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Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Departamento de Psicologia
Disciplina: Constituição da Personalidade na Abordagem da Psicologia Histórico-Cultural

Professores: Rosana Aparecida Albuquerque Bonadio e Silvana Calvo Tuleski

Alunos: João Rafael Alba Libardi Cravo (ra115903) e Thuyse Wengrat Pichler (ra125505)

PRIMEIRA AVALIAÇÃO

Aquilo que se é, é-se num contexto primeiro, no qual se mostra um dado


espaço, um dado tempo, um dado grupo e as relações sociais nele estabelecidas. Interiorana, a
cidade de Machado, ao tempo do fim do regime militar, foi berço à gênese da construção da
personalidade de nosso protagonista, Fábio Brazier. A mãe, lavadeira; o pai, pedreiro e
trabalhador rural. O casal, analfabeto, compôs uma família cujas condições de escolarização
acabaram por ser escassas. Fábio, nesse contexto, dizia sonhar em ir à escola, apesar de não
saber exatamente o que lá se fazia. A insistência pela escolarização, contudo, levou a mãe a
empenhar-se pela matrícula do filho, o qual, por meio de exames de avaliação
psicopedagógica, pôde ingressar na educação básica. A despeito da relutância por parte da
equipe pedagógica em relação ao que viria a ser o seu desempenho escolar, Fábio construiu,
naquela instituição de ensino, uma trajetória de aprendizado surpreendentemente exitosa. 

Com base nesse episódio, pode-se destacar o cenário espaço-temporal e,


consequentemente, histórico-cultural, como sendo contexto para a constituição de
necessidades na infância de Fábio. Estas, somadas a um objeto que as satisfêz, levaram ao
estabelecimento de motivos. Deparamo-nos, aqui, com a atividade. Fábio passou a exercer
atividade e, assim, a vincular de modo dinâmico a necessidade de ir à escola e o objeto capaz
de satisfazer essa necessidade - a escola. Ao insistir pelo ingresso na instituição, portanto,
realizou a descoberta do objeto que pôde satisfazer sua necessidade, objetivando-a. Desse
modo, o objeto - a escola - tornou-se a função orientadora da atividade e transformou-se,
assim, em motivo.

Além disso, a figura da escola se deu, inicialmente, como figura representativa da


relação social, na medida em que Fábio encontrou diversas crianças, de sua idade, com

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mochilas e uniformes. Nesse cenário, pode-se dizer que o objeto escola possuía significado,
um significado objetivo e compreensível. Ao passo que Fábio foi introduzido no ambiente
escolar, porém, desenvolveu-se também como sentido pessoal, como subjetificação de uma
característica social. Já de antemão, esse desenvolvimento se deu em relação com o objeto da
atividade, ou seja, o motivo (a escola), bem como com a finalidade dessa atividade.

É nesse sentido que, em um primeiro momento, pode-se examinar a consciência em


Fábio com base na possibilidade material e na aquisição do significado da escola. Tem-se que
as primeiras memórias propriamente exploradas pelo autor se deram através de sua relação
com a escola. O desenvolvimento de sua necessidade se dá de maneira contraditória para com
a cultura familiar, de maneira que também é mantido pela estrutura capitalista de trabalho
intelectual versus trabalho material. Como citado no texto: “Essa talvez fosse a grande
contradição familiar, pois, para meus pais estudar consistia em aprender a ler e escrever. Não
era possível, na compreensão de mundo que tinham, atrelar o estudo ao trabalho” (BRAZIER,
2020, p. 21). 

O êxito de Fábio na atividade de ir à escola pode ser elucidado com base na noção de
capacidade. Na teoria histórico-cultural, ela não diz respeito a um “dom”, mas a um produto
da história humana. Nesse sentido, à medida em que Fábio pôde vislumbrar novas
oportunidades de objetivação e se apropriar de conhecimentos, foi-lhe possível construir
capacidades. Nelas fundamentado, foi capaz de operar sínteses, análises e generalizações.
Pode-se dizer, assim, que a escola forneceu elementos para o desenvolvimento de capacidades
e, simultaneamente, para a superação de possíveis condições de alienação. Isso pois, quando
alienados, os sujeitos não protagonizam o seu processo de desenvolvimento de capacidades,
de modo que “a personalidade, por não se manifestar efetivamente em função de suas
propriedades, de suas necessidades e aspirações, não pode revelar-se como livre e superior
manifestação da individualidade” (MARTINS, 2004, p. 96), diferentemente do que ocorreu,
nesse caso, com Fábio.

A trajetória de nosso protagonista, se tomada sem considerá-lo como uma variante


histórica, pode levar a admitir uma explicação determinística, com um desfecho
preestabelecido. Dada a simplicidade das condições familiares nas quais se criou, como
compreender o inesperado êxito de Fábio no ambiente educacional? Simplesmente, por meio
de seu processo histórico-social de individualização. Sua história, que se desenrola tão
somente com base em condições biológicas e sociais, pôde ser construída de modo a oferecer
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elementos para que Fábio se realizasse. O resultado de sua atividade não pode ser
deterministicamente previsto, nesse sentido, porque ela não decorre exclusivamente de
condições objetivas. Não se deve separá-la, por conseguinte, de sua dimensão subjetiva, que é
fruto das relações de Fábio com outros indivíduos, isto é, de sua atividade social.

Segundo Fábio, hoje compreende o quanto a perspectiva determinística daqueles que


duvidaram de sua capacidade poderia ter levado-o, de fato, ao fracasso escolar. Em suas
próprias palavras: “Hoje tenho a consciência do risco que corri ao ser alvo de uma profecia
que poderia ter se autorrealizado, ‘direcionando’, ‘determinando’, o meu desenvolvimento em
outro sentido, não permitindo o meu progresso pela educação escolar” (BRAZIER, 2020, p.
25). Isso significa que pôde analisar e comparar sua situação e situá-la em um sistema de
representações de si próprio. Em outros termos, foi capaz de conhecer seus próprios traços, a
tomar consciência de si. Mas não só isso: ao reconhecer a influência daqueles que dele
duvidaram, Fábio também conseguiu observar a si mesmo numa realidade mais abrangente,
que compreende as relações sociais das quais era parte. Pôde, desse modo, ter
autoconsciência.

Posteriormente, já no ensino médio, Fábio teve de conciliar os estudos com o trabalho,


dadas as condições financeiras do ambiente familiar. Nesse contexto, teve incentivo para que
se dedicasse ao ingresso no ensino superior por parte de uma professora, a qual emprestou-lhe
materiais de estudo para o vestibular e até mesmo pagou por sua inscrição no processo
seletivo, no qual foi aprovado para o curso de Letras. Assim, no ambiente de uma
universidade privada, repleta de indivíduos de uma classe social muito distinta da qual
procedia, Fábio foi o primeiro de sua família a adentrar o ensino superior.

Fábio relacionou seu ensino superior principalmente com o trabalho, citando que
passava os fins de semana e os horários livres realizando bicos e serviços que envolviam seu
curso profissionalizante. Vê-se uma relação direta da dualidade socioeconômica enfrentada na
construção de uma formação intelectual, ao mesmo tempo que se estabelece uma relação
laboral em que quem não tem condições econômicas se acha. A partir disso, Fábio entrou em
contato com um estágio na área de estudo que estava na universidade, estabelecendo relações
diretas entre o estudo e a prática profissional. Cria-se, então, vínculos de atividade com o
trabalho, espelhando o indivíduo com a construção de sua personalidade futura.

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A significativa presença do trabalho ao longo da trajetória acadêmica de Fábio permite
vislumbrar o papel ocupado pela divisão social de classes em sua história. Sobretudo na
faculdade, cujo sistema de ensino era privado e portanto de mais fácil acesso a famílias bem
abastadas, pode-se dizer que fez-se-lhe nítida a desigualdade do sistema no qual se inseria.
Assim, a desigualdade foi um elemento presente nesse quadro do mundo que se apresentou a
Fábio, isto é, foi um conteúdo que atravessou-lhe a consciência. Com isso, pôde delimitar
propriedades externas e internas e resumi-las em seu sistema de representações de si próprio,
ou seja, pôde tomar consciência de si, representar-se a si mesmo. Mas, como destaca Séve, o
que há de fundamental na personalidade não está “no indivíduo tomado isoladamente, mas, de
forma paradoxal, no exterior, no mundo social que, sob formas variáveis, rege as suas formas
de funcionamento e de desenvolvimento” (SÈVE, 1989, p. 156). Não basta, assim, dizer que
Fábio teve consciência de si. Uma vez que, no cenário da faculdade, já estava inserido em um
sistema de relações sociais desiguais, parece que se pode afirmar que desenvolveu, também, a
autoconsciência: representou-se a si mesmo diante das relações sociais nas quais se inseria.

A consciência de si e a autoconsciência fazem parte de um dos critérios que regem o


desenvolvimento da atividade social. Responsável por desenvolver as relações entre os
indivíduos, tal atividade é gerida pelas particularidades das relações de um indivíduo singular
com o mundo que o cerca, pela organização hierárquica das atividades em relação aos
motivos e pela intensidade com a qual essa organização é subordinada à consciência de si e à
autoconsciência. Essa atividade é a principal parte da personalidade. Com base nela, portanto,
é possível dizer que a consciência de si e a autoconsciência que Fábio adquiriu ao longo de
sua vida foram perpassadas por variáveis históricas marcadas pela divisão social de classes e
que o grau com que hierarquizou as atividades e motivos foi a elas subordinado
significativamente. Isso pois as atividades às quais mais deu destaque no memorial, as
pertinentes à sua trajetória acadêmica, foram relatadas sempre levando em conta as
dificuldades socioeconômicas com as quais teve de lidar a fim de permanecer estudando.

Considerando os aspectos da consciência, da atividade e do motivo, podemos


entender, então, a formação da personalidade com base no texto memorial. Fábio cita que a
construção de sua personalidade levou ao que define como sendo uma atuação crítica, uma
atuação como profissional da educação. Não mudou, se assim considerarmos os aspectos de
seus motivos, suas realizações para com a atividade docente, sendo que se mantém a
estabelecer relações de sua história de vida com o trabalho: “No início foi uma mistura de

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muitas sensações distintas, e, sobretudo, ansiedade, pois o fato de estar exercendo o papel de
docente trazia para mim uma sensação de realização pessoal: ser professor era uma conquista
de significância expressiva” (BRAZIER, 2020, p. 29). Tem-se então uma construção ativa da
personalidade com base na conceituação de atividade a partir de uma formação dialética.

Desse modo, é por meio de um movimento dialético que se tem acesso ao


desenvolvimento da atividade, da consciência e da personalidade na história de Fábio. Em
vista da experiência consciente, previamente formada por sua relação direta com o manejo do
ambiente para com suas necessidades, constrói-se a memória da atividade como forma de
realização pessoal e social. Ao atribuir suas memórias diretamente à relação com a escola,
Fábio realiza um movimento dialético direto da imposição da linguagem sob o conteúdo
material, desta vez em forma de texto. A consciência se revela no texto através do uso da
linguagem como forma de transmissão de signos, passando ao leitor uma série de eventos
entendidos com base na memória de Fábio.

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REFERÊNCIAS:
BRAZIER, F. Formação continuada de professores e a teoria histórico-cultural: diálogos
(trans)formadores sustentados por mediações teóricas e reflexões sobre práticas
pedagógicas. Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Campinas/SP - 2020. TESE DE
DOUTORADO. MEMORIAL DE FORMAÇÃO (p. 17-36).

MARTINS, L. M. A natureza histórico-social da personalidade. Cadernos Cedes, Campinas,


v. 24, n. 62, p. 82-99, 2004.

SÈVE, L. A personalidade em gestação. In: SILVEIRA, P.; DORAY, B (orgs.). Elementos


para uma teoria marxista da subjetividade. São Paulo: Vértice, 1989. p. 147-178.

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