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METABOLISMO LIPÍDICO E DOENÇAS

CARDIOVASCULARES
JEFFERSON PETTO

▪ INTRODUÇÃO
No Brasil, os dados da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC)1 mostram que, em
2016, ocorreram cerca de 350 mil mortes por doenças cardiovasculares (DCVs). Isso
representa 9% de todas as mortes no País, onde as DCVs matam duas vezes mais do
que todos os tipos de câncer, 2,5 vezes mais do que todos os acidentes e mortes por
violência e seis vezes mais do que as infecções, incluídas as mortes pelo vírus da
imunodeficiência humana (HIV).
A principal causa das mortes por DCVs, representando mais de 60%, é
o infarto do miocárdio, cuja principal causa é a doença arterial coronariana (DAC).
Segundo a V Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose, os quatro
fatores desencadeantes da doença aterosclerótica são:

▪ hipertensão arterial sistêmica (HAS);


▪ diabetes melito;
▪ tabagismo;
▪ dislipidemia.
A dislipidemia, dos fatores desencadeantes, é a que recebe maior atenção, devido à
sua participação direta na formação da placa aterosclerótica. No Brasil, mais de 40% da
população apresenta algum tipo de dislipidemia, que pode
ser fenotípica ou genotípica. Dada a importância social e econômica que esse
problema representa para o País — devido a um número elevado de pessoas afetadas por
ele — pesquisadores e profissionais de saúde cada vez mais têm estudado formas de
controlar e reverter esse quadro.
Na linha de frente dos estudos estão as intervenções medicamentosas, que tiveram seu
grande salto a partir da descoberta das estatinas. Além da terapia medicamentosa, a
intervenção nutricional e o exercício físico são terapêuticas importantes no controle das
dislipidemias.
A mais divulgada e estudada no caso de dislipidemia é
a intervenção medicamentosa, visto que essa sustenta a quarta maior indústria do
mundo: a indústria farmacêutica. O exercício físico, por sua vez, também tem sido
apontado como terapia preventiva e, em muitos casos, até como melhor terapia curativa e
sintomática. Isso porque apresenta resultados satisfatórios com menos efeitos adversos
do que a terapia medicamentosa.

Apesar de, na maioria das vezes, apresentarem efeitos redutores sobre o perfil lipídico
maiores do que o exercício e a dieta, as estatinas podem, em longo prazo, provocar o
diabetes melito tipo 2 em cerca de 46% dos usuários.2
O que normalmente ocorre é uma prescrição generalizada do exercício físico sem
considerar a especificidade e a periodicidade do treinamento e, mais ainda, sem levar em
consideração as características clínicas e funcionais do paciente. Tem se avolumado o
número de pessoas que iniciam programas de exercício físico sem a correta orientação ou
supervisão, as quais, muitas vezes, não obtêm os resultados desejados. Isso ocorre, na
maioria das vezes, por falta de conhecimento dos profissionais que atuam nessa área.
Para uma prescrição correta do exercício, é necessário que o profissional que se dispõe a
atender o paciente domine conceitos fundamentais. Para tanto, é necessário ter
conhecimento sobre as seguintes questões:

▪ metabolismo lipídico;
▪ implicações cardiovasculares dos distúrbios lipídicos (dislipidemias);
▪ variáveis do perfil lipídico no processo saúde-doença (quais são e como
agem);
▪ fisiopatologia da doença aterosclerótica.
Além do domínio dos conceitos fundamentais, é impreterível que o profissional entenda
a fisiologia do exercício, especialmente no que diz respeito à bioenergética, para,
assim, dominar os efeitos e os mecanismos fisiológicos que o exercício promove em
pacientes que apresentam dislipidemia, de forma isolada ou associada a outras
comorbidades.

▪ OBJETIVOS
Ao final da leitura deste artigo, o leitor será capaz de

▪ sintetizar a classificação e as peculiaridades de cada tipo de lipídio;


▪ explicar a influência dos lipídios na prevenção, no controle e no
aparecimento de DCVs;
▪ descrever o metabolismo dos triglicerídeos (TGs) e das lipoproteínas
plasmáticas;
▪ distinguir as características e as funções corporais das lipoproteínas
plasmáticas;
▪ caracterizar a função das lipases no metabolismo dos lipídios;
▪ discutir a influência da qualidade/quantidade dos lipídios nas DCVs.

▪ ESQUEMA CONCEITUAL
▪ CLASSIFICAÇÃO DOS LIPÍDIOS

O termo lipídio vem do grego lipos, que significa “gordura”. Os lipídios, assim como os
carboidratos, são moléculas orgânicas, ou seja, têm sua base formada por íons de carbono
e de hidrogênio.3,5
A diferença estanque entre os lipídios e os carboidratos é a relação absoluta entre o
oxigênio e o hidrogênio que estão ligados às moléculas de carbono. Nos carboidratos, a
relação entre eles é constante, ou seja, 2:1 (para cada duas moléculas de hidrogênio existe
uma de oxigênio). Nos lipídios, no entanto, essa relação pode variar. Por exemplo, a
estearina é um lipídio comum que apresenta relação de, aproximadamente, 18:1.3,5
Os lipídios são naturalmente hidrofóbicos, ou seja, não se dissolvem em água e formam
um grupo composto por óleos, gorduras e ceras. Em temperatura (T)
ambiente (25ºC) os óleos são líquidos (passam ao estado sólido com T em torno de -
50°C) e as gorduras mantêm o estado sólido (passam ao estado líquido com T em torno
de 28°C), assim como as ceras mantêm o estado sólido (passam ao estado líquido com T
em torno de 40ºC).3,5
Neste artigo, os termos óleos, gorduras ou ceras serão utilizados como referência aos
pontos de fusão dos lipídios.
Os lipídios podem ser divididos em três classes, que serão apresentadas a seguir.
LIPÍDIOS SIMPLES
Os lipídios simples, também chamados de triacilgliceróis ou triglicerídeos ( TGs), são
compostos neutros, ou seja, não possuem elétrons livres em sua órbita, e são formados
por uma molécula de glicerol ligada a três moléculas de ácidos graxos.
O glicerol não é caracterizado como um lipídio, e sim como um carboidrato, uma vez que
apresenta alta solubilidade na água.
Os ácidos graxos, também chamados de ésteres, recebem esse nome porque a
molécula de ácido orgânico (COOH) forma parte de sua estrutura. São formados por 4 a
24 átomos de carbono. Eles podem ser de cadeias:

▪ curta (4 a 6 átomos de carbono);


▪ média (8 a 12 átomos de carbono);
▪ longa (mais do que 12 átomos de carbono).
Os ácidos graxos mais comuns têm entre 16 e 18 carbonos (palmítico e esteárico).
Os TGs podem ser subdivididos em saturados e insaturados. Os lipídios saturados
apresentam apenas ligações simples entre carbonos, enquanto que os insaturados têm,
pelo menos, uma ligação dupla de carbono em sua cadeia. A Figura 1, a seguir, exemplifica
essa característica.

Figura 1 — TGs com ácidos graxos saturados e insaturados.


Fonte: Fogaça (2017).6
O lipídio monoinsaturado tem em sua cadeia apenas uma ligação dupla entre as
moléculas de carbono; já o poli-insaturado apresenta duas ou mais ligações duplas.
Os ácidos graxos saturados que apresentam cadeias contendo 14 ou 16 carbonos são
mais potentes quando se trata de aumentar o colesterol sérico. Já os ácidos graxos com
18 carbonos, como o esteárico, encontrado no chocolate, exercem pouca influência sobre
os valores séricos do colesterol total.
Embora os lipídios saturados e insaturados sejam encontrados em derivados de origem
animal e vegetal, na maioria das vezes os saturados são de origem animal e os insaturados
de origem vegetal. Alguns ácidos graxos poli-insaturados são precursores de substâncias
essenciais à manutenção da homeostasia corporal e não são produzidos de forma
endógena; por esse motivo, são denominados ácidos graxos essenciais. Um dos
principais exemplos é o ácido eicosapentaenoico da série do ômega-3 (ω-3).

LEMBRAR
Os TGs são o principal substrato para a formação da adenosina trifosfato (ATP) em
repouso, e o único entre as classes de lipídios que são utilizados para gerar energia.

LIPÍDIOS SIMPLES INSATURADOS CIS E TRANS


Como dito anteriormente, os lipídios simples podem ser divididos em saturados e
insaturados, e os insaturados podem ser, ainda, divididos em cis e trans. Os dois são
encontrados na natureza; no entanto, os trans são tipicamente derivados de fermentação
bacteriana dos ruminantes, e encontrados em pequenas quantidades nas carnes e no leite
de vaca. Por serem naturalmente encontrados em pequenas quantidades nos alimentos,
exercem pouca influência sobre os valores dos lipídios plasmáticos.

LEMBRAR
Ao contrário do que se diz de modo popular, os ácidos graxos trans não são formados
apenas industrialmente, são também encontrados na natureza em pequenas quantidades.
Os lipídios trans produzidos de forma industrial são formados a partir da
hidrogenação de ácidos graxos cis poli-insaturados, e se comportam como ceras.
A partir desse ponto do texto, o termo “trans” faz referência aos ácidos graxos poli-
insaturados fabricados pela indústria alimentícia.
Na molécula cis, os dois hidrogênios se encontram do mesmo lado na dupla ligação de
carbonos; nos ácidos graxos trans, os átomos de hidrogênio se encontram em lados
opostos, como ilustrado na Figura 2.
Figura 2 — Ácidos graxos cis e trans.
Fonte: Lima (2016).7
Enquanto o ácido oleico forma um ângulo na dupla ligação de carbono, o ácido
elaídico (versão trans do ácido oleico) mantém a configuração retilínea da cadeia de
carbonos. Isso modifica, na prática, o ponto de fusão desses lipídios. Enquanto
a trioleína (ácido graxo insaturado cis) apresenta ponto de fusão a 4,6ºC, em sua versão
trans esse ponto passa para 42ºC.
Na versão cis, a trioleína estaria em estado líquido em T ambiente (óleo) e na versão trans
em estado sólido (cera). Por isso, as indústrias utilizam em torno de 10% de lipídios trans
na fabricação das margarinas para dar mais consistência a elas.

LIPÍDIOS COMPOSTOS
Os lipídios compostos são formados por TGs ligados a outras moléculas não lipídicas.
Um exemplo de lipídio composto é o fosfolipídio (composto pela associação entre TGs
e fósforo), que compõe a membrana plasmática da maioria das células do corpo humano.
Outro exemplo importante de lipídios compostos são as lipoproteínas plasmáticas.
Essas são moléculas de TGs ligadas a proteínas que representam a principal forma de
transporte de TGs e de colesterol para os tecidos.

Os lipídios compostos são sintetizados em praticamente todas as células corporais, mas


principalmente no fígado.

LIPÍDIOS DERIVADOS
Os lipídios derivados são formados a partir dos lipídios simples ou compostos. Possuem
como característica a ausência de ácido graxo em sua composição.
Os lipídios derivados compartilham características químicas e físicas com as outras duas
classes de lipídios, como o fato de serem hidrofóbicos. O exemplo mais icônico dessa
classe de lipídios é o colesterol, uma molécula formada por 27 carbonos, fundamental
para a formação dos hormônios esteroides e das membranas plasmáticas, inclusive dos
neurônios.
A maior fonte de colesterol é a produção endógena, que responde por 60–70%
de todo o colesterol plasmático. Os demais 30–40% são provenientes das fontes dietéticas.

▪ INGESTÃO DIETÉTICA DE LIPÍDIOS E DOENÇAS CARDIOVASCULARES


O termo composto DCVs se refere a um grupo formado por três enfermidades e
que tem como base a doença aterosclerótica:

▪ doença arterial coronariana (DAC);


▪ doença arterial obstrutiva periférica (DAOP);
▪ doença cerebrovascular.

INFLUÊNCIA DOS LIPÍDIOS MONOINSATURADOS


E POLI-INSATURADOS CIS E TRANS NA
CONCENTRAÇÃO DAS LIPOPROTEÍNAS
PLASMÁTICAS E NO SISTEMA CARDIOVASCULAR
Os ácidos graxos poli-insaturados trans elevam a concentração da lipoproteína
(a) (Lp[a]), da lipoproteína de baixa densidade (LDL — do inglês low density
lipoprotein), da lipoproteína de muito baixa densidade (VLDL — do inglês very low
density lipoprotein) e dos TGs, e diminuem a concentração de lipoproteína de alta
densidade (HDL — do inglês high density lipoprotein).
Isso ocorre, provavelmente, porque essas ceras induzem o catabolismo das
apolipoproteínas A (Apo A), que serão descritas a seguir. Esses ácidos graxos
também aumentam a transferência de colesterol esterificado — colesterol ligado
a ácidos graxos — das HDLs para as lipoproteínas formadas por Apo B,8,9 que são:

▪ VLDL;
▪ lipoproteína de densidade intermediária (IDL — do inglês intermediate density
lipoprotein);
▪ LDL.
Os ácidos graxos trans reduzem mais especificamente a HDL tipo 2, principal
subfração antiaterogênica da HDL.10 Além disso, essas ceras

▪ aumentam a resistência insulínica, o que favorece o desenvolvimento do diabetes


melito tipo 2;11
▪ diminuem a produção de prostaglandinas (moléculas com ação inflamatória,
vasodilatadora e anticoagulante);
▪ aumentam a produção de tromboxano A2 (molécula que favorece a agregação
plaquetária, estimulando a formação de trombos arteriais e vasoconstrição);12,13
▪ provocam lesão e necrose do endotélio por induzir a apoptose e a produção de
espécies reativas de oxigênio (ERO).14
Outros estudos que avaliaram desfechos clínicos e de mortalidade mostraram que
o consumo de ceras trans eleva em até 2,7 vezes o risco de DAC em mulheres,
além de estar associado ao aumento do risco de infarto do miocárdio em ambos
os sexos.15,16
Segundo a metanálise desenvolvida por Mozaffarian e colaboradores,17 a cada
2% de aumento na ingestão dessas ceras, aumenta em 23% o risco de DAC.

A metanálise desenvolvida por Mensink e colaboradores18 mostrou que quando se substitui 1%


da energia fornecida por carboidratos por energia fornecida por lipídios trans há aumento da
relação colesterol total/HDL e diminuição da relação HDL/LDL. Essas alterações favorecem o
desenvolvimento de DCVs.
Ao contrário dos ácidos graxos poli-insaturados trans, os ácidos graxos poli-
insaturados cis apresentam efeitos favoráveis sobre o metabolismo das
lipoproteínas e sobre o sistema cardiovascular.

Metabolismo é uma designação que se refere à rede integrada de reações químicas que ocorrem
em células, tecidos ou organismos. Essa rede integrada de reações químicas tem como propósito
final o anabolismo ou o catabolismo de moléculas ou substâncias. As reações anabólicas são
denominadas “síntese” (formação) e as catabólicas, “degradação” (quebra).5
Os ácidos graxos poli-insaturados cis compõem diferentes séries. São chamados
de séries porque a formação de um ácido depende, necessariamente, da formação
do outro. A mais conhecida, por seus benefícios à saúde do sistema cardiovascular,
é a série ω, subdividida em ω-3, ω-6 e ω-9.
A série ω-6 consiste em ácidos graxos poli-insaturados (óleos) de cadeia longa,
cujas primeiras duplas ligações entre carbonos se encontram respectivamente no
carbono 6 após o terminal metila (CH3). Essa série é formada principalmente pelos
seguintes ácidos:

▪ linoleico 18:2 (9, 12);


▪ Y-linoleico 18:3 (9, 12, 15);
▪ araquidônico 20:4 (5, 8, 11, 14).
Representação numérica dos ácidos graxos poli-insaturados: os átomos de carbono são
numerados a partir do terminal metila (CH3) ou do terminal carboxila (CO2H). O número antes
dos dois pontos indica quantos carbonos formam a cadeia. O número após os dois pontos mostra
quantas ligações duplas entre os carbonos existem, e os números entre parênteses indicam a
localização dessas ligações na cadeia de carbono.5 Por exemplo, o ácido linoleico 18:2(9,12) é
formado por 18 carbonos, apresenta duas ligações duplas entre carbonos, que são visualizadas
nos carbonos 9 e 12 a partir do terminal metila.
Especialmente a ingestão dietética do ácido linoleico é capaz de reduzir os níveis
do colesterol total e da LDL plasmática. No entanto, concomitante à redução
da LDL, ocorre a redução da HDL.

Na ingestão dietética do ácido linoleico, o seu uso acima dos valores recomendados pode
aumentar os níveis da LDL oxidada, o que, potencialmente, favorece a aterogênese.
A série ω-3 consiste em uma série de ácidos graxos poli-insaturados (óleos) de
cadeia longa, cuja primeira ligação dupla dista três carbonos do terminal metila.
Essa série é formada principalmente pelos seguintes ácidos:

▪ α-linoleico 18:3 (9,12,15);


▪ estearidônico 18:4 (6,9,12,15);
▪ eicosapentaenóico (EPA, do inglês eicosa-pentaenoic-acid) 20:5 (5, 8, 11, 14,
17);
▪ docosahexaenóico (DHA, do inglês docosa-hexaenoic-acid) 22:6 (4, 7, 10, 13,
16, 19).
O EPA e o DHA possuem seu ponto de fusão a -53ºC e a -44ºC, respectivamente,
o que evidencia seu alto grau de fluidez.

O ponto de fusão de um ácido graxo trans está em torno de 42ºC, característica que manifesta a
drástica diferença entre esses lipídios, refletida nos seus efeitos antagônicos.
Os ω-3 diminuem:

▪ as arritmias cardíacas;
▪ os níveis de TGs séricos;
▪ o risco de trombos arteriais e venosos;
▪ os valores de pressão arterial (PA);
▪ a mortalidade por DCV.
LEMBRAR
Os ω-3 não apresentam efeitos positivos sobre os valores plasmáticos da HDL e da LDL.

O ácido α-linoleico da família dos ω-3 e o ácido linoleico da família dos ω-6 são
ácidos graxos essenciais, ou seja, não são produzidos pelo organismo humano. O
organismo não é capaz de formar as séries ω-3 e ω-6 porque não tem as enzimas
que são essenciais para a formação desses ácidos graxos: as dessaturases.
As dessaturases são enzimas responsáveis pela dessaturação, ou seja, pela adição de ligações
duplas entre carbonos dos ácidos graxos de configuração cis.
As dessaturases diminuem o número de hidrogênios na cadeia de carbono, daí o nome
dessaturação.
O ser humano tem dessaturases para os carbonos 4, 5, 6 e 9, mas não para os
carbonos 12 e 15, que são necessárias para a formação dos ácidos α-linoleico e
estearidônico. Por isso, ao contrário das plantas, não consegue formar esses óleos
endogenamente.
Em conjunto, esses óleos são potentes redutores da lipogênese hepática, pois
bloqueiam genes envolvidos na utilização da glicose para a síntese de ácidos
graxos. Dessa forma, favorecem a lipólise mitocondrial, tanto nos músculos como
no tecido hepático.19 Esses óleos também exercem as seguintes funções:4
▪ aumentam a expressão e a atividade dos receptores da LDL no fígado,
favorecendo a remoção e o metabolismo catabólico da LDL e a menor formação da
VLDL;
▪ diminuem a transferência de TGs da HDL para as outras lipoproteínas e,
consequentemente, aumentam o transporte reverso de colesterol e TGs para o fígado;
▪ induzem a formação da LDL com menor teor de colesterol esterificado, o que
modifica a estrutura e a qualidade da LDL (menor formação de LDL pequena e
densa).

LEMBRAR
Os estudos não mostram efeitos positivos desses óleos sobre a HDL; a ingestão de ω-6, inclusive,
provoca queda da concentração de HDL.
Em comparação com outros ácidos da série ω, pouco se fala dos efeitos do graxo
monoinsaturado oleico 18:1 (9), da série ω-9. No entanto, vários estudos clínicos
e epidemiológicos demonstram melhora do perfil lipídico plasmático com a
ingestão dietética desse óleo.19
Dietas ricas em óleos monoinsaturados diminuem a incidência de DCV.19
Apesar dos efeitos positivos do ácido oleico, Miller20 afirma que esse óleo
promove elevação do fator VII da cascata de coagulação sanguínea e do inibidor
ativado do plasminogênio-1 (PAI-1) — efeitos que favorecem a trombogênese.

EFEITOS DAS GORDURAS SATURADAS SOBRE O


SISTEMA CARDIOVASCULAR E LIPOPROTEÍNAS
PLASMÁTICAS
Os ácidos graxos saturados são gorduras, pois, normalmente, encontram-se no
estado sólido em T ambiente. São formados por cadeias de carbono médias (8 a
12 átomos) e longas (mais de 12 átomos).
As gorduras de cadeia longa são absorvidas após formarem as micelas e serem,
posteriormente, incorporadas aos quilomícrons. Já as de cadeia média, que são
absorvidas pelo sistema porta, estão ligadas à albumina (proteína transportadora
de ácidos graxos livres no sangue). O grupo das gorduras saturadas de cadeia
longa incluem os ácidos: palmítico 16:0, mirístico 14:0 e esteárico 18:0.
Existem várias evidências de que os ácidos palmítico e mirístico elevam o
colesterol total do plasma e, principalmente, LDL. Vale ressaltar que, embora se
encontre em menor quantidade na dieta casual, o ácido mirístico eleva até quatro
vezes mais o colesterol total do que o palmítico. Suas principais fontes são o leite
e seus derivados.19
Por outro lado, o ácido esteárico, encontrado principalmente no cacau, não eleva
o colesterol total e a LDL. A hipótese mais aceita é a de que, no fígado, seja mais
rápido o processo de desidrogenação dessa gordura (conversão para ácido oleico
[ω-9]).21 Essa é uma boa notícia para os chocólatras, pois, recentemente, foi
publicado no International Journal of Cardiovascular Sciences que a ingestão de
chocolate amargo (85% de cacau) melhora a função endotelial de pacientes após
síndrome coronariana aguda.22
Finalmente, de forma geral, os estudos clínicos sugerem que o consumo de
gorduras saturadas eleva a incidência de DCV, e que a redução do seu consumo
diminui fortemente esse risco. O Quadro 1 resume os efeitos cardiovasculares e
metabólicos, e os efeitos nas lipoproteínas e nos TGs plasmáticos provocados
pelo consumo das gorduras saturadas, das ceras trans e dos óleos mono e poli-
insaturados.
Quadro 1
INGESTÃO DE LIPÍDIOS E SEUS EFEITOS CARDIOVASCULARES, METABÓLICOS E EM
LIPOPROTEÍNAS E TRIGLICERÍDEOS PLASMÁTICOS

Tipos de lipídios Efeitos metabólicos* Efeitos sobre Efeitos


lipoproteínas cardiovasculares
e TGs*

Ácidos graxos saturados ▪ ↓ o número de ▪ ↑ ▪ ↑


receptores hepáticos colesterol incidência
da LDL total de DCV
▪ ↑ trigliceridemia (o ▪ ↑ VLDL
que provoca ↑ na produção ▪ ↑ LDL
das VLDL). ▪ ↑ LDL
▪ ↑ a inflamação arterial oxidada
(o que favorece o ↑ ▪ (SE)
da LDL oxidada). HDL
▪ ↑ a atividade ▪ ↑ TGs
da ACAT-2 hepática (o
que ↑ o enriquecimento de
VLDL, IDL e LDL em
colesterol esterificado).
Ácidos graxos poli-insaturados ▪ ↑ o catabolismo da ▪ ↑ ▪ ↑
trans Apo A-I que forma as colesterol incidência
HDLs. total de DCV
▪ ↑ a lesão e apoptose ▪ ↑ VLDL ▪ ↑
endotelial ▪ ↑ LDL valores
▪ ↑ do ERO (o que ▪ ↑ LDL de PA
favorece a inflamação oxidada
vascular arterial). ▪ ↓ HDL
▪ ↓ a concentração das (especialme
proteínas que estimulam a nte a HDL2)
acilação e ↑ a resistência ▪ ↑ TGs
insulínica (isso inibe a ação
da lipase lipoproteica e ↑ a
concentração de ácidos
graxos plasmáticos).
Ácidos graxos monoinsaturados ▪ ↓ a síntese endógena ▪ ↓ ▪ ↓
de colesterol (que é mais colesterol incidência
rapidamente catabolizado total de DCV
nas células periféricas). ▪ (SE)
▪ ↑ a atividade da VLDL
lipase lipoproteica sobre as ▪ ↓ LDL
lipoproteínas plasmáticas ▪ (SE) L
(que contêm maior
DL oxidada
quantidade desses óleos
em seu interior). ▪ (SE)
HDL
▪ (SE) T
Gs

Série ω-6 ▪ ↓ a expressão ▪ ↓ ▪ ↓


endotelial de VCAM- colesterol incidência
1 e ICAM-1 (moléculas total de DCV
de adesão leucocitárias ▪ (SE)
que favorecem a formação VLDL
da placa de ateroma e dos ▪ ↓ LDL
trombos). ▪ ↑ LDL
▪ ↑ a remoção
oxidada
plasmática da LDL e ↓ a (quando
sua produção hepática ingeridos em
(melhora a redistribuição excesso)
do colesterol aos tecidos e ▪ ↓ HDL
evita seu acúmulo nas ▪ (SE) T
artérias).
Gs

Série ω-3 ▪ ↓ a secreção hepática ▪ ↓ ▪ ↓ ocorrência de


de VLDL. colesterol arritmias
▪ ↓ a resistência total cardíacas.
insulínica. ▪ ↓ VLDL ▪ ↓ formação de
▪ ↑ o metabolismo ▪ (SE) L trombos
catabólico dos TGs. DL arteriais.
▪ ↓ a cascata de ▪ (SE) L ▪ ↓ valores
inflamação nos vasos de PA.
DL oxidada
arteriais. ▪ ↓ incidência
▪ (SE)
▪ ↓ a via de produção de DCV.
do tromboxano A2. HDL
▪ ↓ taxa de
↑ a produção do ▪ ↓ TGs
▪ mortalidade
tromboxano A3 e das por DCV.
prostaciclinas I3 (ambos
vasodilatadores e
antiagregantes
plaquetários).
▪ ↑ a fluidez das
membranas (isso facilita o
transporte de gorduras
para o interior das células e
melhora a função
endotelial).
▪ ↓ a expressão
endotelial de VCAM-
1 e ICAM-1 (moléculas
de adesão leucocitárias
que favorecem a formação
da placa de ateroma e dos
trombos).
▪ ↓ a liberação
de TNF-α pelo tecido
adiposo (isso evita a
inflamação vascular).
Não considerada a magnitude do efeito; ↓: diminui; ↑: aumenta; (SE): sem
efeito; ACAT-2: acilcolesterol aciltransferase-2 (proteína que fornece colesterol
esterificado às lipoproteínas formadas por Apo B); ICAM-1: molécula de adesão
intercelular-1 (do inglês intracellular adhesion molecule-1); TNF-α: Factor de necrose
tumoral (do inglês tumor necrosis factor-alfa); VCAM-1:molécula de adesão vascular
1 (do inglês vascular cell adhesion molecule-1).
Fonte: Quintão e colaboradores (2011);4 Bertolami e Nicolau (2008);19 Kim e
colaboradores (2016).23
A maioria dos estudos se preocupa em abordar o valor quantitativo das moléculas que compõem
o perfil lipídico, demonstrando a importância da associação quantitativa do perfil lipídico com
as DCVs. A maioria desses estudos evidencia o controle da LDL como fator principal para evitar
o aparecimento e a evolução da aterosclerose.24

No entanto, os estudos recentes têm cada vez mais se dedicado ao valor qualitativo dessas
moléculas,23,25 apontando que, possivelmente, a concentração qualitativa desses lipídios seja
mais importante do que a quantidade plasmática. O estudo MESA, por exemplo, evidenciou a
importância da quantidade qualitativa da HDL como fator cardioprotetor.23 Da mesma forma, a
qualidade dos TGs tem influência direta no processo aterosclerótico.
Como dito anteriormente, os TGs (lipídios simples) são formados por uma
molécula de glicerol (carboidrato) ligada a três moléculas de ácidos graxos. Se os
ácidos graxos que compõem os TGs forem principalmente insaturados (mono ou
poli-insaturados cis), eles formarão moléculas de VLDL, IDL e LDL menos densas
e menos propensas à oxidação, ou seja, menos aterogênicas. Isso porque os
ácidos graxos mono ou poli-insaturados cis possuem conformação espacial
diferente dos ácidos graxos saturados ou poli-insaturados trans.
Como os óleos possuem sua cadeia de carbono com conformação não retilínea
(ver Figura 1), eles preenchem as moléculas de LDL, por exemplo, com menor
quantidade de ácidos graxos. Por outro lado, as gorduras e ceras (ácidos graxos
saturados ou poli-insaturados trans) preenchem essas mesmas lipoproteínas com
uma quantidade maior de ácidos graxos.
LEMBRAR
As LDLs preenchidas com ácidos graxos saturados ou poli-insaturados trans são mais densas e
mais propensas à oxidação dos radicais livres, o que favorece a formação da placa de
ateroma.16 Por isso, entre os pesquisadores, tem crescido a ideia de que o ponto central do perfil
lipídico, para controle do processo aterosclerótico, seja principalmente a quantidade e a qualidade
dos TGs, e não da LDL.24
As técnicas laboratoriais estão cada vez mais aprimoradas para identificar a
qualidade dos lipídios,25 e, embora ainda hoje poucos laboratórios em âmbito
nacional realizem esse tipo de análise,26 acredita-se que no futuro próximo a
solicitação de exames que avaliem a qualidade do perfil lipídico será prática
rotineira da avaliação clínica.
As LDLs menores e mais densas são chamadas de LDLs tipo B, e as maiores e menos densas,
de LDLs tipo A.

▪ METABOLISMO DOS LIPÍDIOS (LIPOGÊNESE E LIPÓLISE)


O entendimento da lipogênese e da lipólise, que refletem os processos de
absorção, armazenamento e utilização dos lipídios, inicia-se com a ingestão
dietética. Esse processo, do ponto de vista didático, pode ser separado em quatro
partes:

▪ parte 1 – da ingestão dietética dos lipídios à formação da primeira lipoproteína


plasmática — a quilomicra;
▪ parte 2 – metabolismo dos TGs;
▪ parte 3 – metabolismo das lipoproteínas;
▪ parte 4 – lipemia pós-prandial (processo importante ao desenvolvimento da
doença aterosclerótica coronariana).

PARTE 1: FORMAÇÃO DA QUILOMICRA


No que se refere à formação da quilomicra, cerca de 90% dos lipídios da dieta são
constituídos por TGs. Os 10% restantes são compostos por:4,5,19

▪ colesterol;
▪ ésteres de colesterol;
▪ fosfolipídios;
▪ ácidos graxos livres (não esterificados).
Digestão é o conjunto de processos implicados na conversão de alimentos em substâncias
adequadas à absorção e à assimilação.
A digestão dos lipídios começa na cavidade bucal e continua no estômago, com
a ação das lipases lingual e gástrica. Elas são produzidas, respectivamente, pelas
glândulas sublinguais e pelas células da mucosa do estômago. Essas lipases
degradam os TGs, separando os ácidos graxos do glicerol, principalmente os TGs
formados por ácidos graxos de cadeias curta e média. Após a ação dessas lipases,
os ácidos graxos livres sofrem ação dos sais biliares e das seguintes substâncias
produzidas no pâncreas: 4,5,19

▪ lipase pancreática;
▪ colesterol-esterase;
▪ fosfolipase;
▪ bicarbonato.
Os sais biliares produzidos pelas células hepáticas e armazenados na vesícula biliar são
substâncias à base de colesterol (lipídio derivado), que têm por função emulsificar os
lipídios. 4,5,19

Emulsificar significa misturar o que não se mistura naturalmente, como água e óleo.
Em vias finais, a emulsificação dos lipídios é o processo que torna as moléculas lipídicas (que
normalmente se agregam formando grandes moléculas) em gotículas, para que a lipase
pancreática possa agir de forma mais efetiva.4,5,19
A lipase pancreática tem a mesma função das lipases lingual e gástrica, com a
diferença de agir também sobre TGs formados por ácidos graxos de cadeia longa,
além de ser mais eficiente na catálise dos lipídios. O colesterol proveniente da
dieta é diretamente absorvido em sua forma livre pelos enterócitos. No entanto,
os ésteres de colesterol, que representam cerca de 15% do colesterol dietético,
são hidrolisados pela colesterol-esterase, que cliva os ésteres de colesterol em
ácidos graxos, mais colesterol livre. Já os fosfolipídios são absorvidos
principalmente pela ação da fosfolipase A2.

A lipase pancreática, a colesterol-esterase e a fosfolipase são enzimas que somente atuam em


pH básico. Como elas são secretadas no duodeno, e o duodeno recebe o quimo proveniente do
estômago, com um pH ácido, devido à ação do ácido clorídrico, elas não conseguem atuar de
forma efetiva se o pH continuar baixo. Portanto, é necessário que o bicarbonato liberado pelo
pâncreas e encontrado principalmente no suco pancreático aumente o pH ao reagir com o ácido
clorídrico, transformando-o em ácido carbônico. O ácido carbônico, por ser altamente instável,
rapidamente é convertido em gás carbônico e água.

Na sequência, os ácidos graxos livres de cadeia curta e média são diretamente absorvidos pelos
enterócitos da mucosa intestinal e são liberados na corrente sanguínea venosa. Eles são, então,
transportados pela albumina até o fígado, pela circulação porta-hepática ou até os tecidos
periféricos, nos quais são diretamente absorvidos e utilizados como substrato energético.
Por sua vez, os ácidos graxos livres de cadeira longa, o colesterol não esterificado,
os fosfolipídios, os sais biliares e as vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K) formam as
micelas.

Micelas são partículas hidrofílicas que facilitam o transporte dos lipídios e das vitaminas
lipossolúveis (A, D, E e K) através da membrana dos enterócitos.
Após atravessarem a mucosa intestinal, os compostos das micelas, juntamente
com a Apo B-48, irão formar a lipoproteína primogênita (quilomicra ou
quilomícrons). Nesse ponto, novamente os ácidos graxos são ressintetizados
em TGs e o colesterol livre é esterificado.

LEMBRAR
As quilomicras transportam principalmente TGs e colesterol esterificado e não ácidos graxos e
colesterol livres.
A Figura 3 resume de forma esquemática a primeira parte do metabolismo lipídico.
Figura 3 — Metabolismo lipídico: ingestão dietética, absorção das gorduras e
formação das quilomicras.
Fonte: Harvey e Ferrier (2012).5
ETAPAS DA LIPÓLISE
Etapa/desi Descrição
gnação

Primeira: A primeira etapa do metabolismo dos TGs ocorre no sangue. Nela, os TGs presentes nas quilomicras são clivados pela lipase lipoproteica.
clivagem Nesse processo, os ácidos graxos são liberados do glicerol e transportados até o sarcolema (membrana plasmática da
dos TGs. célula muscular) pela albumina.
No sarcolema, proteínas específicas realizam o transporte dos ácidos graxos para o interior da célula muscular. Ao entrarem na célula, ocorre a
segunda etapa, a β-oxidação.

Segunda: β- Nessa etapa, os ácidos graxos são transformados em moléculas de Acetil-Coenzima A (AcetilCoA). Esse processo ocorre na matriz mitocondrial,
oxidação dos após a passagem desses ácidos graxos pelas membranas externa e interna da mitocôndria. Em média, cada ácido graxo é capaz de formar oito
ácidos moléculas de AcetilCoA.
graxos.
No interior da mitocôndria, a AcetilCoA se liga ao oxaloacetato e forma o citrato, dando início à terceira etapa do catabolismo dos TGs, o ciclo do
ácido cítrico.
É importante lembrar que as principais enzimas que medeiam a β-oxidação são as tiocinases.
Os ácidos graxos de cadeia curta e média passam livremente pelas membranas mitocondriais (externa e interna), no entanto, os ácidos graxos de
cadeia longa (mais comuns na alimentação) necessitam da carnitina para serem transportados através da membra interna das mitocôndrias.

Terceira: ciclo Também conhecida como ciclo de Krebs, essa etapa compreende 11 reações anaeróbicas, ou seja, reações que não necessitam do oxigênio para
do ácido ocorrer.
cítrico. O ciclo do ácido cítrico libera íons de hidrogênio que são captados por transportadores específicos, denominados NAD e FAD.
Esses transportadores levam esses íons de hidrogênio até as cristas mitocondriais, local em que ocorre a última etapa do catabolismo dos TGs.

Quarta: Essa etapa é necessariamente aeróbica, ou seja, depende da presença suficiente de oxigênio para ocorrer. É nessa fase que a maior parte
cadeia da ATP é formada.
transportador No final dessa etapa, além da ATP, são formados H2O e CO2.
a de elétrons.

PARTE 2: METABOLISMO DOS TRIGLICERÍDEOS


A lipólise compreende quatro etapas: a clivagem dos TGs no sangue, a β-oxidação
dos ácidos graxos, o ciclo do ácido cítrico e a cadeia transportadora de elétrons.
Tais etapas estão detalhadas no Quadro 2.4,5,19

Quadro 2
AcetilCoA: acetilcoenzima A; NAD: nicotinamida-adenina-dinucleotídeo; FAD:
flavina-adenina-dinucleotídeo.
LEMBRAR
Diferentemente da via anaeróbica, na via aeróbica não ocorre acúmulo de íons de hidrogênio, o
que, portanto, não provoca acidose metabólica.
Em repouso, o organismo utiliza, prioritariamente, lipídios para produzir energia.
Em média, 60 a 70% da energia de repouso total necessária provém do
catabolismo lipídico. Isso se deve, principalmente, ao fato de que o organismo é
uma “máquina” extremamente econômica.
Um grama de lipídio, em média, produz 9kcal de energia e 1g de carboidrato ou proteína produz,
em média, 4kcal, o que mostra o motivo de o corpo humano preferir utilizar, principalmente, lipídios
para a produção de energia, pois é muito mais rentável.
O homem possui uma reserva ilimitada de lipídios, enquanto que a sua reserva
de carboidratos é limitada. Ou seja, estocados no tecido adiposo e nos músculos,
os lipídios representam uma reserva de mais de 200.000kcal, enquanto que no
fígado e no tecido muscular a reserva de carboidratos normalmente não ultrapassa
2.200kcal. Isso se deve ao fato de o armazenamento de carboidratos ser muito
dispendioso devido à necessidade de água. Já os lipídios, por serem hidrofóbicos,
não precisam de água para seu armazenamento, o que possibilita maior acúmulo
com menos peso molecular.3 E por que não utilizar principalmente as proteínas?
Porque a principal função das proteínas é o anabolismo, e não o fornecimento de
energia.
Caso não exista oxigênio suficiente na mitocôndria, a célula muscular diminui sua produção
energética aeróbica e aumenta a produção anaeróbica. Por isso, a oferta de oxigênio é um
importante mediador dos metabolismos aeróbico e anaeróbico.
Uma vez que a via aeróbica produz muito mais energia do que a anaeróbica, não
gera acidose metabólica e, ainda, consegue utilizar tanto os carboidratos quanto
os lipídios. Assim, quase a totalidade das células do corpo humano possui
metabolismo basicamente aeróbico; a única exceção são as hemácias, que não
possuem mitocôndria, portanto, não produzem energia de forma aeróbica e não
utilizam lipídios para a produção de energia, somente carboidratos.
Além das hemácias, o tecido nervoso central, embora possua mitocôndrias,
basicamente utiliza carboidratos para a produção de energia (principalmente
aeróbica). O mecanismo que explica o motivo para os neurônios do sistema
nervoso central não utilizarem lipídios ainda não está claro. No entanto, sabe-se
que os ácidos graxos não conseguem atravessar com facilidade a barreira
hematoencefálica por estarem ligados à albumina.

Corpos cetônicos como fonte de energia


Nesse ponto, é imperativo abordar a função dos corpos cetônicos no
fornecimento de energia ao sistema nervoso central. Os compostos classificados
como corpos cetônicos são:

▪ o acetoacetato;
▪ o hidroxibutirato;
▪ a acetona (produto não metabolizável).
A mitocôndria hepática tem a capacidade de converter a AcetilCoA, proveniente
da β-oxidação dos ácidos graxos, em corpos cetônicos. Esses, com exceção da
acetona, são transportados aos tecidos periféricos que possuem mitocôndria
(especialmente músculos esquelético e cardíaco e córtex renal) e podem ali se
converter novamente em AcetilCoA e dar origem ao ciclo do ácido cítrico.
Em condições de jejum prolongado (2 a 3 semanas) — quando o fígado aumenta
consideravelmente a produção dessas substâncias em decorrência da necessidade
de economia de glicose e proteína — o encéfalo passa a usar, também, essas
substâncias na produção de energia, poupando, assim, glicose e proteínas.

LEMBRAR
Poupar glicose é fundamental, pois sua quantidade é limitada no organismo. Além disso, os
carboidratos são combustíveis quase que exclusivos do sistema nervoso central.
Por que o encéfalo não utiliza TGs? Porque, como também já mencionado, ele não
tem a capacidade de metabolizar esse substrato. Daí a importância dos corpos
cetônicos como fonte de energia para o encéfalo em situações nas quais a taxa de
glicose no organismo está baixa. No entanto, quando a velocidade de formação
dos corpos cetônicos é maior do que seu catabolismo, seus valores no sangue e
na urina aumentam, causando, respectivamente, cetonemia e cetonúria.
Tais condições são frequentemente identificadas em indivíduos com diabetes
melito tipo 1 não controlado. Em indivíduos sadios, a concentração desses
compostos no sangue é menor do que 3mg/dL, que pode atingir 90mg/dL nos
diabéticos. Uma vez que cada corpo cetônico libera um íon de hidrogênio ao ser
carreado no sangue, esse quadro de cetonemia leva à acidose metabólica
(cetoacidose). A cetoacidose, especialmente a provocada pelo acúmulo de
acetonas, causa toxicidade, fraqueza muscular, disfunção de órgãos e morte (em
casos crônicos mais graves).
LEMBRAR
O fígado, embora seja o produtor de corpos cetônicos, não tem a capacidade de utilizá-los para a
produção de energia, pois não possui a tioforase, enzima necessária para metabolizar esses
compostos.

Papel do tecido adiposo no metabolismo de lipídios


Diferentemente dos músculos estriados, o tecido adiposo permite não só a
entrada, mas também a saída de ácidos graxos. Enquanto que, nos músculos, os
ácidos graxos só entram com a finalidade de produzir energia, no tecido adiposo
os ácidos graxos podem, ao entrar, produzir energia e também ser acumulados.
Os ácidos graxos acumulados na forma de TGs, quando necessário, podem ser
hidrolisados e, assim, liberar para a corrente sanguínea ácidos graxos que são
transportados pela albumina, para serem utilizados em outros tecidos na produção
de energia. Os principais consumidores dos ácidos graxos liberados pelo tecido
adiposo são os músculos estriados cardíaco e esquelético.
A enzima que hidrolisa os TGs armazenados no tecido adiposo é a lipase
hormônio sensível (LHS), produzida no tecido adiposo. Ela é assim denominada
por ser ativada principalmente pelas catecolaminas (adrenalina e noradrenalina) e
inibida pela insulina. É ativada, também, em períodos de jejum prolongado e inibida
pela oferta aumentada de lipídios plasmáticos, fato esse que ocorre,
principalmente, no período pós-prandial.
Tanto no diabetes melito tipo 1 quanto no tipo 2 com resistência à insulina,
a LHS é estimulada. Isso acontece pelo fato de que, nos dois casos, a diminuição
ou a resistência à insulina provocam diminuição da sinalização da concentração de
insulina nas células do tecido adiposo. Assim, nesses indivíduos, o aumento da
atividade da LHS aumenta a hidrólise dos TGs armazenados no tecido adiposo e
provoca um consequente aumento da lipemia sanguínea, mesmo não existindo
aumento do consumo desses ácidos pelo organismo (especialmente pelos tecidos
musculares esquelético e cardíaco). Esse é um dos motivos que explica a
associação tão comum entre diabetes melito e dislipidemias.
Em diabéticos tipo 1 e 2, o excesso de ácidos graxos plasmáticos liberados pelo
tecido adiposo, e não utilizados na mesma proporção para geração de energia,
principalmente pelos músculos, é metabolizado principalmente no fígado. Esse
processo pode desencadear outro problema — a esteatose hepática.
PARTE 3: METABOLISMO DAS LIPOPROTEÍNAS
PLASMÁTICAS
As lipoproteínas plasmáticas são moléculas compostas por lipídios e proteínas
específicas: as apoliproteínas. Elas compreendem:4,5,19

▪ as quilomicras;
▪ as VLDLs;
▪ as IDLs;
▪ as LDLs;
▪ as HDLs;
▪ a lipoproteína (a).
Essas lipoproteínas diferem na composição lipídica e proteica, no tamanho e na
densidade, conforme mostra a Figura 4.

Figura 4 — Tamanho, densidade e composição lipídica das lipoproteínas plasmáticas.


Fonte: Adaptada de Campinas (2017).27
A Figura 5 mostra a composição estrutural comum a todas as lipoproteínas.

Figura 5 — Estrutura comum das lipoproteínas.


Fonte: Adaptada de Carrero (2017).28

A principal função das lipoproteínas plasmáticas é o transporte de lipídios no sangue (TGs,


colesterol e fosfolipídios) para os tecidos corporais. A primeira lipoproteína formada é a quilomicra,
e, a partir dela, são formadas as demais.
A quilomicra formada é absorvida pelos lactélios (vasos linfáticos do intestino
delgado), formando o quilo (linfa com aspecto leitoso devido à grande presença
de lipídios). As quilomicras seguem pelo sistema linfático até o ducto torácico,
local no qual desembocam na veia subclávia, entrando finalmente na corrente
sanguínea. Na corrente sanguínea sofrem transformação, recebendo da HDL as
Apo E, C-II, C-III, A-I e A-II. As Apos E, C-II e C-III são necessárias,
respectivamente, para reconhecimento hepático, ativação e inibição da lipase
lipoproteica.

LEMBRAR
A relação entre as Apo C-II (ativadora) e C-III (inibidora) determina a magnitude do efeito da lipase
lipoproteica sobre a quilomicra.
As quilomicras são então transportadas aos tecidos periféricos, para os quais são
liberados, principalmente, ácidos graxos para a produção de energia. Para que
sejam liberados, esses ácidos graxos devem ser clivados do glicerol. A enzima que
cliva os triglicerídeos provenientes das quilomicras e posteriormente das VLDLs é
a lipase lipoproteica, produzida principalmente no tecido muscular cardíaco,
esquelético e adiposo.
A lipase lipoproteica se fixa à parede do endotélio desses tecidos e realiza a quebra
dos triglicerídeos em glicerol e ácidos graxos. A lipase lipoproteica é ativada pela
presença da Apo C-II, que está presente nas moléculas de quilomicras e nas
VLDLs. Os ácidos graxos livres são então absorvidos pelo tecido adiposo ou
muscular, ou então, transportados pela albumina até outros tecidos.

A albumina é uma proteína produzida no fígado e tem outras funções além do transporte de
gorduras. Ela transporta hormônios, como, por exemplo, os hormônios tireoideanos, aumentando
sua meia vida.
A lipase lipoproteica, como dita ao longo deste texto, tem papel fundamental no metabolismo
lipídico. Por isso, é importante o entendimento dos mecanismos que estimulam e inibem sua
produção e ativação. Ela é estimulada pela insulina é, ou seja, no estado pós-prandial a expressão
e atividade dessas lipase estão aumentadas nos principais tecidos que a produzem (muscular
esquelético e cardíaco e adiposo). Além disso, a própria concentração das lipoproteínas ricas em
triglicerídeos (quilomicra e VLDL) estimula também a lipase lipoproteica.

A Apo C-II também é outro fator importante para o estímulo da atividade da lipase liporoteica. Ao
contrário, o jejum prolongado, a diminuição na concentração de insulina e das lipoproteínas ricas
em triglicerídeos e a Apo C-III inibem a produção e atividade da lipase
lipoproteica. Alterações genéticas que provocam aumento da concentração da Apo C-III em
relação a Apo C-II induzem ao aumento da concentração das lipoproteínas ricas em triglicerídeos
e também da LDL.29

O único tecido que age de forma diferente em relação à lipase lipoproteica é o cardíaco.
No músculo cardíaco, a atividade e a produção da lipase lipoproteica permanecem elevadas quase
que de forma independente da concentração plasmática das lipoproteínas (quilomicra e VLDL) e
insulina. Isso demonstra a importância dos ácidos graxos como substrato energético para o
músculo cardíaco, uma vez que, cerca de 70% da energia necessária ao coração é proveniente
dos ácidos graxos.

Outro ponto a ser destacado é que a diminuição da sensibilidade insulínica ou a


resistência insulínica presente na maioria dos indivíduos com diabetes melito tipo II provoca
diminuição na produção e atividade da lipase lipoproteica. Isso parece um paradoxo,
visto que, nessa população, os valores da insulina plasmática são geralmente maiores. No entanto,
a dificuldade da insulina em se ligar aos seus receptores de membrana no tecido adiposo e
muscular diminui a estimulação à produção e atividade da lipase. Isso explica, em parte, porque
indivíduos com diabetes melito tipo II têm maior incidência e prevalência de dislipidemias do que
indivíduos não resistentes à insulina.29

Como a lipase lipoproteica tem ação também na formação da HDL, transferindo fosfolipídeos a
essas moléculas, nos indivíduos diabéticos observa-se também redução da concentração
plasmática da HDL.29

O tecido hepático somente produz a lipase lipoproteica na vida intrauterina. Portanto, quem
assume a função de hidrolisar as moléculas de triglicerídeos e fosfolipídeos no tecido hepático,
após o nascimento, é a lipase hepática. De forma ainda não bem explicada, a elevação da
concentração da lipase diminui a produção da HDL e aumenta o risco de aterosclerose. Isso ocorre
em razão de a elevação estar associada também a maior concentração de LDL pequenas e
densas, que são mais susceptíveis à oxidação, o que consequentemente favorece a formação da
placa aterosclerótica.30
O exercício físico é capaz de aumentar a atividade da lipase lipoproteica em
indivíduos com resistência insulínica.
As quilomicras remanescentes, que são moléculas com densidade maior do que as
quilomicras nascentes, pois perderam cerca de 90% da sua composição lipídica,
são, então, captadas por receptores específicos do fígado. Os componentes
remanescentes das quilomicras no fígado formam outra molécula com grande
quantidade de triglicerídeos, mas com menor tamanho e densidade que as
quilomicras – as VLDLs (lipoproteínas de muito baixa densidade).
As VLDLs, ao cederem lipídios aos tecidos, diminuem seu tamanho e peso
molecular, transformando-se em VLDLs remanescentes. Elas são também
chamadas de moléculas de densidade intermediária (IDL), e podem seguir dois
caminhos: ou são captadas pelo fígado ou se transformam em moléculas de baixa
densidade (LDL), ao transferirem novamente as Apo C e E para a HDL.
As LDLs são ricas em colesterol e têm por função transportar esse colesterol para tecidos extra-
hepáticos. No tecido hepático, a lipase hepática é responsável pela quebra dos triglicerídeos das
lipoproteínas ricas em triglicerídeos.
A lipase hepática tem importante papel na transformação da HDL2 em HDL3,
pois ela retira colesterol esterificado da HDL2. Esta lipase também atua na atração
das remanescentes de quilomicras e de VLDLs plasmáticas ao fígado. Como a
insulina inibe sua atividade, em indivíduos com diabetes melito tipo 1 e 2 existe
maior atividade dessa lipase, favorecendo a diminuição da produção de HDL2
(antiaterogênico) e aumentando a formação do HDL3 (pró-aterogênico).
As LDLs são compostas pela Apo B-100, por triglicerídeos em pequena
quantidade e principalmente por colesterol esterificado. Nos tecidos extra-
hepáticos, as LDLs se ligam a receptores que reconhecem a Apo B-100 e finalizam
seu ciclo pela endocitose e consequente liberação de colesterol para esses
tecidos. O aumento da concentração de colesterol nesses tecidos inibe a
expressão de receptores para a LDL e cria uma retroalimentação negativa, a
endocitose da LDL. A Figura 6 resume o metabolismo das VLDLs e LDLs.
Figura 6 — Metabolismo das lipoproteínas de muito baixa e baixa densidade.
Fonte: Adaptada de Anderson (2014).31
As HDLs são lipoproteínas formadas principalmente por apolipoproteínas A-I e A-
II produzidas no fígado e intestino e secretadas no sangue. Essas Apo A se ligam
a lipídios plasmáticos (fosfolipídeos, triglicerídeos, colesterol livre e esterificado)
formando as HDLs.
As lipoproteínas desempenham duas funções importantes: servir de reservatórios
de Apo para transferência delas às outras lipoproteínas, como explicado
anteriormente, e realizar o transporte reverso do colesterol.
As HDLs controlam a quantidade de LDL e o crescimento das placas ateroscleróticas, podendo,
inclusive, diminuí-las.32
A HDL pode exercer efeitos pleiotrópicos que vão além do transporte reverso do
colesterol e controle dos níveis da LDL. Estudos têm apontado que a HDL possui
propriedades anti-inflamatórias, antioxidativas, antiagregantes, anticoagulantes,
vasodilatadoras (estímulo a produção de óxido nítrico) e pró-
fibrinolíticas.33,34 Em conjunto, essas propriedades diminuem o risco de
desenvolvimento das doenças cardiovasculares.
Vários estudos, dentre eles o MIRACL 2005,35 mostram associação inversa entre
os níveis de HDL e a formação das placas ateroscleróticas e o contrário em relação
a LDL. Existe também relação inversa entre valores de triglicerídeos e HDL, uma
vez que a elevação dos triglicerídeos favorece a formação da LDL.
Essas evidências científicas, ao longo de muitos anos, desde o estudo Framingham
em 1977,36 imprimiram a ideia popular do “bom” e “mau” colesterol. No entanto,
é sabido que ambos têm sua função no organismo, e que a LDL baixa (embora não
exista concenso sobre qual valor seria considerado baixo, mas possivelmente
abaixo de 100mg/dL) também pode provocar diversas disfunções. Dentre essas
disfunções, destacam-se o mau funcionamento dos neurônios, demências,
neoplasias e deficiência na produção de hormônios essenciais, como estrogênio e
testosterona.37 A Figura 7 mostra a diferença estrutural entre a LDL e HDL.

Figura 7 — Estrutura molecular da HDL e LDL.


Fonte: Adaptada de Badinón e colaboradores (2009).38
Estudos recentes mostraram que nem sempre as HDLs são antiaterogênicas, e,
pelo contrário, podem favorecer aterogênese. Mas, em quais situações as
moléculas de HDL podem se comportar como moléculas aterogências?
São conhecidas algumas subfrações da HDL, dentre elas a HDL2a e 2b e as
HDL3a, 3b e 3c. Essas subfrações separadas por ordem decrescente de tamanho
são: HDL2b (diâmetro médio 10,6nm), HDL2a (9,2nm), HDL3a (8,4nm), HDL3b
(8nm) e HDL3c (7,6nm).39 Quanto maior o seu diâmetro maior seu efeito
antiaterogênico, que como se pode observar acima, é uma característica das HDL
tipo 2.
As HDLs menores, tipo 3, além de não conferirem o mesmo benefício
cardioprotetor das HDLs tipo 2, podem, contrariamente, favorecer a formação da
placa aterosclerótica, especialmente em casos de inflamação subclínica
aumentada.40,41 Portanto, mais importante que a quantificação do perfil lipídico
é a sua qualificação. Esse conceito é fundamental, pois um dos efeitos mais
importantes do exercício físico é a melhora da qualidade do perfil lipídico. A Figura
8 ilustra e sintetiza a formação das lipoproteínas plasmáticas.
Somente o uso de hormônio tireoideano sintético (levotiroxina sódica) modifica significantemente
os valores da HDL na dosagem de jejum. Outras medicações, ou mesmo o tempo do jejum, não
influenciam no valor da HDL.
Figura 8 — Descrição esquemática da formação das lipoproteínas plasmáticas
Fonte: Adaptada de Rosas (2017).42
Outro aspecto do perfil das lipoproteínas plasmáticas é o que a literatura
denomina de colesterol não HDL. A fração colesterol não HDL é usada como
estimativa do número total de partículas aterogênicas no plasma (VLDL
+ IDL + LDL). Refere-se também a níveis de apo B, que compõem as moléculas de
quilomicra, VLDL, IDL e LDL.
O colesterol não HDL é calculado facilmente pela subtração do HDL do colesterol
total (colesterol não HDL = colesterol colesterol total – HDL). O colesterol não
HDL pode fornecer melhor estimativa do risco cardiovascular em comparação
com medida da LDL, principalmente nos casos de hipertrigliceridemia associada
ao diabetes, à síndrome metabólica ou à doença renal.
Além das lipoproteínas já bem conhecidas e discutidas na literatura científica,
estudos mais recentes têm discutido a associação entre outra lipoproteína e a
aterogênese – a lipoproteína (a). A lipoproteína (a) é uma lipoproteína produzida
no fígado e é rica em colesterol, semelhante à LDL. Entretanto, diferentemente
da LDL, ela apresenta uma lipoproteína adicional – a Apo(a). Embora sua função
não esteja bem esclarecida, possivelmente participa da repação de feridas no
organismo.
A Apo(a) apresenta homologia estrutural ao plasminogênio, competindo com ele
por sítios de ligação, o que, por consequência, inibe a fibrinólise e favorece a
trombogênese.43
A lipoproteína (a) despertou o interesse de pesquisadores devido à sua associação
positiva com a aterosclerose, especialmente em indivíduos de origem
caucasiana.44 Níveis elevados dessa lipoproteína (>30mg/dL) estão associados a
infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, doença arterial obstrutiva
periférica e reestenose após revascularização miocárdica.45 Embora ela não seja
ainda considerada fator de risco independente para as doenças cardiovasculares,
principalmente por não existir um método de dosagem fidedigno, ela representa
incremento do risco cardiovascular quando associada a outros fatores
independentes.
O Quadro 3 apresenta a composição lipídica das lipoproteínas plasmáticas e o
Quadro 4 resume as informações mais importantes sobre as principais lipases que
participam do metabolismo lipídico.
Quadro 3
COMPOSIÇÃO LIPÍDICA E PROTEICA DAS LIPOPROTEÍNAS

Classe Composição lipídica principal Apos


Quilomicra TGs exógenos (dieta) B-48, C-II, C-
Quilomicra remanescente III, E, A-I e A-II
VLDL TGs endógenos (fígado) B-100, C-II, C-
III e E

IDL Ésteres de colesterol e TGs endógenos B-100, C-II, C-


III e E

LDL Ésteres de colesterol B-100

HDL Ésteres de colesterol e fosfolipídios A-I e A-II


Fonte: Quintão e colaboradores (2011);4 Bertolami e Nicolau (2008).19

Quadro 4
AÇÃO, LOCAIS DE SÍNTESE E MECANISMOS ESTIMULADORES E INIBIDORES DAS
PRINCIPAIS LIPASES RELACIONADAS AO METABOLISMO LIPÍDICO

Lipases Síntese Estimuladores Inibidores Ação


Lingual Glândulas Moléculas provenientes da Jejum Quebra
sublinguais alimentação dos TGs da
dieta,
principalmente
os de cadeias
média e curta.
Gástrica Estômago Moléculas provenientes da Jejum Quebra
alimentação dos TGs da
dieta,
principalmente
os de cadeias
média e curta.
Pancreática Pâncreas Moléculas provenientes da Jejum Quebra
alimentação dos TGs da
dieta, inclusive
os de cadeia
longa.
Hormônio- Tecido adiposo Catecolaminas e jejum Insulina e ↑ da Hidrólise
sensível prolongado concentração de dos TGs dos
lipoproteínas ricas adipócitos.
em TGs

Lipoproteica Capilares dos Insulina e Apo C-II Catecolaminas e Hidrólise


músculos Apo C-III dos TGs das
esquelético e quilomicras e
cardíaco e do das VLDLs.
tecido adiposo
Hepática Fígado Colesterol e progesterona Estrogênio, Hidrólise
glicocorticoides e dos TGs das
insulina quilomicras e
das VLDLs no
fígado (capta o
colesterol
esterificado da
HDL2,
provocando sua
transformação
em HDL3).
Fonte: Quintão e colaboradores (2011);4 Bertolami e Nicolau (2008).19
Como são dosados os lipídios plasmáticos?

A quantificação dos lipídios é feita principalmente pelo método enzimático, após coleta de sangue
em jejum de 12h. Para a dosagem do colesterol total e dos triglicerídeos, utiliza-se o método
enzimático de Trinder, enquanto que para a HDL utiliza-se o enzimático
colorimétrico.46 Interessantemente, na maioria das vezes, a LDL e a VLDL não são dosadas,
mas calculadas a partir dos valores do colesterol total, triglicerídeos e HDL.

A equação utilizada para o cálculo da LDL e VLDL foi desenvolvida por Friedewald e
colaboradores,47 na qual o colesterol total = HDL + LDL + VLDL (triglicerídeos÷5).

Em um exemplo prático, um indivíduo vai ao laboratório de análises patológicas e coleta o sangue


em jejum de 12h para dosagem do perfil lipídico. O resultado da mensuração direta do colesterol
total foi 200mg/dL, dos triglicerídeos 150mg/dL e da HDL 35mg/dL. Qual será o valor da LDL e
VLDL? O valor será VLDL = triglicerídeos ÷ 5, nesse caso é 150÷5, ou seja, 30mg/dL. Sabendo
que o colesterol total = HDL + LDL + VLDL, tem-se: 200 = 35 + LDL + 30, o que resulta em um
valor de 125mg/dL de LDL.

Portanto, na maioria das vezes, os valores de LDL e VLDL encontrados nos resultados
laboratoriais são calculados e não obtidos de forma direta. Essa equação só não pode ser utilizada
quando o valor dos triglicerídeos for igual ou maior do que 400mg/dL, pois o resultado do valor
calculado de LDL não será fidedigno.

É interessante notar que para formar uma molécula de VLDL são necessárias, em média, cinco
moléculas de TGs, e que a LDL é formada a partir de moléculas de VLDL. Assim, embora de
maneira não linear, existe uma correlação positiva entre a quantidade de triglicerídeos e de LDL.
Como dito anteriormente, o mais importante é a qualidade do perfil lipídico. Com base nesse
conceito, uma razão pode ser utilizada para medir a proporção de LDL tipo B, ou seja,
as LDL pequenas e densas. Essa proporção é obtida pela razão triglicerídeos/HDL. Quanto maior
for essa relação maior será a porcentagem de LDL tipo B no sangue.48

Em resumo, quanto maior for o valor dos triglicerídeos e menor o valor da HDL, maior será a
quantidade circulante de LDL tipo B, que são mais propensas à oxidação e, consequentemente,
mais aterogênicas.

PARTE 4: LIPEMIA PÓS-PRANDIAL


A lipemia pós-prandial é um processo fisiológico definido como a elevação e a remoção dos lipídios
plasmáticos após a ingestão dietética de gorduras. Também chamada de clearance pós-prandial,
reflete a capacidade do organismo em metabolizar os lipídios.49
A lipemia pós-prandial pode ser dividida em três fases: inicial, platô e final,
conforme a descrição do Quadro 5.49,50
Quadro 5
LIPEMIA PÓS-PRANDIAL

Fase Descrição
Inicial A fase inicial da lipemia pós-prandial, até o ponto de pico, é medida basicamente pela elevação
dos TGs, uma vez que não se observam variações nas concentrações plasmáticas das
lipoproteínas nessa primeira fase. Tem duração de 3 a 4 horas
Platô O platô representa a fase em que os lipídios permanecem com os valores estáveis após
atingirem o pico. Tem duração de 1 a 2 horas.
Final A fase final representa o descenso dos lipídios até que atinjam os valores basais (de jejum). Tem
duração de 2 a 3 horas.
Fonte: Adaptado de Petto e colaboradores (2013).50
A lipemia pós-prandial, em adultos saudáveis, tem duração média de 6 a 8 horas,
atinge seu pico (magnitude) na 3ª ou 4ª hora e completa seu ciclo (amplitude) entre
a 6ª e a 8ª hora.50
Vários são os fatores que interferem diretamente na lipemia pós-prandial, e sua
magnitude e amplitude estão aumentadas em42 tabagistas, obesos, dislipidêmicos
e diabéticos. São fatores que provocam aumento da magnitude da lipemia pós-
prandial:51

▪ idade;
▪ sexo masculino;
▪ uso de contraceptivo oral combinado por mulheres em idade reprodutiva.
O exercício físico exerce redução efetiva da lipemia pós-prandial aguda ou crônica.52,53 Existem
evidências de que uma única sessão de exercício físico aeróbico é capaz de reduzir a lipemia pós-
prandial, principalmente entre 18 e 24 horas após a sessão.52
A V Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose, publicada
pela SBC,26 não considera a lipemia pós-prandial como fator de risco
convencional para o desenvolvimento de DCVs. No entanto, desde a década de
1990, os estudos vêm apontando que a lipemia pós-prandial é considerada um
preditor de risco cardiovascular melhor do que os fatores
convencionais,54,55 mesmo em indivíduos saudáveis.56
A lipemia pós-prandial foi descrita, pela primeira vez, por Zilversmit, em
1979.57 O autor relatou existir forte relação da lipemia pós-prandial com o
processo aterosclerótico. Atualmente, essa relação é bem estabelecida, sendo a
doença aterosclerótica definida como um evento pós-prandial.58 A diminuição
do clearance dos lipídios leva à exposição aumentada das células endoteliais às
lipoproteínas esterificadas, e essa exposição causa alterações na reatividade
vascular, fortemente associada à progressão da aterosclerose e a eventos
cardiovasculares, como infarto do miocárdio e acidente vascular encefálico
(AVE).59

No estado pós-prandial, a maior elevação dos TGs pode causar, além da disfunção endotelial,
menor disponibilidade de óxido nítrico e aumento do estresse oxidativo, alterações fortemente
envolvidas na gênese da aterosclerose.59 Nesse sentido, deve-se destacar um ponto relevante
sobre o metabolismo lipídico que tem sido pouco discutido: a importância da lipemia pós-prandial
no surgimento de DCVs.

▪ CONCLUSÃO
Diante do que foi apresentado e discutido, fica clara a influência do perfil lipídico
no surgimento das DCVs. Além disso, é cada vez mais evidente que não somente
a quantidade, mas também (e principalmente) a qualidade do perfil lipídico
influencia o desenvolvimento das DCVs. Isso tem sido estudado e discutido pelos
cientistas, evidenciando que, no futuro, a análise da qualidade do perfil lipídico
será mais importante na prática clínica do que a análise da quantidade.
Os profissionais de fisioterapia, especialmente os que militam nessa área,
precisam estar atentos a essa mudança, e também necessitam dominar os
mecanismos fisiológicos e fisiopatológicos que regulam o metabolismo lipídico.
Somente assim esses profissionais poderão prescrever o tratamento para
indivíduos com dislipidemias de forma eficiente: com o mínimo de risco de
intercorrências e o máximo de benefício.

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