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Caminho histórico e falsos dilemas

Como militante trabalhista e compartilhando da responsabilidade pelo bom encaminhamento do


debate público, com sua devida clareza e rigor conceitual, não poderíamos deixar de apresentar este
contraponto ao artigo da Maria Eva Angelim, publicado por este blog na sexta, 29. Reconheçamos
de pronto que seu texto possui inúmeras qualidades, pois traça de forma precisa e detalhada, dentro
dos limites em que se formata o debate, os principais fatores que influenciaram nosso processo
político de 2013 ao momento atual. Por este motivo, inclusive, não pretendemos repisar os pontos
pelos quais ela passa, como o desenrolar do processo eleitoral de 2018, as tendências apontadas pela
conjuntura internacional, ou as mudanças de posicionamento de agentes específicos no nosso
ambiente político. Qualquer consideração a este respeito traria no máximo divergências muito
pontuais.

Julgamos que, no geral, ela descreve um cenário bem acertado da conjuntura recente ou atual. Daí a
força de afirmações que, não sendo segredo pra militância, parecem não estar claras pra muitos
analistas ou operadores políticos. Exemplo é o reconhecimento de que a ruptura com o PT e a
criação de uma corrente autônoma de centro-esquerda se deram por um imperativo da realidade, em
processo histórico que não se dá por capricho nem tampouco sem contusões. Isto dito,
encaminhamos nossas considerações. É verdade que Ciro aponta uma ruptura profunda com um
modelo econômico fracassado e procura dialogar com a centro-direita. É verdade que nossa
militância disputa a legitimidade tanto de uma propositura de esquerda quanto de um nacionalismo
autêntico; mas não entabulamos tais disputas ou assumimos determinadas posições por indecisão ou
para nos contrapormos a fulano ou sicrano, e sim porque é como nos aconselha as conjunturas
políticas ou as teses históricas do trabalhismo.

Somos obrigados a dizer, portanto, que onde ela aponta contradições ou indecisões, nós vemos as
contradições da própria realidade e o perigo de cair na armadilha dos adjetivos em sua
superficialidade. Neste sentido, embora a autora desenvolva bem sua análise ou descrição dos
eventos que marcam nossa história recente, julgamos que ela tropeça em suas conclusões. E tropeça
por incorrer em falsos dilemas, os quais, em um esforço de sistematização, poderíamos dizer que se
desdobram ou refletem em ao menos três aspectos da dimensão política: no discurso ou mensagem
político-eleitoral; na concepção de governança política; e no diagnóstico ou crítica do modelo
econômico.
Na análise do processo eleitoral de 2018, que a autora fez tão bem, ela nos dá a exata dimensão do
papel que tiveram os dualismos petismo/antipetismo, assim como o sistema/antissistema. Inclusive
pontua corretamente a importância que tiveram na eleição de Bolsonaro, que encarnou melhor
ambos os antagonismos, conta o PT e contra o que vagamente se chama sistema. Com relação ao
Ciro ela reconhece tanto os motivos que o impediam de encarnar, naquele momento, o antipetismo,
quanto as decorrências que hoje o colocam em franca oposição ao lulopetismo. Por outro lado,
parece cobrar, ainda hoje, que Ciro tenha uma definição mais clara entre ser pró ou antissistema.
Ora, se nem na retórica eleitoral esta simplificação binária nos parece necessária, suficiente ou
digna de naturalização, quem dirá nos aspectos político-econômicos, que são os que esclarecem e
dão sustentação ao discurso.

Encaremos as questões com a complexidade que elas requerem. No que afeta a concepção de
governança política, a autora aponta como dilema o fato de Ciro criticar o modelo econômico e
buscar diálogo com a centro-direita. Em suma, coloca a necessidade dele escolher entre uma
mudança radical com transformações profundas ou uma mudança segura a partir do diálogo e da
criação de consenso. A nosso ver esta antinomia sequer tem cabimento, refletindo simplesmente um
problema mal colocado. Não se trata de construir ou não consensos, e sim de questionar qual o
consenso necessário e possível pra levarmos adiante as transformações propostas. É como se faz na
democracia, contemplada na segunda letra da sigla PDT. E a propósito, mesmo antes da refundação
do partido não se pode duvidar que Getúlio (com todo seu legado de industrialização, instituições e
direitos) ou Jango (com a proposta das reformas de base) pretendiam reformas profundas na
sociedade. Tampouco se pode negar que, mesmo com as tensões da época, encerrado o Estado Novo
o trabalhismo nunca tenha adotado saídas que não pelo convencimento, pela legalidade e pela
democracia.

Daí caímos na crítica do modelo econômico, que também nos ajuda a compreender a importância
do consenso. Na esteira do que aponta como a indecisão do Ciro, mencionada acima, a autora trata
como ilusão a separação que ele faz entre capital produtivo e financeiro. Outro problema mal
colocado ou tratado superficialmente. O próprio Ciro tem protagonizado a crítica de que, com os
juros mais altos que o rendimento médio dos negócios, o capital produtivo tem migrado para o
rentismo e este se apropriado das empresas. Isto porém é a distorção ou sintoma cujas causas devem
ser analisadas. Não se trata de fazer uma crítica moral do capitalista sem criticar e alterar as
institucionalidades que permitem ou determinam a busca do lucro fácil.
Alguém duvida que o setor financeiro, responsável pelo rentismo, e o setor produtivo, por este
sufocado, ocupam funções diversas e necessárias em qualquer sociedade? Alguém desconhece o
fato de que o capital se guia pelo lucro e que este pode ser incentivado ou tachado por decisões que
se dão no âmbito político? Poderíamos encadear uma série interminável de questões, o que importa,
entretanto, é o fato de que o local ou setor em que os recursos são investidos não é indiferente na
dinâmica econômica de uma sociedade. Importa o fato de que havendo margem de lucratividade, e
aqui entra o papel regulador do estado, nenhum capital é avesso a qualquer tipo de investimento.
Importa o fato de que, mesmo capturada pelo lobby do rentismo, isto não significa que nossa classe
política, com todos os seus defeitos, seja ela mesma em sua maioria a detentora do capital ou esteja
atrelada inexoravelmente aos interesses da especulação.

Com isto queremos reforçar a impertinência de se questionar a ideia de consenso em si mesma.


Aliás, pelas próprias características das relações de poder, talvez não seja exagerado considerá-la
uma variável irremovível da realidade, pois mesmo em um regime autoritário e excludente, a
diversidade de interesses conflitantes demandam um mínimo de consenso, ainda que de modo
implícito. Cabe nos questionar, portanto, não sobre a importância ou necessidades de consenso de
modo geral, mas sobre o tipo de consenso que pretendemos construir, suas condições de
possibilidade, os interesses contemplados e as bases que lhe dão sustentação. Sobre este assunto
aprendemos com Bresser-Pereira, n’A Construção Política do Brasil, o quanto a própria história nos
fornece a chave. Se o pacto liberal sob o qual vivemos associa interesses de uma burguesia
mercantil e rentista com os interesses do capital internacional; a experiência nacional-
desenvolvimentista, com variações históricas que incluíram ou excluíram as classes trabalhadoras,
sempre precisou de alianças mais amplas, envolvendo setores da classe média ligados ao
funcionalismo público, pequenos produtores e parte do setor produtivo, com destaque ao industrial.

Devemos ter claro, neste aspecto, que a esquerda que contribuiu, de fato, com um legado para o
nosso desenvolvimento sempre foi popular e nacionalista (Se o pacto nacional-desenvolvimentista,
acima descrito, vai de Getúlio ao final do regime militar, lembremos que só a primeira etapa é
considerada populista). Queremos destacar com isto que não há contradição alguma no fato da
esquerda trabalhista não se encaixar em esquemas binários importados e pouco afeitos à história
nacional. Ela não deve nada a uma esquerda que despreza o consenso e, por trás de um suposto
radicalismo, esconde uma atitude purista inócua e masturbatória – nos referimos aqui ao que Lenin
tacha doença infantil e Arregui chama “izquierda cipaya”. Também não tem nada a ver com uma
auto-referida esquerda que se rendeu ao rentismo e ao tripé macroeconômico; que a autora
confunde, no discurso de Mauro Benevides, com os valores da responsabilidade fiscal e da
austeridade, representados pelo bom uso do dinheiro público.

Enfim, se há lições que podemos aprender com o trabalhismo é que, como diria Brizola, na
carroceria do caminhão sempre cabe muita gente, mas os que estiveram na boleia nunca deixaram
de defender “Reformas de Base” com feições próprias de sua época. Reformas que, sem sombra de
dúvida, transformaram ou transformariam nossa sociedade de modo significativo. E como podemos
verificar no projeto apresentado por Ciro, atual representante do fio trabalhista, não seria agora que
propostas de transformações profundas e a necessidade de se construir maioria por meio de
consensos se veriam dissociadas na política. Não vemos pertinência neste suposto antagonismo.
Nem no que toca à redução das possibilidades a dois caminhos que não reconhecemos como nosso,
e muito menos na necessidade de escolhermos entre um deles.

Eleitoralmente o que propomos é uma alternativa com projeto e que recuse o personalismo vazio.
Politicamente nossa crítica é que, salvo diferenças pessoais, os dois polos adotam as mesmas
práticas fisiológicas. Substituem por benesses o desafio democrático de formar maiorias pelo
convencimento, isto é, pela negociação aberta de interesses múltiplos e conflitantes.
Economicamente, também, não há dois caminhos que hegemonizem o debate ou disputem as
preferências, pelo contrário. Em um contexto em que Lula e Bolsonaro se acotovelam pra executar
o programa neoliberal (variando aqui somente as personalidades), o que temos é o esforço do Ciro
para apresentar uma alternativa viável, bem delineada desde 1996. Tampouco se coloca a antinomia
reforma/revolução, já desmistificada por Guerreiro Ramos ao definir a revolução como conjunto
das reformas necessárias à emancipação do povo. O que vemos, portanto, é a necessidade de
superar certos binarismos ou falsos dilemas. A necessidade de entrar em águas mais profundas e
perceber que, para além dos fenômenos mais imediatos, existe um acumulado de história e teses.

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