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Fadiga e Periodização no Treino Desportivo

Fadiga no treino desportivo, sobressolicitação e


sobretreino
Nota: o presente texto deve ser lido em conjunto com os diapositivos da disciplina.

Noções básicas sobre a caracterização da componente biológica


do treino desportivo

1. Sobrecarga

O exercício de treino só poderá provocar modificações no organismo dos atletas,


melhorando a sua capacidade de desempenho, desde que seja executado numa duração e
intensidade suficientes para provocar uma activação óptima dos mecanismos
energéticos, neuromusculares e mentais.

Implícita na própria noção de “adaptação de treino” está a ideia de que apenas estímulos
que perturbem de uma maneira importante o equilíbrio metabólico ou de regulação de
uma determinada função serão indutores do processo de reorganização interna
conducente ao surgir de uma capacidade de resposta superior.

Deste modo, para que haja desenvolvimento de capacidades, o músculo ou o sistema


visados, terão que ser solicitados para níveis de actividade não habituais. Uma carga de
treino que procura efeitos máximos de adaptação terá que perturbar o equilíbrio interno
de um modo significativo, terá que constituir um factor de stress físico relevante. A
ultrapassagem do limiar criado pelas rotinas de treino será tanto mais difícil quanto mais
evoluído for o estado de treino do atleta, daí a procura de cargas mais exigentes, pela
sua quantidade, intensidade ou frequência, mas também pela sua especificidade e /ou
carácter selectivo.

Assim, por exemplo, se a prescrição do treino da força para um determinado indivíduo


consistir na realização de 5 repetições máximas (5 repetições com o máximo de carga
possível) e se, na realidade, o peso levantado já não corresponder a essa intensidade,

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mas possibilitar a realização de, por exemplo, 8 repetições, então os músculos não serão
sujeitos a sobrecarga e os efeitos do treino não serão os esperados. Neste caso, a carga
utilizada poderá permitir a manutenção de aquisições anteriores, o que é uma estratégia
de treino possível em determinadas circunstâncias, mas falhará o alvo se a intenção for
o desenvolvimento da força.

O mesmo se passará com o treino da resistência aeróbia. Para um atleta de fundo, treinar
na zona do limiar anaeróbio é condição fundamental para aumentar a sua capacidade de
desempenho a nível competitivo. Se as velocidades de corrida não acompanharem a
evolução ocorrida nas adaptações aeróbias e neuromusculares provenientes das semanas
anteriores de treino, as cargas tornar-se-ão irrelevantes para o fim em vista.

A noção de sobrecarga implica a adequação das cargas de treino a par e passo com a
mutação constante da capacidade máxima do indivíduo, ou seja, leva à organização de
uma progressão dos exercícios de treino no que diz respeito às componentes da carga,
noção que será explicitada mais à frente (princípio metodológico da progressão das
cargas de treino).

Compreender o princípio da sobrecarga exige levar em consideração o facto de o


processo de adaptação ao treino incidir e reorientar a dinâmica de renovação contínua
das estruturas biológicas. O organismo está em constante deterioração e reparação.
Algumas células, como os eritrócitos, circulam no sangue durante aproximadamente
120 dias, sendo então removidos por macrófagos do sistema reticuloendotelial (ou
sistema mononuclear fagocitário). Outras células, como as fibras musculares, têm uma
duração longa mas mantêm-se em constante regeneração endógena.

O estímulo de treino provoca danos específicos em alguns tecidos e provoca o desgaste


das reservas celulares (substratos energéticos, água, sais minerais, etc.). Quando
finalizamos uma sessão de treino e saímos do campo, da pista, ou da piscina, não
estamos mais aptos mas mais “fracos”. O grau de debilidade relativa atingido depende
da quantidade e da exigência do exercício. Após a sessão, no entanto, se for
proporcionado um tempo adequado de recuperação, o organismo ajustar-se-á através do
processo de supercompensação e preparar-se-á, deste modo, para o próximo estímulo ou
conjunto de estímulos.

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Existe um nível de carga óptimo, em cada situação, para cada atleta, que será aquele que
melhor estimulará o organismo no sentido de obter as adaptações desejadas. A regra
deverá ser de realizar o menor treino possível que permita atingir os objectivos em vista.
O treino não é, assim, um fim em si próprio mas um conjunto de procedimentos
considerados necessários para elevar a capacidade de desempenho competitivo.

Um nível de carga excessivo é aquele que ultrapassa a capacidade de resposta do atleta


nesse momento, implicando níveis muito elevados de fadiga, desmotivação e, muitas
vezes, abandono da modalidade.

Níveis de carga fracos não têm provavelmente qualquer efeito observável. No entanto,
por vezes é conveniente aplicar cargas deste tipo como instrumentos de recuperação
activa ou por outras razões. Existe, no entanto, um nível médio, inferior ao óptimo, que
é muito utilizado em tarefas variadas de estabilização das aquisições e do nível de
fadiga atingido ou para efeitos de aceleração dos mecanismos de recuperação cruzada.
Pode-se dizer que os níveis de carga fraco, médio e óptimo alternam constantemente e
alimentam a dinâmica do processo de treino global.

A regulação constante da relação entre índice interno e índice externo da carga é


fundamental para possibilitar a manutenção de níveis de sobrecarga, quando é esse o
objectivo, o que terá que ser feito a nível individual e levando em consideração os anos
de experiência e as características do atleta. A dificuldade crescente de aplicar
sobrecarga quando as adaptações de treino se vão acumulando e estabilizando é bem
conhecida, sendo designada por efeito da redução dos ganhos com o treino, ao qual
voltaremos quando se tratar do princípio da individualização do treino.

2. Especificidade

A natureza da carga associada a um determinado exercício condiciona os sistemas


solicitados, a tipologia de recrutamento muscular e a resposta neuroendócrina
envolvida. O núcleo central da resposta do organismo a uma carga de treino passa por 4
níveis básicos (Viru, 1996): a estrutura muscular utilizada, a resposta hormonal

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específica, a activação selectiva de órgãos e sistemas e o controlo (directo ou indirecto)


do movimento por parte do sistema nervoso central.

Um exercício de treino tem sempre um impacto definido no organismo do atleta, que


depende das suas características no que diz respeito à sua estrutura (movimentos
utilizados) e às componentes da carga que lhe estão associados (volume e intensidade,
fundamentalmente).

Daqui decorre, naturalmente, que um exercício para o desenvolvimento da força terá


uma estrutura diferente de um exercício para a estimulação da velocidade máxima. A
estrutura do movimento utilizado num exercício determina, então, sobre que músculos
incidirá o estímulo de treino, em que grau de importância e qual o tipo de recrutamento
dos vários tipos de fibras musculares (desempenho neuromuscular).

Em grande parte das disciplinas desportivas, o treino da força muscular é parte


integrante dos programas de treino, com o intuito de contribuir para a evolução do
desempenho competitivo. Para que o aumento da força tenha um impacte real no
desempenho, no entanto, teremos que assegurar que, pelo menos, parte desses
exercícios se aproximem das condições próprias de execução do ponto de vista
muscular e energético. Só assim poderemos assegurar, para a totalidade do programa de
preparação, níveis elevados de transferência das adaptações metabólicas e
neuromusculares conseguidas para a eficácia do gesto técnico usado na competição.

Esta será uma preocupação constante de todos os treinadores em qualquer modalidade


desportiva.

Dominar o conceito de especificidade, na sua acepção biológica, na construção de


exercícios de treino significa adequar a estrutura e as componentes da carga aos
objectivos definidos para esse mesmo exercício.

Neste sentido, convém clarificar que a intensidade é o factor que define por si só a
especificidade biológica, ou seja, o conjunto de adaptações que se vão pretender
induzir com a aplicação de determinado exercício. O volume da carga definirá o
grau dessas adaptações.

Neste sentido, é necessário trabalhar com zonas de intensidade bem definidas,


estimulando adequadamente os vários sistemas energéticos, as capacidades do atleta que

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se pretendem desenvolver – a força, a velocidade, a resistência ou a flexibilidade, nas


suas várias subdivisões – ou, a outro nível, a técnica e a preparação táctica para uma
competição.

3. Reversibilidade

O organismo humano, apesar de níveis elevados de redundância, próprios de todos os


seres vivos, apresenta um grau importante de eficiência e economia. O ferro e os
constituintes proteicos dos milhões de células sanguíneas, que colapsam diariamente,
são quase completamente reutilizados para a montagem de novas células. As proteínas
que se tornam desnecessárias deixam de ser sintetizadas, assim como a sua retenção.

A consequência do dinamismo das estruturas orgânicas para o atleta é a rápida


reversibilidade das adaptações de treino, uma vez interrompida a actividade sistemática
de preparação. Como sabemos, o músculo esquelético hipertrofia como resposta a um
determinado período de actividade regular e contínua, e atrofia quando o treino se
interrompe. Do mesmo modo, os ganhos em mobilidade articular obtidos e mantidos ao
longo de vários meses de treino regular de flexibilidade perdem-se com a interrupção
dos respectivos exercícios.

Todas as alterações do organismo conseguidas através do treino têm uma duração


definida. Isto significa que são transitórias e necessitam de um trabalho contínuo de
solicitação para se manterem. É claro que há adaptações mais duradouras que outras,
surgindo as alterações estruturais com maior possibilidade de permanência, mas mesmo
nestes casos, aumento da cavidade auricular esquerda como resposta ao treino aeróbio,
por exemplo, sofrem involuções importantes com a inactividade, embora não retornem
exactamente ao nível inicial.

No entanto, níveis elevados de capacidade de desempenho competitivo necessitam de


uma solicitação contínua dos factores determinantes sob pena de ocorrer perda de uma
ou mais capacidades e o consequente abaixamento da forma desportiva, ou seja, da
capacidade de realizar boas marcas em competição.

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O princípio da reversibilidade do treino declara que, do mesmo modo que a actividade


física regular resulta em adaptações fisiológicas determinadas que permitem melhores
desempenhos desportivos, assim, interromper ou reduzir de um modo importante o nível
de treino leva a uma reversão parcial ou completa destas adaptações, comprometendo a
capacidade de desempenho anteriormente mostrada.

Em atletas bem treinados, após interrupção da actividade observam-se alguns efeitos no


desempenho, designados por destreino, e que constituem processos de reversão das
adaptações orgânicas provocadas pelo exercício sistemático. Os efeitos mais óbvios são
a rápida redução do VO2max, do desempenho aeróbio e do limiar anaeróbio. Isto poderá
estar dependente da dinâmica das alterações na actividade enzimática e no volume
sistólico (Coyle et al., 1984). Um decréscimo de 12% no volume sistólico pode ocorrer
após 2 a 4 semanas de destreino, sendo acompanhado por um decréscimo da actividade
das enzimas oxidativas mitocondriais SDH e oxidase citocrómica (Wilmore & Costill,
1999).

Em atletas de nível de treino elevado, a densidade capilar mantém-se elevada durante


mais tempo, até às 12 semanas, e a densidade mitocondrial só estabiliza à 8ª semana de
destreino, mantendo-se, no entanto, acima dos valores pré-treino. Assim, após 2 meses
de paragem, os atletas de fundo perderão grande parte mas não a totalidade das suas
adaptações funcionais.

A perda das adaptações anaeróbias parece ser mais lenta. No que diz respeito às
enzimas chave do processo glicolítico, foram registadas diferenças mínimas da sua
actividade mesmo após perto de 3 meses de destreino. Isto não significa que o
desempenho não sofra quebras significativas, pois este depende de muitas outras
variáveis (Mujika & Padilla, 2000).

É provável que muitos atletas consigam manter o fundamental das suas adaptações
aeróbias durante um período longo de tempo apesar de uma redução significativa da
carga de treino. Para que isso aconteça, será conveniente manter alguma estabilidade na
intensidade dos exercícios, reduzindo-a não mais de 20%, preservar a frequência de
treinos semanais (não reduzir mais de 30%, ou seja, repousar 2 a 3 dias por semana em

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vez de um) e, deste modo, reduzir significativamente o volume, até 70-80% do que o
atleta vinha fazendo no período imediatamente anterior.

4. Heterocronismo

O heterocronismo manifesta-se pela diversidade da duração inerente ao processo de


evolução das diferentes componentes do desempenho, em função das transformações
ocorridas no organismo decorrentes da solicitação selectiva de órgãos e sistemas pelas
cargas de treino (Verkhoshansky, 2002).

Existem capacidades que necessitam de um tempo longo de estimulação para que ocorra
supercompensação, enquanto outras reagem num período de tempo relativamente curto.
Por exemplo, a resistência aeróbia exige, pelo menos, 20 a 40 dias de solicitação
sistemática para atingir valores elevados, enquanto algumas adaptações
neuromusculares, como a força rápida, podem sofrer acréscimos importantes num
período de tempo mais restrito.

Este fenómeno, representado pelos tempos diferenciados exigidos por cada capacidade
para que se atinjam níveis de adaptação importantes, é designado por heterocronismo
das funções biológicas.

O seu conhecimento, pelo menos nos seus traços gerais, é fundamental para uma
correcta programação do treino, principalmente ao nível da construção da semana de
treino (o microciclo), assim como para a distribuição das cargas de diferente natureza ao
longo da época competitiva, de modo a conseguir efeitos máximos e conjugados de
adaptações que terão que estar presentes nos momentos mais importantes em termos
competitivos, ou seja, nos chamados “picos de forma”.

Alguns exemplos que ilustram o heterocronismo das funções biológicas dizem respeito
ao tempo de compensação e restabelecimento de alguns processos metabólicos:

- A fosfocreatina, composto energético muscular de utilização imediata e que permite


a realização de trabalhos muito intensos e de curta duração, reconstitui-se no

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músculo parcialmente, mas numa percentagem elevada, até aos 30 minutos de


recuperação.

- O glicogénio muscular, substrato energético para todos os desempenhos de duração


superior a alguns décimos de segundo até uma duração de 1 hora, pode ver as suas
reservas corporais reconstituídas apenas 2 a 4 horas após o esforço, embora para
esforços de longa duração esse prazo possa prolongar-se até às 48 horas.

- O metabolismo das proteínas, ou seja, das componentes estruturais do músculo,


entre outros factores, necessita de um período de 36 a 48 horas para restabelecer um
equilíbrio médio.

O heterocronismo dos processos de recuperação e de supercompensação das várias


capacidades e funções fisiológicas surge também na velocidade com que as adaptações
se perdem com a interrupção ou a diminuição da carga de treino, temática já referida no
âmbito do princípio da reversibilidade.

Por outras palavras, a relação existente entre tempo de aquisição e tempo de regressão
varia de capacidade para capacidade. As aquisições técnicas são aquelas que parecem
ser mais estáveis, podendo permanecer para toda a vida, independentemente do nível
das capacidades físicas.

Por outro lado, pode-se considerar como uma regra geral que as capacidades mais
facilmente treináveis, ou seja, aquelas cuja evolução é mais rápida em resposta aos
estímulos de treino, são também as que se perdem e recuperam com maior
facilidade.

Neste contexto, podemos afirmar que:

- As cargas de grande volume e de pequena intensidade têm um efeito de treino mais


prolongado;

- As cargas de grande intensidade e de pequeno volume têm um efeito mais breve;

- As aquisições que levam mais tempo a ser obtidas, mantêm-se durante mais tempo;

- O decréscimo dos efeitos da adaptação da carga será tanto maior quanto menos
consolidados estiverem os níveis de adaptação.

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Modelo unifatorial do processo de treino


Dinâmica carga - recuperação e efeitos do treino

A consideração dos efeitos da aplicação de uma carga de treino não é isolável da


determinação do que ocorre durante o período subsequente ao termo da actividade,
assim como da duração do tempo caracterizável como de repouso entre fases de
estimulação ou da actividade desenvolvida entre estas. Na realidade, a variação da
capacidade de desempenho de um atleta em qualquer sector considerado depende não só
das cargas a que foi submetido mas também da duração e características da recuperação
que lhe é proporcionada.

Durante o exercício, prevalece a componente exergónica do metabolismo, com


libertação de energia para a produção de trabalho muscular, e reacções catabólicas
generalizadas, incluindo das proteínas estruturais. Na recuperação, obviamente,
predominam os processos endergónicos, consumidores de energia, de pendor anabólico,
tendendo à reposição das reservas de fosfagénio e compostos transformáveis em
substratos das reacções tendentes a regenerar o ATP na fibra muscular em estado de
produção de trabalho contráctil, à reconstituição das vias enzimáticas e à remodelação
tecidular (síntese proteica). Consoante as características do estímulo e do seu efeito
acumulado, os processos de recuperação podem vir associados a efeitos de adaptação,
em que a resposta do organismo vai melhorando, proporcionando ganhos nos vários
domínios de desempenho desportivo.

Interpretação da curva estímulo-fadiga-recuperação-supercompensação como


resposta aguda ao exercício

A aplicação de um estímulo de treino ou seja, um exercício de nível de carga


significativo ou um conjunto estruturado de exercícios com essas características, activa
mecanismos promotores da síntese proteica mas também origina um período de perda

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temporária e reversível da capacidade de trabalho do indivíduo -fadiga. A fadiga


acumula-se proporcionalmente ao nível de carga do exercício, expressos no seu volume
e intensidade. Importante será considerar que a fase pós-exercício estimula os factores
conducentes aos efeitos de recuperação-adaptação, ao longo de um período de tempo
definido, que levarão a uma fase, também ela de duração limitada e dependente das
características do estímulo aplicado, onde surge um acréscimo da capacidade de
desempenho do atleta, fenómeno designado por supercompensação.

Este fenómeno, enquanto resposta aguda a um estímulo de treino (exercício, conjunto


organizado de exercícios, sessão de treino) permite uma interpretação simples que
estipula a existência de uma sequência de fadiga, recuperação e supercompensação, a
partir do qual se poderia concluir que cada novo estímulo de treino (numa visão realista,
pretender-se-á aqui significar uma nova sessão de treino) deverá ser aplicado na fase de
supercompensação em relação ao estímulo (sessão) anterior, sistematizando os efeitos
ao longo de um determinado ciclo de preparação, devendo este processo ser
acompanhado por uma progressão adequada das cargas de treino, promovendo
continuamente efeito de sobrecarga (ver à frente “Princípios do Treino”).

A aplicação prática deste modelo coloca, no entanto, alguns problemas, decorrentes da


variedade e complexidade dos processos envolvidos na resposta ao exercício, onde se
inclui o já citado heterocronismo dos processos de reposição da homeostase celular e
orgânica.

Com efeito, dentre as principais funções de um período de recuperação (Viru, 1996), a


saber, 1. a normalização das funções (retorno ao nível pré-exercício); 2. a normalização
dos equilíbrios homeoestáticos; 3. a repleção dos recursos energéticos com eventual
supercompensação temporária e 4. a função reconstrutiva dos sistemas enzimáticos e
remodelação das estruturas celulares, as duas primeiras são processos rápidos, que
duram de poucos minutos até algumas horas e as duas últimas exigem períodos mais
longos, de 24 a 72 horas.

A complexidade dos processos biológicos adaptativos é dificilmente redutível a uma


esquematização determinística e linear deste género, que deixa de fora o principal: a
consideração da resposta individual do atleta e os seus tempos próprios de variação.

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Para além do mais, este modelo só foi demonstrado até ao momento em mecanismos
celulares bem delimitados, como são a depleção/restauração das reservas de glicogénio
após estimulação muscular repetida, a reposição das reservas de fosfocreatina em
determinadas condições e a síntese proteica nas estruturas contrácteis musculares.

Apesar do seu carácter sedutor, pela sua simplicidade e aparente facilidade de aplicação,
descontando a incerteza sempre presente nas condições concretas de aplicação,
dificilmente se poderá deduzir deste modelo regras concretas para a prescrição dos
exercícios do treino e o seu encadeamento ao longo dos ciclos de preparação.

Interpretação da curva estímulo-fadiga-recuperação-supercompensação como


resposta crónica ao exercício

Alguns autores, por exemplo, Verkhoshansky (2002) apresentam esta curva como
denotando processos de longo prazo, ou seja, ciclos de preparação - competição
(macrociclo) com a duração típica de 12 a 20 semanas, onde surgem fases de sobrecarga
acumulada, com a correspondente perda temporária da capacidade de desempenho do
atleta, seguidos de uma fase de recuperação e especialização dos exercícios de treino até
que, por fim, se atingirá um período de duração limitada (2 a 6 semanas) onde os
processos de supercompensação se manifestarão numa capacidade acrescida de
desempenho competitivo.

Esquemas deste género lançam para estratégias de periodização do treino que não
vamos desenvolver aqui, mas que, não sendo únicos (existem outros modelos de
periodização) baseiam-se num conjunto vasto de observações de ciclos de treino
considerados bem-sucedidos, ao longo das últimas 4 a 5 décadas e em numerosos
desportos. Por outro lado, existe alguma evidencia que sustenta a perspectiva de que
estes processos dependem de alterações de longo prazo (ciclos até 20 semanas) dos
sistemas hormonais reguladores dos processos anabólicos e catabólicos com incidência
no metabolismo e na remodelação estrutural do músculo esquelético, alterações nos
subtipos das unidades motoras e nas condições de estimulação nervosa, remodelação
cardíaca e regulação do sistema cardiovascular no seu conjunto, ou o processo mais

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metodológico de transferir as adaptações orgânicas para as situações concretas da


competição, ou seja, associando capacidades físicas com desempenho técnico e táctico
(Verkhoshansky, 2002; Viru, 1996).

Modelo bifatorial do processo de treino

Mais recentemente, perante, por um lado, a inoperância do modelo da


supercompensação para dar conta dos fenómenos em presença, numa perspectiva aguda,
e a aplicação restrita a certos domínios do desempenho desportivo e a certos tipos de
atletas, numa perspectiva crónica ou de longo prazo, por outro lado, surgiu um novo
modelo geral que visa igualmente lançar as bases para uma modelação do processo de
treino através de quantificação da relação dose-resposta.

No modelo bifatorial ou modelo Treino-Fadiga (fitness-fatigue) a capacidade de


desempenho de um atleta (estado de preparação) é definido como a adição de dois
efeitos provenientes da aplicação dos exercícios de treino: o estado de treino e a fadiga.
O primeiro, naturalmente, provocando alterações consideradas positivas, o segundo
resultante dos factores negativos que perturbam a capacidade de desempenho do atleta.

Ao contrário do que acontece com o modelo unifatorial, onde o processo de


supercompensação surge numa relação de causa-efeito entre estes dois factores, o
modelo bifatorial propõe que estes dois factores têm efeitos concomitantes e opostos,
mas com velocidades de actuação ao longo do tempo diferentes.

A curva de regresso dos valores de fadiga ao nível inicial é mais pronunciada, ou seja, o
processo decorre num tempo mais curto que os processos de melhoria do estado de
treino induzidos pelo exercício ou conjunto estruturado de exercícios, numa relação
próxima de 1 : 3. Esta assimetria temporal explica os efeitos de ganho decorrentes das
sessões de treino, sem ter que se recorrer à noção vaga de supercompensação,
permitindo, de igual modo, explicar como um processo de aplicação contínua e
progressiva de cargas conduz a melhorias estáveis da capacidade de desempenho do
atleta.

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Os defensores deste modelo não negam a existência de fenómenos de


supercompensação localizados mas consideram ser este conceito pouco operacional
para ser ponto de partida de uma concepção unitária conducente à organização racional
do processo de treino.

Esta visão alimenta estratégias de organização do treino e de periodização


profundamente diferentes do modelo unifatorial. O estado de treino pode ser induzido
através de estratégias de optimização dos estímulos de treino, enquanto,
simultaneamente, se tentará reduzir, em todas as circunstâncias, o tempo de prevalência
e o grau de fadiga atingido.

Naturalmente que em situações reais de treino, quer o factor preparação, quer o factor
fadiga tem subcomponentes específicas – na realidade, o desempenho competitivo
depende, em todos os casos, de um conjunto variado de vectores de intervenção
condicionantes. Assim, haverá diferenças na longevidade de tipos específicos de
preparação ou fadiga induzida pelo exercício, dependendo da sua origem em termos de
áreas de solicitação de base metabólica (aeróbias - anaeróbias), neuromuscular
(hipertrofia - adaptações nervosas) e motora (grupos musculares, estrutura do
movimento, etc.). Assim se explica por que razão determinadas variáveis fisiológicas e
de desempenho respondem de modo diferente às variações sofridas pela carga ao longo
dos ciclos de treino.

Modelo bifatorial: Modelação da carga e predição do


desempenho

O modelo bifatorial do processo de treino foi concebido, igualmente, como um


pressuposto para a modelação matemática da relação dose-resposta no processo de
treino desportivo, tornada possível pela quantificação da carga de treino através da
geração de “unidades arbitrárias de carga”.

Modelação matemática

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No âmbito do esforço desenvolvido ao longo das últimas décadas, por inúmeros


investigadores e teóricos do treino, muitos deles igualmente envolvidos na prática de
preparação e orientação de atletas e equipas, para compreender melhor e optimizar a
capacidade de desempenho competitivo, desenvolveram-se modelos matemáticos
visando a possibilidade de predição da variação deste último, dada a distribuição
semanal da carga de treino geradora das curvas temporais das variáveis fadiga e estado
de treino (“fitness”)
O estudo de Banister & Calvert (1975) foi o primeiro trabalho publicado sobre a
tentativa de estabelecer uma relação matemática entre o processo de treino e a
capacidade de desempenho. Banister aperfeiçoou em trabalhos posteriores esta
modelação, com uma metodologia que ficou conhecida com o seu nome. Nesta breve
revisão deste tema, faremos apenas referência aos métodos de modelação desenvolvidos
por este autor, embora mais recentemente tenham surgido métodos alternativos de
validade semelhante e, nalguns aspectos, como a questão da acumulação dos efeitos das
cargas de treino num período condensado de tempo, claramente superiores.
De acordo com o modelo de Banister, na sequência dos princípios do já referido modelo
bifatorial do processo de treino, a capacidade de desempenho de um atleta, em qualquer
altura do processo de treino, poderia ser estimada através de um sistema constituído por
um input (cargas de treino) e um output (capacidade de desempenho), relacionados por
uma lei matemática designada por função de transferência.
Assume-se que a dinâmica desse desempenho se comportava como um sistema de 1ª
ordem, ou seja, um sistema cujo comportamento varia ao longo do tempo e que pode ser
modelado usando equações diferenciais ordinárias, incorporando parâmetros que são
constantes e que caracterizam a resposta individual de cada atleta.
Estes parâmetros do modelo são ajustados a cada atleta através da sua resposta a um
determinado programa de treino. O conhecimento destes parâmetros permite então
modelar a capacidade de desempenho durante um período específico de preparação.

Neste modelo, a capacidade de desempenho corresponderia então à diferença entre os


efeitos positivos do treino, atribuídos à adaptação, e os efeitos negativos atribuídos à
fadiga, isto é,

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Fadiga e Periodização no Treino Desportivo

t 1 t 1
pˆ  t   p0  k1 w  i  e  t i  1  k 2  w  i  e  t i   2
i 1 i 1

em que p̂  t  representa a performance no instante t e p0 a performance inicial, k1 e

k2 são duas constantes multiplicativas para os factores fitness e fadiga,

respectivamente, w  t  é uma medida da quantidade e intensidade do treino realizado

no instante t ,  1 representa a constante de decaimento relativa à adaptação e  2 é a


constante de decaimento relativa à fadiga.

A equação anterior pode ainda ser escrita na forma:

p̂  t   p0  g  t   h  t 

em que

t 1 t 1
g  t   k1 w  i  e  t i  1 e h  t   k 2  w  i  e  t i   2
i 1 i 1

Aplicações

A modelação matemática enquadrada no modelo bifatorial procura, deste modo, integrar


os princípios do treino em estruturas coerentes que podem ser usadas como ponto de
partida para uma avaliação crítica do desenrolar do processo e dos resultados
produzidos. Podem também ser usados como guias para a individualização de um
programa de treino, condição necessária para a sua optimização, seja em que
modalidade desportiva for, uma vez que os dados recolhidos e as respostas do modelo
são específicas para o indivíduo.
Os modelos matemáticos tornam-se, assim, uma ferramenta útil porque são uma forma
eficiente e efectiva de expressar e avaliar hipóteses sobre sistemas biológicos
complexos.

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Fadiga e Periodização no Treino Desportivo

Vários estudos evidenciaram que o desenvolvimento deste tipo de modelos matemáticos


pode melhorar a compreensão da dimensão temporal dos efeitos do treino - distribuição
dos tipos de carga no microciclo, volume relativo das várias zonas de intensidade por
microciclo, duração das fases de sobrecarga e recuperação, tempo necessário para as
transferências dos diversos tipos de estimulação.
Outra aplicação possível deste tipo de modelos prende-se com a possibilidade de
simular diferentes alternativas no processo de treino e estudar o impacto provável dessas
variações na capacidade de desempenho.
A utilização deste tipo de modelos apresenta diversos desafios operacionais e limitações
científicas enquanto ferramenta de optimização do processo de treino. O facto de
requerer e recolha de todas as cargas de treino e de várias medidas de desempenho
durante os períodos estudados implica grande diligencia quer por parte dos atletas, quer
por parte dos treinadores.
No entanto, nos estudos em que a capacidade preditiva do modelo foi, realmente,
testada, os resultados foram bastante positivos (Clarke & Skiba, 2013). Assim, estes
autores consideram o modelo de grande aplicação prática, tendo sido utilizado no
desenho de programas de treino de vários atletas de elite mundial, incluindo um
recordista do mundo.

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Fadiga e Periodização no Treino Desportivo

Fadiga e sobressolicitação no Treino Desportivo

Introdução

O desempenho é o critério por excelência para a caracterização de um estado que se


considera ser de falha de adaptação, produto de desequilíbrios vários, de raiz
psicossomática, neuro-endócrina, metabólica e imunitária. Factores de stress alheios ao

processo de treino podem ter uma influência considerável no desenvolvimento do


sobretreino. Apesar da vasta literatura científica que nas últimas décadas tem sido
dedicada ao sobretreino, a descrição pormenorizada de sinais e sintomas até agora
realizada não é ainda suficiente para a definição de um quadro diagnóstico padrão para a

sua deteção precoce.

Existe uma continuidade entre a sobressolicitação, correspondente a um nível de fadiga


facilmente reversível e de dominante local e a síndrome do sobretreino, onde se
reconhecem distúrbios profundos na regulação neuroendócrina e no sistema imunitário,
afectando os eixos hipotalâmico-hipofisário-suprarrenal e hipotalâmico-
hipofisáriogonadal.

As fases de sobressolicitação são habituais no processo de treino de atletas de alto


rendimento e, se adequadamente geridas, podem proporcionar níveis máximos de
optimização das aquisições e adaptações de treino.

Distinção entre sobressolicitação e sobretreino

O sobretreino (overtraining) é o resultado de uma discrepância reincidente entre stress e


recuperação ao longo do processo de treino. O termo stress engloba aqui não só os

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factores de pressão sobre o atleta decorrentes do treino e das competições, mas também
os aspectos psicológicos e sociais extradesportivos (Lehmann et al, 1993).

Tem-se designado por sobressolicitação (overreaching) uma situação de fadiga


permanente mas de duração limitada, de alguns dias a duas semanas, associada
provavelmente com níveis insuficientes de recuperação muscular, depleção local de
glicogénio, implica uma redução da capacidade de desempenho do atleta, mesmo em
treino e alterações visíveis no comportamento do atleta. É reversível após um curto
período de recuperação ativa, de 1 a 2 semanas - redução da carga de treino e aumento
dos procedimentos especiais de regeneração neuromuscular e metabólica - podendo
emergir desta alternância um estado de supercompensação, ou seja, um “pico de forma”
tendente a proporcionar melhoria significativa no desempenho competitivo.

Muitos autores defendem que, presentemente, não é possível distinguir fadiga aguda e
decréscimo pontual de desempenho provocado por uma sessão de treino, dos estados de
sobressolicitação ou de sobretreino. Isto deve-se, em parte, à ausência de instrumentos
de diagnóstico comprovados, à grande variabilidade inter e intra-individual e à escassez
de estudos adequadamente controlados. Não existe, hoje em dia, qualquer evidência da
existência de um processo de sobressolicitação antecedendo a instalação da síndroma do
sobretreino ou de que os sintomas deste sejam sempre mais severos do que os da
sobressolicitação.

Reconhecendo esta dificuldade, e partindo do pressuposto que o indicador crítico para


qualquer tipo de atleta é a redução na capacidade de desempenho em treino ou na
competição, um grupo de autores britânicos defenderam uma nova designação para os
estados de fadiga elevada em atletas: “unexplained underperformance syndrome", ou
seja, síndroma do decréscimo inexplicado de desempenho. Este é, assim, definido como
um défice inexplicado e persistente no desempenho, reconhecido simultaneamente pelo
atleta e pelo seu treinador, que permanece após 2 semanas de recuperação relativa.

Apesar desta perspectiva crítica se afigurar pertinente, ancorada na ausência de


evidência para uma visão de continuidade faseada do processo do sobretreino, a verdade
é que autores conceituados continuam a defender esta última. Com novos contornos
explicativos, continua a vigorar a ideia de que nas primeiras fases da instalação de

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Fadiga e Periodização no Treino Desportivo

processos de fadiga crónicos, incluindo aqui o que definimos como sobressolicitação,


predominam os mecanismos de resposta periféricos e que, com o avançar do tempo,
permanecendo o organismo do atleta sujeito a níveis elevados de stress e/ou sem a
adequada recuperação e regeneração, entrarão em acção mecanismos de resposta
central.

Sobressolicitação e periodização do treino

Pode-se considerar que a aplicação de doses importantes de sobrecarga, implicando a


entrada num estado de sobressolicitação é um procedimento normal e necessário no
processo de treino. A acumulação de stress resultante do treino e de outros factores
exteriores ao treino, que resulta num decréscimo, a curto prazo, da capacidade de
desempenho, pode surgir associado a sintomas fisiológicos ou psicológicos de
sobretreino, sem perder o seu carácter de facilmente reversível. O problema surge
quando este estado de fadiga de curta duração se transforma um estado de fadiga de
longa duração, ou seja, surge como o desencadeador da síndroma do sobretreino.

Este agravamento “em cascata” que levaria da sobressolicitação ao sobretreino quando


o desequilíbrio entre cargas de treino e recuperação se prolonga ou quando o efeito dos
stressors desportivos ou extradesportivos, sociais, emocionais ou físicos se acentua para
além do limite do acomodável pelo indivíduo, se bem que sedutor enquanto modelo
explicativo – fala-se do “continuum do sobretreino” está longe de ser consensual entre
os investigadores, por falta de evidência experimental.

Tem sido proposto um modelo de acompanhamento dos atletas onde o propósito da


monitorização do treino e da recuperação é proporcionar que o atleta de elite alcance um
equilíbrio na zona onde o treino assegura acréscimos óptimos de desempenho: o limiar
de adaptação. Este limiar de adaptação está directamente relacionado com três variáveis
– recuperação, stress e capacidade de desempenho – e deve ser identificado como uma
parte fundamental do controlo do treino influenciando decisivamente a periodização das
cargas e a estrutura do calendário competitivo.

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A avaliação da eficácia do processo de treino deve, assim, incluir as características


individuais do atleta, o processo de recuperação e os stressors psicossociais.

Naturalmente que a individualização do treino não é apenas um princípio abstracto mas


uma realidade do dia-a-dia do treino desportivo - um dado estímulo de treino,
distribuído ao longo de vários dias ou semanas, assim como um dado período de
competições, terá um impacto, ao longo do tempo, diferente de atleta para atleta.

Qualquer modelo do processo “estímulo – adaptação” no quadro do treino desportivo


terá, assim, que levar estes vários aspectos em devida consideração. Nunca é demais
insistir que muitas vezes são stressors exteriores ao processo de treino que actuam como
catalizadores na criação de dinâmicas negativas conducentes à incapacidade do atleta
em lidar com cargas de treino que, pouco tempo antes, estavam dentro da zona de
equílibrio ou de adaptação óptimos.

Fadiga e periodização do treino: a importância do microciclo

O propósito da monitorização do treino e da recuperação é proporcionar um equilíbrio


na zona onde o treino assegura acréscimos óptimos de desempenho: o limiar de
adaptação.

Este limiar de adaptação está directamente relacionado com três variáveis –


recuperação, stress e capacidade de desempenho – e deve ser identificado como uma
parte fundamental do controlo do treino influenciando decisivamente a periodização das
cargas e a estrutura do calendário competitivo.

Considerado como a estrutura base da periodização, o microciclo surge com duas


funções fundamentais:

1. Distribuir os conteúdos, referentes aos factores de desempenho a trabalhar, pelas


sessões de treino que o compõem, em função dos objectivos correntes, da fase
do macrociclo em que se está e da proximidade das competições.
2. Promover uma gestão adequada da relação fadiga – recuperação ao longo do
período semanal em causa e como resultado global deste (efeito acumulativo).

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Indicadores precoces de sobressolicitação

1. Desempenho

Como já foi dito anteriormente, a redução no desempenho é o principal sinal a analizar


em fases de fadiga pronunciada devido a elevado nível das cargas de treino ou a uma
frequência muito elevada de situações de competição.

Um dos procedimentos aconselháveis será, obviamente, o do treinador manter registos


precisos sobre o desempenho em treino e na competição. A utilização periódica de
testes de avaliação das qualidades físicas ou de teste integrados, com elementos técnicos
e tácticos associados a solicitações metabólicas e neuromusculares elevadas, tem a
vantagem de detectar com avanço, desde que os procedimentos selecionados tenham a
sensibilidade adequada, pequenas oscilações na capacidade de desempenho dos atletas
que poderão suscitar uma alteração no plano de treino.

O treinador deverá estar disponível para proceder a um ajustamento diário da carga de


treino (volume ou intensidade) ou para introduzir um dia de repouso completo, quando
se verifica um decréscimo acentuado da capacidade de desempenho do atleta ou este
surge com queixas de fadiga excessiva. Os sintomas de fadiga excessiva devem ser de
imediato controlados através do aumento do tempo de recuperação ou mesmo com a
aplicação de uma fase de repouso completo. A redução na carga de treino é muitas
vezes suficiente para ultrapassar fases de sobressolicitação.

2. Questionários de fadiga

Uma deterioração dos estados de humor e a existência de queixas por parte dos atletas
são indicadores precoces e sensíveis de sobressolicitação.

Os auto-relatórios de bem-estar podem constituir um meio eficiente de controlo quer da


fadiga acumulada, quer da recuperação. Por outro lado, os níveis de qualidade de sono e
fadiga subjectiva a meio da época precedem de várias semanas, em muitos casos, o
surgimento da fadiga em treino e a deterioração do desempenho.

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Deste modo, será importante o treinador aplicar regularmente questionários psicológicos


para avaliar o estado emocional do atleta.

2.1 POMS

O POMS (Profile of Mood States) é de uso comum como instrumento de identificação


de atletas que mostrem sinais de perturbação provocada por treino intenso (Raglin &
Morgan, 1994; Berglund & Safstrom, 1994). No entanto, outros autores constataram
que alterações nos valores de POMS têm sido igualmente encontradas em atletas que
estão sujeitos a elevado stress de treino mas que não apresentam sinais de sobretreino
(Morgan et al, 1988; O’Conner et al, 1996). Desta forma, Halson & Jeukendrup (2004)
concluem que os estados de humor podem, de facto, ser um bom indicador de
sobressolicitação, mas que se torna necessário combinar os valores do POMS com a
avaliação do desempenho.

O POMS pretende avaliar como é que os indivíduos percepcionam os seus estados de


humor, sendo este questionário composto por vários itens que no conjunto
correspondem a uma descrição de várias emoções.

A versão reduzida e validade para a população portuguesa (Viana, 2001) é constituída


por vinte e dois itens estando estes distribuídos por 6 (seis) sub-escalas ou dimensões:
Tensão, Depressão, Irritação, Fadiga, Confusão e Vigor. É usada uma escala de Likert
de 5 pontos, variando de “Nada” (cotado como 0) até “Extremamente” (cotado como 4).

O treino intenso realizado por atletas em desportos de resistência, como no caso do


atletismo e da natação, tem sido constantemente associado ao aumento de distúrbios do
estado de humor. Uma alteração negativa de disposição/estado tem sido associada como
uma manifestação de recuperação insuficiente.

Estudos no âmbito do seguimento do processo de treino em diversas modalidades


sugerem que os factores fadiga, vigor e depressão monitorizados durante períodos em
que existe uma elevada intensidade da carga de treino poderão prevenir a entrada dos
atletas em estados de fadiga excessiva. A utilização do POMS, com carácter preventivo,
na deteção da fadiga, é actualmente aconselhada por diversos psicólogos, baseada na
constatação de que a deterioração do desempenho segue de perto a instalação de estados
de saturação psicológica.

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2.2 RestQ

Para além do POMS e das suas adaptações ou simplificações visando a aplicação a


atletas de competição, surgiram nos últimos anos diversos inquéritos de fadiga /
recuperação para dar conta das variações comportamentais decorrentes das fases do
processo de treino e, em particular, possibilitar a deteção precoce de um estado de
sobressolicitação.

Destes destaca-se o Recovery Stress Questionnaire for Athletes (RESTQ-Sport), que


pretende medir o estado de estresse/recuperação dos atletas. O RESTQ-Sport foi
desenvolvido em dois módulos: a área do estresse e da recuperação. A avaliação da
dimensão da recuperação envolve a análise de comportamentos que afetam as
necessidades fisiológicas, psicológicas, comportamentais, sociais e ambientais
subsequentes a uma carga de treino.

Estes definiram recuperação como um processo intra e interindividual de vários níveis


(psicológico, fisiológico e social), que ocorre ao longo do tempo com o objetivo de
restabelecer a capacidade funcional. Para que os atletas consigam manter ou
desenvolver os factores do desempenho, apesar das elevadas cargas de treino, é
necessário que ocorra em tempo útil uma recuperação psicofisiológica, cujo objetivo
principal é eliminar a fadiga e restaurar a vitalidade.

Este teste foi traduzido e validado para atletas de várias nacionalidades, uma vez que a
questão linguística é, aqui, fundamental.

De referenciar ainda a validação do módulo de recuperação do RESTQ-Sport para a


língua portuguesa (Leite et al, 2013) - Questionário de Estresse e Recuperação para
Atletas – apresentando indicadores de sensibilidade, fidelidade e validade satisfatórios e
superiores à escala inicial da recuperação, que, por ser mais curta, garante uma maior
praticabilidade para utilizações periódicas. A escala proveniente deste questionário
revelou-se, assim, um instrumento adequado para estudar a percepção subjectiva de
recuperação.

Indicadores tardios de sobressolicitação – risco de sobretreino

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1. Variabilidade da frequência cardíaca

Os valores de frequência cardíaca em repouso são habitualmente utilizados como


referência da condição funcional do organismo, assumindo-se que níveis elevados de
adaptações cardivasculares ao exercício aeróbio conduzem a uma influência vagal
crónica indutora de bradicardia de repouso. É aceite, hoje em dia, que a estimulação
vagal apresenta um efeito protetor sobre a vulnerabilidade elétrica ventricular, estando
uma baixa atividade parassimpática correlacionada com o desenvolvimento de arritmias
letais de foro clínico.

A variabilidade da frequência cardíaca (VFC) de repouso, parâmetro proveniente da


quantificação da duração do intervalo R-R em ciclos cardíacos sucessivos, por outro
lado, é um parâmetro de avaliação da funcionalidade neurocardíaca, já que a modulação
do sistema nervoso autónomo, através dos ramos simpático e parassimpático que
actuam sobre o músculo cardíaco, influencia de forma direta e diferencial as suas
oscilações.

A determinação da VFC produz diversos índices no domínio temporal e no domínio das


frequências. O primeiro utiliza valores extraídos diretamente das variações temporais
dos intervalos R-R em milissegundos ou em percentagem de medidas absolutas de
intervalos R-R acumulados acima de um valor de referência.

O outro tipo de análise, no domínio das frequências, define e separa, por análise
espectral, as diferentes intensidades de sinais a diferentes frequências, observadas nas
variações do sinal eletrocardiográfico.

Normalmente, maior variação e valores mais elevados dos intervalos RR correspondem


a melhores indices de capacidade aeróbia já que se associam a FC mais baixas. Ou seja,
os índices do domínio temporal revelam que a VFC tende a diminuir com o aumento da
idade e a mulher tende a exibir uma VFC menor comparativamente ao homem. O treino
de resistência aumenta a VFC, tendo-se verificado que atletas treinados quando
comparados com um grupo de sedentários de género e idade semelhante, apresentavam
valores significativamente mais elevados, nomeadamente na média dos intervalos RR,
na percentagem de intervalos que difeririam mais de 50ms (pNN50) e na raiz quadrada
das diferenças entre a média dos intervalos RR (RMSSD).

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O interesse da utilização da VFC na detecção de estados de fadiga elevada reside, no


entanto, na análise no domínio das frequências

A distinção entre sinais de baixa e alta-frequência associada à acção do simpático e do


parassimpático, respectivamente, justifica-se pelo facto de a frequência de impulsos que
emitem sobre o nódulo SA apresentar essa característica.

Sabe-se que a região de potência das altas-frequências (entre 0,15Hz e 0,50Hz)


corresponde à frequência ventilatória e reflecte a mediação do parassimpático e que a
região de potência das baixas frequências (entre 0,04Hz e 0,15Hz) é mediada
conjuntamente pelos sistemas simpático e parassimpático.

A razão entre as potências das baixas e das altas frequências (LF/HF) é considerada
como um indicador importante da influência relativa de cada um dos sistemas,
correspondendo valores inferiores a uma maior influência simpática, que pode ser
proveniente de estados de fadiga em vias de se tornarem crónicos. Valores elevados
deste quociente, por outro lado, em atletas bem treinados e em fase competitiva, pode
ser sinal de boa recuperação entre cargas e nível de forma elevado.

2. Quociente testosterona/cortisol plasmático ou salivar

O quociente testosterona/cortisol (T/C), medido no plasma ou na saliva, é considerado


um bom indicador do equilíbrio entre estados anabólicos e catabólicos num atleta
podendo, deste modo, ajudar na deteção de situações de sobressolicitação avançada,
com riscos de se entrar em sobretreino.

Não sendo um parâmetro aplicável ao género feminino, devido às baixas taxas de


concentração de testosterona circulante, o que dificulta o doseamento e impede a
deteção de pequenas variações, no sexo masculino diversos estudos confirmaram a
relação de um T/C com fases de recuperação insuficiente.

Em períodos de concentração de grandes volumes de carga, o decréscimo deste índice


pode oscilar entre 5 e 50%, acontecendo o contrário nos períodos de menor solicitação
de treino. Descidas do T/C de cerca de 30% em relação ao valor basal, são frequentes e

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entendidas como sendo um indicador de existência de processos de recuperação


incompleta mas não de sobretreino.

Parece existir uma correlação significativa entre a melhoria do desempenho e a elevação


do T/C, assim como uma relação inversa entre o volume de treino e o valor deste
quociente.

No entanto para o propósito de monitorização do sobretreino, este parâmetro em


exclusivo será insuficiente já que a testosterona não é a única hormona com um papel
importante no processo anabólico.

A necessidade de uma abordagem multi-disciplinar para o controlo da


sobressolicitação e prevenção do sobretreino

Meeusen et al (2013) apresentam um conjunto de indicações com vista à prevenção e


deteção precoce da sobressolicitação e sobretreino, dirigidas a atletas e treinadores, das
quais destacamos algumas:

 Manter registos precisos sobre o desempenho em treino e na competição. Estar


disponível para proceder a um ajustamento diário da carga de treino (volume ou
intensidade) ou para introduzir um dia de repouso completo, quando se verifica
um decréscimo acentuado da capacidade de desempenho do atleta ou este surge
com queixas de fadiga excessiva.
 Evitar a monotonia nas sessões de treino.
 Individualizar sempre as cargas de treino.
 Intervir encorajando as boas práticas e corrigindo hábitos, no âmbito da nutrição,
hidratação e horas e qualidade do sono.

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 Ter consciência de que factores variados, como a perda de sono ou o sono


irregular (caso do “jet lag”, por exemplo), a exposição a factores do
envolvimento geradores de ansiedade ou insegurança, alterações de residência,
dificuldades de relacionamento interpessoal ou familiar, podem ter um efeito
aditivo ao stress do treino e da competição.
 Os sintomas de fadiga excessiva devem ser de imediato controlados através do
aumento do tempo de recuperação ou mesmo com a aplicação de uma fase de
repouso completo. A redução na carga de treino é muitas vezes suficiente para
ultrapassar fases de sobressolicitação.
o regresso ao treino após lesão ou doença deve ser considerado
individualmente, com base nos sinais e sintomas apresentados pelo
atleta, uma vez que não existem indicadores universais definitivos.
 Incluir regularmente questionários psicológicos para avaliar o estado emocional
do atleta.
 Tomar em atenção a ocorrência de infecções das vias respiratórias ou de outra
origem; em qualquer destes casos, o atleta deve ser aconselhado a suspender o
treino ou a sua intensidade até que a recuperação seja efectiva.
 Em casos de decréscimo de desempenho deve ser verificada a existência de
problemas de saúde, antes de avançar para a hipótese “sobretreino”.

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