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CAPÍTULO V

REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÀO


DOS FATOS SOCIAIS

Mas a constituição das espécies é antes de tudo um


meio de agrupar os fatos para facilitar sua interpretação; a
morfologia social é um encaminhamento para a parte real-
mente explicativa da ciência. Qual o método próprio des-
ta última?

A maior parte dos sociólogos acredita ter explicado os


fenômenos uma vez que mostrou para que eles servem e
que papel desempenham. Raciocina-se como se tais fenô-
menos só existissem em função desse papel e não tives-
sem outra causa determinante além do sentimento, claro
ou confuso, dos serviços que são chamados a prestar. Por
isso julga-se ter dito tudo o que é necessário para torná-los
inteligíveis, quando se estabeleceu a realidade desses ser-
viços e se mostrou a que necessidade social eles satisfa-
zem. Assim Comte reduz toda a força progressiva da espé-
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cie humana à tendência fundamental "que impele direta- Icm uma natureza que lhe é própria, ter desejo ou vonta-
mente o homem a melhorar sempre e sob todos os aspectos de deles nào poderia ser suficiente para conferir-lhes exis-
sua condiçào, seja ela qual for l ", e Spencer, à necessidade lência. É preciso também que forças capazes de produzir
de uma maior felicidade. É em virtude desse princípio que essa força determinada, que naturezas capazes de produ-
ele explica a formação da sociedade pelas vantagens que I.ir essa natureza especial, sejam dadas. Somente em tal
resultam da cooperação, a instituição do governo pela uti- condiçào o fato social será possível. Para reanimar o espí-
lidade que há em regularizar a cooperação militar 2 , as rito da família onde ele se acha enfraquecido, não basta
transformações pelas quais passou a família pela necessi- que todos compreendam as vantagens disso; é preciso fa-
dade de conciliar cada vez mais perfeitamente os interes- I.cr agir diretamente as causas que são as únicas capazes
ses dos pais, dos filhos e da sociedade. de engendrá-lo. Para devolver a um governo a autoridade
Mas esse método confunde duas questões muito dife- que lhe é necessária, não basta sentir a necessidade disso;
rentes. Mostrar em que um fato é útil não é explicar como o preciso recorrer às únicas fontes de que deriva toda au-
ele surgiu nem como ele é o que é. Pois os usos a que loridade, ou seja, constituir tradições, um espírito comum,
serve supõem as propriedades específicas que o caracteri- etc., etc.; para tanto, é preciso também remontar mais aci-
zam, mas não o criam. A necessidade que temos das coi- ma na cadeia das causas e dos efeitos, até se encontrar
sas não pode fazer que elas sejam deste ou daquele jeito um ponto em que a ação do homem possa se inserir efi-
e, conseqüentemente, não é essa necessidade que pode cazmente.
tirá-las do nada e conferir-lhes o ser. É a causas de um O que mostra bem a dualidade dessas duas ordens
outro gênero que elas devem sua existência. O sentimen- de pesquisas é que um fato pode existir sem servir a na-
to que temos da utilidade que elas apresentam pode mui- da, seja porque jamais esteve ajustado a algum fim vital,
to bem nos incitar a pôr em ação essas causas e a obter os seja porque, após ter sido útil, perdeu toda utilidade e
efeitos que elas implicam, não a suscitar do nada esses efei- continuou a existir pela simples força do hábito. Com
tos. Essa proposição é evidente quando se trata apenas efeito, há bem mais sobrevivências na sociedade do que
dos fenômenos materiais ou mesmo psicológicos. Ela no organismo. Há casos, inclusive, em que uma prática
tampouco seria contestada em sociologia se os fatos so- ou uma instituição social mudam de funções sem por is-
ciais, por causa de sua extrema imaterialidade, não nos so mudar de natureza. A regra is pater est quem justae
parecessem, erradamente, destituídos de toda realidade Iluptiae declarant [é pai aquele que as núpcias indicam]
intrínseca. 'Como neles se vêem apenas combinações pu- permaneceu materialmente em nosso Código, tal como
ramentc mentais, parece que devem se produzir esponta- L'xistia no velho direito romano. Mas, se essa regra tinha
neamente tão logo os concebemos, desde que os consi- então por objeto salvaguardar os direitos de propriedade
deremos úteis.' Mas, visto que cada um desses fatos é do pai sobre os filhos provenientes da esposa legítima, é
uma força e essa força domina a nossa, visto que cada um antes o direito dos filhos que ela protege hoje. O jura-
mento começou por ser uma espécie de prova judiciária,
• Frase que não figura no texto inicial. para tornar-se apenas uma forma solene e imponente do
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testemunho. Os dogmas religiosos do cristianismo conti- tendências cuja oportunidade haveria de se fazer sentir na
nuam os mesmos há séculos; mas o papel que desempe- seqüência da evolução. Ora, uma tendência é também
nham em nossas sociedades modernas não é mais o mes- lima coisa; ela não pode portanto se constituir nem se
mo que na Idade Média. É assim, ainda, que as palavras modificar pelo simples fato de a julgarmos útil. É uma for-
servem para exprimir idéias novas sem que sua contextu- (;a que tem sua natureza própria; para que essa natureza
ra se modifique. De resto, é uma proposição verdadeira ,~eja suscitada ou alterada, não basta que nela encontre-
tanto em sociologia como em biologia que o órgão é in- mos alguma vantagem. *Para determinar tais mudanças, é
dependente da função, ou seja, que pode servir a fins di- preciso que atuem causas que as impliquem fisicamente.*
ferentes embora permaneça o mesmo. Portanto, as cau- Por exemplo, explicamos os progressos constantes da
sas que o fazem existir são independentes dos fins aos divisão do trabalho social ao mostrar que eles são necessá-
quais ele serve. rios para que o homem possa se manter nas condições no-
Não queremos dizer, aliás, que as tendências, as ne- vas de existência nas quais se vê colocado à medida que
cessidades, os desejos dos homens jamais intervenham, :lvança na história; atribuímos portanto a essa tendência,
de maneira ativa, na evolução social. *Ao contrário, certa- que muito impropriamente é chamada de instinto de con-
mente lhes é possível, conforme a maneira como agem ,~ervação, um papel importante em nossa explicação. Mas,
sobre as condiçc)es de que depende um fato, acelerar ou c'!ll primeiro lugar, ela não poderia por si só explicar a es-
conter o desenvolvimento deste. Só que, além de não po- pecialização, mesmo a mais rudimentar. Pois ela nada po-
derem, em caso nenhum, tirar alguma coisa do nada, sua de, se as condições de que depende esse fenômeno não
própria intervenção, sejam quais forem os efeitos dela, só \'.~tiverem já realizadas, isto é, se as diferenças individuais
pode ocorrer em virtude de causas eficientes.* De fato, 11:10 tiverem aumentado suficientemente em conseqüência
mesmo nessa medida restrita, uma tendência só pode da indeterminação progressiva da consciência comum e
concorrer para a produção de um fenômeno novo se ela ,!;IS influências hereditárias 3. Inclusive foi preciso que a di-
própria for nova, quer se tenha constituído a partir de Ze- ,'is:l0 do trabalho já tivesse começado a existir para que
ro, quer seja devida a alguma transformação de uma ten- ~IU utilidade fosse percebida e sua necessidade se fizesse
dência anterior. Pois, a menos que se postule uma harmo- ~\'ntir; e somente o desenvolvimento das divergências in-
nia preestabelecida verdadeiramente providencial, não Sl' ,Iividuais, ao implicar uma maior diversidade de gostos e
poderia admitir que, desde a origem, o homem trouxessl' ti" aptidões, haveria necessariamente de produzir esse pri-
em si, em estado virtual, mas inteiramente prontas para Illc'iro resultado. Além disso, não foi por si mesmo e sem
despertar com o concurso das circunstâncias, t"odas aS , ,I lisa que o instinto de conservação veio fecundar esse

• "Se eles não podem tirar alguma coisa do nada, lhes é possiV\'l, Ilrilllciro germe de especialização. Se ele se orientou e nos
ao agirem sobre as condições de que depende um fato, acell'rar 011
conter o desenvolvimento dele. Só que essa própria intervenç;lo ocorr'" • "Mas é preciso algo bem diferente da representação dos
em viItude de causas eficientes." (Revue philosophique, tomo XXXVIII, ""l\'ico" que elas podem prestar para determinar tais mudanças." (RP.,
julho a dl'zembro de 1894, p. 16.) I' I<>.l
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orientou nesse novo caminho, foi em primeiro lugar por- desejos. Para chegar a um mesmo objetivo, quantos cami-
que o caminho que ele seguia e nos fazia seguir anterior- nhos podem ser e são efetivamente seguidos! Portanto, se
mente se viu como que barrado, pois a intensidade maior fosse verdade que o desenvolvimento histórico se fez em
da luta, devida à maior condensaçào das sociedades, tor- vista de fins claramente ou obscuramente sentidos, os fa-
nou cada vez mais difícil a sobrevivência dos indivíduos tos sociais deveriam apresentar a mais infinita diversida-
que continuavam a se dedicar a tarefas gerais, Foi assim de, e qualquer comparaçào haveria de ser quase impossí-
necessário mudar de direção. Por outro lado, se esse ins- vel. Ora, o contrário é que é a verdade. Claro que os
tinto faz uma volta e virou principalmente nossa atividade, acontecimentos exteriores, cuja trama constitui a parte su-
no sentido de uma divisão do trabalho sempre mais de- perficial da vida social, variam de um povo a outro. Mas é
senvolvida, é porque esse era também o sentido da menor assim que cada indivíduo tem sua história, embora as ba-
resistência. As outras soluções possíveis eram a emigração, ses da organizaçào física e moral sejam as mesmas em to-
o suicídio, o crime. Ora, na média dos casos, os laços que dos. Na verdade, quando entramos um pouco em contato
nos ligam a nosso país, à vida, a simpatia que temos por com os fenômenos sociais, surpreendemo-nos, ao contrá-
nossos semelhantes, são sentimentos mais fortes e mais re- rio, com a espantosa regularidade com que estes se repro-
sistentes que os hábitos capazes de nos afastar de uma es- duzem nas mesmas circunstâncias. Mesmo as práticas
pecialização mais estreita. São esses últimos portanto que mais minuciosas e aparentemente mais pueris repetem-se
haveriam necessariamente de ceder a cada nova arremeti- com a mais espantosa uniformidade. Uma cerimônia nup-
da. Assim, não se cai, nem mesmo parcialmente, no fina- cial que parece puramente simbólica, como o rapto da
lismo pelo fato de se aceitar dar um lugar às necessidades noiva, verifica-se exatamente em toda parte em que há
humanas nas explicações sociológicas. Pois estas só po- certo tipo familiar, ligado ele próprio a toda uma organi-
dem ter influência sobre a evoluçào social se elas próprias zação política. Os costumes mais bizarros, como a couva-
evoluírem, e as mudanças que elas atravessam só podem de, o levirato, a exogamia, etc., observam-se nos povos
ser explicadas por causas que nada têm de final. mais diversos e sào sintomáticos de certo estado social. O
Mas o que é mais convincente ainda que as conside- direito de testar aparece numa fase determinada da histó-
rações que precedem é a prática mesma dos fatos sociais. ria e, a partir das restriçôes mais ou menos consideráveis
Lá onde reina o finalismo, reina também uma contingên- que o limitam, pode-se dizer em que momento da evolu-
cia maior ou menor; pois não existem fins, e muito menos ,';10 social nos encontramos. Seria fácil multiplicar os
meios, que se imponham necessariamente a todos os ho- l'xemplos. Ora, essa generalidade das formas coletivas se-
mens, ainda que os suponhamos situados nas mesmas cir- ria inexplicável se as causas finais tivessem em sociologia
cunstâncias. Sendo dado um mesmo ambiente, cada indi- :1 preponderância que se atribui a elas.
víduo, conforme seu humor, adapta-se a ele à sua manei- Portanto, quando se procura explicar um fenômeno'
ra, que ele prefere a qualquer outra. Um procurará modi- SIieial, é preciso pesquisar separadamente a causa eficiente
ficá-lo para colocá-lo em harmonia com suas necessida- '11Ie () produz e a função que ele cumpre, Servimo-nos da
des; outro preferirá modificar a si mesmo e moderar SClJ.'1 p:davra função de preferência às palavras fim ou objetivo,
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precisamente porque os fenômenos sociais não existem, obrigados a fornecer um trabalho mais intenso, os produ-
de modo geral, tendo em vista os resultados úteis que pro- tos desse trabalho tornam-se mais numerosos e de melhor
duzem. O que é preciso determinar é se há correspondên- qualidade; mas esses produtos mais abundantes e melho-
cia entre o fato considerado e as necessidades gerais do res sào necessários para reparar o desgaste ocasionado
organismo social, e em que consiste essa correspondência, por esse trabalho mais consideráveP. Assim, longe de a
sem se preocupar em saber se ela foi intencional ou não. causa dos fenômenos sociais consistir numa antecipação
Todas as questões de intenção, aliás, são demasiado subje- mental da função que eles são chamados a desempenhar,
tivas para poderem ser tratadas cientificamente. essa função consiste, ao contrário, pelo menos num bom
Essas duas ordens de problemas não apenas devem número de casos, em manter a causa preexistente da qual
ser separadas, mas convém, em geral, tratar a primeira an- des derivam; 'portanto, descobriremos mais facilmente a
tes da segunda. Esta ordem, com efeito, corresponde à dos primeira se a segunda já for conhecida*.
fatos. É natural investigar a causa de um fenômeno antes Mas, ainda que só em segundo lugar devamos proce-
de tentar determinar seus efeitos. Esse método é ainda der à determinação da função, ela não deixa de ser neces-
mais lógico porquanto a primeira questão, uma vez resol- sária para que a explicação do fenômeno seja completa.
vida, ajudará a resolver a segunda. De fato, o laço de soli- Com efeito, se a utilidade do fato não é aquilo que o faz
dariedade que une a causa ao efeito tem um caráter de re- existir, em geral é preciso que ele seja útil para poder se
ciprocidade que não foi suficientemente reconhecido. Cer- manter. Pois, para ser prejudicial, é suficiente que ele não
tamente o efeito não pode existir sem sua causa, mas esta, tenha serventia, uma vez que, nesse caso, ele custa sem
por sua vez, tem necessidade de seu efeito. É dela que o produzir benefício algum. Portanto, se a generalidade dos
efeito tira sua energia, mas ele também lha restitui eventual- fenômenos sociais tivesse esse caráter parasitário, o orça-
mente e, em vista disso, não pode desaparecer sem que mento do organismo estaria em déficit, a vida social seria
ela disso se ressinta 4. Por exemplo, a reação social que impossível. Em conseqüência, para proporcionar desta
constitui a pena é devida à intensidade dos sentimentos lima compreensão satisfatória, é necessário mostrar como
coletivos que o crime ofende; mas, por outro lado, ela tem ()s fenômenos que formam sua substância concorrem en-
por função útil manter esses sentimentos no mesmo grau t re si, de maneira a colocar a sociedade em harmonia
de intensidade, pois estes não tardariam a se debilitar se as consigo mesma e com o exterior. Certamente, a fórmula
ofensas que sofrem não fossem castigadas 'i . Do mesmo llsual, que define a vida como uma correspondência entre
modo, à medida que o meio social torna-se mais comple- () meio interno e o meio externo, é apenas aproximada;
xo e mais móvel, as tradições e as crenças estabelecidas !lO entanto, ela é verdadeira em geral, e portanto, para

são abaladas, adquirem um caráter mais indeterminado l' l'Xplicar um fato de ordem vital, não basta explicar a cau-
mais flexível, e as faculdades de reflexão se desenvolvem; .sa da qual ele depende, é preciso também, ao menos na
mas essas mesmas faculdades são indispensáveis para as Illaior parte dos casos, encontrar a parte que lhe cabe no
sociedades e os indivíduos se adaptarem a um meio mais ('stabelecimento dessa harmonia geral.
móvel e mais complex0 6 . À medida que os homens sào • Frase que nào figura no texto inicial.

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