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Saude Coletiva Vol. 2 - 2020
Saude Coletiva Vol. 2 - 2020
desenvolvem em algumas
pessoas e em outras não?
1.1 INTRODUÇÃO
A Epidemiologia agrega variadas linhas de conhecimento, discutidas
a seguir, que emergiram fortemente a partir do século 17. Naomar de
Almeida Filho, epidemiologista brasileiro de destaque internacional,
explica que o século em questão foi inovador nos sentidos político e
social, pois a necessidade de “calcular” a população passa a ser
fundamental para o Estado, por questões políticas e militares. Nesse
contexto, surgem linhas como a “aritmética política”, de William
Petty (1623-1697), e a “estatística médica”, de John Graunt (1620-
1674) (ALMEIDA FILHO, 1986).
John Graunt foi o primeiro a quantificar os padrões de natalidade e
mortalidade e a ocorrência de doenças, identificando características
importantes, entre elas a existência de diferenças entre os sexos e na
distribuição urbano-rural, elevada mortalidade infantil e variações
sazonais existentes. Foi ele o responsável pelas primeiras
estimativas de população e pela elaboração de uma tábua de
mortalidade, também conhecida como tábua de vida, que é um
procedimento para estimar a expectativa de vida da população.
Este trabalho marcou não somente o início formal da Epidemiologia,
como também uma das mais espetaculares conquistas, foi a
descoberta, por John Snow, de que o risco de contrair cólera estava
relacionado ao consumo de água de uma fonte específica
(BEAGLEHOLE; BONITA; KJELLSTRÖM, 2010). Snow marcou a
moradia de cada pessoa que morreu de cólera em Londres entre 1848
e 1849, e 1853 e 1854, analisando a relação entre a distância das
fontes de água e a ocorrência de óbitos (Figura 1.1). Foi com base
nessa investigação que o médico construiu uma teoria sobre a
transmissão das doenças infecciosas, sugerindo que a cólera fosse
disseminada por meio da água contaminada, fato que antecede a
descoberta do Vibrio cholerae e evidencia que, desde 1850, os
estudos epidemiológicos têm indicado as medidas apropriadas de
saúde pública a serem adotadas.
Figura 1.1 - Mapa de John Snow, que demarca as residências com óbitos por cólera em
Londres, no ano de 1854
Nota: os pontos azuis indicam bombas d’água, e os vermelhos, residências com morte por
cólera. Note os pontos vermelhos agrupados no entorno de uma bomba específica.
Fonte: adaptado de John Snow and serendipity, 2011.
1.2.3 Usos
A Epidemiologia é uma ciência de ação e, em vista disso,
consensualmente de caráter utilitário. Os seus conhecimentos
destinam-se à solução prática de problemas concernentes à Saúde
Pública e à Medicina. É nesse sentido que, até agora, tem evoluído a
pesquisa epidemiológica constantemente alimentada pela pesquisa
básica (FORATTINI, 1990).
A Epidemiologia tem se destacado no
desenvolvimento metodológico para todas as
ciências da saúde, ampliando seu papel na
consolidação de um “saber científico” sobre a
saúde, seus determinantes e suas
consequências.
2.1. INTRODUÇÃO
Epidemiologia é um pilar de conhecimento científico para todas as
áreas de saúde. Por conseguinte, é natural que, com frequência, seja
preciso um processo de digressão e retomada de conceitos que
possam parecer óbvios em um primeiro momento, mas que são
necessários para formar uma base sólida de conhecimento científico.
Neste capítulo, iremos abordar o conceito de saúde e o processo de
adoecimento, os quais podem ser vistos por mais de uma
perspectiva.
O conceito de saúde reflete a conjuntura social, econômica, política e
cultural. Ou seja, saúde não representa a mesma coisa para todas as
pessoas; depende da época, do lugar e da classe social. Os valores
individuais e as concepções científicas, religiosas e filosóficas
também estão associados a esse conceito. Inicialmente, para chegar
a uma apropriação concreta dos conceitos de saúde e doença, faz-se
necessária uma compreensão etimológica dos 2 vocábulos. Segundo
Reiner (2008), doença provém do latim dolentia, derivado de dolor e
dolore, que querem dizer “dor” e “doer”. Já saúde, também do
latim, vem de salutis, derivado do radical salus, que significa
“salvar”, “livrar do perigo”, “afastar riscos e/ou saudar”,
“cumprimentar”, “desejar saúde”.
2.2 CONCEITO DE “SAÚDE” E
“DOENÇA”
2.2.1 Saúde
No senso comum, muitas vezes a saúde é definida como ausência de
doença, e doença, inversamente, como falta ou perturbação da
saúde. Na prática clínica, as pessoas são examinadas e rotuladas
como doentes ou saudáveis em função de julgamentos baseados em
resultados de exames clínicos e/ou laboratoriais, que informam a
ausência ou a presença de anormalidades (PEREIRA, 2002).
Além de estar naturalizado na comunidade, e mesmo na clínica, esse
conceito simplista fez parte da chamada teoria negativa do processo
saúde-doença, que data da década de 1970 e foi escrita por
Christopher Boorse (BOORSE, 1975, 1976, 1977, 1986). O autor
referia que doença seria, por conseguinte, o termo de referência pelo
qual a saúde poderia ser negativamente definida. Almeida Filho e
Jucá (2002) explicam que, no Brasil, o nome de Boorse é
praticamente desconhecido, e não há referências à sua contribuição
em quaisquer dos textos analíticos fundamentais da área de Saúde
Coletiva no país.
O conceito de saúde proposto pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) em 1948 refere-se a esta não apenas como a ausência de
doença, mas como o completo bem-estar físico, mental e social.
Embora seja antiga, uma vez que data da origem da própria OMS,
essa definição continua a ser utilizada pelo órgão na atualidade.
Contudo, Segre e Ferraz (1997) avaliam que essa definição, até
avançada para a época em que foi realizada, é, no momento,
qualificada como irreal, ultrapassada e unilateral, uma vez que
atingir o “completo” refere-se a uma utopia. A definição da OMS
pode ser tratada mais como um símbolo ideal, um compromisso ou
um horizonte a ser buscado.
No fim do século 20, o conceito de saúde estava intrinsecamente
relacionado ao modelo biomédico, em que doença era tratada como
“desajuste ou falha nos mecanismos de adaptação do organismo ou
ausência de reação aos estímulos a cuja ação está exposta; processo
que conduz a uma perturbação da estrutura ou da função de um
órgão, de um sistema ou de todo o organismo ou de suas funções
vitais” (JÉNICEK; CLÉROUX, 1985).
O conceito “ampliado e positivo de saúde” foi defendido e registrado
na 8ª Conferência Nacional de Saúde, denominada Conferência Pré-
Constituinte, realizada de 17 a 21 de março de 1986. Saúde seria,
então, a resultante das condições de alimentação, habitação,
educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego,
lazer, liberdade, acesso e posse da terra, bem como acesso a serviços
de saúde. Seria, assim, o resultado das formas de organização social
da produção que podem gerar grandes desigualdades nos níveis de
vida (BRASIL, 1987).
O grande mérito da concepção presente na Constituição de 1988
reside, justamente, na explicitação dos determinantes sociais da
saúde e da doença, muitas vezes negligenciados nas concepções que
privilegiam a abordagem individual e subindividual.
Segundo a Constituição Brasileira de 1988, “a saúde é direito de
todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal igualitário às ações e aos serviços para
sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988).
2.2.2 Doença
O conceito de doença, sob a ótica médica, refere o oposto de saúde da
mesma ideologia, a chamada “teoria negativa do processo saúde-
doença”; a distinção entre o normal e o patológico pode ser vista de
maneira quantitativa, tanto para os fenômenos orgânicos quanto
para os mentais. A doença constitui falta ou excesso de excitação dos
tecidos abaixo ou acima do grau que constitui o estado normal
(COELHO; ALMEIDA FILHO, 1999). Nessa perspectiva, a doença está
dentro do indivíduo e pode ser definida como um fenômeno isolado,
com causas biológicas e, muitas vezes, a ser tratado com
medicamentos.
Do ponto de vista social, a melhor forma de comprovar
empiricamente o caráter histórico da doença não é conferida pelo
estudo de suas características nos indivíduos, mas sim quanto ao
processo que ocorre na coletividade humana. A natureza social da
doença não se verifica no “caso clínico”, mas no modo característico
de adoecer e morrer nos grupos humanos. Ainda que provavelmente
a “história natural” da tuberculose, por exemplo, seja diferente hoje
do que era há 100 anos, não é nos estudos dos tuberculosos que se
apreende melhor o caráter social da doença, mas nos perfis
patológicos que os grupos sociais apresentam (LAURELL, 1976).
Desse modo, doença não é mais do que um constructo que guarda
relação com o sofrimento, com o mal, mas não lhe corresponde
integralmente. Quadros clínicos semelhantes, com os mesmos
parâmetros biológicos, prognóstico e implicações para o tratamento,
podem afetar pessoas diferentes de forma distinta, resultando em
diferentes manifestações de sintomas e desconforto, com
comprometimento diferenciado de suas habilidades de atuar em
sociedade (EVANS; STODDART, 1994; OLIVEIRA; EGRY, 2000).
O processo saúde-doença da coletividade pode ser entendido como o
modo específico pelo qual ocorre, nos grupos, o processo biológico
de desgaste e reprodução, destacando como momentos particulares
a presença de um funcionamento biológico diferente, com
consequências para o desenvolvimento regular das atividades
cotidianas, isto é, o surgimento da doença (LAURELL, 1983).
A seguir, serão apresentados alguns modelos que auxiliarão no
entendimento dos conceitos aqui apresentados.
2.3 OS MODELOS EXPLICATIVOS DO
PROCESSO SAÚDE-DOENÇA
São modelos explicativos do processo saúde-doença: biomédico –
agentes físicos, químicos e biológicos que causam doença nos
indivíduos, independentemente do contexto psicossocial; e
ecológico (História Natural da Doença) – considera a interação, o
relacionamento e o condicionamento de 3 elementos fundamentais
da “tríade ecológica”: o ambiente, o agente e o hospedeiro, sendo a
doença resultante de um desequilíbrio nas autorregulações
existentes nesse sistema, que se desenvolve em 2 períodos
consecutivos, o pré-patogênico e o patogênico.
Historicamente, pode-se dizer que há uma evolução de paradigmas
em se tratando de ensino de modelos explicativos do processo
saúde-doença. Mais recentemente, no Brasil, as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o curso de Medicina (2014) orientam
para uma formação que considere as dimensões da diversidade
biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual,
socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética e demais
aspectos que compõem o espectro da diversidade humana que
singularizam cada pessoa ou cada grupo social.
2.3.1 O modelo biomédico
O discurso da Medicina apoia suas observações e formulações,
predominantemente, a partir da perspectiva do modelo biomédico.
Esse modelo, refletindo o potencial técnico-instrumental das
biociências, exclui o contexto psicossocial dos significados, nos
quais uma compreensão plena e adequada dos pacientes e de suas
doenças depende de alternativas de compreensão de saúde e doença.
A formação do médico, bem como a de outros profissionais da saúde,
esteve ancorada no modelo biomédico desde sua existência, fato que
favoreceu a construção de uma postura de desconsideração aos
aspectos psicossociais tanto dele quanto do paciente (MARCO,
2006).
De acordo com o modelo biomédico (Figura 2.1), as doenças advêm
de agentes externos (químicos, físicos ou biológicos) que causam
mudanças físicas no ser humano. O modelo biomédico vê o corpo
humano como uma máquina muito complexa, com partes que se
inter-relacionam, obedecendo a leis naturais e psicologicamente
perfeitas, assim pressupõe que a máquina complexa (o corpo)
precise constantemente de inspeção por parte de um especialista.
Figura 2.1 - Modelo biomédico de saúde-doença
Fonte: elaborado pelos autores.
b) Fatores ambientais
3.1 INTRODUÇÃO
Após a conceituação de saúde e doença, pode-se partir para questões
mais aplicadas da Epidemiologia. A rigor, neste capítulo, serão
abordados os aspectos básicos da ocorrência de doenças, aqui
denominados “medidas de frequência”. A problemática de interesse
do capítulo é a presença de determinado evento e a possibilidade de
repetição desse evento; à medida que ele ocorre repetidas vezes,
pode ser reconhecido um padrão de ocorrência que, muitas vezes,
traz informações importantes sobre a sua prevenção e o seu
controle.
Compreender as medidas de frequência pode ser importante tanto
para a população geral quanto para os profissionais de saúde. Pode-
se imaginar uma situação em que exista uma epidemia de dengue,
por exemplo; para saber o estado evolutivo dessa epidemia, se as
atividades de prevenção vêm surtindo o efeito esperado, se o
tratamento existente tem aumentado a sobrevida dos afetados ou se
as políticas adotadas para o controle da doença têm sido adequadas,
é preciso avaliar as medidas de frequência de doenças e compará-las
ao longo do tempo.
Assim como todo o restante da Epidemiologia, as medidas de
frequência de doença são avaliadas a partir de indicadores, que,
como regra geral, são calculados a partir da divisão entre números.
As características específicas dos diferentes tipos de indicadores
(razões, proporções, coeficientes e índices) são aprofundadas no
capítulo de mortalidade e outros indicadores; porém, devido à
importância e às características particulares das medidas de
frequência, costuma-se estudá-las em um capítulo à parte, como é o
caso deste livro. As “medidas de frequência”, portanto, são definidas
a partir de 2 indicadores que fazem parte da categoria
“coeficientes”, que são a prevalência e incidência (MEDRONHO,
2008).
A prevalência expressa o número de casos
existentes de uma doença ou um fenômeno de
interesse em um dado momento, e a incidência
se refere à frequência com que surgem novos
casos de uma doença, em um intervalo de
tempo.
4.1 INTRODUÇÃO
Neste capítulo, serão abordados alguns indicadores mais utilizados
no Brasil para categorizar a qualidade de saúde de um determinado
local.
Na área de Saúde, os “indicadores” são parâmetros utilizados
internacionalmente a fim de avaliar, do ponto de vista sanitário, a
higidez de agregados humanos, bem como fornecer subsídios aos
planejamentos de saúde, permitindo o acompanhamento das
flutuações e tendências históricas do padrão sanitário de diferentes
coletividades consideradas à mesma época ou da mesma
coletividade, em diversos períodos de tempo (MEDRONHO, 2009).
Diante das inúmeras dificuldades para mensurar a saúde da
população, o que se faz é quantificar e descrever a ocorrência de
determinados agravos à saúde, doenças ou morte. Nesse caso, olha-
se, então, a ausência de saúde, ou, como habitualmente é dito, a
saúde pelo seu lado negativo (MEDRONHO, 2009). Assim, por
exemplo, um local cuja população apresente baixa frequência de
doenças e mortalidade por diversos tipos de causas será taxado de
saudável.
Em sentido amplo, qualquer informação que
auxilie um gestor ou profissional da saúde na
tomada de decisão em saúde poderá ser um
indicador de saúde. De forma geral, indicadores
são expressos por meio da divisão entre
números.
Quadro 4.4 - Razão de morte por AIDS em relação às mortes por causas externas, 2017
Fonte: elaborado pelos autores.
Fonte: Mapa comparativo entre países. Taxa de mortalidade materna por país.
* A exclusão dos óbitos de idade ignorada resulta em que o indicador se refira ao total de
óbitos infantis com idade conhecida.
Fonte: Expectativa de vida do brasileiro ao nascer foi de 75,8 anos em 2016, diz IBGE,
2017.
Quando podemos dizer que
a assistência à saúde de um
local é melhor do que a de
outro?
De maneira geral, a assistência à saúde de um local é
melhor que outro quando um conjunto de indicadores
apropriado consegue responder a essa pergunta. Os
melhores indicadores para comparação são os expressos
em coeficientes, como coeficiente de mortalidade (que
sofre influência da estrutura etária da população),
mortalidade infantil, materna etc. Indicadores por
proporções também podem ser úteis, como o Índice de
Swaroop-Uemura e a Curva de Nelson Moraes.
A partir de quantos casos
podemos dizer que existe
uma epidemia?
5.1 INTRODUÇÃO
As doenças humanas provenientes da relação entre hospedeiro
(pessoa), agente (bactéria, vírus ou outro agente) e meio ambiente
(alimentos ou água contaminados) resultam de uma interação entre
fatores biológicos e ambientais, com o equilíbrio exato variando
conforme as diferentes doenças (embora algumas sejam de origens
amplamente genéticas). Muitos dos princípios subjacentes que
fundamentam a transmissão das doenças são mais claramente
demonstrados utilizando-se doenças transmissíveis como modelo.
Contudo, os conceitos discutidos podem ser extrapolados para
doenças não infecciosas ou mesmo para outros agravos à saúde
(CELENTANO E SZKLO, 2019).
As doenças são descritas como resultado de uma tríade
epidemiológica, ou seja, um produto de interação de um hospedeiro
humano, um agente infeccioso (ou de outro tipo) e um ambiente que
promova a exposição.
Vetores, como mosquitos e carrapatos, são frequentemente
envolvidos. Para a interação ocorrer, o hospedeiro deve estar
suscetível. A suscetibilidade humana é determinada por uma
infinidade de fatores, incluindo antecedentes genéticos e fatores
nutricionais e imunológicos.
O estado imunológico de um indivíduo é determinado por muitas
variáveis, incluindo contato prévio com o agente, por infecção
natural ou por imunização.
As condições que podem levar ao desenvolvimento de doenças são
biológicas, físicas e químicas, bem como outros tipos, como
estresse, que pode ser mais difícil de classificar. Pode-se pensar na
agregação desses fatores em, pelo menos, 3 grandes grupos de
doenças/agravos à saúde: doenças infecciosas e parasitárias,
doenças crônicas não transmissíveis e causas externas de morbidade
e mortalidade. Todas poderiam ser consideradas, de algum modo,
dentro do modelo clássico da tríade epidemiológica.
Uma doença transmissível (ou infecciosa) é causada pela
transmissão de um agente patogênico específico para um hospedeiro
suscetível. Agentes infecciosos podem ser transmitidos para
humanos: diretamente – de outros humanos ou animais infectados
– e indiretamente – por meio de vetores biológicos ou físicos,
partículas aéreas ou outros veículos (BEAGLEHOLE; BONITA;
KJELLSTRÖM, 2010).
Figura 5.1 - Tríade epidemiológica das doenças
Fonte: adaptado de Epidemiologia, 2010.
Fonte: Uma análise da situação de saúde e das doenças e agravos crônicos, 2019.
5.2 TRANSMISSÃO
As doenças podem ser transmitidas direta ou indiretamente. Quando
são transmitidas de indivíduo para indivíduo, fala-se em contato
direto. A transmissão indireta pode ocorrer por meio de um veículo
comum, como contaminação atmosférica ou fonte de abastecimento
de água, ou por um vetor, como um mosquito. Assim, diferentes
organismos disseminam-se de formas variadas, e o potencial de
determinados organismos em espalhar-se e produzir surtos
depende de suas características, como taxa de crescimento e via pela
qual são transmitidos de uma pessoa a outra (GORDIS, 2010).
É comum, mesmo na área médica, haver confusão entre o conceito
de doença “infecciosa” e “contagiosa”.
Doenças contagiosas são aquelas que podem ser transmitidas por
toque, contato direto entre os seres humanos, sem a necessidade de
um vetor ou veículo interveniente. A malária é, portanto, uma
doença transmissível, mas não contagiosa, enquanto o sarampo e a
sífilis são tanto transmissíveis quanto contagiosas. Alguns agentes
patogênicos causam doença não apenas por infecção, mas também
por meio do efeito tóxico de compostos químicos que produzem. Por
exemplo, Staphylococcus aureus é uma bactéria que pode infectar
diretamente os seres humanos, mas a intoxicação estafilocócica é
causada pela ingestão de alimentos contaminados com uma toxina
que a bactéria produz, mesmo na ausência desta (BEAGLEHOLE;
BONITA; KJELLSTRÖM, 2010). Com relação às doenças infecciosas,
são importantes alguns conceitos relacionados à cadeia de
transmissão:
1. Conceitos relacionados com a progressão da doença:
a) Colonização: o agente persiste na superfície do hospedeiro,
sem invasão tissular;
b) Infecção: a agente está presente nos tecidos do hospedeiro,
sem sinais, sintomas ou evidência laboratorial de dano tissular;
c) Infecção persistente: um estado de infecção que não leva
prontamente à doença ou à cura;
d) Período de incubação: é o período que se estende da
exposição ao agente até o aparecimento de sinais e sintomas;
e) Latência: é um tipo de infecção persistente, na qual o agente
invadiu o hospedeiro e está em um estado sem multiplicação, não
infectante, porém viável.
2. Conceitos relacionados com a progressão da doença:
a) Período prodrômico: é o período que abrange o intervalo entre
os primeiros sintomas da doença e o início dos sinais ou sintomas
que lhe são característicos e, portanto, com os quais o
diagnóstico clínico pode ser estabelecido;
b) Pródromos: são os sintomas indicativos do início de uma
doença;
c) Doença: o agente está se multiplicando em tecidos do
hospedeiro, com sinais, sintomas ou evidência laboratorial de
lesão tissular;
d) Cura: o agente foi eliminado dos tecidos do hospedeiro (mas
pode persistir na superfície).
3. Conceitos associados com a relação entre o agente infeccioso e o
hospedeiro:
a) Infectividade: é a capacidade dos hospedeiros de ficarem
infectados. É expressa pela fórmula infectados/expostos;
b) Patogenicidade: é a capacidade do agente infeccioso de
produzir a doença. É expressa pela fórmula doentes/infectados;
c) Virulência: é a gravidade da patogenicidade.
d) Poder imunogênico: é a capacidade do agente infeccioso de
induzir imunização específica.
4. Conceitos relacionados com o hábitat onde um agente infeccioso
vive, se multiplica e/ou cresce:
a) Reservatório humano: o homem é o principal hábitat de um
agente infeccioso;
b) Reservatório extra-humano: outros animais ou lugares, são os
principais hábitats de um agente infeccioso. Caso seja um animal,
será chamado de hábitat animal. Reservatórios não animais
incluem solo, pó ou água, por exemplo;
c) Zoonose: é uma infecção ou doença infecciosa transmissível
que, em condições naturais, ocorre entre animais vertebrados e
no homem.
5. Conceitos relacionados com o hábitat onde um agente infeccioso
vive, se multiplica e/ou cresce:
a) Fonte de infecção: é a pessoa, animal, objeto ou substância de
onde o agente infeccioso passa a um hospedeiro;
b) Portador: é um indivíduo ou animal infectado, que abriga um
agente infeccioso específico de uma doença, sem apresentar
sintomas ou sinais clínicos e constitui uma fonte potencial de
infecção para o ser humano;
c) Portador sadio: é o indivíduo portador durante o curso de uma
infecção subclínica;
d) Portador em incubação: é o indivíduo portador durante o
período de incubação;
e) Portador convalescente: é o indivíduo portador na fase de
convalescência ou pós-convalescência das infecções que se
manifestam clinicamente.
6. Conceitos relacionados à transmissibilidade de um agente
infeccioso:
a) Período de transmissibilidade: é o período de eliminação do
agente pelo hospedeiro, permitindo a sua transmissão;
b) Portas de saída/entrada: é o caminho pelo qual um agente
infeccioso entra ou sai de seu hospedeiro. As principais são
respiratórias (como tuberculose); geniturinárias (como AIDS);
digestivas (como hepatite A); cutâneas (como herpes-zóster);
placentárias (como toxoplasmose);
c) Transmissão direta: é a transferência direta do agente
infeccioso por uma porta de entrada para que se possa efetuar a
infecção. Também é chamada de transmissão pessoa a pessoa
ou contágio. Pode ser realizada por meio de gotículas,
conjuntivas, membranas mucosas do nariz ou boca ao espirrar,
tossir, cuspir, falar ou cantar, tocar, beijar ou ter relações sexuais;
d) Transmissão indireta: é a transferência do agente infeccioso
por meio de algum veículo de transmissão ou vetor;
e) Veículo de transmissão: podem ser objetos ou materiais
contaminados, como brinquedos, lenços, instrumentos cirúrgicos,
água etc.;
f) Vetor: é um inseto ou qualquer portador vivo que transporte um
agente infeccioso desde um indivíduo ou seus excrementos até
um indivíduo suscetível, sua comida ou seu ambiente imediato;
g) Vetor mecânico: é o simples translado mecânico do agente
infeccioso por meio de um inseto terrestre ou voador, pela
contaminação de suas patas ou tromba, ou pela passagem em
seu trato gastrintestinal, sem multiplicação, ou desenvolvimento
cíclico do micro-organismo;
h) Vetor biológico: o agente necessariamente deve propagar-se
(multiplicar-se), desenvolver-se ciclicamente, ou ambos, no vetor
antes que possa transmitir a forma infectante ao ser humano.
#IMPORTANTE
O estudo da distribuição temporal pode
fornecer inúmeras informações fundamentais
para compreensão, previsão, busca etiológica,
prevenção de doenças e avaliação dos impactos
de intervenções em saúde.
#IMPORTANTE
Graficamente, uma epidemia se expressa como
curva anormal em relação à ocorrência
esperada, chamada curva epidêmica.
Foi visto, até aqui, que uma epidemia se refere a uma alteração,
espacial e cronologicamente delimitada, do estado de saúde-doença
de uma população, que se caracteriza pelo aumento progressivo,
inesperado e descontrolado dos coeficientes de incidência de
determinada doença, ultrapassando o limiar epidêmico
preestabelecido.
Existem 2 aspectos básicos para a diferenciação das epidemias: o
primeiro diz respeito à velocidade com a qual ocorre o processo
epidêmico, classificando estas em epidemias lentas e explosivas; e o
segundo se refere à fonte ou origem da contaminação e divide-as em
fonte comum (pontual ou persistente) ou fonte progressiva ou
propagada (BRASIL, 2005).
Também denominada brusca, instantânea ou maciça, a epidemia
explosiva caracteriza-se por um aumento expressivo do número de
casos em curto espaço de tempo, compatível com o período de
incubação da doença. Nesse tipo de epidemia, quase todos os
indivíduos expostos e suscetíveis são acometidos em pouco tempo, e
a incidência máxima é alcançada rapidamente. Citam-se, como
exemplo, as intoxicações decorrentes da ingestão de água, leite ou
outros alimentos contaminados.
Na epidemia lenta, o critério diferenciador é a velocidade com a qual
ela ocorre na etapa inicial do processo, que é lenta e gradual e
progride durante um longo tempo. Acontece, em geral, nas doenças
de curso clínico longo, principalmente as não transmissíveis,
podendo ocorrer, também, com doenças cujos agentes apresentam
baixa resistência ao meio exterior ou para os quais a população seja
altamente resistente ou imune. Será lenta, ainda, se as formas de
transmissão e os meios de prevenção forem bem conhecidos pela
população, como AIDS, exposição a metais pesados ou agrotóxicos.
Quando não há um mecanismo de transmissão de hospedeiro para
hospedeiro na epidemia, por fonte ou veículo comum, o fator
extrínseco (agente infeccioso, fatores físico-químicos ou produtos
do metabolismo biológico) pode ser veiculado pela água, por
alimentos, pelo ar ou introduzido por inoculação. Todos os
suscetíveis devem ter acesso direto a uma única fonte de
contaminação, podendo ser por curto espaço de tempo (fonte
pontual) ou um espaço de tempo mais longo (fonte persistente).
Trata-se, geralmente, de uma epidemia explosiva e bastante
localizada, em relação a tempo e lugar, como a intoxicação
alimentar.
Na epidemia gerada por uma fonte pontual (no tempo), a exposição
ocorre durante um curto intervalo de tempo e cessa, não ocorrendo
novamente. Exemplos disso são as exposições a alimentos
contaminados em eventos. Já na epidemia ocasionada por uma fonte
persistente (no tempo), a fonte tem existência dilatada e a exposição
da população prolonga-se. Destacam-se, neste último caso, as
epidemias de febre tifoide devido a fonte hídrica, acidentalmente
contaminada pela rede de esgoto.
Epidemia de fonte progressiva ou propagada, de contato ou
contágio, ocorre quando o mecanismo de transmissão for de
hospedeiro-hospedeiro em cadeia, por via respiratória, anal, oral ou
genital (gripe, meningite meningocócica, doenças sexualmente
transmissíveis e raiva canina, por exemplo). Muitas vezes sua
progressão é lenta, contudo não se descarta a possibilidade de
epidemias explosivas por esse tipo de fonte.
O descontrole nos fatores determinantes da doença pode ocasionar
uma situação epidêmica. Esse descontrole deve ser detectado pelo
Sistema de Vigilância, classificado como uma situação de
emergência, e medidas circunstanciais devem ser tomadas para a
sua correção (ALVES, 2004).
A partir de quantos casos
podemos dizer que existe
uma epidemia?
Uma epidemia ocorre quando há um excesso do número de
casos em relação ao que é esperado para aquele tempo e
lugar; portanto, esse número dependerá de qual doença
está sendo estudada. Normalmente, esse excesso é
considerado quando o número ultrapassa 2 desvios-padrão
da média histórica daquela condição, como, por exemplo, a
média dos últimos 10 anos. Quando não há número de
casos anterior à ocorrência da condição estudada, 1 único
caso de doença após um longo tempo ausente na população
ou a primeira invasão de uma doença em uma área requer
reporte imediato às autoridades; 2 casos da mesma doença
associadas no tempo e local já podem ser evidência o
suficiente para ser considerada uma epidemia.
Você sabe diferenciar os
diferentes modos de realizar
vigilância em saúde?
6.1 INTRODUÇÃO
A vigilância em saúde visa à observação e análise permanentes da
situação de saúde da população, articulando-se em um conjunto de
ações destinadas a controlar determinantes, riscos e danos à saúde
de populações que vivem em determinados territórios e garantindo a
integralidade da atenção, o que inclui tanto a abordagem individual
quanto coletiva dos problemas de saúde.
O conceito de vigilância em saúde inclui:
a) Vigilância e controle das doenças transmissíveis;
b) Vigilância das doenças e agravos não transmissíveis;
c) Vigilância da situação de saúde;
d) Vigilância ambiental em saúde;
e) Vigilância da saúde do trabalhador;
f) Vigilância sanitária.
7.1 INTRODUÇÃO
Neste capítulo, um panorama da situação brasileira será apresentado
em 2 aspectos: epidemiológico (frequência de doenças e
mortalidade) e demográfico (perfil da população – idade,
fecundidade, entre outros). Estudar esse panorama é uma
possibilidade de compreender não somente o processo pelo qual
passou o perfil de morbimortalidade nesse último século, mas,
sobretudo, de estar preparado para o constante processo de
modificação que continuará a acompanhar a população de maneira
variável.
As transformações sociais e econômicas ocorridas no Brasil durante
o século passado ainda provocam mudanças importantes no perfil de
ocorrência das doenças na população (BRASIL, 2011). As mudanças
nos níveis de mortalidade têm efeito sobre o ritmo de crescimento
populacional e afetam significativamente a composição etária,
levando a um processo de envelhecimento que aumenta o peso
relativo da população idosa. Isso favorece a ocorrência das doenças
crônicas e degenerativas, como as neoplasias e as doenças de
aparelho circulatório, e modifica a estrutura de mortalidade,
segundo a causa de óbito (MONTEIRO, 2000).
O processo de transição demográfica, com queda nas taxas de
fecundidade e natalidade, e o progressivo aumento na proporção de
idosos (diminuição das taxas de mortalidade) favoreceram o
aumento das doenças crônico-degenerativas (doenças
cardiovasculares, câncer, diabetes, doenças respiratórias). A
transição nutricional, com diminuição expressiva da desnutrição e
aumento do número de pessoas com excesso de peso (sobrepeso e
obesidade), e o aumento dos traumas decorrentes das causas
externas – violências, acidentes e envenenamentos – foram os
fatores responsáveis pelo cenário de mudança que vivenciamos na
Epidemiologia Médica (BRASIL, 2011).
Na primeira metade do século 20, as doenças infecciosas
transmissíveis eram as causas mais frequentes de morte. A partir de
1960, as Doenças e Agravos Não Transmissíveis (DANTs) passaram a
assumir esse papel (BRASIL, 2011).
Projeções para as próximas décadas apontam para crescimento
epidêmico das DANTs na maioria dos países em desenvolvimento,
em particular das doenças cardiovasculares, neoplasias e diabetes
tipo 2. Essas doenças respondem pelas maiores taxas de
morbimortalidade e por cerca de mais de 70% dos gastos
assistenciais com a saúde no Brasil, com tendência crescente. Assim,
o desenvolvimento de estratégias para o controle das DANTs
tornou-se uma das prioridades para o Sistema Único de Saúde (SUS).
A vigilância epidemiológica das DANTs e dos seus fatores de risco é
fundamental para a implementação de políticas públicas voltadas à
prevenção e ao controle (BRASIL, 2011).
7.2 TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA
Com os avanços da Revolução Industrial e seus desdobramentos
educacionais, científicos e tecnológicos, ficou claro que o
desenvolvimento econômico produz 2 efeitos sobre a população:
a) Reduz as taxas de mortalidade, em geral, e a mortalidade infantil,
em particular, e possibilita o aumento da esperança de vida da
população;
b) Depois de certo tempo do início da queda da mortalidade, as taxas
de fecundidade também começam a cair, provocando a diminuição do
tamanho das famílias.
Legenda: a linha verde refere-se à taxa de natalidade; a linha roxa, à taxa de mortalidade e
a linha laranja, à população total. O preenchimento azul entre as linhas verde e roxa resulta
no crescimento natural da população.
Fonte: adaptado de World population growth, 2019.
8.1 INTRODUÇÃO
Você já deve ter deparado várias vezes com a seguinte frase: “Fumar
causa câncer de pulmão”. Embora a sentença tenha forte impacto,
sabe-se que, do ponto de vista epidemiológico, essa afirmação
categórica não é 100% verdadeira, uma vez que existem pessoas que
fumam e nunca desenvolverão câncer de pulmão ou qualquer outra
doença associada a esse hábito. De fato, o que existe é uma
associação que começou a ser demonstrada a partir da década de
1950 pelos famosos trabalhos de Doll e Hill (1950-1954). Esses
estudos, além de evidenciarem a íntima relação tabaco versus câncer
de pulmão, demonstraram a correspondência entre o aparecimento
da neoplasia do pulmão e a quantidade de tabaco nos pacientes.
O pressuposto primordial para entender a discussão que será
iniciada é que a doença não surge ao acaso (aleatoriamente), ou seja,
existem fatores associados a maior ou menor frequência
(prevalência ou incidência), alguns que contribuem para o seu
surgimento (fatores de risco) e outros cujo caráter protege o
indivíduo (fatores de proteção).
Para os procedimentos de análise de estudos científicos, a
Epidemiologia é servida por uma disciplina chamada Estatística, ou,
mais precisamente, Bioestatística. Segundo Pereira (2010), a
Estatística é uma disciplina das ciências formais (despida de objeto,
tratando apenas de estrutura conceitual, lógica e epistemológica do
conhecimento) à qual diferentes ciências empíricas (com objeto
definido) recorrem para conhecer melhor os assuntos de seu
interesse. O prefixo “bio” para Bioestatística busca apenas dar-lhe o
sentido de aplicação às Ciências Biológicas e da Saúde, não havendo
nada conceitualmente diferente.
Em Epidemiologia, os assuntos nos quais se busca maior
entendimento são as relações que diversas variáveis do indivíduo, do
tempo e do espaço estabelecem com determinados desfechos, que,
muitas vezes, são as doenças de interesse do pesquisador, ficando
explícito que o ponto central de uma avaliação está alocado na
investigação da associação e do efeito de variáveis independentes
(fatores ou variáveis de exposição) sobre uma variável dependente
(variável desfecho).
Para ilustrar essa situação, imagine o seguinte: choveu muito a noite
toda e o nível dos rios estará elevado. Existe relação direta entre as
águas das chuvas e as dos rios, ou seja, elas estão associadas. Nesse
caso, seria possível, ainda, medir a influência da variável
independente (chuva) sobre a dependente (nível dos rios) e, de certo
modo, conhecer a influência que a variabilidade de uma exerce sobre
a da outra.
A associação, muitas vezes, indica que uma variável possa estar no
“caminho da causalidade” de determinado desfecho, contudo essa
relação pode existir pelo simples acaso ou por alguma distorção,
como o efeito de confusão ou algum erro sistemático. Existem, na
atualidade, tratamentos adequados que possibilitam ao pesquisador
fazer essas considerações, embora outras questões também sejam
importantes para abordar em inferência causal.
Tendo em vista que a Bioestatística está servindo a Epidemiologia
como uma ferramenta aplicada, torna-se necessária a utilização de
uma estrutura didática para direcionar o leitor. Almeida Filho e
Rouquayrol (2002) sugerem que as seguintes perguntas sejam
realizadas pelos interessados neste momento:
a) “Em que medida (com que intensidade) ocorre a doença Y?”;
b) “Na presença de que condições/fatores a doença Y se manifesta?”;
c) “Qual é a possibilidade de a associação entre a doença Y e o fator X
se dever ao acaso?”.
#IMPORTANTE
O desvio-padrão sugere uma variação aceitável
dentro da amostra analisada, indicando a
distância média das observações em relação à
média.
Em que:
Relação R4 - Odds ratio ou chance entre os casos
Fonte: Fatores de risco para mortalidade neonatal em Blumenau, Santa Catarina, 2005.
#IMPORTANTE
O intervalo de confiança define os limites
inferior e superior de um conjunto de valores
com certa probabilidade de conter o valor
verdadeiro, na população, da medida analisada.
#IMPORTANTE
Se o intervalo de confiança inclui o valor 1, não
se rejeita a hipótese de nulidade, o que indica
que não há associação entre exposição e
desfecho. Caso não se inclua o valor 1, isso
significa p ≤ 0,05, por isso se pode inferir uma
associação.
9.1 INTRODUÇÃO
Na graduação em Medicina, você aprendeu variadas técnicas de
exames físicos e anamneses que, ao que parece, o deixaram
preparado para identificar o indivíduo doente que, normalmente,
dirige-se a você contando alguma anormalidade sintomatológica,
permitindo gerar uma hipótese inicial. Na sequência, você deve
investigar alguns fatores relacionados com a possível doença e, na
maioria das vezes, tentar mediar alguma anormalidade que seja
objetiva e que auxilie de maneira satisfatória seu processo de tomada
de decisão. Entram em cena, então, os chamados Métodos
Diagnósticos (MDs).
Segundo Kawamura (2002), Thomas Bayes, matemático inglês do
século 18, legou-nos o seu teorema, o qual estabeleceu que a
probabilidade pós-teste de uma doença era função da sensibilidade e
especificidade do exame e da prevalência da doença na população
(probabilidade pré-teste). Os médicos, ao formularem as hipóteses
diagnósticas, interpretarem os exames laboratoriais e prescreverem
um tratamento, intuitivamente utilizam-se do teorema de Bayes.
Hoje, vive-se a era da alta tecnologia, em que as pessoas
frequentemente tendem a interpretar a positividade de um exame
sofisticado e custoso como sinônimo de doença. Não se deve
esquecer que todos os exames, sem exceção, desde o corriqueiro
exame clínico até uma tomografia computadorizada, estão limitados
pela sensibilidade, pela especificidade e pelo valor preditivo pré-
teste.
A avaliação criteriosa da real utilidade dos MDs vem ganhando
importância cada vez maior nos últimos anos em decorrência do
aumento de seu uso na prática clínica, de seu encarecimento
progressivo e da pressão exercida por grupos de interesse, nem
sempre baseada em critérios científicos, para a utilização desses
métodos. Assim, os clínicos precisam estar familiarizados com
alguns princípios básicos no momento de interpretar esses testes
(FLETCHER; FLETCHER, 2006).
O MD é o processo analítico de que se vale o especialista ao examinar
uma doença ou um quadro clínico, para chegar a uma conclusão.
Compreende anamneses, exame clínico, exames complementares,
provas terapêuticas e acompanhamento clínico.
Ao solicitar um teste diagnóstico, considera-se que há risco
atribuído a ele, que pode ser grande ou pequeno. Desse modo, deve-
se considerar a segurança do teste como uma premissa importante,
pois ela é um julgamento da aceitabilidade do risco (uma medida da
probabilidade de um resultado adverso e de sua severidade)
associada ao uso de uma tecnologia em dada situação.
Outros aspectos que devem ser considerados em um MD são
gravidade da doença, aceitação do teste e seus parâmetros. Estes
últimos são operacionalmente mais importantes, embora todos
sejam de interesse do médico, por estarem associados diretamente
ao fato de serem capazes de diagnosticar o paciente.
9.2 POSSIBILIDADES DIAGNÓSTICAS
Para o teste diagnóstico ser considerado útil, é preciso que ele
identifique corretamente a presença da doença.
Portanto, antes de adotar um procedimento tido como ferramenta
diagnóstica, deve-se verificar a sua capacidade de retornar um
resultado que direcione à tomada de decisão correta.
Ao solicitar um teste, podem-se ter 2 resultados cabíveis: positivo ou
negativo. Consideram-se, até mesmo, aqueles testes laboratoriais
cujo resultado é uma variável quantitativa contínua (exemplo: uma
medida de glicose em mg/dL), pois, ao final, um ponto de corte
poderá ser estabelecido. Para o indivíduo que foi examinado,
também existem 2 possibilidades: doente e não doente. Somam-se,
então, 4 diferentes situações; a relação entre elas vai delinear toda a
discussão em torno da utilidade de um MD.
1. Situações possíveis de serem observadas em um teste diagnóstico:
a) O resultado foi positivo, e o indivíduo está doente;
b) O resultado foi negativo, e o indivíduo está doente;
c) O resultado foi positivo, e o indivíduo não está doente;
d) O resultado foi negativo, e o indivíduo não está doente.
Em que:
Pode-se afirmar que o teste rápido para o diagnóstico da doença de
Chagas teve um desempenho excelente, apresentando sensibilidade
e especificidade próximas de 100% e, consequentemente, a acurácia
também.
O VPP foi bem elevado, ou seja, a probabilidade de haver doença,
dado o teste positivo, é de cerca de 97%, e, em se tratando de VPN, a
probabilidade de não ter doença, dado um teste negativo, é de
99,5%.
Outra maneira de calcular o VPP de um teste sem precisar montar a
tabela 2x2, e que leva em conta a prevalência, é utilizar a fórmula
derivada do teorema de Bayes, apresentada na equação a seguir.
Fórmula 9.6 - VPP realizado por meio do teorema de Bayes (considerando a prevalência)
9.4 CURVA ROC
Muitos testes diagnósticos não produzem resultados diretamente
expressos como os mostrados na Tabela 9.2, e sim uma resposta sob
a forma de uma variável quantitativa discreta ou contínua. Nesse
caso, emprega-se uma regra de decisão baseada em buscar um ponto
de corte que resuma tal quantidade em uma resposta dicotômica, de
forma que um indivíduo com mensuração menor ou igual ao ponto
de corte seja classificado como não doente, e vice-versa. Uma das
metodologias para esse fim é a chamada curva ROC, sigla
proveniente de Receiver Operating Characteristic (MARTINEZ;
LOUSADA-NETO; PEREIRA, 2003).
O ideal seria um teste 100% sensível e específico, mas esses valores
dependem da distribuição do resultado do teste nos indivíduos com e
sem a doença e do valor do teste que define os valores anormais. O
balanço desse dualismo é determinado pela escolha do exame e do
ponto de corte corretos para um estudo em particular. Uma maneira
de estabelecer o ponto de corte (ponto de viragem ou valor crítico) é
analisar a especificidade e sensibilidade em vários níveis de
alteração do teste e desenhar, com base nesses dados, um gráfico no
qual a ordenada (y) é a sensibilidade e a abscissa (x) é 1-
especificidade (ou seja, os falsos positivos). Quanto mais perto do
canto superior esquerdo estiver a curva, melhor será o teste. A
discriminação de um ponto de corte deve ser criteriosa, pois rotular
doentes e não doentes é muito arriscado. A curva mostra que o
aumento da sensibilidade vem em detrimento da especificidade e
vice-versa. Outra utilização compara diferentes técnicas de
diagnóstico por meio da análise da área abaixo da curva.
A curva ROC é uma possibilidade estatística de analisar os
parâmetros de um teste diagnóstico. Essa curva é construída por
meio de um gráfico da taxa de verdadeiros positivos (sensibilidade)
contra a taxa de falsos positivos (1 - especificidade), ao longo de uma
faixa de possíveis pontos de corte.
A curva ROC mostra a relação entre a sensibilidade e a especificidade
de um teste e pode ser utilizada para decidir onde fica o melhor
ponto de corte.
Se os pesquisadores decidirem pelas maiores sensibilidade e
especificidade, o ponto estará no “ombro” esquerdo da curva ROC.
Existe uma linha que corta o gráfico, chamada linha de chance
(referência). Uma curva ROC que estiver exatamente sobre a linha de
chance (com ela coincidindo) terá acurácia de 50%, ou seja, a
probabilidade de acertar um resultado é igual à de jogar cara ou
coroa com uma moeda. A área entre a linha de chance e a curva ROC é
também chamada de área sobre a curva ROC, e seu cálculo resulta na
acurácia aferida por esse método.
Um exemplo de aplicação da curva ROC seria no caso da
determinação do diagnóstico de diabetes mellitus. Imagine que um
pesquisador queira determinar o ponto de corte de glicemia para a
definição de diagnóstico do diabetes mellitus tipo 1 usando como
padrão-ouro a destruição de ilhotas pancreáticas em biópsia de
pâncreas. Aqueles cuja biópsia indicava destruição eram
considerados doentes e aqueles cuja biópsia não indicava destruição
de ilhotas eram considerados saudáveis. Um possível resultado seria
que os pacientes saudáveis (sem destruição de ilhotas) apresentaram
glicemia de jejum entre 50 e 150 mg/dL; já aqueles com diabetes
(com destruição de ilhotas) apresentaram glicemia de jejum entre
100 e 200 mg/dL. Perceba que há um grau de sobreposição dos níveis
da glicemia de jejum entre os 2 grupos. Como determinar o ponto de
corte? O pesquisador poderá se valer da curva ROC, como a
representada na Figura 9.1. Uma glicemia muito baixa seria muito
sensível, ao passo que uma glicemia muito alta seria muito
específica. Logo, um valor mais próximo do canto superior esquerdo
da curva ROC seria o indicado, o qual costuma ser em torno de 126
mg/dL.
Figura 9.1 - Curva ROC e definições
10.1 INTRODUÇÃO
A pesquisa epidemiológica baseia-se na coleta sistemática de dados
sobre eventos ligados à saúde em uma população/grupo definido e
na quantificação desses eventos. O tratamento numérico dos fatores
investigados ocorre por 3 procedimentos relacionados: mensuração
de variáveis, estimativas de parâmetros populacionais/grupais e
testes estatísticos de hipóteses para comprovação ou refutação de
hipótese de associação estatística (BLOCK; COUTINHO, 2009).
Os autores citados explicam que o método científico, do qual a
Epidemiologia se serve, é um processo pelo qual se busca conectar
observações e teorias. Nele, as “hipóteses conceituais”, mais
amplas, são reescritas sob a forma de hipóteses operacionais,
possíveis de serem mensuradas. A teoria que gerou a hipótese
conceitual é, então, confrontada com os dados obtidos na
investigação. O mecanismo pelo qual a pesquisa epidemiológica
busca essa conexão, ou seja, o estabelecimento de inferência causal,
refere-se, principalmente, à inferência indutiva (Figura 10.1).
Rothman, Greenland e Lash (2008) explicam que, em Epidemiologia,
parte-se de observações para leis gerais da natureza. Essas
observações podem ser chamadas de “evidências científicas” e
levam a uma generalização que vai além desse conjunto particular
(processo chamado de “inferência indutiva”). Block e Coutinho
(2009) concordam que, nesse processo, observam-se fenômenos,
identifica-se uma relação constante entre eles e, finalmente,
generaliza-se essa relação para fenômenos que podem ainda não ter
sido observados. Todo esse processo só é possível graças às
diferentes metodologias existentes em Epidemiologia, também
denominadas como estudos ou delineamentos epidemiológicos.
Figura 10.1 - Inferência indutiva (generalização dos resultados), procedimento lógico
constantemente realizado nas pesquisas em Epidemiologia
Assim, pode-se afirmar que a incidência foi de 0,4 ou 40% maior nas
mulheres expostas ao anticoncepcional. Poderia ser dito, também,
que o anticoncepcional é um fator de risco para o desenvolvimento
desse desfecho, uma vez que é 40% mais provável que uma mulher
exposta ao anticoncepcional desenvolva bacteriúria, se comparada a
uma que não o utiliza. Por meio dos parâmetros obtidos em um
estudo de coorte, pode-se trabalhar com estimativas junto à
população. O RA e a fração atribuível na população são 2
possibilidades facilmente desenvolvidas.
4. Risco Atribuível na população (RAp): estima a incidência de uma
doença na população associada à prevalência de um fator de risco
(qual é a incidência da doença em uma população associada à
prevalência de um fator de risco?). Para desenvolver esse cálculo, é
necessário um parâmetro de prevalência da exposição. Aqui será
utilizado o parâmetro da prevalência de 66% (P = 0,66), levantado
na população de Pelotas, Rio Grande do Sul.
Fórmula 10.6 - Risco atribuível na população
Pode-se concluir que, se em uma população a prevalência do uso de
anticoncepcional for de 66% (Dias-da-Costa et al., 1996) e a
incidência obedecer à dinâmica da coorte estudada (EVANS et al.,
1978), existirá 1% de casos novos de bacteriúria em excesso, ou seja,
mais do que o normalmente ocorrido na população sem essa
exposição.
Esse tipo de informação pode ser muito útil para a organização de
políticas. Pense, por exemplo, em doenças como a AIDS e as
hepatites virais. O maior risco de infecção por esses vírus está no
compartilhamento de agulhas em grupos de usuários de drogas, e
não na relação sexual desprotegida. Esta última confere risco menor
de infecção. Contudo, quando se observa a prevalência do fator de
risco, existe uma diferença importante. Sabe-se que a prevalência de
pessoas que fazem sexo, na população, em geral é largamente maior
do que a de usuários de drogas. Então, o risco de infecção por relação
sexual, que é bem menos importante do que o compartilhamento de
agulhas, torna-se um fator importante.
5. Fração Atribuível na população (FAp): descreve a fração da
ocorrência de uma doença na população associada a um fator de
risco (que fração da doença em uma população é atribuível à
exposição a um fator de risco?). Para a execução desse cálculo, deve-
se conhecer a incidência do desfecho na população (IT – Incidência
Total) e RAp. Como exemplo, será utilizada uma IT hipotética de
3,1%, que seria a incidência de bacteriúria na população comparável
com a coorte.
Fórmula 10.7 - Fração atribuível na população
11.1 INTRODUÇÃO
Uma questão considerada fundamental na Epidemiologia envolve a
conceituação e a operacionalização metodológica da causalidade;
identificar causas é uma das formas do pensamento científico de
abordar a explicação das origens de um fenômeno. Assim, a causa
seria um agente eficaz, e desvendá-la garantiria conhecimento
maior a respeito do fenômeno estudado, uma vez que é possível
intervir sobre um efeito quando se remonta à sua origem.
Na ótica da Medicina, os médicos geralmente questionam se seus
pacientes com determinada doença foram expostos a possíveis
agentes causais; já os epidemiologistas observam se houve aumento
estatisticamente significativo da associação entre a doença e a
exposição estudada. Inicialmente, parecem 2 pontos de vista
distintos, contudo existe uma ideologia comum: observar possível
relação entre estar exposto e desenvolver a doença (causa e efeito).
Uma causa pode ser entendida como qualquer evento, condição ou
característica que desempenhe função essencial na ocorrência de
uma doença (LUIZ; STRUCHINER; KALE, 2009). A evolução do
conceito de causalidade está relacionada a uma mudança no
paradigma do conhecimento científico, com forte componente de
observação empírica que impulsionou a evolução da abordagem
epidemiológica e dos métodos estatísticos (LISBOA, 2008).
Os termos “causalidade” e “associação” são extremamente caros ao
pensamento científico em geral e ao raciocínio epidemiológico em
particular. No caso da pesquisa sobre fenômenos da saúde-doença,
diante da afirmação etiológica estável e demonstrada de que X causa
Y, não resta dúvida quanto à possibilidade de intervenção no que se
refere à prevenção do evento ou retificação de alguma situação
indesejável. Um exemplo trivial: colocar obstáculos de proteção em
terraços, abismos, pontes e outros locais elevados para evitar que
pessoas se aproximem e possam cair é uma iniciativa óbvia diante da
ameaça à vida oferecida pelas quedas de grande altura. Da mesma
forma, ninguém duvida que altas temperaturas ou frio intenso
representem risco à saúde/vida humana. Isso define indiscutíveis
medidas de proteção no seu uso. Em outras palavras, no âmbito da
prevenção em saúde, no momento em que se estabelece relação de
causa e efeito de caráter direto, tal relação articula 2 dimensões: a
definição de algo como perigoso e as medidas de proteção/prevenção
a tal perigo (COUTINHO et al., 2011).
A teoria da multicausalidade, com seus variados modelos
explicativos, tem hoje seu papel definido na gênese das doenças.
Surgiu em substituição à teoria da unicausalidade, que vigorou por
muitos anos e cujo único modelo existente era chamado de
“biomédico”. Esse pensamento atual considera que a grande maioria
das doenças advém de uma combinação de fatores que interagem
entre si e acabam desempenhando importante papel na
determinação delas, fato que deve ser levado em conta sempre que
um estudo ou uma pesquisa epidemiológica são desenvolvidos ou
simplesmente acessados para estudos. A Figura 11.1, adaptada de
Rothman (2011) ilustra bem esse conceito, utilizando como exemplo
um mecanismo de causa suficiente para a ocorrência de uma fratura
de quadril. Perceba que uma causa suficiente (ou seja, todos os
elementos do gráfico em conjunto) são necessários para que o
evento ocorra. Cabe notar que o maior componente sempre deve ser
de fatores inespecíficos e desconhecidos da patologia em questão.
Figura 11.1 - Causa suficiente para ocorrência de fratura de quadril
Legenda: (A) clima ruim; (B) calçada não adaptada para pedestres; (C) escolha
inadequada de calçado; (D) ausência de corrimão; (E) fatores desconhecidos e
inespecíficos.
Fonte: elaborado pelos autores.
11.3.2 Consistência
Se a associação se observa repetidamente em diferentes populações e
diferentes circunstâncias, tem maior probabilidade de ser causal do
que de ser observação isolada. No entanto, falta de consistência não
afasta ligação causal, e pode acontecer que uma causa apenas o seja
na presença de fatores adicionais e/ou concomitantes.
Exemplo
A maioria, senão a totalidade, dos estudos sobre câncer de pulmão
detectou o fumo como um dos principais fatores associados a essa
doença (MENEZES, 2001).
11.3.3 Especificidade
O conceito aqui retratado implica que a causa apenas conduzirá a 1
efeito e não a múltiplos efeitos. Esse é um critério que pode ser
questionável, uma vez que algumas exposições conferem risco para
vários desfechos, como o caso da exposição ao tabaco, que confere
risco para câncer de pulmão, doenças cardiovasculares etc.
Exemplo
Poeira da sílica e formação de múltiplos nódulos fibrosos no pulmão
(silicose).
11.3.4 Temporalidade
A causa precede o efeito? A exposição ao fator de risco antecede o
aparecimento da doença e é compatível com o respectivo período de
incubação? Nem sempre é fácil estabelecer a sequência cronológica
nos estudos realizados, quando o período de latência é longo entre a
exposição e a doença.
Menezes (2001) sugere um exemplo desse critério: a prevalência de
fumo aumentou significativamente durante a primeira metade do
século, mas houve um lapso de vários anos até ser detectado o
aumento do número de mortes por câncer de pulmão. Nos Estados
Unidos, o consumo médio diário de cigarros, em adultos jovens,
aumentou de 1, em 1910, para 4, em 1930, e 10 em 1950, sendo que o
aumento da mortalidade ocorreu após várias décadas. Liu et al.
(1998) observaram que padrão semelhante vem ocorrendo na China,
particularmente no sexo masculino, só que com intervalo de tempo
de 40 anos. O consumo médio diário de cigarros, nos homens, era de
1 em 1952, 4 em 1972, atingindo 10 em 1992.
As estimativas, portanto, são que 100 milhões dos homens chineses,
hoje com idade de zero a 29 anos, morrerão por causas associadas ao
tabaco, o que implicará 3 milhões de mortes por ano quando esses
homens atingirem idades mais avançadas.
Esse é um dos critérios mais importantes quando associado aos
estudos epidemiológicos. Estudos como os de coorte (e ensaios
clínicos) e até mesmo os caso-controle são capazes de fazer uma
relação cronológica entre a exposição e o desfecho, fenômeno que
não poderá ser obtido por meio de estudo transversal, por exemplo,
pois o levantamento do desfecho e das exposições ocorre ao mesmo
tempo.
A temporalidade, na qual a causa precede o efeito, é o único critério
obrigatório para a avaliação de causalidade. Estudos que não são
passíveis de avaliação de temporalidade (como é o caso dos estudos
transversais) não são capazes de produzir evidências que afirmem
que a associação seja causal; ou seja, a temporalidade é um critério
necessário, porém não suficiente.
11.3.5 Gradiente biológico (efeito dose-resposta)
O aumento da exposição causa aumento do efeito? Sendo positiva
essa relação, há mais um indício do fator causal.
Exemplo
Os estudos prospectivos de Doll e Hill (DOLL, 1994) sobre a
mortalidade por câncer de pulmão e fumo nos médicos ingleses
tiveram seguimento de 40 anos (1951 a 1991). As primeiras
publicações dos autores já mostravam o efeito dose-resposta do
fumo na mortalidade por câncer de pulmão; os resultados desse
acompanhamento revelavam que fumantes de 1 a 14 cigarros/dia, de
15 a 24 cigarros/dia e de 25 ou mais cigarros/dia morriam 7,5 a 8,
14,9 a 15 e 25,4 a 25 vezes mais do que os não fumantes,
respectivamente.
11.3.6 Plausibilidade
A associação deve ter uma explicação plausível, concordante com o
nível atual de conhecimento do processo patológico.
A associação entre fumo passivo e câncer de pulmão é um dos
exemplos da plausibilidade biológica. Carcinógenos do tabaco têm
sido encontrados no sangue e na urina de não fumantes expostos ao
fumo passivo. A associação entre o risco de câncer de pulmão em não
fumantes e o número de cigarros fumados e anos de exposição do
fumante é, ainda, diretamente proporcional (efeito dose-resposta).
Embora, durante muitos anos, não se tenha acreditado, por
exemplo, que a úlcera gástrica ou o câncer de colo uterino poderiam
ter um componente infeccioso causal, os modelos recentes têm
demonstrado ação oncogênica do vírus HPV e mesmo o
envolvimento da bactéria Helicobacter pylori no processo
inflamatório gástrico.
11.3.7 Coerência
A assunção de causalidade deverá estar ligada a outras observações,
especialmente à história natural da doença (por exemplo, a relação
causal entre consumo de tabaco e câncer de pulmão era coerente
com as observações de que os fumantes tinham displasia do epitélio
brônquico). No entanto, a ausência de coerência não afasta relação
causal.
11.3.8 Evidência experimental
Mudanças na exposição resultam em mudanças na incidência de
doença. Por exemplo, sabe-se que os alérgenos inalatórios (como a
poeira) podem ser promotores, indutores ou desencadeantes da
asma; portanto, o afastamento do paciente asmático desses
alergênicos é capaz de alterar a hiper-responsividade das vias
aéreas, a incidência da doença ou a precipitação da crise.
11.3.9 Analogia
O observado é análogo ao que se sabe sobre outra doença ou
exposição.
Exemplo
É bem reconhecido o fato de que a imunossupressão causa várias
doenças; portanto, explica-se a forte associação entre HIV/AIDS e
tuberculose, já que, em ambas, a imunidade está diminuída.
Na atualidade, os critérios de Hill constam como um dos mais
discutidos em se tratando de inferência causal, embora raramente
seja possível comprovar os 9 postulados para determinada
associação. A pergunta-chave nessa questão da causalidade é a
seguinte: os achados encontrados indicam causalidade ou apenas
associação? O critério de temporalidade, sem dúvida, é indispensável
à causalidade; se a causa não precede o efeito, a associação não é
causal. Os demais critérios podem contribuir para a inferência da
causalidade, mas não necessariamente determinam a causalidade da
associação (MENEZES, 2001).
Embora se trate de uma abordagem muito útil em uma avaliação
geral do problema da causalidade, a “realidade” é mais complexa do
que emerge dos critérios anteriores. Basta pensar no que se conhece
sobre fatores de risco e na sua capacidade de atuação (aceleração ou
travagem) na cascata epidemiológica da causalidade. E a sua
classificação, por exemplo, em fatores de risco necessários,
suficientes, potencializadores, adjuvantes ou desencadeantes
ajudará a compreender essa complexidade, que as metodologias e
técnicas de investigação pretendem esclarecer e quantificar.
11.4 POSTULADOS DE HENLE-KOCH-
EVANS
Na mesma linha de Hill, o epidemiologista Alfred S. Evans descreveu,
em 1976, um conjunto de postulados que se constitui em uma
adaptação epidemiológica dos postulados de Henle-Koch, devido ao
fato de que, na prática, quando se trata de exposições não infecciosas
como as ambientais, as inferências biológicas não podem ser
estabelecidas com base no postulado de Henle-Koch e mesmo nos
critérios de Hill. Evans propôs alterações nos postulados originais,
criando os postulados de Henle-Koch-Evans (Quadro 11.3),
amplamente aceitos atualmente como critérios válidos para definir a
causa biológica da doença (THULER et al., 2003).
Thuler et al. (2003) explicam, ainda, que esses postulados não são
capazes de prover uma base completa para o estabelecimento de
uma relação causal, recorrendo-se à quantificação do risco
associado à exposição ao fator em estudo que se deseja atribuir “a
causa da doença”. O estudo de Marshall e Warren, que mostra a
associação entre úlcera péptica e Helicobacter pylori, é exemplo da
insuficiência da nomenclatura infecciosa/crônica, e os estudos de
genética do câncer, que se multiplicaram nos últimos anos, são
exemplos do desafio de revisão da concepção etiológica das doenças
(LISBOA, 2008).
Em 1985, Miettinen propôs o que chamou de “função de ocorrência”
para descrever as relações entre causa e efeito, que tem como
correspondentes subsídios de análise de associação estatística os
Modelos Lineares Generalizados, cujo modelo particular de
regressão logística encontra larga aplicação.
Quadro 11.3 - Postulados de Henle-Koch-Evans para explicação da associação causal
Fonte: Causation and disease, 1976.
12.1 INTRODUÇÃO
Este capítulo propõe a apresentação de um dos conteúdos mais
recentes discutidos em Epidemiologia e nas Ciências Médicas: a
Medicina Baseada em Evidências (MBE), as revisões sistemáticas e a
meta-análise. O médico que conhecer essas ferramentas estará apto
a fazer uma boa análise de novos trabalhos que forem publicados,
independentemente de sua área de atuação ou especialidade,
podendo lidar com a vastidão de informações que surgem no dia a
dia.
Tradicionalmente, a prática médica era em muito fundamentada na
experiência de cada profissional. As provas científicas tinham pouco
peso quando um médico tinha de tomar determinada decisão clínica.
Por mais contraditório que possa parecer, essa situação era ainda
mais presente no mundo acadêmico, quando o argumento de
autoridade, ex cathedra, prevalecia sobre qualquer outra coisa. No
entanto, setores importantes da classe médica, lentamente,
começaram a perceber que as decisões clínicas eram tão mais
apropriadas quanto mais embasamento encontravam em
conhecimentos provenientes de estudos científicos. Apesar da
grande resistência em determinados meios médicos, o movimento
favorável às decisões clínicas baseadas em evidências científicas
começou a ganhar corpo, sobretudo a partir da década de 1980
(CORDEIRO et al., 2012).
Nesse cenário, David Sackett e seu grupo da Universidade de
McMaster, no Canadá, cunharam o termo “medicina baseada em
evidências”. A ideia central era a de que os médicos se utilizassem de
modo consciencioso, explícito e judicioso da melhor evidência
científica atual quando tomassem decisões em seu trabalho de
cuidado individual dos pacientes. Obviamente, a MBE não nega o
valor da experiência pessoal do profissional, propondo apenas que
esta esteja alicerçada em evidências científicas, o que, além de tudo,
confere caráter ético à prática profissional (CORDEIRO et al., 2012).
Nas últimas 2 décadas, a produção científica apresentou crescimento
exponencial de artigos publicados em todas as áreas das Ciências da
Saúde. Utilizando um assunto relacionado à especialidade de
Cardiologia, a Figura 12.1 ilustra esse crescimento em um espaço de
tempo de 10 anos (2007 a 2017). Os termos-chave (descritores)
utilizados para essa pesquisa realizada junto ao PubMed foram:
“cardiovascular disease” e “adult”, considerando todos os tipos de
artigos (estudos originais, revisões, editoriais, entre outros).
Observe que existe crescimento médio elevado de cerca de 1.000
artigos por ano.
Figura 12.1 - Número de publicações entre 2006 e 2018 indexadas no PubMed,
relacionadas com doença cardiovascular em adultos
Essa evidência mostra a necessidade de sintetizar o conhecimento
científico para gerar atendimento melhor e mais próximo do mundo
“real” do paciente, por meio de provas obtidas das pesquisas básicas
e aplicadas.
A medicina baseada em evidências deve respeitar algumas etapas
para a síntese do conhecimento, que envolvem transformar as
necessidades de informação em perguntas passíveis de resposta;
buscar com máxima eficiência a melhor evidência para responder à
questão; avaliar criticamente as evidências quanto à sua validade e
utilidade; implementar os resultados na prática clínica; e, por fim,
avaliar o desempenho.
As principais metodologias que a MBE tem utilizado para a síntese
do conhecimento são revisão sistemática e meta-análise, descritas
metodologicamente a seguir.
12.2 MEDICINA BASEADA EM
EVIDÊNCIAS
A MBE refere-se ao aperfeiçoamento das competências tradicionais
do médico no diagnóstico, no tratamento, na prevenção e nas áreas
correlatas por meio do processamento sistemático de questões
relevantes e passíveis de resposta e do uso de estatísticas
matemáticas de probabilidade e risco (GREENHALGH, 2001). Em
outras palavras, a MBE utiliza provas científicas existentes e
disponíveis no momento, com boas validades interna e externa para
a aplicação de seus resultados na prática médica (EL DIB, 2007). A
MBE tornou-se factível, pois houve (GUIMARÃES, 2009):
a) O desenvolvimento das estratégias para busca e avaliação das
evidências;
b) A criação das revisões sistemáticas das intervenções em saúde;
c) O surgimento dos periódicos secundários com base em evidências;
d) A criação dos sistemas de informação que trazem até nós as
melhores evidências;
e) A identificação e a aplicação das estratégias efetivas para
aprendizado em longo prazo e melhora da performance clínica.
12.2.1 Passo 1
12.2.2 Passo 2
O segundo passo da medicina baseada em evidências visa à busca
pela informação utilizando a abordagem “6S”: em Sistemas
computadorizados de apoio à decisão, Summaries (resumos),
Sinopse de sínteses, Sínteses ou revisões sistemáticas, Sínteses de
estudos isolados e Single original studies (estudos originais).
Uma vez formulada a pergunta, é preciso buscar a resposta. O
próximo passo para a aplicação da MBE, portanto, é o acesso à
informação. A busca pode ser realizada em bases de dados e
repositórios que disponibilizam os trabalhos científicos originais,
cabendo ao leitor o ônus de selecionar e analisar criticamente a
validade de seus resultados. Guimarães (2009) acrescenta que as
fontes de busca da melhor evidência para os cuidados de saúde estão
em constante aprimoramento. Atualmente, uma das estratégias
utilizadas é a da abordagem “6S”, desenvolvida por DiCenso, Bayley
e Haynes (2009), disponível para acesso a informações baseadas em
evidências (Quadro 12.4).
O primeiro S é o de Sistemas Computadorizados de Apoio à Decisão
(SCADs), os quais integram e sumarizam todas as evidências
relevantes sobre um problema clínico. Nesses sistemas, os dados
individuais dos pacientes são pareados com programas ou
algoritmos em uma base computadorizada, gerando recomendações
específicas para os médicos (GARG et al., 2005).
Quadro 12.4 - Abordagem “6S” para busca da melhor evidência
#IMPORTANTE
Os passos 3 e 4 da medicina baseada em
evidências são destinados a uma avaliação
crítica da literatura, a fim de determinar um
tipo de estudo que possibilite a menor
quantidade de viés possível.
Figura 12.4 - Gráfico tipo forest plot com risco relativo e IC 95% para reação local
associada à toxina botulínica em estudos randomizados
Legenda: (A) apresenta estudos claramente com viés de publicação, pois estão todos
concentrados à direita do tamanho de efeito real e da meta-análise; (B) apresenta
resultados simetricamente em torno do tamanho de efeito real, causando um efeito de “funil
invertido”.
Fonte: adaptado de Misleading Meta-Analysis: Lessons From “An Effective, Safe, Simple”
Intervention That Wasn’t, 1995.