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SAID FILHO, Fernando Fortes.

A TEORIA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES NO


BRASIL: POR UMA NECESSÁRIA (RE)LEITURA A PARTIR DO PODER. Revista
Jurídica Cesumar - Mestrado, v. 20, n. 2, p. 213-225, maio/agosto 2020

A separação dos poderes é uma maneira de governar que tem sua essência no princípio
da distribuição das funções desempenhadas pelo Estado (atualmente identificadas
como legislativa, executiva e judiciária) a órgãos distintos, no intuito de que o ente
estatal, apesar de manter legitimamente o monopólio do exercício do poder, atue de
forma a dele não abusar. Trata-se de um mecanismo de contenção ou controle da
autoridade soberana que parte da premissa dos efeitos nefastos que advém da sua
concentração nas mãos de uma única pessoa ou centro de decisão.

Não é preciso muito esforço para perceber que a consagração da separação dos poderes
teve receptividade na doutrina constitucional do liberalismo em razão de representar
um instrumento de garantia das liberdades individuais pela limitação da autoridade
estatal.

Na verdade, é com o filósofo francês que a separação dos poderes alcança a sua
concepção mais clássica, assumindo tamanha relevância que, apesar de suas adaptações
ao longo dos séculos, praticamente se tornou elemento indissociável do processo de
constitucionalização e desenvolvimento do Estado de Direito.

O seu raciocínio partia da premissa de que a liberdade política do cidadão se


consubstanciava na tranquilidade de espírito que provém da segurança, sendo
impossível alcançar essa plenitude caso houvesse a concentração de atribuições nas
mãos de um mesmo homem ou corpo de principais.

Com isso, Montesquieu identifica a existência de três poderes inerentes ao Estado,


defendendo que cada um fosse competente para desempenhar funções específicas e
que o sistema de distribuição das competências assegurasse a harmonia entre eles:
poder legislativo, que corresponderia à atribuição do príncipe ou magistrado fazer leis
por certo tempo ou para sempre, corrigir ou ab-rogar as que estão feitas; poder
executivo das coisas que dependem do direito das gentes (denominado de Poder
Executivo do Estado), pelo qual faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas,
estabelece a segurança e previne invasões; poder executivo das coisas que dependem
do direito civil (denominado de poder de julgar), através do qual pune os crimes ou julga
as querelas dos indivíduos.

Além da já tradicional distinção entre as funções dos poderes legislativo e executivo,


presente nas obras de diversos outros doutrinadores, o barão inova acrescentando a
existência de uma função judicial a ser exercida de forma autônoma, por órgão
independente e com competência específica para tanto, apresentando ao mundo a sua
teoria que ficaria conhecida pela tripartição dos poderes.

O pensamento de Montesquieu se situa no Constitucionalismo Moderno. A favor desta


identificação existe um precedente assaz respeitável. La déclaration des droits de
1'homme et du citoyen de 1789, que tão grande influência havia de ter nas mudanças
constitucionais da Europa no século XIX, preceituava no artigo 16:

"Toda sociedade, em que não for assegurada a garantia dos direitos e determinada a
separação dos poderes, não tem Constituição". De acordo com tal definição, ainda hoje
é habitual, na ciência jurídica como política, identificar o Constitucionalismo com a
separação dos poderes, com o sistema de freios e contrapesos e com a balança dos
diversos órgãos.

Tome-se, por exemplo, a obra já clássica de Carl Friedrich, Constitutional government


and democracy, onde se poderá ler: "O absolutismo, em qualquer das suas formas,
prevê a concentração do exercício do poder; o Constitucionalismo, pelo contrário, prevê
que esse exercício seja partilhado".

Diz, ainda, mais em pormenor: "Com a divisão do poder, o Constitucionalismo garante


um sistema eficaz de freios à ação do Governo. Para estudá-lo, é necessário examinar
os métodos e técnicas que permitem estabelecer e manter estes freios (a fim de
garantir) o fair-play e tornar assim o Governo responsável". O Constitucionalismo
coincide, deste modo, para muitos com a separação dos poderes.

Mais que a teoria da clara distinção das funções do Estado, Montesquieu apresenta a
teoria de um Governo balançado, em que os diversos órgãos, num sistema de pesos e
contrapesos, realizam um equilíbrio constitucional capaz de obstar à consolidação de
um poder absoluto.

Poderíamos agora legitimamente perguntar o que é que ficou da fórmula de


Montesquieu após o advento da democracia, que vê emanar todo o poder do povo.

Menoscabada a identificação entre órgão do Estado e classe social, ficou apenas o


conceito do equilíbrio constitucional, que impõe modos diversos e normas complexas à
manifestação da vontade da maioria. Mas simples normas só podem frear, não limitar
efetivamente tal vontade.

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