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Preguiça não é pecado, é direito!

Veja bem meu patrão como pode ser bom


Você trabalharia no sol
E eu tomando banho de mar
(Milton Nascimento e Fernando Brant*)

A jornada de trabalho regulamentada por lei é uma conquista histórica


dos proletários. Atualmente, há uma ofensiva mundial contra essa
regulamentação, seja suprimindo-a enquanto lei, seja impondo o trabalho
sem registro, como o da chamada “uberização”. Trata-se de mais um
episódio da luta da burguesia contra o proletariado. Um marco literário da
luta pela regulamentação da jornada no capitalismo foi a publicação de O
Direito à Preguiça, de Paul Lafargue, no final do século XIX.
Em defesa da vida plena
Entre 16 de junho e 4 de agosto de 1880, Paul Lafague publicou, no jornal
socialista francês L´Égalité, uma série de artigos depois editada em livro,
em 1883, com o título “O Direito à Preguiça. Refutação da Religião de
1848”. Seu sucesso foi comparado ao do Manifesto do Partido Comunista,
de Karl Marx e Friedrich Engels, publicado em 1848.
Assim como o Manifesto, o livro demonstra a necessidade histórica do
socialismo, e busca elevar o nível de consciência de classe do proletariado.
Critica a ideologia do trabalho na economia capitalista, que visa a
produção da mais-valia, apropriada pela burguesia. A preguiça é
apresentada como oportunidade para o desenvolvimento físico, psíquico e
político dos trabalhadores.
Lafargue ataca a burguesia e os cristãos que, para santificar o trabalho,
apresentavam o tempo de não trabalho como período em que o operário
se lançava ao alcoolismo e à devassidão. Em contraposição, enaltecia a
preguiça, descaracterizando-a como “pecado capital” (a expressão
“pecado capital” foi instituída pelo papa Gregório Magno, no século VI,
que determinou que gula, luxúria, avareza, ira, soberba, preguiça e inveja
afastavam os homens de Deus). Mesmo se declarando não cristão,
Lafargue registrava que Deus deu o exemplo da preguiça total: após seis
dias de trabalho, descansou pela eternidade.
“O Direito à Preguiça” é contra o louvor ao trabalho quando este é
alienado e não distribui os seus benefícios, apenas contemplando os
exploradores. Propõe que o trabalho e o sistema de troca possibilitem que
o lucro seja dividido entre as classes e a jornada de trabalho reduzida.
O tempo livre, reivindicado por Lafargue, aumentou com as conquistas
trabalhistas ocorridas ao longo da história e agora está novamente
ameaçado. Ao mesmo tempo, o tempo livre vem sendo apropriado pela
indústria cultural, da moda, do turismo, do esporte e do lazer, que foram
transformados também em mercadorias.
Este escrito revolucionário ecoa o enunciado de Marx em A Ideologia
Alemã: “Na sociedade comunista ... cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no
campo que lhe aprouver, não tendo por isso uma esfera de atividade
exclusiva, fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à
tarde, pastorear a noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a meu
bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou
crítico”.
Para Lafargue, cabe aos socialistas revolucionários “lutar contra a moral e
as teorias sociais do capitalismo” e “proclamar que a terra deixará de ser o
vale de lágrimas do trabalhador”. Na “sociedade comunista do futuro, que
fundaremos, ‘se possível, pacificamente, senão violentamente’, haverá
rédea solta para as paixões dos homens”, escreveu, na prisão de Saint-
Pélagie, em 1883, no preâmbulo para a edição do livro.
Vida dedicada à revolução
Paul Lafargue nasceu em 1842, em Cuba. Seus avós maternos eram uma
nativa oriunda de Jamaica e um refugiado haitiano, que chegou a Cuba
após a revolução na ilha de São Domingos. Antes de completar dez anos
foi levado para a França, onde se formou em medicina.
Em Paris, teve contato com as ideologias positivistas, materialistas e do
socialismo. Em 1865 encontrou Marx, conhecendo sua filha Laura, com
quem se casou. Tiveram três filhos, todos precocemente falecidos. Ativista
da Internacional Socialista, foi várias vezes preso. Foi um dos fundadores
do Partido Operário Francês. Participou da Comuna de Paris (1871) e,
depois da sua derrotada, exilou-se na Espanha, onde organizou um núcleo
socialista. Publicou um resumo das principais partes do primeiro tomo de
O Capital, para popularizar o livro. Esses extratos teriam sido elogiados
pelo sogro. Juntamente com Laura, traduziu para o francês trechos do
Anti-Dühring, de Engels, em 1880, com o título “Do socialismo utópico ao
socialismo científico”.
No final de 1911, casados há 43 anos, Lafargue e Laura cometeram
suicídio no dia em que ele completou 70 anos, 25 de novembro. Deixou
uma carta onde informa a motivação do gesto:
“Estando são de corpo e espírito, deixo a vida antes que a velhice
imperdoável me arrebate, um após outro, os prazeres e as alegrias da
existência e que me despoje também das forças físicas e intelectuais;
antes que paralise a minha energia, que quebre a minha vontade e que
me converta numa carga para mim e para os demais. Há anos que prometi
a mim mesmo não ultrapassar os setenta; por isso, escolho este momento
para me despedir da vida, preparando para a execução da minha decisão
uma injeção hipodérmica com ácido cianídrico. Morro com a alegria
suprema de ter a certeza de que, num futuro próximo, triunfará a causa
pela qual lutei, durante 45 anos. Viva o comunismo! Viva o socialismo
internacional!”.
Lei alcançada com luta
No capítulo VIII do livro I d´O Capital, Karl Marx trata da jornada de
trabalho, da luta de classes que a envolveu – com os capitalistas querendo
estendê-la ao máximo que o corpo humano suporte e com a classe
operária buscando colocar limites que lhe permita usufruir uma vida digna
e plena. A jornada de trabalho praticamente não é tratada nas abordagens
econômicas burguesas, dos clássicos da economia política aos atuais
comentaristas a soldo do capital – a não ser para a queixa da sua duração
“insuficiente” e custosa para o capital (é apresentada, por exemplo, como
um dos fatores negativos do chamado “custo Brasil”...).
A luta proletária em torno da duração do trabalho começou em meados
do século XIX (entre os séculos XVIII e XIX, os assalariados passavam de 12
a 16 horas trabalhando). Na Inglaterra, é de 1847 a primeira lei que
limitou a jornada em 10 horas; na França, esse limite passou a viger em
1848, mas só em Paris. Nos Estados Unidos, a jornada de 8 horas para
empregados federais entrou em vigor em 1868. A greve geral de 1886, em
Chicago [EUA], que deu origem ao Dia do Trabalho, visava estender essa
jornada para todos os proletários. O Chile estabeleceu 8 horas diárias para
os trabalhadores estatais em 1908; Cuba, em 1909; o Uruguai, em 1915.
No Brasil, o decreto 1.313 de 17 de janeiro 1891 determinou que os
meninos de 12 a 14 e as meninas de 12 a 15 anos “só poderão trabalhar
no máximo sete horas por dia” e os adolescentes “de 14 a 15 anos até
nove horas”, mas apenas no Rio de Janeiro, Distrito Federal de então.
No país, que há pouco abolira a escravidão, o processo de industrialização
teve início no final do século XIX e as jornadas eram de 10 a 12 horas. As
horas extraordinárias, nem sempre remuneradas, obedeciam às
determinações dos patrões. Em 1932, o decreto 21.186 estipulou para os
comerciários a jornada de 8 horas diárias, ou 48 horas semanais. Somente
em 1940 o decreto lei 2.308 vai dispor: “A duração normal do trabalho,
para os empregados em qualquer atividade privada ... não excederá a oito
horas diárias” (artigo 1º). Atualmente, a Constituição Federal de 1988
estabelece em seu art. 7º, inciso XIII: “duração do trabalho normal não
superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais”. Ou seja,
reduziu o número de horas semanais de 48 para 44 horas. Esta redução foi
alcançada sob o impacto de uma greve de 54 dias de aproximadamente
290 mil metalúrgicos do ABC paulista, em 1985.
Carlos Pompe

*Ouça a música Caxangá, de Milton e Brant


https://www.youtube.com/watch?v=S_VhxSagVpE

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