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As regras dizem ao homem o que está certo ou errado, justo ou injusto, o que
vale e o que não vale, e são padrões de conduta que emanam das mais variadas
instituições que representam as estruturas da organização social em que o
homem está inserido.
1
Cf. João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pp. 8/9.
Como as regras não são congénitas o homem tem que as apreender. Desde o
seu nascimento o homem encontra-se envolvido num determinado ambiente que
o rodeia e influencia, ou seja, num contexto em que foi exposto e que actua
sobre ele, um contexto essencialmente humano. Quer dizer, o homem, desde o
seu nascimento sente a conivência humana que o rodeia. E esta convivência com
outros homens acompanha-o durante toda a sua vida, uma vez que apenas em
sociedade humana consegue (sobre)viver. Mas, para se orientar necessita, como
vimos, de regras.
Estas regras emanam de “instituições”. Por esta razão, para viver em sociedade,
o homem precisa de instituições2. As instituições poderão ser definidas como
conjuntos na realidade social que, como organizações sociais, estabelecem para
quem a elas pertence regras de conduta ou de comportamento que têm carácter
normativo e normador (norma = regra) e que, ao serem observadas, garantem
a segurança nas relações entre os homens abrangidos por elas3. É precisamente
nas instituições em que está inserido (familiares, educativas, económicas,
culturais, desportivas, políticas, etc.) com as suas normas próprias e padrões de
conduta com a sua grande variedade, que o homem aprende viver regradamente
em sociedade com os outros. Muitas vezes, as regras de convivência nem sequer
são sentidas porque na consciência das pessoas já estão completamente
interiorizadas como habituais. A primeira instituição em que o homem está
inserido e começa a ser socializado é a família, em que é exposto ao ambiente
social em que começa a sua aprendizagem do mundo.
2
João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pág. 8.
3
Cf. também João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pp. 16, 22.
uma natureza ambivalente como indivíduo autónomo e ser social, a “sociabilidade
não social”, no dizer de Kant.
4
Cf. João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pp. 11, 13; o realce é do autor citado.
5
A estes “all men” não pertenciam os escravos; “all men” eram unicamente os “free men”. Os
escravos eram considerados de valor inferior e mercadoria; cf. US-Supreme Court em 1857 no
processo Dred Scott v. Sandfort que decidiu que o escravo não tinha a qualidade de cidadão
americano.
sentido, apontava o lema da Revolução Francesa de 1789 “liberté, égalité,
fraternité”6.
Na verdade, todos os homens são todos iguais como homens, têm a mesma
natureza humana, mas como indivíduos são todos diferentes.
6
Sendo certo, porém, que estes princípios não se aplicavam aos escravos da colónia francesa do
Haiti, ao contrário do que eles legitimamente esperavam, e que se viram forçados a aprender
que não era bem assim quando a sua comunidade foi duramente esmagada.
7
O Código Civil, de 1967, na sua redacção primitiva definiu o casamento no artigo 1577.º como
“contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendam constituir
legitimamente a família mediante uma comunhão plena de vida” enquanto a partir da Lei n.º
9/2010 o casamento passou a ser definido no artigo 1577.º como “contrato celebrado entre duas
pessoas que pretendam constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos
das disposições deste Código.”
semelhante Montesquieu constatou que há leis que os homens fizeram e leis que
eles não fizeram (mas que têm de observar).
Todavia, a cultura não determina por completo o pensar e agir dos homens na
medida em que é constitui “apenas” um complemento imprescindível da sua
condição biológica. Por outro lado, não há conhecimentos seguros quanto do
comportamento do homem é determinado biológica ou culturalmente; depende
da respectiva cultura.
8
Cf. João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pp. 9 e 8.
9
Por exemplo, a cultura dos astecas era bem diferente da cultura dos espanhóis que os
enfrentaram e não entenderam.
criação de segurança e certeza na convivência social.10 E as normas jurídicas que
vão ao encontro dos interesses dos homens revelaram-se, desde sempre, mais
eficientes do que proibições ou punições. Assim, quando a “ordenação da
liberdade” vai longe demais e constitui espartilhos à sua liberdade originária, o
homem autónomo tende a subtrair-se às normas jurídicas e a criar sistemas
paralelos, à margem das leis11. Portanto, apenas uma ordem jurídica que realize,
de uma maneira equilibrada, liberdade e segurança continua a ser aceite e
consegue conciliar e ordenar os interesses divergentes entre os homens ou entre
estes e a sociedade, bem como dirimir os conflitos que daí possam resultar.
Por regra, a ordem jurídica – que é aceite – conta com a observância espontânea
e o cumprimento voluntário das suas normas, em virtude do sentimento jurídico
comum dos homens, cuja convivência visa regular. Contudo, quando ela não é
experimentada como justa, mas antes como um regime de força (de modo que
uma infracção nem sequer é tida como tal), o referido comportamento não se
verifica. O mesmo sucede em períodos de crise (por exemplo, guerra, catástrofes
naturais com efeitos graves e prolongados, períodos de decadência moral), em
que se dissolvem os valores comuns da sociedade e, entre eles, também o
sentimento comum de justiça. E nestas situações todas as autoridades públicas
são poucas para manter a paz social.
10
Cf. J. BAPTISTA MACHADO, «Tutela da confiança e “venire contra factum proprium”», cit. = RLJ
117 (1984/1985), pp. 229 e ss.
11
De resto, cada homem dispõe de uma esfera privada íntima, um último reduto da sua liberdade
humana, que é intocável e está subtraída a qualquer intervenção de todos os poderes públicos.
Assim, BVerGE 6, pp. 32, 41 (Elfes-Urteil).
12
Nem toda a doutrina defende o significado da coercibilidade como característica essencial do
direito. Cfr. J. BAPTISTA MACHADO, Introdução, p. 33.
Em qualquer caso, e isto convém ser sublinhado, não pertence às funções do
direito eliminar as diversidades de interesses entre os homens e as correlativas
relações de tensão, necessárias à realização do homem na convivência com os
seus pares. De modo igual também não é função do direito eliminar a relação de
tensão existente entre o homem autónomo e a sociedade em que se integra,
dando supremacia àquele ou a esta. Uma solução neste sentido não
corresponderia às condições da natureza humana. Todas estas relações de
tensão devem ser ordenadas e reguladas de forma a garantir o desenvolvimento
tanto do homem autónomo, do indivíduo, como da própria sociedade, com todos
os efeitos frutíferos e benéficos, decorrentes de relações assentes na evolução
dinâmica dos seus elementos componentes13.
13
Mas isto significa também que só é possível garantir aos indivíduos os seus interesses legítimos
se, ao mesmo tempo, são garantidos à comunidade todos os recursos a que esta tem,
legitimamente, direito. Henry GEORGE, Progress and Poverty, London, 1884.
14
Para Aristóteles um valor superior ao direito é a amizade entre os homens. Mas este valor
transforma-se no seu contrário quando a amizade é colocada acima da lei, segundo o lema “ao
amigo é tudo devido e ao inimigo aplica-se a lei”.
direito não pode ignorar a moral, não pode abstrair de princípios morais. Estes
últimos são, de facto, orientações para ele, apesar das suas finalidades e níveis
de actuação diferentes. Contudo, daí não resulta que o direito pode, sem mais,
transpor princípios morais para o seu domínio, a não ser em situações específicas,
como sucede, por exemplo, quando o Código Civil, nos seus artigos 280.º e 281.º,
invoca os “bons costumes”, ou seja, os valores morais positivos compartilhados
e vigentes na sociedade, que um negócio jurídico deve respeitar (sob pena de
nulidade). O direito não pode juridificar a moral15, pois isto significaria que os
homens tivessem de subordinar não apenas o seu pensamento, i. é., as suas
convicções morais, mas também o seu comportamento exterior à moralidade o
que favorecia a hipocrisia e, pior, a intolerância e seria destruidor da liberdade e
da democracia e, em última análise, totalitário no sentido de quem impõe os seus
critérios morais16.
Na medida em que o direito não pode abstrair de todo de princípios morais pode
dizer-se que o ele se deve orientar na moral, na medida em que consagra o
“mínimo ético”, uma ordem de valores, que é aceite por todos17. Caso isto não
suceda, ao verificar-se uma dissonância aguda entre convicções morais
generalizadas e a ordem jurídica (ou uma parte sensível da mesma), estamos
perante uma crise social em que a ordem jurídica é sentida como um mero
sistema de força e não de justiça.
Diferentes das normas jurídicas e das exigências morais são os usos e costumes,
ou seja, meras normas de conduta social que, sendo observadas de facto pelos
homens, em princípio não têm valor jurídico, embora este, segundo o artigo 3.º
do Código Civil, pontualmente lhes possa ser atribuído por lei, como podemos
ver no exemplo do artigo 218.º do Código Civil, que considera o silêncio como
um meio declarativo quando este valor lhe é conferido pelos usos do tráfico
negocial18. À semelhança das normas jurídicas, as normas de conduta social são
15
Conflitos morais podem ser insolúveis para quem os sofrer e o seu desfecho não pode ser
imposto pelo direito, mas apenas permitido (por exemplo, em casos de diagnóstico pré-natal, de
interrupção da gravidez, da eutanásia, da utilização de embriões para fins terapêuticos ou ainda
da maternidade de substituição).
16
O mesmo sucede, inexoravelmente, quando se invocam ou aplicam princípios morais desligados
ou desenquadrados de quaisquer regras jurídicas.
17
Nas sociedades contemporâneas, pluralistas e individualistas (ou indivíduo-centristas),
religiosamente divididas e multi-étnicas, os homens partilham cada vez menos convicções morais
comuns, de modo que o “mínimo ético” aceite por todos fica cada vez mais reduzido, deixando
de dar uma orientação global ou uma base firme de valores comuns aos homens e à sociedade.
Nesta medida aumenta a relevância da ordem jurídica e simultaneamente a dificuldade para ela
de regular os comportamentos humanos, de estabelecer consensos e de garantir a paz social.
18
Portanto, para o Código Civil não há a regra quem cala consente. Também podemos referir os
artigos 1122.º, 1128.º, 1323.º, 1357.º e 1359.º, que, nas relações de vizinhança, se referem aos
usos da terra e suas tradições.
exteriores ao homem, mas, precisamente por não terem natureza jurídica, não
são como aquelas judicialmente coercíveis, sendo a sua observância sancionada
apenas por uma “coerção social” que consiste no desprezo, na marginalização ou
mesmo na exclusão da vida social. Esta sanção, por seu lado, tanto pode quase
não ser sentida, como pode ir mais longe e até ter consequências mais graves
do que a inobservância de uma norma jurídica, devido ao isolamento ou social
do infractor em reacção à sua conduta desconforme com as normas sociais
vigentes19.
19
Na verdade, o medo de reacções provocadas por uma conduta “socialmente não correcta” faz
com que, com frequência, as pessoas se abstenham de formular um juízo próprio quando julgam
ou sentem que, com isso, contrariam as correntes de opinião dominantes. Desta forma há
assuntos em que não se quer tocar, ou por medo de se ser conotado com posições que lhe são
atribuídas falsamente, ou por medo de colher aplausos do lado errado. A partir do momento em
que uma posição deixa de ser defendida em público, ela está derrotada por já não ter voz.
Mas já não teme o isolamento social quem estiver desintegrado (excluído) da sociedade e, por
isso, não considera as consequências do seu comportamento, de modo que as normas de conduta
social perderam para ele os seus efeitos integradores e orientadores.
20
Por outro lado, a delimitação dos actos de solidariedade de deveres jurídicos não é líquida. Cf.
Júlio GOMES, «A controvérsia norte-americana em torno da consagração legal de um dever geral
de socorro», RDE XIV (1988), p. 101.
Ao ordenar a vida em sociedade o direito baseia-se fundamentalmente na ideia
da justiça que o legitima: o direito é uma ordem de convivência humana com um
sentido – o sentido da justiça. Mas as leis que consagram o direito podem não
ser sentidas como justas por contrariarem o sentimento de justiça comum dos
homens a que se destinam.
Como ponto de partida vamos admitir que o direito vigente plasmado em leis,
passa a entrar em contradições insanáveis com as concepções de justiça e as
convicções morais dominantes na sociedade que deve ordenar21. Já vimos que o
direito não pode desconhecer a moral, não pode abstrair de princípios morais.
Caso contrário, pode surgir um conflito entre as convicções morais reinantes e as
imposições da lei em vigor que as despreza. É principalmente neste contexto
(mas não só) que se põe a problemática do Direito Justo.
21
Uma constante do direito é (ou deve ser) a sua constante renovação. Mas não é só o direito, o
conteúdo das leis, que muda, renovando-se. Também as próprias concepções acerca do direito
e as suas funções, inclusive a própria ideia da justiça, estão sujeitas à evolução.
Esta constatação deve prevenir-nos contra a tentação (fácil) de julgar o direito do passado a
partir de conhecimentos e experiências adquiridos posteriormente, com juízos de valor ou
concepções ou ideologias (efémeras ou não) ou até modas de hoje. Bem pelo contrário, o direito
passado deve ser julgado dentro do seu contexto histórico, como ficou moldado pela evolução
correspondente, de acordo com os conhecimentos as experiências existentes na altura e dentro
da realidade social à qual se destinava. Se assim não acontece, cai-se num anacronismo e
comete-se, regularmente (e não poucas vezes conscientemente), uma falsificação.
Assim, também Aristóteles fez uma distinção entre o direito natural e o direito
legal. Quer dizer, desde a antiguidade houve sempre quem se interrogasse se
acima do direito positivo, que vigora e consta das leis, haverá um outro direito,
o direito natural, que prevalece sobre o primeiro e em que este encontra a sua
última fonte de validade e justificação, podendo este direito natural emergir ou
da natureza ou da vontade de Deus ou da condição humana ou da lógica da
razão. Neste sentido entende-se por direito natural um direito que existe
independentemente de uma estatuição humana e que vale de modo imutável
para todos os tempos e todos os povos.
Seja como for, devido aos actos legislativos dos regimes totalitários do século XX
(fascismo, nazismo, estalinismo, maoismo) que “permitiram” com as suas leis
atentatórias aos valores da humanidade violações gravíssimas do direito (e da
justiça e da moral), voltou a haver uma consciencialização da antinomia entre o
direito positivo e os princípios superiores de um direito natural que levou a um
renascimento do jus-naturalismo, pensamento que o século XIX julgava poder
considerar ultrapassado e dispensável. Talvez se possa concluir que sempre se
chama pelo direito natural e pelos seus princípios quando o direito positivo estiver
em crise por se ter afastado daquele. Quanto maior este afastamento tanto mais
alto soa o grito pelo direito natural. Realmente, a experiência histórica da
humanidade – sobretudo quando esta julgou que fossem “factíveis” todas as
coisas – mostra que é justificado o pensamento jusnaturalista e que não está nas
mãos do homem criar um direito ideal e inteiramente justo.
Por outro lado, pode suceder que a obediência que uma pessoa deve a normas
morais pelas quais se pretende guiar leve a conflitos com normas jurídicas que,
devido a estes imperativos morais, a pessoa se recusa a acatar.
Mas existe, neste contexto, uma diferença fundamental se uma norma moral é
invocada contra uma lei ditatorial ou de um tirano22 ou se uma norma moral (ou
religiosa) é invocada para justificar a inobservância das leis num Estado
democrático de Direito. Enquanto a invocação das convicções morais em sistemas
ditatoriais ou opressivas pode ter toda a sua justificação, a invocação de ordens
absolutas de natureza moral, religiosa ou de cariz cultural ou ideológico num
Estado democrático de Direito não pode proceder pois estas ordens hão-de ser
relativizados pela lei aplicável a todos. O Estado de Direito toma conhecimento
da posição individual, moral ou religiosamente absoluta, e pondera-a; mas a lei,
democraticamente consagrada, a que todos estão igualmente sujeitos, não pode
ceder. A exigência da proteção da comunidade é superior a uma lesão das
convicções individuais. Na verdade, a aceitação das leis pelos seus destinatários
é um pilar fundamental da sua legitimação democrática.
22
Veja-se o caso da tragédia grega de Sófocles, “Antígona”, que retrata a desobediência frontal
desta contra ordem dada por Creonte. Antígona era irmã de Etéocles e Polinices, filhos de Édipo,
que mutuamente se mataram na disputa pelo trono de Tebas. Como ambos morrem, sucede no
trono Creonte, cuja primeira ordem incidia sobre os rituais de sepultamento dos irmãos. Ordenou
Creonte que quanto ao corpo de Etéocles, com que se relacionava bem, haveria lugar a todos os
rituais de sepultamento, mas o corpo de Polinices, seu opositor, seria largado em terra vazia e
sem o direito de ser sepultado, para que fosse comido por aves de rapina e pelos cães vadios.
Com tal ordem, Creonte queria dar um aviso a todos os que tentassem agir contra ele ou se lhe
opusessem. Antígona recusou cumprir tal ordem e providenciou para que o seu irmão tivesse
todos os ritos sagrados no seu sepultamento ainda que isso significasse ter de pagar com a
própria vida por ter violado expressamente a ordem de Creonte, mas só assim conseguiria dar
cumprimento às leis divinas, às quais se achava submissa, e que prevaleciam sobre a ordem, a
lei arbitrária, ditada por Creonte.
obrigações recíprocas do vendedor e do comprador às quais correspondem os
direitos de exigir a entrega do bem vendido e o pagamento do preço acordado;
o artigo 2009.º do Código Civil diz quais são as pessoas que são obrigadas a
prestar alimentos e estabelece, no seu n.º 1, alínea d), também a obrigação de
prestar alimentos entre irmãos).
Estar obrigado moralmente significa que é a nossa consciência que nos impõe
um dever (por exemplo: dar uma esmola ou fazer donativos a quem for vítima
de uma catástrofe natural ou socorrer a quem está a afogar-se ou apoiar os
irmãos nos casos em que a lei não estabelece a favor deles uma obrigação
alimentar [como sucede no direito alemão que desconhece semelhante obrigação
jurídica] ou praticar um acto de solidariedade humana ao consentir que após a
morte os órgãos podem ser retirados e transplantados [em vez da sua retirada
com base da lei que a permite]).
23
Por exemplo, como já vimos, ao referir os artigos 280.º, 281.º e 218.º, todos do Código Civil,
excepcionalmente podem ser juridificadas normas morais ou também normas de conduta social.
as obrigações de vendedor e comprador; as normas que obrigam a fazer um
contrato de seguro contra incêndios ou normas que exigem que se contraia um
seguro automóvel, etc.);
1.4.5 Resumindo: podemos dizer que estas normas referidas exprimem três
ideias: “tu deves, tu não deves e tu podes”.
2.1.1 Necessidade
Já explicámos que a ordem jurídica surge como necessidade prática para regular
a convivência humana, em consequência da sua vida em sociedade, da existência
simultânea de duas ou mais pessoas24. Já Aristóteles referia que o homem é um
animal social, pois é um ser carente que necessita de se relacionar com o outro
para atingir a sua plenitude. Assim, a necessidade de se relacionar com o outro
(a alteridade) pressupõe também que haja regras que definam e delimitem os
direitos de uns a que correspondem os deveres dos outros.
2.1.2 Exterioridade
Mas isto não significa dizer que o pensamento de cada um não possa ser valorado
pelo Direito, caso o comportamento e conduta o venha a exteriorizar e revelar.
Na verdade, o Direito pode conferir tratamentos distintos, consoante esteja em
causa uma conduta que tenha sido praticada com a intensão de prejudicar, por
24
Se a realidade fosse como aquela que se apresenta no romance “Robinson Crusoé” de Daniel
Defoe, as normas jurídicas não seriam necessárias dada a sua inutilidade. O romance crê-se
baseado nas vivências de um marinheiro chamado Alexander Selkirk, em que o personagem
principal, Robinson Crusoé decide comandar um navio do Brasil para África com escravos, sendo
que no meio da viagem em virtude de uma forte tempestade o navio naufraga perto de uma ilha
deserta no mar do Caribe. Todos os tripulantes morrem com excepção de Robinson Crusoé, que
vive na ilha sozinho durante vinte anos até que salva um nativo que tinha sido capturado por um
grupo de canibais, a quem deu o nome de Sexta-feira, por ter sido esse o dia da semana em que
o encontrou e salvou.
exemplo uma actuação de má fé, ou uma conduta criminosa premeditada, só que
nestes casos, para que se valore o pensamento prévio à conduta, é necessário
que esta seja exteriorizada25.
2.1.3 Estatalidade
Esta característica significa que o Direito provém do Estado, sendo emanado dos
seus órgãos pelo que também a estes compete a aplicação do Direito. Temos a
doutrina do monismo jurídico26.
Todavia, há quem defende-se o oposto: não se nega que o Estado crie e aplique
Direito, através dos seus órgãos competentes, somente não se aceita que o
Estado seja o único a emanar normas jurídicas nem tampouco que seja o único
com o poder de as aplicar, ou seja, nega-se o monopólio da criação e aplicação
do Direito pelo Estado. Assim a doutrina do pluralismo jurídico27.
25
Veja-se a título de exemplo o artigo 132.º, n.º 2, al. j) do Código Penal, de onde resulta a
qualificação do crime de homicídio por se entender que atua com especial censurabilidade ou
perversidade aquele que tenha atuado com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios
empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
26
A este respeito Hans KELSEN, Reine Rechtslehre, 2.ª edição de 1960, reimpressão, Wien 1976,
sustenta no capítulo VI (pp. 289 ss.) a teoria da identidade de Estado e Direito.
27
Há, de facto, fontes de direito supraestaduais em que o direito não emana de órgãos estaduais
como sucede designadamente com o Direito Canónico, o Direito Internacional Público ou com o
Direito da União Europeia (Regulamentos [que vigoram imediatamente nos Estados-membros] e
Directivas [que necessitam de ser transpostas para o direito interno de cada Estado-membro]).
O direito da União Europeia continua a adquirir uma relevância crescente nas ordens jurídicas
dos Estados-membros da União.
exemplo para concluir um contrato, é obrigatório utilizar normas jurídicas que
regulam os regimes do contrato. Por isso, liberdade contratual significa actuar
livremente dentro da ordem jurídica e assim é obrigatório recorrer ao modelo, o
tipo legal “contrato”, consagrado no Código Civil, que é escolhido livremente
pelas partes, para assumir uma obrigação ou adquirir um direito28.
2.1.5 Coercibilidade
Sendo coercível há, todavia, quem defende com boas razões que a coercibilidade
não é inerente ao direito, mas que o direito – sendo legitimado e orientado pela
justiça – justifica o recurso à força. Neste sentido, entende-se por coercibilidade
a possibilidade de recorrer ao uso da força para aplicar as sanções prescritas pelo
Direito em caso de violação deste, seja por actos ou por omissões 29, ou para
obrigar ao seu cumprimento, sempre que seja necessário e possível30.
Ler: João Baptista Machado, Introdução, pp. 7-9, 11-14, 19-22, 32-35, 50/51
(286-300); Ángel Latorre, pp. 19-22, 26-33;
e
como leitura facultativa segue em Anexo, Diogo Freitas do Amaral, Manual de
Introdução ao Direito, Volume I, pp. 165 a 211: “O problema do direito natural”.
28
E o mesmo vale a respeito das normas supletivas a que se recorre quando as partes de um
contrato, podendo o ter feito, nada disseram em relação a certos aspectos (ver, por exemplo,
quanto às despesas do contrato, a solução do artigo 878.º do Código Civil que tem grande
relevância prática). O regime supletivo é tão imperativo (ou obrigatório) quanto as normas
preceptivas ou proibitivas.
29
Como está previsto no artigo 486.º do Código Civil: a simples omissão constitui a obrigação de
reparar os danos quando havia o dever de praticar o acto omitido.
30
A coercibilidade não é possível em todo o Direito, por exemplo, quando está em causa o não
cumprimento de todos os deveres conjugais. E em relação ao Estado põe-se a questão quem o
pode obrigar a cumprir uma sentença em que o mesmo tenha sido condenado. É o célebre
impasse quis custodiet ipsos custodes? (quem guarda os guardas?).