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Em seu livro “Homo Sacer - O Poder Soberano e a Vida Nua”, Agamben lança mão de
uma análise paradigmática da natureza do direito enquanto poder instituinte e destituinte de si
mesmo, através do conceito de soberania, e do ser humano capturado pelo direito sob a forma
de Estado democrático, que é cindido entre zoe, ou seja, mera vida (ou vida natural) e bios, vida
qualificada (ou política). Para ilustrar a indissociabilidade entre essas duas formas de vida,
Agamben trás à luz a figura do “homo sacer” enquanto a mera vida, a vida que não vale a pena
ser vivida, e portanto, matável.
“Decide tanto sobre a ocorrência do estado de necessidade extremo, bem como sobre o que
se deve fazer para saná-lo. O soberano se coloca fora da ordem jurídica normalmente vigente,
porém a ela pertence, pois ele é competente para a decisão sobre se a Constituição pode ser
suspensa in toto.” (SCHMITT, 2006, p.8)
Dessa forma, a partir da transformação do estado de exceção enquanto regra, tudo passa
a ser possível: “O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-
se a regra"(AGAMBEN, p. 175). Agora, a situação extrema é despida de seu caráter temporário,
e torna-se permanente. Resta então a pergunta: sob qual conjunto de regras é possível viver num
contexto de exceção, onde todas as regras jurídicas estão suspensas? Qual é o direito (enquanto
conjunto de regras que regem a vida social) que se instaura quando o direito (enquanto
ordenamento jurídico válido na situação normal, Estado) é suspenso?
Ora, visto que, com o decreto de 28 de fevereiro de 1933 a exceção passou a ser a nova
normalidade, ela "inaugura um novo paradigma jurídico-político, no qual a norma torna-se
indiscernível da exceção. O campo é, digamos, a estrutura em que o estado de exceção, em cuja
possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente."(AGAMBEN, p. 177).
Sendo assim, a única fonte do direito passa a ser o próprio Furher, ao passo em que, na
figura de soberano, tem a prerrogativa para decidir sobre a vida vivida, para produzir a situação
de fato: "O campo é um híbrido de direito e de fato, no qual os dois termos tornaram-se
indiscerníveis" (AGAMBEN, p. 177).
E qual vida seria essa capturada pelos campos? Retomando a dualidade zoé e biós,
Agamben aponta que os campos reduzem o indivíduo a sua mera vida, despida de direitos e
proteção jurídica: sem cidadania, sem nacionalidade, sem nome, desprovido assim de todos os
atributos que caracterizam uma vida qualificada, encontrando-se no limiar entre a vida política
e a mera vida, dada a indissociabilidade de ambas. Trata-se da produção da vida nua:
"o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado, no
qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação. Por isso o campo
é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política torna-se biopolítica e o
homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão." (AGAMBEN, p. 178)
A partir daí, Agamben dedica-se à análise do corpo biopolítico enquanto sujeito político
fundamental. Para isso, toma emprestada a tese de Carl Schmitt sobre o conceito de raça, que é
princípio fundador do regime nazista, e pressuposto necessário à sua existência, sendo
equivalente aos termos jurídicos indeterminados já mencionados. Por ser um conceito aberto,
por definição indeterminado, ou seja, não previsto de forma clara e objetiva no ordenamento,
confere grande instabilidade a uma situação já extremamente instável. Assim, as situações de
fato e de direito se confundem, ao passo que o direito (na figura do Fuhrer) produz o fato a seu
bel prazer:
"Assim como a palavra do Furher não é uma situação factícia que se transforma
posteriormente em norma, mas é ela mesma, enquanto viva voz, norma, também o corpo
biopolítico [...] não é um inerte pressuposto biológico ao qual a norma remete, mas é ao
mesmo tempo norma e critério da sua aplicação, norma que decide o fato que decide da sua
aplicação." (AGAMBEN, p. 179)
Dessa forma, confundem-se fato e direito, a produção de normas e sua aplicação, a voz do
Fuhrer e a lei.
Entendida a situação produzida no campo, a saber, essa indistinção entre fato e direito,
entre vida qualificada e vida nua, Agamben tece a definição de campo de forma expansiva
quando afirma que “nos encontramos virtualmente na presença de um campo toda vez que é
criada uma tal estrutura, independentemente da natureza dos crimes que aí são cometidos e
qualquer que seja a sua denominação ou topografia específica” (AGAMBEN, p. 181). Portanto,
todas as vezes em que se produzir um espaço no qual o ordenamento jurídico é suspenso, este
espaço será um campo.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo.
Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002.
SCHMITT, Carl. Teologia política.Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte, Del Rey, 2006.