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coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
Wilson Gomes
artigo
Expressão e posição
estante cult
Sobrevivendo no inferno: ainda e sempre
Uma cidadezinha qualquer do sertão
Grito metálico
cinema
Coordenadas de uma estética: cinema e ditadura
coluna
As bases de uma consciência preta
bianca santana
Voo 1055 com destino a Congonhas cancelado. Por entre os gritos e risos da
classe média barulhenta, sigo na leitura de Steve Biko. Eu faria isso no avião, ou
em casa ou no hotel. Tudo bem fazer no aeroporto. Na verdade, pode ser que eu
dormisse no avião. Em casa seria interrompida, certamente. Melhor o aeroporto.
“O papel do branco liberal na história do preto na África do Sul é bem curioso.
A maioria das organizações pretas estavam sob a direção de brancos. Fiéis à sua
imagem, os brancos liberais sempre sabiam o que era bom para os pretos e
diziam isso a eles. O mais incrível é o fato de os pretos terem acreditado neles
durante tanto tempo.” Teria Biko ouvido sobre intelectual branco da zona oeste
paulistana querendo fazer trabalho de base nas periferias? Exu! De quem a
flecha atirada hoje acerta ontem o bicho.
Meia para aquecer os pés, mesmo ficando ridículo com a Melissa, mas
estou confortável. A caixa de Bis que comprei para a praia e sobrou na bolsa
pelo tanto de biscoito Globo e mate que botei para dentro foi boa companhia.
Biko escrevia ao voltar de suas excursões pelas universidades sul-africanas. Por
que não escrevi depois da viagem a Madri e Zaragoza? Tomei notas, pensei em
fazer relatório para as companheiras, mas fui tragada. Abre o computador na fila
da remarcação do voo mesmo. Menos ridículo escrever apoiada no carrinho de
bagagem que as conversas dessa gente raivosa na fila.
Tive um sonho essa noite. Com a escritora Cidinha da Silva e a deputada
eleita Áurea Carolina. Elas ensinavam coisas para mulheres. Era um restaurante?
Não lembro o que falavam, mas era importante. Atenção ao que publicam essas
duas. Na noite anterior havia tido um outro sonho. E está divertido escrever
freneticamente assim, de pé, no aeroporto, apoiada no carrinho de bagagem. A
moça de trás tenta ler. A mala de mão chique que ganhei como recompensa por
ser jurada em prêmio de educação vai com as roupas. A mala de lona que veio
dobradinha na mala de mão agora volta cheia de macumba que comprei no
Mercadão de Madureira.
Além do cigarro de palha do caboclo, do fumo cheiroso da preta velha,
todas as ervas para banho recomendadas por Mãe Celina de Xangô durante o
WOW – Festival Mulheres do Mundo –, que aconteceu no Rio entre 16 e 18 de
novembro. Vence tudo, alecrim, manjericão, eucalipto, macaçá, colônia, levante.
O axé das ervas vai ajudar na proteção ainda mais necessária destes tempos.
Macerar bem as folhas em água fria, coar e usar um pouco por dia. Três, sete,
catorze ou vinte e um dias consecutivos. Diluir um tanto e jogar no corpo todo, a
partir da cabeça. Eu mesma pretendo tomar esse banho de cheiro por mais
tempo. Até, pelo menos, o primeiro de janeiro. Seja para o que for, precisaremos
estar protegidas.
A oficina “O poder das ervas”, de mãe Celina, foi uma das cerca de cento e
cinquenta atividades realizadas na Praça Mauá, região portuária do Rio durante o
Festival. Mulheres de diversas idades, cabelos, tons de pele e origem social
partilhavam saberes e experiências nas salas do Museu de Arte do Rio (MAR),
do Museu do Amanhã, do Armazém 1 e da própria praça. Além das oficinas,
rodas de conversa, palestras e shows de que participei, as trocas informais
permitiram aprendizado e nutrição para a vida. Não é sempre que a gente se
hospeda no quarto ao lado de Conceição Evaristo, toma café da manhã com
Sueli Carneiro ou Nalu Faria, senta na van ao lado de Sandra Quilombola,
assiste à Elza Soares passando o som no meio da tarde em uma praça vazia. E
ainda ganha uma tarde de praia e afeto com Carol Rocha. Objetivo de renovar
energias alcançado. Apesar dos fantasmas.
Em um dos sonhos noturnos, eu dirigia um carro, minha filha Cecília estava
no banco de trás. Talvez os meninos também estivessem. Vem um homem com
um revólver na mão, abro o vidro, ele anuncia o assalto. Eu sei que o tiro não vai
sair. Respondo, calmamente, que não vou entregar nada. Todo mundo está
cansado de saber que precisa entregar tudo. Ciça, tão calma quanto eu, me
pergunta o que está acontecendo. Viro para responder a ela sobre a tentativa de
assalto, mas que está tudo bem. Sou interrompida pelos disparos. Susto do
assaltante. Ele aperta o gatilho e da arma só sai barulho. Eu sabia. Vou explicar
para ele que sabia. Mas acordo? É o que lembro do sonho. Da minha
tranquilidade, da tranquilidade da Ciça e do espanto do moço de quem a arma
não funciona.
Acabado o Festival, visita à Maré. Território de dezesseis favelas tantas
vezes chamado de complexo. Mas aprendi por lá que #marécomplexo é também
#marésimples. Tem porta de casa lotada de vasos de plantas, assim como no
território de onde venho. Lojas que vendem de tudo. Placas de vende-se nas
casas. Moto subindo e descendo. Bastante gente indo ou vindo. Meninos com
fuzil nas costas ou pesando coca no meio da rua. Meninos mesmo, no máximo
14 anos. Igrejas evangélicas. Escolas. ONGs enxugando gelo na tentativa
genuína de transformar aquela realidade. Vejo tudo e sinto Marielle, cria daquela
favela.
Somente em 2017 aconteceram quarenta e uma operações policiais por lá. E
operação policial não é visita preventiva, vocês devem saber. É carro blindado,
armamento pesado, jovens fardados, pagos pelo Estado para torturar e matar.
Quarenta e duas pessoas morreram em confrontos armados, uma a cada nove
dias, em média. Cinquenta e sete pessoas feridas: quarenta e uma em operações
policiais, dezesseis entre grupos armados. Nos dias em que o Estado chega para
matar, deixa de oferecer serviços básicos. Quarenta e cinco dias de atividades
suspensas nos postos de saúde e trinta e cinco dias com as escolas fechadas. Isso
significa que uma criança da Maré, ao final de nove anos de ensino fundamental,
passa mais ou menos um ano e meio sem aula. Não é desesperador pensar nesses
dados? Imagina vivê-los. Por anos e anos e anos. Inclusive nos governos que
defendemos. É mesmo tão difícil compreender o voto de pretos e pobres em
Bolsonaro?
“Portanto, enquanto os pretos estiverem sofrendo de um complexo de
inferioridade – consequência de trezentos anos de deliberada opressão, desprezo
e escárnio –, são inúteis como construtores de uma sociedade normal na qual a
pessoa não seja nada mais do que um ser humano para o seu próprio bem.
Assim, como prelúdio ao que possa vir em seguida, é necessário estabelecer as
bases de uma Consciência Preta tão forte que os pretos possam aprender e se
autoafirmar e a reivindicar os seus justos direitos”, grafou Biko no conhecido
Alma preta em pele branca?. Como incentivar essa tomada de consciência? E se
ela for tão intensa, crescente e certeira que permita eleger vereadora, 46 anos
depois do texto escrito, uma favelada da Maré com consciência preta? No Brasil,
país sem lei de segregação racial como as da África do Sul, essa mulher negra
pode levar quatro tiros na cara. E oito meses depois, ainda não saberemos quem
matou Marielle Franco.
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Assalto e assédio audiovisuais
marcia tiburi
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A política brasileira explicada pelo irrealismo
wilson gomes
Na democracia, não manda quem tem juízo, mas quem tem mandato. A
democracia não é um sistema projetado para que governe o melhor, mas quem
ganha a eleição. Não é eleito quem merece vencer, mas quem consegue mais
votos. Na democracia, em suma, não bastar estar certo, é preciso ser popular.
Isso deveria ser bastante para que as pessoas temperassem com uma
considerável dose de realismo as suas expectativas sobre o regime democrático.
E para impor uma perspectiva realista sobre eleições democráticas e o que delas
resulta. Um realismo são e consequente deveria fazer as pessoas entenderem
que, em regimes democráticos, ganhar eleições não é menos importante do que
ter princípios, conseguir mandatos no Executivo e no Legislativo não é menos
relevante do que ter razão, convencer a maioria dos eleitores não é menos
necessário do que ter superioridade moral.
Isso não quer dizer que adotar princípios elevados e defender causas
orientadas por valores reconhecidamente universais sejam desimportantes e que
se possa produzir democracias consistentes e sociedades dirigidas ao bem
comum por meio do vale-tudo, em que os comportamentos na disputa política
são julgados apenas em função do êxito ou do fracasso eleitoral. O realismo
político é uma coisa, a Realpolitik, a prática política do qual são drenados
princípios e valores até que nada reste a não ser estratégia e táticas, é a sua
degradação. Esse ultrarrealismo levaria à posição parodiada por uma fala célebre
de Groucho Marx: “Esses são os meus princípios, e se você não gosta deles...
bem, eu tenho outros.”
A esquerda acadêmica continua ótima em criticar a Realpolitik,
considerada, com razão, uma forma degradada e desprezível de prática política.
Fugindo do ultrarrealismo, contudo, em vez de parar em alguma forma de
realismo consequente e equilibrado, acaba se refugiando em uma espécie de
idealismo. Que consiste justamente em perder de vista o fato de que, ao fim e ao
cabo, o meio que confere a algumas pessoas o direito de exercer mandatos
legítimos em uma legislatura não leva em conta méritos, valores ou princípios,
mas simplesmente o número. Assim, se você quiser governar, precisa se
transformar em maioria. Se você tem um projeto incrível de sociedade, é melhor
convencer disso a maioria dos seus concidadãos, porque se os méritos do seu
projeto não forem materializados em votos não poderão ser levados em
consideração na hora da aferição de que projetos serão realmente
implementados.
Naturalmente, esse não é um problema apenas da esquerda acadêmica e
nem necessariamente é um problema conceitual. Aécio Neves, por exemplo, está
na origem da profunda crise política que se arrasta no Brasil há anos porque ele,
o PSDB e os seus aliados se convenceram de que o neto de Tancredo merecia
mais ser presidente da República em 2014 do que Dilma Rousseff. Como as
urnas não compartilharam nem refletiram tal convicção, malditas sejam as urnas
e os minúsculos homens vermelhos que as sabotaram. Uma vez que o
instrumento de que a democracia se dota para determinar quem irá governar, o
voto, ignorou os presumidos direitos que Aécio tinha de ser presidente da
República, o realismo mandaria que o derrotado fizesse as pazes com a realidade
ou até mesmo que negociasse com ela, enquanto o idealismo lhe disse que aquilo
não tinha cabimento, que alguma coisa de muito errado havia de ter sucedido, ou
com as urnas ou com a lisura do processo eleitoral ou com os estúpidos eleitores
do PT. Deu no que deu: a conspiração pelo impeachment, o truque para tirar da
soberania popular a última palavra sobre quem governa, a completa
desestabilização do sistema político brasileiro, o sentimento antipolítica, a perda
de controle sobre o antipetismo, a renovação conservadora do sistema político
nessa disputa, a eleição de Bolsonaro.
Quando, em 2013, multidões ganharam as ruas para “protestar contra tudo
isso que está aí”, na iluminada e solidária expressão de uma âncora da TV
Globo, a um determinado momento ficou claro que, por maiores que fossem as
diferenças internas entre os protestantes, havia convergência no fato de que se
debitava na conta do governo e do sistema político quase toda a insatisfação que
movia a massa. A esquerda acadêmica correu aos simpósios para celebrar o
nascimento de uma nova política, realizada por massas generosas e autogeridas,
conduzida por novos atores sociais fora do sistema político convencional e,
sobretudo, atravessada por pautas e práticas não tradicionais, como as novas
agendas identitárias e os “coletivos” que as sustentavam. E, claro, decretando,
pela enésima vez, a crise da democracia representativa, já no seu estertor.
Era a 54ª Legislatura na Câmara e no Senado (2011-2015) que,
naturalmente, tinha feições medonhas no que tange a patrimonialismo,
clientelismo e corrupção. Como a meninada havia ocupado as ruas físicas e as
praças digitais “para mudar o Brasil”, todas as esperanças repousavam na
promessa de que a 55ª estaria, enfim, à altura do merecimento das forças do
gigante que, finalmente, havia acordado. O fato é que, sob todos os aspectos, a
55ª Legislatura (2015-2019) que a substituiu depois da primeira eleição realizada
ainda sob o efeito da Primavera Brasileira, em 2014, tinha traços ainda piores do
que a Legislatura que a precedeu, com considerável crescimento das famigeradas
bancadas da Bala, Boi e Bíblia. Aparentemente, o mesmo furor moral contra
tudo o que estava aí, que foi às praças entre 2013 e 2014, protestando,
quebrando, incendiando, ocupando, demonstrando, resolveu não visitar as
cabines eleitorais em 2014, em grande parte porque lhe movia a convicção que
há sempre mais legitimidade nas ruas que nas urnas. E assim, mais uma vez,
quem fez barricadas perdeu de quem fez bancadas, quem cuidava de ter razão
não se preocupou em ter votos e a vida como ela é seguiu o seu rumo.
E continuou aprontando das suas, pois a mesma fúria santa, a mesma
indignação moral, produziu entre 2015 e 2018 o impeachment, o governo Temer,
a vitória do bolsonarismo e, para rematar, a 56ª Legislatura, a assustadora
“renovação conservadora” do Congresso Nacional, que promete fazer a 54ª
Legislatura parecer um convento de freiras piedosas e devotas. E, claro, tudo vai
para a conta da democracia, não da alienação idealista que não dá a mínima
chance a um saudável realismo político.
Por fim, até o início de setembro muitos amigos de esquerda não abriam
mão do seu “lulonhilismo” eleitoral (“ou Lula nada”, “eleição sem Lula é
golpe”) e reagiam energicamente contra quem lhes dizia que, do ponto de vista
estratégico, esta decisão poderia resultar em uma tragédia eleitoral, grudados na
certeza de que “mais importante que ganhar eleições são os princípios”. E
mesmo quando se fez a certeza jurídica de que o nome do ex-presidente não
estaria na urna eletrônica, aguentaram firmemente o princípio segundo o qual o
candidato tinha que ser Lula por uma questão de direito, de justiça, de reparação.
Terminada a eleição e confirmado o desastre, agora vem a parte amarga e
patética, como a confirmação de que genéricos de Olavo de Carvalho, o
tresloucado astrólogo que se decretou filósofo e cuja colagem de sandices e
cretinices, para espanto geral, alimenta ideologicamente o bolsonarismo, vão
controlar as Relações Exteriores e a Educação. Ora, se nos repugna malucos
ultraconservadores assumindo o status de ministros de Estado, teria sido vencer
a eleição. Mas se a prioridade era ter razão, exigir um desagravo ou ter
superioridade moral, não há propriamente do que reclamar, pois não?
entrevista Fatima Bezerra
“Para a democracia se consolidar, precisamos de
mulheres na política”
amanda massuela
Desde o fim de outubro, o nome da senadora Fátima Bezerra (PT) ganhou dois
predicados: única mulher eleita para um governo estadual nas eleições de 2018 e
governadora mais votada da história do Rio Grande do Norte. A paraibana de 63
anos, nascida no município de Nova Palmeira, filha de uma parteira e de um
pequeno agricultor, recebeu mais de 1,2 milhão de votos, tornando-se também a
primeira a se eleger ao governo daquele estado tendo ultrapassado os seis dígitos
no resultado das urnas.
Pedagoga formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), Bezerra tem um longo histórico de atuação no campo da educação: deu
aulas nas redes estadual e municipal de Natal nos anos 1980; foi duas vezes
presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Rio Grande do
Norte e uma das fundadoras do Fórum Estadual dos Servidores Públicos, além
de ter participado do congresso de construção da UNE, em Salvador, em 1979.
Com dois mandatos como deputada estadual (1994 e 1998), três como
deputada federal (2002, 2006 e 2010) e um como senadora (2015), assume, em
1º de janeiro de 2019, o governo de um Estado considerado pioneiro na
participação das mulheres na política: vieram de lá o primeiro voto feminino, em
1927, com a professora Celina Guimarães Vianna; a primeira prefeita da
América Latina, Alzira Soriano, em 1929, e o maior número de governadoras na
história da redemocratização – Bezerra é a terceira, precedida por Wilma de
Faria (PSB) e Rosalba Ciarlini (DEM). Mas é também o estado com o maior
número de mortes de mulheres (uma taxa de 8,4 por 100 mil habitantes, segundo
dados mais recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública) e casos de
estupro registrados no Sistema Único de Saúde (4.088 em 2016, segundo o Atlas
da Violência de 2018).
“Isso tem a ver com toda a cultura do patriarcado, que alimenta o traço
machista da sociedade, machismo que, inclusive, ainda é muito forte nos espaços
de decisão política como os legislativos”, diz à CULT, por telefone, de Brasília,
onde cumpre mandato como senadora. Nesta entrevista, ela relembra sua
trajetória política, critica o projeto de “censura” do Escola Sem Partido e afirma
que “para a democracia se consolidar, precisamos das mulheres na política”.
Foi no ambiente da universidade que você deu seus primeiros passos na
política, nos anos 1970. Como foi esse envolvimento?
Eu diria que o contato com a política de forma mais ampla se dá no movimento
social, quando eu começo a minha militância no sindicato dos professores. Sou
uma migrante (saí da Paraíba para o Rio Grande do Norte) de família de origem
pobre, que passou sempre muitas dificuldades na vida. Na minha adolescência,
por exemplo, fiquei uns dois anos sem estudar porque na cidadezinha em que eu
morava não tinha mais condições de dar continuidade aos estudos. Mas o fato é
que vou para Natal morar em casa de família e ali começo a minha vida. Sempre
estudei em escola pública, depois ingressei na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, cursei Pedagogia e iniciei minha participação no movimento
social na luta pela defesa da educação pública e na valorização do magistério.
E por que decidiu entrar para a política institucional?
Foi uma decorrência natural, acho que isso tem a ver com a minha condição de
classe: venho de uma geração de nordestinos que viu a seca de perto. Eu não
conheço a seca pelo livro de história, eu vivi a seca na minha adolescência lá no
Seridó Paraibano. Eu vivi aqueles tempos em que não morria só gado, morria
gente. Vivi a falta d’água, a falta de comida. Trago na minha história a
dificuldade de não ter o direito de estudar. Essa minha condição, do ponto de
vista de origem social, fez aflorar um sentimento de justiça. E isso naturalmente
tinha mais é que desaguar na luta social, e mais natural ainda é que desaguasse
no PT, um partido em que cabe o meu sonho de justiça, de um mundo livre de
qualquer tipo de opressão, de discriminação e de preconceito. É por aí. Minha
mãe era parteira, meu pai era agricultor, uma família de formação católica que
preservava muito os valores da solidariedade, do respeito. Eles dividiam o pouco
que a gente tinha com os que tinham menos que nós. Minha mãe não ganhava
nenhuma remuneração, mas era um trabalho que fazia com muita dedicação, e o
mais bonito era que quanto mais pobrezinha fosse a mulher mais ela a acolhia
com carinho, porque no fundo ela sentia aquela fragilidade. Às vezes ela levava
da nossa própria casa alguns mantimentos, porque sabia que a família não tinha
uma comidinha, um pedacinho de carne para fazer um caldo. Esse é o meu
contexto, que eu coloco para você com o sentimento do realismo. Foi isso o que
me estimulou para a luta social, e depois para a participação política, vendo
sempre o exercício da militância como um instrumento de luta em prol da
justiça, para melhorar a vida das pessoas. É assim que eu vejo o exercício da
política, não como um ato de promoção pessoal; de vaidade, isso eu não trago na
minha história de maneira nenhuma. Trago a política como um exercício que me
permite lutar pelas causas em que eu acredito, que têm como filosofia geral uma
sociedade livre, justa e solidária.
Como parlamentar com histórico na defesa da educação, como vê a
insistência no projeto Escola Sem Partido?
Esse projeto é um desserviço à educação democrática e cidadã que nós
defendemos, ancorada nos princípios da liberdade, da solidariedade humana e do
exercício da cidadania. É um desserviço porque atenta contra a nossa própria
Constituição e contra a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
que preservam a liberdade de cátedra, de ensinar e de aprender. A minha
esperança e a minha confiança, enquanto professora e educadora que sou, é que
essas ideias não vão prosperar. Além da forte mobilização social que há no
conjunto da sociedade contrária a essa ideia estapafúrdia, o Poder Judiciário e o
Ministério Público, por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão,
vêm se manifestando contra esse Projeto de Lei, inclusive destacando que ele
nasce completamente eivado de inconstitucionalidade. O que o Brasil precisa
não é de Escola Sem Partido, mas de escola com professores bem remunerados,
com condições dignas de trabalho. É preciso que nosso sistema educacional
avance com condições adequadas para que os estudantes possam ter pleno
desenvolvimento.
No Maranhão, o governador Flavio Dino editou um decreto reafirmando a
liberdade de pensamento de professores e funcionários nas escolas da rede
estadual. É uma iniciativa possível em seu governo?
Sem dúvida nenhuma. A escola é um espaço do pluralismo de ideias, e não pode
ficar ilhada na sociedade. Nossos professores têm que estar preparados para lidar
com a realidade da forma como ela se apresenta. E a escola tem o papel de
promover a solidariedade, o respeito à diversidade, do qual ela não pode abdicar
de maneira alguma. O que o Escola Sem Partido traz no seu bojo é a censura, é
disso que se trata. É uma mordaça que querem colocar na boca dos professores,
um absurdo totalmente na contramão do processo civilizatório. Parabenizei
Flavio Dino e repito: se necessário for, no Rio Grande do Norte tomaremos
medidas semelhantes. Espero, inclusive, que essa atitude sirva de exemplo para o
restante do país.
Você costuma lembrar que o Rio Grande do Norte é a terra de Nísia
Floresta, considerada a primeira educadora feminista do Brasil. É uma
referência para você?
Sim, para nós mulheres que não abdicamos de maneira nenhuma da utopia que é
a igualdade de oportunidades. Foi uma mulher revolucionária para a sua época,
que cumpriu um importante papel se a gente considerar que as mulheres, durante
muito tempo, não tinham sequer direito ao estudo. É uma referência. O Rio
Grande do Norte, aliás, é pioneiro na luta pela participação das mulheres na
política. O primeiro voto feminino se deu lá e a primeira mulher prefeita da
América Latina também saiu do Rio Grande do Norte.
Mas há críticas de que esse pioneirismo não se traduziu em ganho para a
pauta das mulheres – é o Estado com o maior número de casos de estupro
registrados no SUS, segundo o Atlas da Violência de 2018. Como pretende
enfrentar isso?
É verdade, o Rio Grande do Norte ostenta o título de estado mais violento do
Brasil e, nesse contexto, o número de atos de violência contra a mulher é muito
significativo. Isso tem a ver com toda a cultura do patriarcado, que alimenta o
traço machista da sociedade, machismo que, inclusive, ainda é muito forte nos
espaços de decisão política como os legislativos. Um dos nossos principais
desafios a partir do ano que vem será ter uma política de segurança pública
eficiente para diminuir esses índices, e queremos adotar ações voltadas para a
proteção das mulheres. Não temos, por exemplo, estrutura para acolher as
mulheres vítimas de violência. A Patrulha Maria da Penha só funciona durante a
semana e de forma precária, pois falta pessoal. As delegacias de atendimento
especializado, além de serem insuficientes, padecem de condições mínimas de
trabalho. Vamos ter uma rede de proteção dos direitos das mulheres, que passa
pela instituição de casas abrigo, colocar em funcionamento pleno a Patrulha
Maria da Penha, fortalecer e ampliar as delegacias da mulher que existem,
fortalecer também a Secretaria Estadual de Mulheres para que ela dialogue com
as demais estruturas de poder no Rio Grande do Norte. Também quero muito
que, com o novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica), os municípios tenham condições de ampliar a oferta de
creches, que dão condições para as mulheres buscarem lugar no mercado de
trabalho sabendo que estão deixando seus filhos bem cuidados. Todo esforço nós
faremos para que elas possam viver uma vida sem violência.
Você mencionou o machismo nos espaços de decisão política. Nas eleições
deste ano, de cada dez candidatos, apenas três eram mulheres, segundo
dados do TSE. Quais barreiras as mulheres enfrentam já no acesso à
política institucional?
Não tem como desconsiderar a dupla, tripla jornada de trabalho. E, em que pese
todo o esforço dos movimentos de mulheres dos mais variados que temos em
nosso país – aliás, as mulheres têm tido um papel até de vanguarda na luta em
defesa da cidadania e em defesa da democracia –, infelizmente temos
instituições ainda muito avessas à compreensão de que, para a democracia se
consolidar, precisamos das mulheres na política. Tivemos uma lei de cotas, tudo
bem, foi importante, mas se revelou insuficiente, porque não basta dizer que
30% das vagas nas eleições devem ser destinadas a mulheres. Temos que
avançar, como fizeram outros países que, além de definir um mínimo de
candidaturas, estabeleceram um mínimo de assentos. Sequer temos uma
legislação que assegure uma participação, por menor que seja, na mesa diretora
do Legislativo nacional; sequer conseguimos a aprovação de propostas que
tramitam aqui dentro para garantir no mínimo 10% das vagas do Congresso
Nacional às mulheres. Que dirá paridade? Recentemente virou lei que 30% do
fundo partidário será destinado a candidaturas de mulheres, e isso causou
polêmica, com alguns partidos querendo burlar essa lei. As mudanças só
acontecerão se vier um movimento de fora para dentro. Temos que enxergar a
realidade como ela é, e intensificar a mobilização social e política para romper
com esse défice de representação.
Você é a terceira mulher a assumir o governo do Rio Grande do Norte, mas
a primeira de origem popular. Isso aumenta sua responsabilidade em
melhorar a vida da classe trabalhadora, das mulheres e das minorias?
Sim, claro. Evidente que, eleita governadora, vou governar para todos, os que
votaram em mim e os que não votaram, por isso tenho dito que vai ser um
governo pautado pelo diálogo, um traço muito forte da minha história de vida, de
militância da luta social e política, saber ouvir as pessoas, o próprio movimento
social já me ensinava isso. No parlamento, aprimorei isso mais ainda, porque ali
você ouve os pontos de vista mais díspares, é a casa dos contrários. Então você
tem que desenvolver a capacidade de escutar e, a partir daí, exercitar o diálogo
com vistas a construir consensos. É exatamente isso o que vou fazer no governo.
É essa mesma posição que pretende manter com o presidente eleito Jair
Bolsonaro?
Veja bem, nessa hora eu tenho que separar questões de natureza ideológica e
diferenças de natureza partidária. Eu sou governadora do Rio Grande do Norte,
essa é a missão que eu recebi, assim como Bolsonaro foi eleito presidente do
Brasil. Se dependesse do Norte e do Nordeste, o presidente seria o professor
Fernando Haddad, mas a maioria elegeu Bolsonaro. Meu relacionamento com
ele será de natureza institucional, com respeito ao presidente, assim como ele
tem que respeitar os governadores, e todos temos que respeitar a democracia.
Nesse sentido, vou atuar junto ao Fórum dos Governadores do Nordeste e serei
incansável na defesa dos interesses do povo do Rio Grande do Norte.
dossiê Sexologia política
Apresentação
marcia tiburi
artigo
Expressão e posição
Danilo Santos de Miranda
estante cult
Sobrevivendo no inferno: ainda e sempre
tarso de melo
Primeiros círculos
Na Divina comédia, como se sabe, entramos pelo inferno: é lá, entre as mais
terríveis formas de punição e sofrimento, que vamos dar os primeiros passos
com Dante e seus guias. Na obra dos Racionais MC’s, também estamos no
inferno desde o início, sem ter, no entanto, a perspectiva do purgatório, muito
menos do paraíso. Nossos guias – Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay –
são quatro jovens negros da periferia de São Paulo, cantando no meio das
regiões mais violentas do país, onde a morte, a dor, a opressão, a miséria, a fome
e a desesperança atingem milhares de pessoas. Ali, a trilha entre o além-túmulo e
o aquém-túmulo é minúscula – e escorregadia.
Compreendo todos que têm afirmado que Sobrevivendo no inferno, disco de
1997, é o ponto alto da produção do grupo, mas gosto de ouvir a obra dos
Racionais como um conjunto totalmente coeso sob as diversas feições (de forma
e de conteúdo) que já assumiu em discos diferentes. Nessa perspectiva, não ouço
Sobrevivendo no inferno como o auge da carreira; ouço-o como um ponto de
maturidade, entre tantos (normalmente correspondentes aos discos em estúdio),
de uma carreira que se distingue justamente por ter iniciado em altíssimo nível e,
desde então, conseguido refletir sobre suas próprias contradições para voar ainda
mais alto a partir delas.
Chama atenção, na capa do disco de 1997, o gerúndio: naquele momento,
os Racionais sabem que continuam sobrevivendo no inferno (“contrariando as
estatísticas”, como Mano Brown canta), porque sobreviver no inferno é o que
une as vozes dos Racionais e as de seus milhões de fãs da primeira à mais
recente gravação. Toda a obra dos Racionais, a seu modo, é um sobrevivendo no
inferno. Por isso, a meu ver, antes de entrar nos diversos círculos do disco de
1997, é preciso voltar quase dez anos e ouvir com atenção as primeiras
gravações do grupo e tudo que fizeram desde então.
A primeira aparição dos Racionais MC’s em disco se deu na coletânea
Consciência Black – Vol. 1, da Zimbabwe. É importante notar que o grupo surge
numa coletânea, como tantas outras que foram lançadas à época, quase sempre
por “equipes” que promoviam os famosos “bailes black”, como a própria
Zimbabwe, Kaskatas e Chic Show. As coletâneas, além de serem uma forma de
driblar restrições orçamentárias de produtores e grupos que estavam longe de
viver a pujança das grandes gravadoras e artistas da época (como as estrelas do
rock nacional), eram também uma oportunidade de testar os sucessos de uma
geração importante, mas de qualidade muito variada, criando condições para que
se projetassem dos bailes para as rádios e que, a partir dali, pudessem fazer os
bailes mais fortes, lançar outros artistas e assim sucessivamente, fortalecendo
toda a cena black que se armava em torno das “equipes”.
No entanto, assim como ainda hoje não gostam de subir ao palco apenas
para festejar, os Racionais entraram na coletânea Consciência Black com os dois
pés no peito do porteiro: “Pânico na Zona Sul” e “Tempos difíceis”, em meio às
letras leves e à batida dançante de alguns “melôs” (com exceção de Sharylaine e
Criminal Master, cujas letras justificavam a presença num disco que levava na
capa a palavra “consciência”), colocavam na mesa não apenas os temas a que o
grupo se dedicaria, mas também uma forma de fazer rap, de tocar e cantar, que
marcaria os trabalhos do grupo e, com seu sucesso, a maior parte do rap nacional
até os dias atuais.
Não considero exagerado afirmar que os Racionais daquelas primeiras
gravações já apresentam, ainda que em forma parcialmente desenvolvida, a
complexidade estética dos seus melhores momentos posteriores. Procure aí essas
gravações e faça um teste: ao ouvi-las, tente abstrair a letra e reparar apenas na
música – nos sons todos – que toca ao fundo. Não é apenas uma “base” sobre a
qual os rappers colocam suas vozes: há um baile acontecendo ali, nos samplers e
scratches, enquanto as letras vão retratando a vida terrível a que aquele povo,
que merece ser feliz, é submetido. E esse mesmo teste pode ser feito com quase
todas as músicas dos Racionais desde então. Claro, dali em diante, a cada disco,
os Racionais têm acesso a mais recursos musicais e técnicos, o que deixa suas
músicas com mais camadas, mas o nó baile-fúria se mantém.
É inegável que, com suas letras, os Racionais querem chamar o povo preto
à consciência, e o fazem de diversas maneiras, nem sempre explícitas, durante as
três décadas (até aqui!) de existência do grupo, mas, ao reparar no “baile” que
toca sob as letras, constatamos algo ainda mais brilhante: aqueles quatro jovens,
todos com cerca de 20 anos, sabiam desde o início que chamar à consciência
não poderia ficar apenas nas palavras, mas também na forma como a cultura
negra seria valorizada como um todo junto às suas letras fortes, com destaque,
claro, para a música negra.
O grupo de 1989 é o mesmo que vai, depois de duas décadas, deixar seus
shows cada vez mais “dançantes”. Basta lembrar que, no disco/DVD ao vivo Mil
trutas, mil tretas (2006), Brown exalta o “som de preto” e diz que quer “ver os
pretos dançar, ser feliz”. Ou o batuque que abre “Quanto vale o show”, no disco
Cores & Valores (2014): “a primeira coisa que eu aprendi a fazer na minha
vida”. E nem preciso falar do disco solo de Mano Brown, Boogie Naipe (2016):
baile total!
Se as equipes do “baile black” chamaram os Racionais para subirem ao
palco (e eles subiram, colocando “peso” e algum amargor na festa), trinta anos
depois é a vez dos Racionais chamarem o “baile black” para seu palco,
devolvendo a leveza, o suingue e, principalmente, os temas e sonhos que tiveram
que “esconder” num primeiro momento. Em entrevista recente, Mano Brown
traçou, com precisão, um arco que ajuda a entender as três décadas de baile e
fúria dos Racionais MC’s:
“E hoje, passados os anos, eu penso: o que um moleque de 21 anos podia
fazer de tão mal contra o sistema, fora aquele rap? Era a arte do blefe: eu pesava
70 quilos, não tinha dinheiro pra pegar um ônibus e já ameaçava o sistema. E o
sistema acreditou. Entendeu? O que eu poderia fazer contra, mais, fora aquilo
ali? Sei lá, pegar uma arma, virar assaltante, morrer rápido? Então... a leveza da
música, o lado leve, que ninguém percebia, era a idade que a gente tinha. A
gente não tinha condições de fazer muita coisa fora a música. Hoje em dia eu
tenho condições de fazer muito mais. Até falando de amor. Eu sou muito mais
perigoso.”
Na mosca: o percurso dos Racionais é justamente a longa caminhada que
vai dessa “arte do blefe” até o momento em que, falando de amor, o rap pode ser
ainda mais “perigoso”, sempre andando à beira do abismo de possibilidades de
“morrer rápido” que era e ainda é a vida dos jovens negros na periferia de São
Paulo. Como “periferia é periferia em qualquer lugar”, não demorou para que
aquele moleque de 70 quilos e seus parceiros entrassem no coração de milhões
de jovens em todo o país, fazendo com que a história do grupo se confunda com
a história de toda a sua geração.
Não posso me deter aqui nas diversas formas que esse nó entre baile e fúria
assumiu nas gravações seguintes dos Racionais até Sobrevivendo no inferno (e,
claro, dele em diante), então deixo aqui como sugestão esse teste de audição que,
ao menos num primeiro momento, comete a crueldade de fatiar os Racionais
para ser capaz de reconhecer a grandeza do projeto estético do grupo: ouvir só a
letra, ouvir só a música (por música, aqui, entenda-se todo o complexo de sons –
sirenes, tiros, freadas, choro, rádio etc. – que espalharam pelos discos) e, depois,
fazer a audição integral da música, ou melhor, dançar no ritmo dela, mas sempre
dançar com fúria.
Nos EPs Holocausto urbano (1990) e Escolha o seu caminho (1992), além
de “Pânico na Zona Sul” e “Tempos difíceis”, o grupo apresenta outras seis
faixas que confirmam essa fusão entre o discurso que se propõe a conscientizar
os iguais (sobre questões raciais e sociais) e o avanço estético do grupo, que vai
colocando ainda mais camadas musicais entre a base e a letra das músicas. “Voz
ativa”, por exemplo, leva essa dupla pancada – letra e música – ao extremo: “Eu
tenho algo a dizer/ E explicar pra você/ Mas não garanto porém/ Que engraçado
eu serei dessa vez”. Enquanto Brown, Blue e Edi Rock cantam uma letra que
resume numa espécie de manifesto as ideias que vinham aperfeiçoando até ali,
desafiando o racismo em diversos níveis da sociedade brasileira e lançando
inclusive suas lideranças, o DJ KL Jay leva o baile também ao extremo,
colocando para dançar a “juventude negra que agora tem voz ativa”.
Raio X do Brasil (1993), primeiro LP do grupo, em que estão algumas das
faixas que projetam definitivamente os Racionais – “Fim de semana no parque”,
“Mano na porta do bar” e “Homem na estrada”, entre outras que já faziam a
fama do grupo nos anos anteriores –, é uma obra-prima que consolida o que os
Racionais significariam na cultura brasileira dali em diante: ninguém mais
poderia falar de música e de arte em geral no Brasil, entre outros temas, sem
considerar aquele grupo que levou milhões de ouvintes para passear nos
“parques” das periferias brasileiras e, assim, colocou no centro das atenções – de
quem vive nas periferias e também de quem vive bem longe delas – uma forma
de olhar para o país, para seu povo, para suas injustiças e violências, que não se
encontrava em disco algum, em jornal algum, em novela alguma.
É a partir daí, do reconhecimento nacional (inclusive dos inimigos públicos
e detratores privados) que veio durante esse percurso, mas principalmente da
força que as ideias e os sons do grupo ganham nas “quebradas” em que os
Racionais se gestaram, que podemos entender a força que terá, em 1997, o
lançamento de Sobrevivendo no inferno, que chega esvaziando o lugar para o
“estilo pesado” e “a palavra [que] vale um tiro” do grupo que encarna a “fúria
negra”. Mano Brown, então, vai precisar de muita humildade para se apresentar
como “apenas um rapaz latino-americano/ apoiado por mais de 50 mil manos”,
porque ele e seus parceiros já são vistos como gigantes, com milhões de ouvidos
atentos a suas batidas e palavras e de olhos arregalados diante do inferno que os
Racionais, como nenhum outro artista, descortinam.
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