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Objetivos da aula:

Identificar experiências espirituais que contribuam com o projeto de vida.

Na primeira unidade, quando discutimos diversas experiências de caráter


pessoal, nosso objetivo era fazer uma reflexão sobre o impacto de certas
escolhas e investigar a possibilidade de um vínculo entre elas e a nossa proposta
de um itinerário reflexivo e meditativo. Neste momento, nosso objetivo será, em
alguma medida, pensar no caráter espiritual dessas lembranças, quer dizer,
pensar para além do concreto, pensar no seu conteúdo significativo à luz daquilo
que até aqui foi discutido. O que procuramos, nessas lembranças, é o seu
significado para o propósito de vida. O propósito de vida também pode ser
entendido como um percurso existencial a ser traçado, na medida do possível, e
percorrido dentro das possibilidades de cada um. Naturalmente, isso deve ser
feito, agora, tendo em vista o que foi feito até aqui. Poderíamos nos orientar pela
seguinte pergunta: é possível ressignificar algumas dessas experiências a partir
das discussões feitas até o momento? Esse é, digamos, o olhar para o passado.
Ele dá uma explicação do presente e permite que possamos compreender de
maneira diferente as possibilidades futuras.

O sentido dessa pergunta precisa ser mais bem elucidado. Nossa suposição é a
de que alguns eventos de nosso passado possam ter perdido seu caráter de
aleatoriedade, sendo, então, compreendidos agora de outras formas. Talvez
possamos vê-los como se encaixando em um padrão, um padrão de escolhas,
um padrão de interesses, um padrão de crenças ou convicções. Se percebemos
aí um padrão, então estamos conseguindo ver a nós mesmos em perspectiva e
isso em grande parte só é possível na medida em que transcendemos os limites
em que anteriormente compreendíamos o mundo e os limites dentro dos quais
nos relacionávamos com outras pessoas.

Muitas vezes isso acontece devido ao fato de termos passado por novas
experiências ou termos encontrado a possibilidade de pensar de maneira
diferente a respeito das mesmas coisas. Isso nos faz pensar de outra maneira
sobre algo que aconteceu conosco. Alguém que, por exemplo, dedicou-se a
algum trabalho ou tarefa nos quais muitas dificuldades foram enfrentadas e, ao
final, não conseguiu alcançar os objetivos inicialmente propostos poderá
reavaliar eventos de seu próprio passado, sobretudo, aqueles que possuem
algum grau de semelhança, mas com relação aos quais seu comportamento foi
diferente. Pode ser que, naquela situação, a pessoa tenha desistido, por uma
razão ou outra, de tentar superar as dificuldades ou ponderou que as dificuldades
não valiam o esforço. Essa pessoa poderá, ao refletir sobre isso, imaginar as
consequências positivas de ter perseverado e imaginar-se hoje em uma situação
distinta. Podemos, por exemplo, achar que éramos muito dedicados aos estudos
antes de entrarmos na faculdade. Tínhamos as melhores notas da turma e isso
era interpretado como um indício de nossa inteligência, dedicação e esforço. No
entanto, podemos acabar nos dando conta de que, na verdade, nossos colegas,
por exemplo, precisavam realizar outras tarefas para além daquelas da escola,
ou que a escola era muito fraca. Em certa altura percebemos que aquela
interpretação era equivocada, pois, na verdade, o esforço exigido era mínimo.

Naturalmente, o contrário também é possível, podemos avaliar de forma distinta


uma experiência na qual a desistência seria mais adequada. Não é possível fazer
esse processo sem que alguma coisa em nós tenha se modificado. Ao mesmo
tempo, percebemos que nossa condição atual é a de alguém capaz de avaliar
com mais cuidado e objetividade as escolhas à disposição e as possíveis
consequências desejáveis ou não vinculadas a elas.
Na medida em que nós, enquanto indivíduos, passamos por transformações,
somos levados a compreender o nosso passado também de maneira diferente.
Por exemplo, se me dou conta de determinado padrão de comportamento, isso
talvez me permita, mediante uma análise retrospectiva, compreender muitos
outros eventos como seguindo esse padrão. A partir disso, poderei, então, fazer
um esforço que, se bem-sucedido, pode minimizar aquilo que Freud, no texto
Recordar, repetir e elaborar denominava “compulsão de repetição” (p. 201).
Nossa tradição encontra na palavra “sabedoria” a designação daquilo que
guardamos enquanto compreensão do significado dessas experiências, na
medida em que elas produziram uma mudança no modo como compreendemos
a nós mesmos. É mais, portanto, do que um conhecimento de causas e efeitos,
é uma compreensão de um acontecimento na medida em que dele participamos
ativa e passivamente, quer dizer, enquanto contribuímos para gerá-lo e também
sofremos seus efeitos. Além disso, há aqui uma compreensão de elementos da
estrutura psíquica de quem age. Sabemos mais a respeito de nós mesmos e
podemos agir de maneira mais refletida conhecendo quais são nossos pontos
cegos em determinadas situações. Esse entendimento nos leva também a
pensar sobre aqueles indivíduos com os quais nos relacionamos e que
desempenharam um papel importante nesse caminho de caráter espiritual e
existencial.

Visto que é possível interpretarmos nosso passado de maneira diferente,


podemos vislumbrar também, na situação atual, perspectivas que com certeza
não seriam aventadas por quem éramos antes. Essas perspectivas não são,
certamente, o resultado de processos de compreensão estanques. Elas mesmas
dependem de que o itinerário que aqui percorremos tenha nos levado a refletir
sobre alguma coisa. Pode ser algo tão simples quanto: uma nova forma de
entender o quanto somos orientados pela força da tradição; os motivos de
acreditarmos que uma noção de felicidade é melhor que outra; os ajustes
necessários em nosso planejamento de vida acadêmica; o aproveitamento das
possibilidades inerentes a ela; ou novas formas de iniciar um projeto almejado
ou algo assim.

A possibilidade de reinterpretarmos acontecimentos de nossa existência revela


que o componente espiritual, transcendente, atua de uma forma que o próprio
passado vem a ter um significado atualizado no presente e isso, por sua vez,
modifica a própria forma como nos relacionamos com aquilo que ainda não
aconteceu, que apenas existe enquanto possibilidade, como potencial, como
planejamento, projeto, futuro e expectativa. Não mudamos o que aconteceu, mas
mudamos o modo como compreendemos isso. Assim, diante de situações
similares, em vez de reagir de modo automático, seguindo aquele mesmo
padrão, posso tomar uma atitude diferente, refletida e sabendo mais a respeito
de meus próprios limites e meu potencial. Um novo mundo de possibilidades se
abre para aqueles que passam por tais transformações a respeito da maneira de
pensar. Se eu imagino o que poderia ter realizado antes de ingressar na
faculdade, se tivesse me dado conta de que o nível de exigência de minha escola
não era tão alto, enfrento uma situação análoga em termos de como poderia me
organizar agora para aproveitar de forma distinta o ambiente de estudos.

À primeira vista, parece ser algo muito simples, mas aqueles que tentam fazê-lo
percebem de imediato que, por exemplo, uma falsa compreensão de si como
alguém com uma inteligência acima da média pode fazer com que as coisas não
aconteçam. Temos muitas falsas impressões a respeito de nós mesmos e elas
são impeditivos diante de tais projetos. Nós subestimamos o tempo para
realização de tarefas, subestimamos a quantidade de dedicação que um trabalho
exige, subestimamos a força de vontade que um desafio poderá demandar e
assim por diante. Compreender as coisas como elas realmente são e não como
as imaginamos ou gostaríamos que fossem parece ser uma necessidade tanto
do ponto de vista psíquico quanto de uma perspectiva racional.

Aqui, torna-se importante a discussão feita anteriormente sobre a espiritualidade,


pois é nela que encontramos a possibilidade de constantemente ultrapassar
nossas limitações. Espiritualidade, no entanto, não é permanecer apenas na
perspectiva pessoal, subjetiva e interior. Espiritualidade é reconhecer também
que os outros participam de minha vida, de meus projetos de muitas maneiras.
Significa reconhecer nos outros um ponto de apoio diante de dificuldades da
mesma maneira que gostaria que os outros percebessem isso em mim. Nesse
sentido, é importante que essa reflexão sobre a espiritualidade tenha como um
de seus momentos fundamentais a identificação daquelas pessoas que de um
modo ou de outro consideramos essenciais em nossa trajetória até aqui e que
poderão continuar a ser importantes no que vem pela frente. Também é
importante ter em conta que nossos projetos poderão também contar com o
auxílio de pessoas com as quais poderíamos compartilhar esse novo conjunto
de anseios que caracterizam o propósito de vida.

Referências

ARISTÓTELES. Da alma [De anima]. São Paulo: Edipro, 2011.

FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar.In: Obras Completas Volume 10.


São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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