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MINISTÉRIO DA CULTURA, ITAÚ e FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA

apresentam

19° festival do filme documentário e etnográfico | fórum de antropologia e cinema


Do retrato ao autorretrato: notas aleatórias do espaço imagético
em Mais do que eu possa me reconhecer sobre filme de Allan Ribeiro
Roberta Veiga 127

O que é a verdade para certos rapazes


sobre A paixão de JL, de Carlos Nader
Eduardo de Jesus 133
Futuro Junho sobre filme de Maria Augusta Ramos
Carla Maia 137

Entre o trabalho e a deriva afetiva


sobre Carregador 1118, de Eduardo Consonni e Rodrigo T. Marques
Vinícius Andrade 143
Mostra contemporânea brasileira, curtas-metragens
Anna Flávia Dias Salles, Bruno Vasconcelos e Luís Felipe Flores 147

O cinema no olho do furacão


sobre #73, de Rekesh Shahbaz, e Home, de Rafat Alzakout
Victor Guimarães 157 11
O seio da falta sobre La fièvre (2014), de Safia Benhaim
Dalila Martins 161

10949 femmes sobre filme de Nassima Guessouim


Mariana Souto 163
Relatório de prisão de um desajustado bem comportado, por Chinpou
sobre filme de Rikisaburo Sato
Daniel Ribeiro Duarte 167
Os signos da rua sobre Cuerpo de letra, de Julián D’Angiolillo
Roger Koza 171

O som depois do medo sobre O som antes da fúria, de Martin Sarrazac e Lola Frederich
Ana Carolina Estrela da Costa 173

Kibuki: spirits in Zanzibar sobre filme de Elizabeth Brooks


Leonardo Amaral 177

Greetings to the Ancestors sobre filme de Ben Russell


Roberto Cotta 181

Na terra de Haidar sobre Homeland: Iraq Year Zero, de Abbas Fahdel


Ra ael Urban 185

Índices de filmes e diretores 192


Programação 195
Créditos 203
O CINEMA NO
OLhO DO FURACÃO
sobre #73, de Rekesh Shahbaz
e Home, de Rafat Alzakout

victor guimarães

No ano passado, a Competitiva Internacional do orumdoc exibia


o extraordinário ilme sírio Our Terrible Country, de Mohammad Ali
Atassi e Ziad Homsi. Entre as múltiplas virtudes do ilme estava sua 157
capacidade de transportar o espectador para o centro do con lito bélico
em curso, como se pudéssemos, por uma hora e meia, compartilhar
algo da imprevisibilidade, das angústias, da tensão, dos horrores da
guerra e das esperanças da luta. Não apenas uma orma de contato
imaginário com esse amontoado de so rimento incalculável, mas a
duração do ilme como a experiência ísica, corpórea, vital de habitar
uma requência singular de pulsação da História. Potência inaliená-
vel do cinema documentário: arremessar-nos de um golpe em pleno
olho do uracão, nos azer habitar de corpo inteiro um outro transe do
mundo e nos devolver sãos e salvos, mas trans ormados para sempre.
É essa modalidade de partilha de um espaço-tempo em alteração
radical que está em jogo para o espectador de #73 e Home. No início do
primeiro, vemos imagens da ronteira entre a Síria e o Iraque, ilmadas
em agosto de 2014. Enquanto um caminhão quase solitário segue em
rente, dezenas de veículos e milhares de pessoas a pé se movem na
direção contrária. Está em curso o septuagésimo terceiro genocídio
contra os Yazidi no Curdistão, dessa vez operado pela máquina do
Estado Islâmico. Barakat Hassan conseguiu ugir às pressas da cidade
de Shingal, mas está sem notícias de seus pais – que não podem andar
– há dias e decide atravessar novamente a ronteira para procurá-los.
Na voz over do rapaz os relatos se acumulam: há notícias de torturas,
estupros em massa, assassinatos de homens, mulheres e crianças às
centenas, decapitações de amílias inteiras.
Barakat se move às pressas por uma desoladora paisagem desér-
tica, percorre o último círculo do in erno. No caminho – agora eito a pé
–, encontra combatentes curdos que organizam a resistência armada,
amílias em uga (ou o que restou delas), ativistas que distribuem água
para as crianças sedentas. Uns tentam dissuadi-lo de voltar, outros
o erecem uma palavra de apoio. A cada novo encontro, os testemunhos
instalam um horror indescritível na cena. A desesperança é brutal:
um povo, uma orma de vida está em vias de ser extinta e, mesmo que
tanto os adolescentes quanto os velhos empunhem metralhadoras, não
parece haver saída possível. O enquadramento apanha Barakat sempre
158 de perto, ombro a ombro: câmera companheira de jornada. Ouvimos
a respiração o egante do diretor Rekesh Shahbaz no antecampo. O
que resta ao cinema nessa ranja de um mundo em extinção? Talvez a
única atitude possível seja permanecer no encalço, à espera, escutar
com atenção, nos azer compartilhar a secura do deserto e a dor das
mulheres que choram.
Home, como Our Terrible Country, nos leva ao centro do proces-
so revolucionário na Síria. O território do país segue disputado pelas
orças em combate – o governo, o Estado Islâmico, o Exército Livre
da Síria –, mas dessa vez nossa porta de entrada para o con lito não é
o front de batalha, e sim o cotidiano de um grupo de artistas – entre
eles o diretor, Ra at Alzakout – que decide ocupar uma casa durante
uma temporada para criar em meio à guerra. Eles pintam, esculpem,
dançam, escrevem, ensaiam e montam peças de teatro que apresentam
aos vizinhos, a partir das quais produzem um impressionante espaço
de interlocução in loco sobre o con lito que os concerne a todos – e que
vibra nas vozes das crianças a entoar os cantos multitudinários que
clamam pela queda de Bashar.
À primeira vista, Home se apresenta como um ilme aparente-
mente rágil e ensimesmado, mas logo nos damos conta de que estamos
diante de uma crônica delicada e surpreendentemente bela de um
país às voltas com um processo histórico imprevisível (como a escu-
ridão que desaba sobre o plano quando a eletricidade é cortada mais
uma vez). A contiguidade da luta – a guerra parece estar sempre na
vizinhança, sempre à espreita – contrasta com esses corpos ilmados
com intensidade erótica. A tensão permanente do ora-de-campo – as
notícias que chegam pelos amigos, o ruído dos aviões – rebate nos
rostos jovens, contamina o espaço da casa – essa utopia tornada real,
ainda que por certo tempo – e é trans ormada em luxo vital que irriga
as obras de arte.
O que acontece a um povo durante uma revolução, quando tudo
é incerteza e contradição permanente? Há os bravos guerreiros que
resistem de AK-47 na mão, mas há também esses imprescindíveis ra-
pazes que icam, esses que se empenham em dar sentido ao caos, em 159
traduzir na orma os vetores da luta e em contagiar cada espectador
com a energia de seu desejo. É essa vitalidade que a câmera vai buscar
em cada canto da casa: na gravidade dos testemunhos, no dissenso
latente dos debates acalorados e, sobretudo, na paixão incandescente
dos ensaios que abrem uma enda na dureza dos dias.

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