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RESUMO – O CAMPO ENQUANTO NÓMOS DO MODERNO

GIULIA LYRA OLIVEIRA

Em seu livro “Homo Sacer - O Poder Soberano e a Vida Nua”, Agamben lança mão de
uma análise paradigmática da natureza do direito enquanto poder instituinte e destituinte de si
mesmo, através do conceito de soberania, e do ser humano capturado pelo direito sob a forma
de Estado democrático, que é cindido entre zoe, ou seja, mera vida (ou vida natural) e bios, vida
qualificada (ou política). Para ilustrar a indissociabilidade entre essas duas formas de vida,
Agamben trás à luz a figura do “homo sacer” enquanto a mera vida, a vida que não vale a pena
ser vivida, e portanto, matável.

No referido capítulo, o autor se propõe a analisar a correlação entre os campos de


concentração nazistas e as democracias modernas para ilustrar sua tese de que todos os Estados
modernos carregam em seu bojo a potencialidade de repetir os horrores indizíveis (para utilizar
um termo empregado pelo proprio Agamben) dos campos nazistas dentro de seus próprios
territórios, através de um mecanismo jurídico previsto em todos os ordenamentos modernos: o
estado de exceção.

Para tanto, cabe aprofundar o entendimento do estado de exceção enquanto marco


garantidor do próprio ordenamento jurídico. De forma a entender esse pressuposto, cabe a
referência a Carl Schmitt em “Definição de soberania”, onde afirma que o soberano

“Decide tanto sobre a ocorrência do estado de necessidade extremo, bem como sobre o que
se deve fazer para saná-lo. O soberano se coloca fora da ordem jurídica normalmente vigente,
porém a ela pertence, pois ele é competente para a decisão sobre se a Constituição pode ser
suspensa in toto.” (SCHMITT, 2006, p.8)

Assim, através de uma exclusão-inclusiva, o soberano se coloca dentro e fora do


ordenamento jurídico, de forma que o direito, através da previsão do “estado de extrema
necessidade”, a saber, o estado de exceção, valida todo o ordenamento jurídico ao delimitar a
existência de uma situação extrema, contraposta portanto a uma situação de normalidade onde
o ordenamento deve imperar.

Agamben propõe, portanto, uma análise jurídico-política do campo. Sua existência é


fruto de uma situação extrema, visto que no campo há a suspensão de qualquer ordenamento
jurídico, inclusive, o campo em si nasce “portanto, não do direito originário [...], mas do estado
de exceção e da lei marcial" (AGAMBEN, p.173). O argumento jurídico para a existência dos
campos de concentração tem sua origem na Schutzhaft, traduzida como "custódia protetiva",
que previa a captura de indivíduos a partir da suspeita de representarem grave ameaça ao Estado
- conceito similar ao que entendemos no direito contemporâneo por "conceitos jurídicos
indeterminados", como "fundada suspeita", "perigo iminente", que conferem discricionariedade
ao Estado na aplicação das normas, já que não são conceitos juridicamente determinados, sendo
portanto, mais sujeitos a pressupostos políticos que jurídicos. A Schutzhaft, apoiava-se "na
proclamação do estado de sítio ou do estado de exceção, com a correspondente suspensão dos
artigos da constituição alemã que garantiam as liberdades individuais" (AGAMBEN, p. 174).
Tal dispositivo estava previsto no art. 48 da constituição de Weimar, a carta magna de um
Estado social-democrático, ilustrando o argumento de Agamben de que as democracias
carregam em seu íntimo os dispositivos jurídicos para sua suspensão.

A novidade do regime nazista, segundo Agamben, consistia no fato de que, quando da


sua proclamação via decreto, de forma um tanto profética, não carregava a expressão
Ausnahmezustand (estado de exceção). Assim, a exceção se tornava a regra: "O estado de
exceção cessa, assim, de ser referido a uma situação externa e provisória de perigo factício e
tende a confundir-se com a própria norma." (AGAMBEN, p.175) este era, portanto, o "estado
de exceção desejado", onde o ordenamento jurídico estava indefinidamente suspenso.

Dessa forma, a partir da transformação do estado de exceção enquanto regra, tudo passa
a ser possível: “O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-
se a regra"(AGAMBEN, p. 175). Agora, a situação extrema é despida de seu caráter temporário,
e torna-se permanente. Resta então a pergunta: sob qual conjunto de regras é possível viver num
contexto de exceção, onde todas as regras jurídicas estão suspensas? Qual é o direito (enquanto
conjunto de regras que regem a vida social) que se instaura quando o direito (enquanto
ordenamento jurídico válido na situação normal, Estado) é suspenso?

Ora, visto que, com o decreto de 28 de fevereiro de 1933 a exceção passou a ser a nova
normalidade, ela "inaugura um novo paradigma jurídico-político, no qual a norma torna-se
indiscernível da exceção. O campo é, digamos, a estrutura em que o estado de exceção, em cuja
possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente."(AGAMBEN, p. 177).

Sendo assim, a única fonte do direito passa a ser o próprio Furher, ao passo em que, na
figura de soberano, tem a prerrogativa para decidir sobre a vida vivida, para produzir a situação
de fato: "O campo é um híbrido de direito e de fato, no qual os dois termos tornaram-se
indiscerníveis" (AGAMBEN, p. 177).
E qual vida seria essa capturada pelos campos? Retomando a dualidade zoé e biós,
Agamben aponta que os campos reduzem o indivíduo a sua mera vida, despida de direitos e
proteção jurídica: sem cidadania, sem nacionalidade, sem nome, desprovido assim de todos os
atributos que caracterizam uma vida qualificada, encontrando-se no limiar entre a vida política
e a mera vida, dada a indissociabilidade de ambas. Trata-se da produção da vida nua:

"o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado, no
qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação. Por isso o campo
é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política torna-se biopolítica e o
homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão." (AGAMBEN, p. 178)

A partir daí, Agamben dedica-se à análise do corpo biopolítico enquanto sujeito político
fundamental. Para isso, toma emprestada a tese de Carl Schmitt sobre o conceito de raça, que é
princípio fundador do regime nazista, e pressuposto necessário à sua existência, sendo
equivalente aos termos jurídicos indeterminados já mencionados. Por ser um conceito aberto,
por definição indeterminado, ou seja, não previsto de forma clara e objetiva no ordenamento,
confere grande instabilidade a uma situação já extremamente instável. Assim, as situações de
fato e de direito se confundem, ao passo que o direito (na figura do Fuhrer) produz o fato a seu
bel prazer:

"Assim como a palavra do Furher não é uma situação factícia que se transforma
posteriormente em norma, mas é ela mesma, enquanto viva voz, norma, também o corpo
biopolítico [...] não é um inerte pressuposto biológico ao qual a norma remete, mas é ao
mesmo tempo norma e critério da sua aplicação, norma que decide o fato que decide da sua
aplicação." (AGAMBEN, p. 179)

Dessa forma, confundem-se fato e direito, a produção de normas e sua aplicação, a voz do
Fuhrer e a lei.

Entendida a situação produzida no campo, a saber, essa indistinção entre fato e direito,
entre vida qualificada e vida nua, Agamben tece a definição de campo de forma expansiva
quando afirma que “nos encontramos virtualmente na presença de um campo toda vez que é
criada uma tal estrutura, independentemente da natureza dos crimes que aí são cometidos e
qualquer que seja a sua denominação ou topografia específica” (AGAMBEN, p. 181). Portanto,
todas as vezes em que se produzir um espaço no qual o ordenamento jurídico é suspenso, este
espaço será um campo.

Por conseguinte, pode-se entender o campo enquanto nómos do moderno, ou seja, “o


novo regulador oculto da inscrição da vida no ordenamento” (AGAMBEN, p. 182). Isso quer
dizer que, antes de todas as pessoas serem incorporadas no estado de direito como cidadãs,
como sujeito de direito, são capturadas pelo Estado de direito enquanto vida nua.
BIBLIOGRAFIA:

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo.
Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002.

SCHMITT, Carl. Teologia política.Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte, Del Rey, 2006.

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