, entre outros temas, sem
considerar aquele grupo que levou milhões de ouvintes para passear nos
“parques” das periferias brasileiras e, assim, colocou no centro das atenções – de
quem vive nas periferias e também de quem vive bem longe delas – uma forma
de olhar para o país, para seu povo, para suas injustiças e violências, que não se
encontrava em disco algum, em jornal algum, em novela alguma.
É a partir daí, do reconhecimento nacional (inclusive dos inimigos públicos
e detratores privados) que veio durante esse percurso, mas principalmente da
força que as ideias e os sons do grupo ganham nas “quebradas” em que os
Racionais se gestaram, que podemos entender a força que terá, em 1997, o
lançamento de Sobrevivendo no inferno, que chega esvaziando o lugar para o
“estilo pesado” e “a palavra [que] vale um tiro” do grupo que encarna a “fúria
negra”. Mano Brown, então, vai precisar de muita humildade para se apresentar
como “apenas um rapaz latino-americano/ apoiado por mais de 50 mil manos”,
porque ele e seus parceiros já são vistos como gigantes, com milhões de ouvidos
atentos a suas batidas e palavras e de olhos arregalados diante do inferno que os
Racionais, como nenhum outro artista, descortinam.

No coração do inferno (e vice-versa)


É com justiça que Sobrevivendo no inferno ganha agora todo esse destaque
novamente, após a indicação para um dos principais vestibulares do país –
UNICAMP – e a consequente edição em livro, pela Companhia das Letras, com
a transcrição das letras precedida de uma bela apresentação de Acauam Silvério
de Oliveira.
Quem tem o ouvido viciado na batida do rap sabe que o “livro de letras”
não é o suporte perfeito para a obra dos Racionais – em que o nó entre letra e
música, com elementos de baile e fúria que se expressam numa e noutra esfera,
fundindo-as para atingir os altos níveis que somente assim atinge –, mas é
importante ter as letras desse disco transcritas de modo confiável, levando-as
também a quem ainda não as sabe de cor e, agora, poderá ir ao disco conhecendo
antes, como texto, as letras.
O livro Sobrevivendo no inferno é um produto para o vestibular, claro, mas
vai além dele, porque os Racionais estão em muitas esferas que transcendem o
vestibular e a universidade. Aliás, é o disco que vai cair no vestibular, não o
livro, a letra sem a batida. E espero que todos os envolvidos assim tratem –
como um todo! (A propósito, diversas vezes transcrevi as letras dos Racionais,
discos inteiros, porque nos encartes não havia a versão “oficial”, e depois
discutia com amigos essas transcrições, os versos que não entendia
perfeitamente, as gírias que não conseguia sacar etc.)
Como um todo, repito, Sobrevivendo no inferno é uma pancada – musical,
cultural, histórica, política, poética. Para entender a força dessa pancada, a
filósofa Djamila Ribeiro usa uma imagem muito precisa: organizar o ódio. Os
Racionais se tornaram e mantiveram e cresceram como Racionais porque
souberam organizar o ódio. Não reagiram da forma autodestrutiva como o
sistema previa: se armaram de ritmo e poesia e partiram para o ataque – fúria e
baile. É por isso que Acauam Oliveira pode dizer, enfaticamente, que esse “é um
disco que salvou vidas”.
Essa organização do ódio nos Racionais é a razão do alcance estético e
político do disco, na época e ainda hoje. Mais que isso: é o que dá a
Sobrevivendo no inferno o status de obra-prima, capaz de continuar produzindo
sentidos, cada vez mais intensos, com o passar do tempo. Note-se, ainda,
ilustrando essa capacidade de organização, uma passagem da introdução do
livro, em que Acauam Oliveira chama a atenção para a estrutura do disco, que se
assemelha à de um culto religioso: [...] cântico de louvor e proteção direcionado
ao santo guerreiro (“Jorge de Capadócia”); leitura do evangelho marginal
(“Gênesis”); entrada em cena do pregador do proceder, explicando (ou
confundindo, a depender da necessidade) os sentidos da palavra divina
(“Capítulo 4, versículo 3”); o momento dos testemunhos das almas que se
perderam para o diabo, com resultados trágicos (“Tô ouvindo alguém me
chamar” e “Rapaz comum”); intermezzo musical para velar aquelas mortes,
interrompendo por tiros que fazem recomeçar o ciclo; a pregação ou mensagem
central (massacre do Carandiru) que liga o destino daqueles sujeitos ao de toda a
comunidade (“Diário de um detento”), chave de compreensão do destino de
todos e descrição do próprio inferno; exemplos do modo de atuação do diabo no
interior da comunidade (“Periferia é periferia”); exemplos do modo de atuação
do diabo fora da comunidade (“Qual mentira vou acreditar”). Ao final, um
momento de autorreflexão sobre os limites da própria palavra enunciada
(“Mágico de Oz” e “Fórmula mágica da paz”) e os agradecimentos a todos os
presentes, verdadeiros portadores da centelha divina (“Salve”). [...]
De fato, quem vê a cruz dourada na capa do disco (e, agora, do livro), o
objeto simulando um exemplar da Bíblia (já no disco), concorda que, para os
Racionais daquele momento, principalmente, uma das formas de sobreviver no
inferno – uma das formas de salvar (a) vida(s) – é a religião. Mas logo descobre
que a “Bíblia velha” está ao lado de “uma pistola automática e um sentimento de
revolta”.
E é justamente por isso, porque não simplifica as formas que o ódio assume
lá onde “o demônio fode tudo”, que o disco é tão forte. Na verdade, avançando
num caminho em que mais e mais se reconhecem naqueles que antes criticavam
duramente – seus iguais, outros “rapazes comuns” –, os Racionais não podem
simplificar.
O cenário e os personagens das músicas são os mesmos de sempre: a
periferia, mas agora aproximada, de modo radical, do destino dos jovens negros
que sobrevivem ali – o cemitério ou a cadeia, onde a morte também o espera. A
cadeia como antessala do cemitério. A vida no crime como atalho para o
cemitério. Aliás, é um disco todo à beira da morte, por isso leva a palavra
“sobrevivendo” na capa. À beira, sim, mas também de luta contra a morte cada
vez mais próxima, banalizada, porque ali, “na lei da selva”, a relação entre
rapazes comuns é mediada por um simples “click, cleck, bum”, de lado a lado:
“no pente tem quinze sempre a menos no morro”.
A morte: a morte nas mãos da polícia, na rua ou na cadeia; a morte por
traição dos próprios parceiros de crime. Há mortes por todos os lados. Em alguns
momentos, são os mortos que falam, vendo do além o sofrimento dos seus
parentes. Há corpos por todos os lados. É como se os Racionais tivessem
espalhado pelo disco todos os 111 do massacre do Carandiru e todos os corpos
das vítimas de violência policial, de todas as vítimas da violência entre os
“rapazes comuns” da periferia, para que ficassem ali para sempre, doendo, como
feridas abertas – como no inferno de Dante.
Com esse gesto, os Racionais nos obrigam a refletir sobre o que ainda pode
ser chamado de “vida” nas regiões mais pobres da cidade – ou do muro do
presídio para dentro. E eles sabem: “minha vida não tem tanto valor quanto seu
celular”. De fato. São famosas as estatísticas que abrem “Capítulo 4, versículo
3” na voz de Primo Preto, “mais um sobrevivente”: “60% dos jovens de periferia
sem antecedentes criminais já sofreram violência policial/ A cada quatro pessoas
mortas pela polícia, três são negras/ Nas universidades brasileiras, apenas 2%
dos alunos são negros/ A cada quatro horas um jovem negro morre
violentamente em São Paulo”.
Uma pesquisa recente feita por jornalistas da BBC News Brasil confirmou a
atualidade desses dados depois de duas décadas. O que mudou? Muito pouco,
salvo no item do acesso dos negros à universidade (“O percentual de negros com
nível superior quase dobrou entre 2005 e 2015, fruto da política de cotas
implantadas em universidades públicas e programas de bolsas e financiamentos
para estudantes pobres, como Prouni e Fies”). Nada mais justo e apropriado,
portanto, que a arte dos Racionais também chegue com mais destaque à
universidade, não?
Sobrevivendo no inferno é gigante também porque é o disco em que os
Racionais rompem com a autoimagem que vinham construindo até ali, tantas
vezes colocando-se numa posição de superioridade com relação aos demais
jovens negros, normalmente sob a acusação de que não eram conscientes como
os rappers. Agora, no entanto, “respeito mútuo é a chave”. No lugar do
enfrentamento com aqueles que, no fundo, são seus iguais, entra um esforço
tremendo para derrubar as barreiras e mostrar que os rapazes comuns do rap se
reconhecem nos rapazes comuns da “vida bandida”, nos rapazes comuns das
igrejas, das escolas, do “sonho de doutor”; que “periferia é periferia em qualquer
lugar”; e ganha até mesmo uma dimensão mais crítica/autocrítica: “Eu já não sei
distinguir quem tá errado, sei lá/ Minha ideologia enfraqueceu/ Preto, branco,
polícia, ladrão ou eu/ Quem é mais filha da puta? Eu não sei!”.
Este texto apresenta, em versão preliminar, ideias que estão sendo
desenvolvidas pelo autor no livro Muita treta: ritmo, poesia e fúria dos
Racionais MC’s, em elaboração, que reunirá uma série de ensaios sobre
cada um dos discos do grupo, investigando a dinâmica de alguns temas que
cruzam toda sua produção.

estante cult
Uma cidadezinha qualquer do sertão
Heitor Ferraz

Como escrever sobre um livro que simplesmente ganhou o prêmio de Livro do


Ano, do último Jabuti, conferido pela Câmara Brasileira do Livro? O trabalho se
torna espinhoso, pois em meio à alegria do jovem vencedor não caberia uma voz
dissonante, meio ranheta, querendo apontar problemas em sua obra. Ainda mais
quando se trata de um autor que bancou ele mesmo a sua publicação, cuidou de
todas as etapas da edição, da capa à impressão, empenhou-se na confecção de
seu livro, cuja tiragem foi de 300 exemplares, e ainda desembolsou mais de
trezentos reais para se inscrever num prêmio de bastante prestígio nacional,
concorrendo ao lado de pesos-pesados da literatura brasileira.
É o caso de À cidade, do cearense Maílson Furtado, poeta que nasceu em
Cariré, em 1991, formou-se em odontologia na Universidade Federal do Ceará, e
hoje divide sua vida entre seu trabalho de dentista em Reriutaba e Varjota, onde
mora, é casado e tem um filho, e ainda arranja tempo para tocar uma companhia
teatral, a Criando Arte, que ele fundou em 2016, escrever seus poemas na
madrugada e editar seus próprios livros. Este seu livro, que recebeu um prêmio
de 100 mil reais, dificilmente ombreia-se com Em alguma parte alguma, última
coletânea de poemas de Ferreira Gullar, que em 2011 também foi agraciado com
o “livro do ano”, ou com Collapsus Linguae, de Carlito Azevedo, que o recebeu
em 1992, e que se tornou uma referência na poesia contemporânea brasileira.
Cito essas duas obras pois nos outros anos a poesia passou distante dessa
honraria.
Certamente, nem mesmo o próprio poeta pensaria nessa comparação. Nem
seu livro a permite, ou a queira. Trata-se de um poema longo, de mais de 60
páginas, dividido em quatro partes, em que o poeta procura sintetizar a sua
experiência urbana sertaneja. E a síntese é de mão dupla: diante de sua própria
identidade, da procura do seu “eu”, ele embrenha-se pela vida de uma cidade do
sertão do Ceará que não é nomeada, que se faz sua cidade, sua história e sua
experiência. É o ponto mais interessante deste livro despretensioso. Algo que ele
já deixa claro na escolha de suas epígrafes: “a cidade sou eu/ sou eu a cidade”,
de Drummond; e “Nas cidades a vida é mais pequena”, de Fernando Pessoa.
Quando levantei a comparação, foi com o objetivo de apontar dois poetas
que levaram a poesia para o campo tenso da forma, e que questionaram a própria
certeza das palavras. Em Furtado, a expressão – ou a explosão da expressão,
como no velho Gullar de Poema sujo – já se encontrava pronta, nas experiências
da poesia de vanguarda. A forma do seu poema lembra muito a disposição
espacial dos versos da poesia do maranhense. Mesmo os primeiros versos –
“tarde/ tarda/ alarme/ que fala/ que arde/ que geme” – parece devedor dessa
influência.
Em outras palavras, formalmente seu poema se apoia em uma experiência
já consolidada na poesia brasileira – sem abrir novos caminhos, ou sem
desentranhar ainda de seu assunto esses novos caminhos. E também evita
enfrentar os conflitos que ele mesmo esboça em algumas passagens de sua
enumeração descritiva da pequena ou média cidade sertaneja, ou seja, um
passado rural e agreste e um presente de urbanização e modernização capenga,
com todos os males dessa urbanidade que atropelou e jogou para a fora e para o
exótico as culturas regionais. Tema que Ronaldo Correia de Brito pegou na veia
em seu romance sempre surpreendente Galileia, e que de alguma forma cerca
liricamente o documentário O fim e o princípio, de Eduardo Coutinho, no sertão
da Paraíba.
A impressão que se tem ao ler seu poema – tirando alguns nomes de rios, de
lugares e de animais regionais – é que estamos numa cidadezinha qualquer de
qualquer lugar do país que foi recolonizado e igualado culturalmente pela
televisão – e a televisão surge algumas vezes na paisagem de Furtado. Ele fala
da “novela mexicana”, da casa que dorme por partes, sendo a TV uma das
últimas a se apagar, ou como ele mesmo diz, a certa altura, recordação de sua
infância: “quando me inventava (a ser gente)/ a cidade começava a se inventar/
ora inspirada na tv/ ora inspirada nela mesma/ ora inspirada no que nunca foi
inventado/ pião bila conto pipa trancelim bola-de-meia bola-de-trapo bola-de-
capa figurinhas-de-chiclete/de-xilito cavalinhos-talo-de-carnaúba carro-de-
fulande/ de-rolimã boneca-de-trapo/de-sabugo bonequinhos-de-feira/ da-coca-
colavídeo-game et coetera”. A passagem enumerativa é bastante sintomática
dessa naturalização entre elementos locais e tecnológicos. É a vida. Como ela
tem sido. Mas essa horizontalidade dos elementos não cria estranhamento. Tudo
surge aplacado e sem conflito na formação do sujeito – desse eu que mergulha
na sua cidade e no seu eu da infância – rio que percorre toda uma história
familiar – para “ser gente”, como ele escreve.
Talvez esteja nessa naturalização de elementos o ponto forte e fraco de seu
poema. Forte, ao colocar na roda desses versos seu testemunho quase que
puramente contemplativo; fraco, ao tirar pouco proveito desses contrastes (com
alguns momentos bastante interessantes, como em “a cidade se assusta/ ora com
o agouro da acauã/ ora com as notícias da funceme”, ou seja, ao enumerar, num
mesmo plano, o pássaro que quando canta traz seca no sertão e a Fundação
Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos; ou ainda: “casas que/ paredes/
mapeiam/ o que minha lembrança esquece/ que ainda se vestem por traços
lusitanos/ vira e mexe por traços de niemeyer/ ou por varas que sustentam o
massapê seco”; e “o vento baixa/ o sol ainda/ baixo/ e é hora da novela”).
Na fatura geral, o vigor de sua enumeração descritiva nas quatro partes que
compõem o livro – “presente”, “pretérito”, “pretérito mais-que-perfeito” e
“futuro do pretérito” – se dilui num procedimento que às vezes o torna
repetitivo, e que por sua vez dilui os próprios contrastes ainda pouco explorados
pelo poeta.
Furtado fez sua estreia entre os grandes. Seu livro ganhou o Jabuti do ano,
tirando de fora autores protegidos pelo guarda-chuva das grandes editoras. Para
que serve isso? Ele mesmo respondeu, em algumas entrevistas que deu: chamar
a atenção para uma poesia de qualidade que se faz fora do eixo das grandes
cidades, e longe das vitrines das livrarias. Quanto a isso, a internet, por meio de
redes sociais, tem nos mostrado a força da poesia contemporânea, em vários
pontos do país, ainda mais num momento tensamente político, em que a própria
história de nossa formação está sendo revista, pondo a descoberto toda sua
violência. Talvez ainda falte à poesia de Maílson Furtado essa perspectiva
histórica para que seu livro do ano seja um termômetro do que se passa por
dentro das fachadas das casas e nos fundos dos rios machucados que cortam o
sertão moderno.

estante cult
Grito metálico
Leusa araújo

A poesia de Donizete Galvão está de volta, num livro póstumo inédito – O


antipássaro. Não espere, leitor, algum canto altissonante, ou um “poema-alado”.
Prepare-se para versos espremidos nos vãos de uma cidade-artefato, natureza
devorada pela técnica, onde surgem cones, caçambas e pássaros-gruas
sobrevoam a paisagem. Até a poesia está em suspeição, incapaz que é de abrigar
os homens “arrebenta-pedra”, “que vestem macacões/ cor de laranja/ e andam
pela/ rua correndo/ atrás do caminhão”, os que “saem de casa/ pela madrugada/
nas carrocerias e trazem a pele lapeada.” “Onde estão?” – pergunta o poeta em
“Invisíveis”. “Que poema habitam”?
O antipássaro é o sétimo título de poesia deste mineiro nascido em Borda
da Mata, que fez a vida em São Paulo, até nos deixar numa madrugada quente,
de janeiro de 2014, com apenas 58 anos. Desde então, é aguardada a publicação
do inédito que deixara inacabado em seu computador.
Editado pela Martelo, de Goiânia, o volume foi organizado por dois poetas
amigos e conhecedores da obra: Tarso de Melo e Paulo Ferraz deram o ponto
final, decidindo a ordem de entrada dos poemas. Para rastrear e indexar as
diferentes versões que haviam sido transportadas de um computador para outro
desde 2002, a dupla contou com a ajuda do poeta Carlos Machado.
Numa troca de e-mails, de julho de 2013, duas decisões acerca do novo
livro eram anunciadas pelo autor: o título O antipássaro, referência direta a
Orides Fontela, a “poeta-irmã”, como bem aponta o professor e crítico literário
Ivan Marques, num artigo de 2017 sobre a proximidade da lírica de ambos no
“antipoético mundo dos homens”; e o desejo de incorporar a imagem da
escultura Prometheu I, da artista brasileira Maria Martins, que tanto o
impressionara na exposição Metamorfoses, sob curadoria de Veronica Stigger.
Trata-se de uma forma humana em bronze, com garras de cipós em lugar de
mãos, que hão de mantê-la – se não acorrentada e com uma águia a lhe comer o
fígado como o próprio Prometeu – eternamente enredada à natureza.
Assim também se sente o poeta: aguilhoado aos vínculos, subjugado à
precariedade cotidiana e fincado ao chão, como no poema “Não sabe”: “O amor
que não sabe morrer/ não pretende tocar o céu./ Quer ficar aqui mesmo –
pedestre, incauto e reles./ Não ouve a ladainha dos mortos./ Nem quer a extrema-
unção.” Até a memória, ave imaginária, surgirá da sua própria testa, em
“Harpia”: “Veio e bebeu toda a água que guardara, e, quando não havia mais
água, furou-me com o bico a veia do pescoço e o fígado.”
Se Prometeu deu asas a uns e garras a outros, o poeta fará o mesmo das
suas criaturas, como em “Pássaros urbanos”: “as gruas/ têm/ as plumas/ mais/
vistosas/ da cidade” (...) “muitos/ pedem pela extinção dessa espécie tão pouco
afeita às gaiolas”. Ou na “Ode ao morcego”: “rato, pássaro falhado/ sangue ou
flores, mãos que são asas, bueiros, forros, caibros, pontes.”
A cidade-artefato contempla a “Flora urbana”: três poemas em prosa, como
“Os Cones”: “(...) Alimentam-se de monóxido de carbono e outros poluentes.
Cultivados por taxistas, guardadores de carros e pela companhia de trânsito.”;
“As Caçambas”: “(...) esporádicas, não têm data certa para florir.”; “O
Guindaste”: “(...) em volta deles, costumam surgir prédios de mau gosto.”
Ainda que O antipássaro traga de volta a poesia límpida e substantiva de
Donizete Galvão, há raiva maior no seu desencanto. Em “Anjo Exterminador”,
dedicado a Waly Salomão, o poeta-anjo é rebaixado à condição de enganador:
“Não me venha/ com essa conversa/ de anjo da anunciação./ Você vai enfrentar/
um anjo exterminador/ Tateie na caverna e encontre na sombra esse predador
ancestral com asas de galo-índio – pronto para golpear a presa.” (...) “São
traidores/ anjos enganadores. Têm-lhe ódio quando dizem morrer de amores.
Negam a si mesmos. Negam os amigos. Só tem as palavras como seus abrigos.”
O antipássaro dá seu grito metálico. É preciso ouvi-lo, de preferência, lendo
os poemas nas noites insones.

cinema
Coordenadas de uma estética: cinema e ditadura
mariana lucas setúbal

Inserido na constelação do moderno, o cinema brasileiro, do final da década de


1950 até meados dos anos 1970, delineou um percurso paralelo à experiência das
vanguardas europeias e latino-americanas. Foi um caminho marcado pelo debate
em torno do nacional-popular e da problemática do realismo crítico, sobretudo
enquanto balizado pela noção de autor terceiro-mundista. Ao longo dessa sua
trajetória, o cinema nacional deparou-se com discussões em torno de estratégias
estéticas para politização do cinema, o debate entre uma linguagem didática e
convencional e uma estética de experimentação e estranhamento.
Neste sobrevoo circunscrito no período do pré-64 até o fechamento
completo da ditadura em 1968, busco analisar a resposta de diferentes autores
cinematográficos. O que sobressai é a narrativa de um colapso que tem no ano
de 1964 uma cisão definidora.
Com o decreto do AI-5, o fluxo do experimentalismo de desarranjos
estéticos é interrompido, colocando em xeque as duas teleologias que nortearam
até então o cinema político: a do projeto de emancipação nacional e a do
programa das vanguardas estéticas. Tal interrupção evidenciou a
desestabilização da arte enquanto dispositivo capaz de abalar a ordem social, e,
junto a esse processo, produziu uma revisão do papel do intelectual que agora
passa a desconfiar de seus referenciais de saber. O que implicará uma mudança
no próprio status do artista de esquerda: em vez de se posicionarem como
intelectuais onipotentes, munidos de certezas políticas e mergulhados na
projeção esquemática de discursos totalizantes, os cinema-novistas, a partir da
década de 1970, descrentes de um telos ordenador, fragmentam-se em projetos
individuais que, em sua maioria, não abdicam do compromisso político nem das
pesquisas estéticas. Cada realizador formula uma resposta diante da encruzilhada
histórica: censura, ascensão da indústria cultural e a incansável busca de um
novo sujeito revolucionário. A ação dessa militância fílmica – atenta às
contradições brasileiras, segundo Leon Hirszman – marca uma crítica mais
poliédrica.

O cinema do Terceiro Mundo


A posição é clara: sem forma revolucionária não há arte revolucionária, era o
lema de Maiakóvski e toda arte que se pretendesse de vanguarda. Movimento
vanguardista, na reflexão da realidade brasileira, nas discussões em torno da
questão da formação nacional, na busca do autêntico homem brasileiro e,
sobretudo, de um cinema descolonizado, o Cinema Novo promove a “descoberta
do Brasil” por meio da desconstrução do imaginário imperialista em seu
experimentalismo estético.
Filmes com diferentes estilos apontam para a ascensão do autor terceiro-
mundista, opondo-se à conduta assumida pelos membros do Centro Popular de
Cultura (CPC). A política do autor terceiro-mundista não apenas nega o modelo
de produção industrial e, por consequência, do próprio sistema capitalista, mas
nega também uma esquerda avaliada como dogmática, que desejava impor
diretrizes ao processo de criação.
Comprometido com a tomada de consciência do povo, interessado em
solucionar os problemas sociais e despertar o homem revolucionário, os artistas
assumem-se como “tradutores das demandas sociais”, segundo Marcelo Ridenti.
Foram muitas as circunstâncias históricas que permitiram o florescimento
da convicção revolucionária. No cenário internacional, estavam em curso
inúmeras revoluções de libertação nacional, marcadas pelo socialismo e,
sobretudo, pelo papel da figura do trabalhador do campo como agente
revolucionário. Assim foram a Revolução Cubana (1959), a independência da
Argélia (1962) e a Guerra do Vietnã (1955). Eram exemplos vivos de países
subdesenvolvidos que se rebelavam contra potências imperialistas. Por
intermédio desses adventos, o sentimento da brasilidade revolucionária ganhou
cada vez mais força, em especial com a vitória da Revolução Cubana, que se
converte em uma espécie de farol para os revolucionários da América Latina.
O terceiro-mundismo brasileiro é marcado pela exaltação da luta
camponesa. Filmes emblemáticos – como Deus e o diabo na terra do sol, de
Glauber Rocha (1964); Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos (1963); e Os
fuzis, de Ruy Guerra (1964) expressam essa crença terceiro-mundista do meio
intelectual, em que “lutar pela cultura nacional significa, antes de tudo, lutar pela
libertação nacional”, como diz Fanon.
O golpe militar atinge o Cinema Novo no momento de sua plena ascensão.
Se a produção pré-64 assume um telos revolucionário, a segunda fase do
movimento é marcada por uma melancolia diante dos rumos da política nacional.
Internalização da crise
Discutir essa produção do Cinema Novo é compreender o descompasso entre as
expectativas nacionais e a realidade. Nas palavras de Ismail Xavier, seria
compreender a figuração no “imaginário da história, [em que] passamos do
centro à periferia sem ter na prática saído desta [da periferia]”. Sendo assim, o
melhor cinema brasileiro recusa o diagnóstico totalizante e assume a árdua tarefa
de internalizar a crise.
A suspensão do discurso totalizador convoca a alegoria como eixo
estruturante das narrativas em questão: a fragmentação dialética versus a
totalização discursiva marca também a relação entre o compromisso estético de
vanguarda e a moldura nacional. A opção pela forma alegórica evidencia a crise
da teleologia da história. Não há horizontes redentores, apenas a antiteleologia
como “princípio ordenador”. Outra característica da produção pós-golpe é a
ruptura com um regime de contemplação, partindo para estratégias de agressão
ao espectador, deslocando-o de uma posição passiva e exigindo dele a ativação e
a participação no debate estético e político.
A reflexão sobre o fracasso do projeto revolucionário depara-se com uma
crítica implacável acerca do populismo e do papel do intelectual. Diversos filmes
do período tematizam o impasse – assim são Terra em transe, de Glauber Rocha
(1967); A derrota, de Mário Fiorani (1967); O bravo guerreiro, de Gustavo Dahl
(1968) e Os herdeiros, de Cacá Diegues (1969).
A burguesia entrega aos militares a Presidência da República e inicia uma
etapa na política nacional marcada pela coexistência de diferentes fases do
desenvolvimento no mesmo sistema: de um lado, a integração imperialista
internacional; e, de outro, a ideologia da burguesia conservadora centrada no
indivíduo, nos valores católicos e na tradição familiar.
A imagem grotesca da elite atravessada pelo antagonismo da modernização
conservadora converte-se na matéria-prima do Tropicalismo, a partir de 1968.
A cultura de massas vence: signos da cultura pop e da sociedade de
consumo são apresentados como alvo de uma crítica na qual a ironia sustenta a
denúncia, em um período em que compreender o Brasil era acolher a vitória da
indústria cultural, a mercantilização da arte e, consequentemente, o
esvaziamento da crítica.
O “descaráter” nacional converte-se na matéria-prima do filme Macunaíma,
de Joaquim Pedro de Andrade (1969), explicitando a relação com o
Tropicalismo; a antropofagia, o kitsch e o abalo das tradições das elites e do
povo. Por meio de mecanismos de montagem, o filme explicita o confronto entre
diferentes etapas do desenvolvimento do país, trazendo à tona a crítica da
sociedade de consumo.
Viver no Brasil de 1968 é encarar a tortura e a agonia, é institucionalizar as
ausências e silêncios, é constatar que do passado restam apenas ruínas, e que a
promessa “o Brasil é o país do futuro” é uma farsa.

Seja marginal, seja herói


O Cinema Marginal, por seu turno, recusa o dualismo e ressignifica os signos da
cultura de massa norte-americana. Não há um compromisso revolucionário do
qual o cineasta seja porta-voz. A matéria de expressão é a errância em um
espaço desordenado, onde não há possibilidade de rompimento, reforçando uma
estrutura labiríntica em que antiteleologia toma o próprio estilo de representação.
Menos pudico que o Cinema Novo, o Cinema Marginal traz para a cena
cinematográfica o sexo em sentido mais regressivo. A representação sexual é
marcada não pelo erótico, mas pelo grotesco. São filmes que trabalham a crise
da identidade. “Quem sou eu?” é o questionamento que atravessa a narrativa de
O bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla. Depois do colapso
político, do naufrágio de um projeto nacionalista, o que resta é a perambulação
sem destino dos personagens.
O bandido da luz vermelha inspira o rótulo de “estética do lixo”, o Cinema
do Lixo – atuante no período de 1969/1973 – e traz às telas “figuras obscenas a
encarnar o fascismo tupiniquim”, como afirma Ismail Xavier.
A postura assumida pelo metacinema é a recusa da síntese e a
internalização da antiteleologia no princípio formal cinematográfico,
questionando, assim, o próprio processo narrativo. Filmes de Andrea Tonacci –
como Blá, blá, blá (1968) e Bang bang (1971) – e de Júlio Bressane – O anjo
nasceu (1970) e Matou a família e foi ao cinema (1970) – são exemplos deste
cinema. Preocupado não apenas com a experimentação estética, o metacinema
instaura uma poética do espaço urbano, redefinindo o lugar do sujeito diante da
câmera. “Não procura a identificação entre personagem e plateia, cineasta e
público, cinema e real, reconhece a dissociação, a separação”, segundo Ismail
Xavier. Não há reconciliação, os personagens vagam pelas cidades
desordenados, como em um cenário pós-apocalíptico.
Neste sobrevoo, fica nítido que o melhor do cinema brasileiro evidencia,
seguindo Ismail Xavier, a passagem da alegoria revolucionária do pré-64 à
contemplação do inferno pós-68. Mas, sobretudo, ainda que na esfera da
antiteleologia, ou das alegorias de desesperanças, aquilo que prevalece é a matriz
na vanguarda, antes e depois do AI-5. Imagens que carregam em si uma
experiência histórica indestrutível, que ecoa pelo tempo como resíduos de
resistência.
colaboraram nesta edição
Antonio Quinet é psicanalista, psiquiatra, escritor, dramaturgo, doutor em
Filosofia pela Universidade de Paris VIII, autor de Édipo ao pé da letra (Zahar,
2015), A estranheza da psicanálise (Zahar, 2009)
Bianca Santana é escritora, jornalista, pesquisadora, doutoranda em Ciência da
Informação pela USP, autora de Quando me descobri negra (SESI-SP, 2015)
Danilo Santos de Miranda é diretor regional do Sesc-SP, especialista em ação
cultural
Jean Wyllys é jornalista, escritor, deputado federal pelo PSOL-RJ, autor de
Tempo bom, tempo ruim: Identidades, políticas e afetos (Companhia das Letras,
2014)
Leusa Araujo é escritora, autora de Senão eu atiro e outras histórias verídicas
(Quelônio, 2017)
Heitor Ferraz é jornalista, mestre em Literatura Brasileira pela USP, autor de
Meu semelhante (7Letras, 2016), Um a menos (7Letras, 2009)
Marcia Tiburi é filósofa, escritora, pós-doutora em Artes pela Unicamp, autora
de Ridículo político (Record, 2017), Como conversar com um fascista (Record,
2015)
Mariana Lucas Setúbal é mestrando em História Social na PUC-SP e
professora de História do Cinema na FAAP
Renan Quinalha é advogado, doutor em Relações Internacionais pela USP,
professor adjunto da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da
Unifesp e co-organizador do livro História do movimento LGBT no Brasil
(Alameda Editorial, 2018)
Tarso de Melo é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP,
autor de Alguns rastros (Martelo, 2018) e Íntimo desabrigo
(Alpharrabio/Dobradura, 2017)
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de
Comunicação da UFBA, autor de A democracia no mundo digital: História,
problemas e temas (Edições Sesc SP, 2018)
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