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ACLIMAÇÃO
São Paulo
2020
2
Gustavo Barreto Vilhena de Paiva
São Paulo
2020
Aos meus pais,
Mara Marly Gomes Barreto e
José Henrique Vilhena de Paiva,
professores, que me inspiraram no decorrer
de todo este trabalho.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao prof. Marcelo Costa, meu orientador neste
Tabalho de Conclusão do Curso de especialização em Docência no Ensino Superior do Senac
Aclimação (SP), pelo apoio, pelas correções e sugestões, bem como pelas interessantes
conversas sobre educação e história brasileiras. Dirijo agradecimentos, também, à profa.
Rosângela Martins, coordenadora da especialização, não somente por todo o apoio intelectual
e institucional durante o curso, mas também pelo convite para participar do evendo Escolas
Inovadoras: projetar PonteS para Educação no Futuro, realizado no Senac-São Bernardo, no
dia 17 de dezembro de 2019. Em sua pessoa, agradeço a todos/as os/as docentes da
especialização, cada um/a dos/as quais contribuiu enormemente para este trabalho. Estendo
agradecimentos, na pessoa da bibliotecária sra. Izete Malaquias, aos/às funcionários/as da
Biblioteca do Senac Aclimação, cuja contribuição para a presente pesquisa foi fundamental.
Não poderia deixar de citar aqui os/as colegas com que cursei a especialização. Em
uma pós-graduação como a do Senac, com foco em metodologias ativas, a interação entre
colegas é elemento central para o processo de aprendizagem. Assim, agradeço a todos/as os/as
colegas na pessoa da representante de turma, a colega Gracineide Oliveira. Aliás, é preciso
destacar sua grande dedicação ao trabalho como representante, sempre disponível para sanar
dúvidas ou dificuldades que surgissem durante o curso. Além disso, por sua formação em
pedagogia, ela pôde contribuir muito para as discussões em sala.
Gostaria de citar, ainda, dois colegas que foram particularmente importantes para a
minha formação no curso. Nicolas Passeri, a quem agradeço pelas discussões em vários
trabalhos que realizamos juntos e pela indicação para realização de estágio (como parte da
licenciatura que cursei em paralelo à especialização) no colégio em que é professor. E
Rodrigo de Paula, com quem realizei inúmeros trabalhos e discussões no decorrer da
especialização, pelo que também agradeço. Além disso, sou grato a ambos pelas várias
caronas até o metrô!
Por fim, mas não menos importante, agradeço a meus pais, Mara Marly Gomes
Barreto e José Henrique Vilhena de Paiva, professores, a quem também dedico este trabalho.
Deles veio muito da inspiração para escrevê-lo!
Si la filosofía se caracteriza por la necesidad de
someter al examen y a la crítica todas las cosas,
sorprende la poca vocación de la comunidad
filosófica universitaria por examinar sus propias
prácticas pedagógicas, el objeto que se halla más a la
mano.
OBIOLS, 2002, p. 37.
RESUMO
This monograph presents a Teaching Work Plan proposal for the discipline “History of
Medieval Philosophy”, commonly found in Brazilian undergraduate Philosophy courses.
Based on a research on the learning difficulties that are generally highlighted in this field of
studies by instructors as well as institutional evaluation tools such as Enade, we suggest
possible ways to perfect the teaching and learning process in undergraduate Philosophy
courses, with special attention to the above-mentioned discipline. We hold the solution for
many of these difficulties to be in the adoption of learning plans that allow for the active
participation of students in their own development, particularly through the use of active
methodologies both within and without the classroom. We also show that the focus on student
activity in the teaching and learning process of an undergraduate Philosophy course is
required not only by contemporary Pedagogy or Andragogy, but also by some conceptions of
Philosophy that have been put forward nowadays by many thinkers. With this conclusion in
hand, we devise and comment the Teaching Work Plan already mentioned, which is founded
upon active methodologies. We hope that, with this plan, we will be able to offer a possible
answer to the problems that were underlined throughout this work.
Keywords: 1. Philosophy. 2. Education. 3. Andragogy. 4. Active Methodologies. 5. Learning.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................11
1.1. Tema e
problema.........................................................................................................11
1.2. Objetivos.....................................................................................................................13
1.2.1. Objetivo
geral....................................................................................................13
1.2.2. Objetivos
específicos.........................................................................................13
1.3. Metodologia................................................................................................................14
1.4. Justificativa.................................................................................................................14
2. PESQUISA DE
CONTEÚDO............................................................................................16
2.1. Dificuldades associadas à aprendizagem de
filosofia..................................................16
2.2. Aprendizagem ativa, andragogia e
filosofia.................................................................36
2.3. Competências e conteúdos no ensino-aprendizagem de
filosofia................................54
3. PROPOSTA DE PLANO DE TRABALHO DOCENTE PARA O COMPONENTE
CURRICULAR “HISTÓRIA DA FILOSOFIA
MEDIEVAL”.........................................67
3.1. Nota inicial..................................................................................................................67
3.2. Plano de Trabalho Docente do componente “História da Filosofia
Medieval”............71
3.3. Comentários ao Plano de Trabalho
Docente................................................................78
3.3.1. Ementa..............................................................................................................78
3.3.2. Objetivos...........................................................................................................79
3.3.3. Conteúdo programático.....................................................................................81
11
1. INTRODUÇÃO
1
“Dans l’un et l’autre cas, la conséquence en est que, en cas d’échec ou de difficulté dans l’enseignement
philosophique, la responsabilité peut toujours être imputée, soit à l’insuffisance du niveau intellectuel et culturel
des élèves, soit à un ‘refus de philosopher’ qui constituerait un choix initial et absolu contre lequel le professeur
de philosophie ne pourrait rien”. Note-se que o autor citado critica a posição descrita.
13
Sem dúvida, ler uma descrição - de dificuldades semelhantes às que tive em minhas
atividades docentes - escrita por uma autora em outro continente e há mais de duas décadas
faz com que me sinta menos sozinho em minhas preocupações. Mais do que isso, faz que com
me pareça haver aqui um problema realmente digno de elaboração e pesquisa, a saber: como
planejar e executar um Plano de Trabalho Docente para uma disciplina de filosofia (em
particular, da área História da Filosofia Medieval) em nível superior que seja, de fato,
efetivo – isto é, cujos resultados comprovadamente representem o cumprimento de objetivos
educacionais previamente estabelecidos3?
Como mostrarei adiante (item 2.1), a ineficiência do ensino de filosofia em nível
superior está possivelmente atrelada a diversas causas, algumas das quais são mais facilmente
solucionáveis pelos professores do que outras. [F2]Em todo caso, cabe a estes propor um plano
de ensino-aprendizagem que tenha em consideração essas diversas dificuldades, em lugar de
ignorá-las. Minha hipótese é que muitas das causas do fracasso no ensino de filosofia
poderiam ser superadas por uma mudança na própria concepção do que seria uma ‘aula de
filosofia’. Ainda medra um modelo de aula de filosofia no qual o professor age – lê, interpreta
um texto, ‘filosofa’ –, enquanto o aluno passivamente observa, sob a expectativa não muito
clara ou declarada de que em certo momento conseguirá agir como o professor. É comum,
portanto, ainda aquilo que Galichet (1997, p. 44) descreve como um modelo “mimético
(‘pensar perante os alunos pra fazê-los pensar’)” 4 de aula de filosofia. Espero mostrar no
2
“Le professeur de philosophie n’a pas besoin des Sciences de l’éducation aussi longtemps qu’il se perçoit
comme un professeur à part, pas tout à fait comme les autres,... et qu’il en éprouve beaucoup de satisfactions. Ce
qui est tout à fait possible, s’il trouve devant lui des élèves pleins d’intérêt pour la philosophie et ‘naturellement’
aptes à lire des textes philosophiques. Il ne pose des questions sur les conditions de son enseignement que
lorsque ces conditions semblent faire obstacle au rapport Maître-Disciple dont il rêvait”. Ressalte-se que,
embora se refira aqui às ‘ciências da educação’, a própria Fumat (1997, p. 64-65) problematiza o estatuto
científico desse ramo de saberes.
3
Nas palavras de Robert Mager (1975, p. 1), a “instrução é bem-sucedida ou efetiva na medida em que realiza
aquilo que se propõe a realizar [Instruction is successful, or effective, to the degree that it accomplishes what it
sets out to accomplish]”. O desafio está, precisamente, em planejar e executar um processo de ensino-
aprendizagem que realize seus objetivos iniciais. Fazê-lo implica considerar os diversos elementos envolvidos
nesse processo. Como dizem Ferraz e Belhot (2010, p. 422), a “definição clara e estruturada dos objetivos
instrucionais, considerando a aquisição de conhecimento e competências adequados ao perfil profissional a ser
formado direcionará o processo de ensino para a escolha adequada de estratégias, método, delimitação do
conteúdo específico, instrumentos de avaliação e, consequentemente, para uma aprendizagem efetiva e
duradoura”. Sobre os objetivos educacionais, cf. adiante a nota 122 e o item 3.3.2.
4
“Démarche qui ne peut donc être que d’essence mimétique (‘penser devant les élèves pour les faire penser’)”.
14
presente trabalho que a esse modelo muitos autores já opõem outro modelo de aula, a saber:
aquele no qual o estudante age – lê, interpreta um texto filosófico, escreve –, enquanto o
professor de filosofia fornece subsídios para tais atividades.
Ou seja, minha hipótese de resposta à pergunta há pouco formulada é que o Plano de
Trabalho Docente, de fato, efetivo para o ensino-aprendizagem de filosofia em nível superior
seria aquele que privilegia a atividade filosófica dos estudantes em aula, sendo tal atividade
subsidiada pelo professor de filosofia. No decorrer do presente trabalho, pretendo ilustrar
como planejar e executar um tal plano de ensino-aprendizagem para a disciplina História da
Filosofia Medieval (cap. 3). Uma vez que esse plano tomará por base a hipótese de que o
processo de ensino-aprendizagem da filosofia em nível superior deve ser centrado na
atividade do estudante em aula, será preciso antes argumentar em favor de tal hipótese (itens
2.2 e 2.3) e apresentar o diagnóstico que levou a esta última (item 2.1). Dito isso, podemos
apresentar, a seguir, os objetivos que animam o presente trabalho.
1.2. Objetivos
Realizar o objetivo geral formulado acima passará pela implementação dos objetivos
listados a seguir:
1.3. Metodologia
a. material bibliográfico [i] sobre o ensino de filosofia, [ii] sobre filosofia e sua
relação com a aprendizagem de adultos, bem como [iii] sobre a pertinência,
para a filosofia contemporânea, do estudo e pesquisa sobre a história da
filosofia medieval; em especial com relação ao material [i] sobre ensino de
filosofia, é importante destacar que, dada a escassez de bibliografia sobre o
ensino de filosofia em nível superior, faremos uso, também, de estudos
relativos ao ensino de filosofia na Educação Básica, sempre buscando
considerar os diferentes contextos do ensino de filosofia em cada caso;
b. material bibliográfico sobre educação e estratégias didáticas – em particular,
no que diz respeito à educação de adultos e metodologias ativas.
1.4. Justificativa
Poder-se-ia esperar que, pela sua própria vocação para a problematização, a filosofia
tomasse o ensino e a aprendizagem de filosofia como um tema privilegiado de reflexão.
Infelizmente, esse não é o caso, como lamenta Guillermo Obiols, no texto que serve de
epígrafe para o presente trabalho e que reproduzo novamente, agora em tradução, abaixo:
De fato, como reconhece Fumat (1997, p. 70), as “pesquisas sobre didática da filosofia são
pouco desenvolvidas com respeito àquelas de outras disciplinas”6. E, se a bibliografia sobre
ensino-aprendizagem de filosofia na Educação Básica é pequena quando comparada a outras
áreas, ela é ainda mais exígua no que diz respeito ao ensino superior 7 , como já foi
mencionado acima. Sendo assim, acredito que o presente trabalho possa contribuir para a
reflexão sobre uma área ainda não muito explorada da discussão acerca da aprendizagem de
filosofia.
Entretanto, para além de uma vocação crítica da filosofia, há razões que tornam
urgente uma reflexão acerca do processo de ensino-aprendizagem de filosofia em nível
superior, particularmente tal como ele ocorre no contexto brasileiro. A meu ver, precisamente
pela falta de uma melhor compreensão sobre o planejamento da aprendizagem de filosofia em
nível superior muitas das competências que se esperaria encontrar em egressos de tal curso
não são verificadas, por exemplo, em exames como o Enade (cf. BRASIL, 2017c). Dessa
maneira, pareceu-me que seria útil apresentar uma proposta de planejamento de ensino-
aprendizagem de filosofia em nível superior que levasse em consideração os resultados
negativos verificados recentemente em tal curso, bem como outras dificuldades apontadas
frequentemente pelos docentes dessa área como impeditivos para uma formação efetiva dos
estudantes.
Dito isso, no que se segue, procuro mostrar como, a partir das dificuldades apontadas
por muitos docentes (e confirmadas, por exemplo, pelo Enade), é possível vislumbrar as
características daquele que seria um planejamento de aprendizagem efetivo para a área em
questão. É com base nos resultados desse estudo, apresentado no cap. 2, que poderemos, mais
adiante, propor o PTD para o componente curricular “História da Filosofia Medieval”.
5
“Si la filosofía se caracteriza por la necesidad de someter al examen y a la crítica todas las cosas, sorprende la
poca vocación de la comunidad filosófica universitaria por examinar sus propias prácticas pedagógicas, el objeto
que se halla más a la mano”.
6
“Les recherches en didactique de la philosophie sont peu développées par rapport à celles des autres
disciplines”. Com efeito, questiona-se mesmo a possibilidade de uma ‘didática da filosofia’, como se pode ver
em BOULANGER, 1997.
7
Dentre os trabalhos que lidam especificamente com o ensino-aprendizagem de filosofia em nível superior,
podemos citar: o próprio OBIOLS, 2002; FABBRINI, 2005; NOBRE; TERRA, 2007; UNESCO, 2007, p. 95-
149; os artigos coligidos em HENNING, 2010; CAHN, 2018. Vale citar, também, UNESCO, 1953, inclusive por
seu valor histórico.
17
2. PESQUISA DE CONTEÚDO
Recusar uma atitude resignada com respeito às dificuldades que afligem o processo de
ensino-aprendizagem de filosofia em nível superior, como proposto acima, não significa
ignorar que elas existam. O que importa, pelo contrário, é buscar dar a tais dificuldades
formulações precisas, que possibilitem a proposta de soluções. Dito isso, voltemos aos dois
problemas apontados pelos professores de filosofia segundo Galichet (1997, p. 44): [i]
‘insuficiência do nível intelectual e cultural dos alunos’ e [ii] uma ‘recusa de filosofar’ 8 .
Formulados assim, nas palavras do mesmo autor, “em um e outro caso [...] a responsabilidade”
do professor de filosofia “seria, então, retirada e remetida aos alunos, seja em razão de suas
8
Cf., acima, nota 1.
18
origens socioculturais e de seu percurso escolar anterior (‘eles não têm o nível’), seja devido a
um ato soberano de liberdade [...] (‘eles não querem’)”9 (ibid.). A meu ver, porém, ignorar
tais problemas é, para o professor, se furtar à sua responsabilidade. [F4] Ou seja, é preciso
reconhecer as dificuldades e, além disso, tomar para si a responsabilidade de, se não as
resolver, pelo menos, atenuá-las, minimizando suas consequências para o processo de ensino-
aprendizagem de filosofia10.
A pergunta é: como fazê-lo? Um primeiro passo, parece-me, seria compreender mais
precisamente as dificuldades apontadas, de modo que possamos estimar o que se está por
resolver. Sendo assim, a seguir, buscarei refletir sobre as duas temáticas destacadas por
Galichet: [i] formação insuficiente dos estudantes na Educação Básica; e [ii] essa ‘recusa de
filosofar’ que, como veremos, pode ser muito bem compreendida como uma falta de
motivação para o estudo de filosofia. Em ambos os casos, considerarei essas dificuldades na
medida em que afetam o processo de ensino-aprendizagem de filosofia em nível superior.
Novamente, faço isso não para retirar do professor a responsabilidade pelo ensino, mas antes
para propor maneiras de lidar com tais dificuldades, de modo a possibilitar um processo
efetivo de ensino-aprendizagem de filosofia em nível superior. Por fim, veremos que o
desafio de lidar com essas dificuldades tornar-se ainda maior devido à [iii] falta de formação
pedagógico-didática dos professores de filosofia em nível superior.
Para ser preciso, François Galichet menciona essa pretensa dificuldade ao dissertar
sobre a educação francesa em nível médio (ibid., p. 37), porém ela é igualmente notável no
ensino de filosofia em nível superior no Brasil. Isso é particularmente marcante no que diz
respeito a duas competências específicas mencionadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais
para a graduação em filosofia, a saber: “Capacidade para análise, intepretação e comentários
de textos teóricos [...]”; e “Capacidade de leitura e compreensão de textos filosóficos em
língua estrangeira” (BRASIL, 2001b, p. 3). Com efeito, podemos dizer que um dos principais
9
“Dans l’un et l’autre cas sa responsabilité serait donc dégagée et renvoyée à celle des élèves, soit en raison de
leurs origines socio-culturelles et de leur parcours scolaire antérieur (‘ils n’ont pas le niveau’), soit du fait d’un
acte souverain de liberté que l’enseignant ne saurait forcer sans contredire l’essence même de son enseignement
(‘ils ne veulent pas’)”.
10
Isso não significa afirmar que os professores devam ter responsabilidade exclusiva sobre o processo de ensino-
aprendizagem. Com efeito, assim como não devem atribuir exclusivamente ao estudante a responsabilidade por
sua formação, também não devem reclamá-la somente para si. Pelo contrário, defende-se aqui que ao professor
cumpre assumir a responsabilidade pelo planejamento de um processo de ensino-aprendizagem que permita, tal
como proposto por Domingos Fernandes (2006, p. 32), em sua discussão sobre avaliação da aprendizagem, “uma
partilha de responsabilidades em matéria de ensino, avaliação e aprendizagens e, consequentemente, uma
redefinição dos papeis dos alunos e dos professores”.
19
11
“Der Text ist und bleibt trotz aller technischen Innovationen und der zunehmenden Visualisierung unserer
Kommunikation neben dem Dialog in beiden Sekundarstufen das wichtigste Medium des
Philosophieunterrichts”.
12
Embora pareça redundante à primeira vista, a expressão ‘letramento em leitura’ é necessária, porque o PISA
avalia, ainda, o ‘letramento matemático’ (definido como “a capacidade de formular, empregar e interpretar a
matemática em uma série de contextos, o que inclui raciocinar matematicamente e utilizar conceitos,
procedimentos, fatos e ferramentas matemáticos para descrever, explicar e prever fenômenos” – BRASIL, 2019,
p. 98) e o ‘letramento científico’ (definido como “a capacidade de se envolver com questões relacionadas com a
ciência e com a ideia da ciência, como cidadão reflexivo. Uma pessoa letrada cientificamente, portanto, está
disposta a participar de discussão fundamentada sobre ciência e tecnologia [...]” – ibid., p. 118). No que diz
respeito à definição de ‘letramento em leitura’, note-se que ela busca agregar, de um lado, referências à relação
entre indivíduo e texto, bem como, de outro, o contexto social das atividades de leitura e escrita. Como mostrado
por Magda Soares (2017, p. 65-82), é justamente esse caráter simultaneamente individual e social do letramento
que o torna uma noção de difícil definição. Nas palavras da autora, “[...] definir letramento é uma tarefa
altamente controversa; a formulação de uma definição que possa ser aceita sem restrições parece impossível”
20
Pois bem, se nos voltamos para os resultados do PISA 2018, notamos uma grande
discrepância entre os resultados médios obtidos pelos países membros da OCDE e pelo Brasil,
no que diz respeito ao nível de letramento em leitura. Enquanto, nos países membros da
OCDE, o maior percentual (26,0%) de estudantes está localizado no nível 3, no caso do Brasil
o maior agrupamento (26,7%) de estudantes se encontra no nível 1a, seguido pelo nível 2,
com 24,5% dos estudantes (BRASIL, 2019, p. 67-68). Ou seja, cerca de 50% dos nossos
estudantes com 15 anos possuem, na melhor das hipóteses, o nível mínimo de letramento.
Resultados desse tipo são reiterados por outras pesquisas. Um exemplo é o Indicador
de Alfabetismo Funcional (Inaf), produzido pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG
Ação Educativa, em parceria com o IBOPE. Para avaliar os níveis de alfabetismo na
população brasileira, o Inaf (INSTITUTO PAULO MONTENEGRO, 2018, p. 7) distingue
cinco níveis de alfabetismo, divididos em dois grandes grupos: Analfabetos Funcionais
(Analfabeto, Rudimentar) e Funcionalmente Alfabetizados (Elementar, Intermediário,
Proficiente). No nível Proficiente, um leitor “[e]labora textos de maior complexidade [...] com
base em elementos de um contexto dado e opina sobre o posicionamento ou estilo do autor do
(ibid., p. 82), muito embora ela concorde que “[u]ma definição geral e amplamente aceita é necessária,
especialmente quando se pretende avaliar e medir níveis de letramento [...]” (ibid.).
13
“At Level 2, students begin to demonstrate the capacity to use their reading skills to acquire knowledge and
solve a wide range of practical problems. Students who do not attain Level 2 proficiency in reading often have
difficulty when confronted with material that is unfamiliar to them or that is of moderate length and complexity”.
21
texto” (ibid., p. 21). Ou seja, esse é exatamente o nível de proficiência necessário para o
trabalho com textos em filosofia, para que seja possível ler um texto filosófico e posicionar-se
textualmente a respeito das teses defendidas em tal texto. Entretanto, o Inaf 2018 (ibid., p. 11,
tb. 3) mostrou que 42% das pessoas com Ensino Médio possuem alfabetismo em nível
elementar, isto é, conseguem selecionar “uma ou mais unidades de informação, observando
certas condições, em textos diversos de extensão média realizando pequenas inferências”
(ibid., p. 21). Ainda dentre as pessoas com Ensino Médio completo, somente 12% possuem
alfabetismo em nível proficiente, número equivalente às pessoas com mesmo nível
educacional consideradas analfabetas funcionais (13%)! Para completar esse quadro
desolador, apenas 34% das pessoas com nível superior atingem um alfabetismo proficiente
(ibid., p. 11, tb. 3)14.
É possível observar o profundo impacto dessa situação para o ensino de filosofia em
nível superior se nos voltarmos para os resultados do Exame Nacional de Desempenho dos
Estudantes (Enade) 2017 para a área de filosofia, organizado com periodicidade trienal para
cada área pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
O Enade 2017 da área de filosofia (BRASIL, 2017c) foi uma prova composta por 40 questões
– 10 questões de Formação Geral (8 de múltipla-escolha e 2 discursivas) e 30 do Componente
Específico (27 de múltipla-escolha e 3 discursivas) –, aplicada a estudantes concluintes, com
pelo menos 80% da carga horária mínima do curso já cumprida até o momento da inscrição
no exame (ibid., p. 7-8). Na área de filosofia, algumas questões do Componente Específico
possuíam duas versões, de modo a distinguir, ainda que não completamente, as provas do
bacharelado em filosofia e da licenciatura em filosofia. Claramente, o foco da prova é a
capacidade de leitura de textos (filosóficos ou não) por parte dos estudantes – mesmo as
questões que possuem material imagético são acompanhadas de textos para interpretação em
conjunto com a imagem. Em menor grau, a prova avalia também a capacidade de escrita.
Assim, em face dos dados descritos acima, não surpreende que os resultados do Enade 2017
sejam preocupantes. Em uma escala de 100, as médias nacionais de acerto para as provas
foram 45,3 na licenciatura e 46,7 no bacharelado (ibid., p. 197, tab. 6.1), sendo ainda piores se
focarmos unicamente nos Componentes Específicos de filosofia: 43,2 na licenciatura e 44,1
14
Cabe mencionar aqui os índices de analfabetismo do IBGE. Segundo o relatório sobre educação da Pesquisa
Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) 2018, naquele ano a Taxa de Analfabetismo entre pessoas
de 15 anos ou mais era calculada em 6,8% e em 18,6% entre as pessoas de 60 anos ou mais (IBGE, 2019a, p. 1).
Note-se que, para o IBGE, é considerada alfabetizada “[...] a pessoa capaz de ler e escrever pelo menos um
bilhete simples no idioma que conhecesse”, sendo consideradas em ‘condição de alfabetização’ – isto é,
passíveis de ser classificadas como alfabetizadas ou não – as “pessoas de 5 anos ou mais de idade” (IBGE,
2019b, p. 19). Como se pode notar, o Inaf busca estabelecer uma avaliação mais nuançada ao distinguir diversos
níveis de alfabetismo, enquanto que o IBGE propõe uma distinção pontual entre alfabetizados e analfabetos.
22
no bacharelado (ibid., p. 207, tab. 6.5). Quanto às questões discursivas de Formação Geral,
lemos no Relatório Síntese para a área de filosofia (ibid., p. 252 - grifo meu):
Lembremos de que falamos, aqui, sobre estudantes concluintes dos cursos de filosofia, uma
área na qual, como notamos há pouco, tiveram fundamentalmente que lidar com material
textual complexo.
Mas, como explicar que tantos estudantes com dificuldades elementares em leitura e
expressão escrita sejam selecionados nos concorridos concursos de acesso ao nível superior
brasileiro? Certamente, não é meu objetivo aqui buscar uma resposta a essa pergunta.
Contento-me, assim, em citar, à guisa de hipótese, a seguinte passagem de Magda Soares
(2017, p. 85 - grifos no orig.):
Se for esse caso, podemos hipotetizar que o letramento adquirido na escola e comprovado
pelos concursos de acesso ao nível superior não vai, em geral, muito além da capacidade de
solucionar testes de leitura e escrita padronizados. Porém, uma vez que o estudante se veja
diante de um problema não antecipado, é provável que suas capacidades escolares de escrita e
leitura não lhe forneçam subsídios para buscar possíveis soluções.
[F5]Em outras palavras, as capacidades de leitura e escrita escolares parecem, em geral,
se distinguir muito da competência em leitura e escrita, tomando competência no sentido que
Philippe Perrenoud (1999, p. 15) atribui a tal vocábulo. Para este último, com efeito,
23
15
“Posséder des connaissances ou des capacités ne signifie pas être compétent [...]. L’actualisation de ce que
l’on sait dans un contexte singulier (marqué par des relations de travail, une culture institutionnelle, des aléas,
des contraintes temporelles, des ressources) est révélatrice du ‘passage’ à la compétence”.
16
Autores como Matthew Lipman et al. (1980, p. 16) buscam apontar uma relação estreita entre leitura e
pensamento (cf. nota 47, adiante). Essa aproximação (sem identificação) entre leitura e pensamento é tributária
da aproximação, mais geral, entre linguagem e pensamento proposta no decorrer do século XX tanto no contexto
da psicologia como naquele da filosofia. No campo da psicologia, tal posição é notável em Lev Vigotski (2018,
p. 396), segundo o qual o “pensamento e a palavra não estão ligados entre si por um vínculo primário. Este surge,
modifica-se e amplia-se no processo do próprio desenvolvimento do pensamento e da palavra”. Já num contexto
filosófico, posição semelhante surge nas Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein (2001, p. 92, § 339):
“Pensar não é um processo incorpóreo que empresta vida e sentido ao discurso e que se possa desligar do
discurso [...] [Denken ist kein unkörperlicher Vorgang, der dem Reden Leben und Sinn leiht, und den man vom
Reden ablösen könnte ...]”. Se aceitarmos, como Lipman et al. (1980), essa aproximação psicológico-filosófica
entre linguagem e pensamento, podemos dizer que o baixo nível de habilidade em leitura e escrita adquirida na
Educação Básica tem efeitos negativos profundos para a aquisição das mais diversas habilidades e competências
associadas ao pensamento. Retornaremos, no item 2.2, à concepção de educação desenvolvida por Lipman.
24
modo como tais estudantes foram postos em contato com os textos filosóficos no decorrer do
curso não foi efetivo em lhes capacitar como leitores – seja de textos filosóficos ou não.
Enfim, que os estudantes de filosofia em nível superior deixem, em geral, a Educação
Básica com baixos níveis de letramento e continuem em um nível relativamente próximo de
letramento ao fim do curso não favorece a responsabilização dos estudantes por esse fraco
desempenho. Pelo contrário, parece que os professores de filosofia em nível superior são
igualmente incapazes de, salvo exceções, formar bons leitores. Enfim, a formação insuficiente
dos estudantes na Educação Básica não justifica uma pretensa impossibilidade do ensino de
filosofia. Antes, ela exige do professor uma formação pedagógico-didática tal que lhe permita
planejar e executar um plano de ensino-aprendizagem de filosofia que considere as
capacidades de leitura e escrita de cada estudante17, buscando continuamente ampliá-las por
meio do estudo de textos filosóficos18.
A segunda dificuldade que, de acordo com François Galichet (1997, p. 44), é apontada
pelos professores de filosofia como justificativa para a impossibilidade de se ensinar filosofia
era a “recusa de filosofar”19 (ibid.) por parte dos estudantes, “um ato soberano de liberdade”20
17
Advoga-se aqui, como se verá adiante (item 2.3), que o processo de ensino-aprendizagem de filosofia em nível
superior envolva um processo de aprendizagem das competências de leitura e escrita, a partir das habilidades
mais ou menos desenvolvidas já adquiridas pelos estudantes na Educação Básica. Assim, este deve ser um
processo de aprendizagem significativa de leitura e escrita, entendendo ‘aprendizagem significativa’, como D.
Ausubel (1963, p. 34), enquanto “um tipo específico de processo de aprendizagem, no qual o estudante emprega
um ‘conjunto’ para incorporar em sua estrutura cognitiva [...] materiais potencialmente significativos que sejam
subsumíveis por entidades estabelecidas naquela estrutura [The essential feature of meaningful learning is that it
embodies a distinctive kind of learning process in which the learner employs a ‘set’ to incorporate within his
cognitive structure ... potentially meaningful materials which are subsumable by established entities within that
structure]”. Em nosso caso, o ‘conjunto’ inicial seriam a habilidades mais ou menos desenvolvidas de leitura e
escrita adquiridas pelos estudantes no período escolar. Está claro, portanto, que o professor de filosofia deverá
utilizar estratégias que permitam diagnosticar as capacidades de leitura e escrita dos estudantes de dada turma,
para somente em seguida propor atividades de leitura e escrita dirigida de textos filosóficos. Voltaremos a esses
temas mais pausadamente nos caps. 2 e 3 deste trabalho.
18
O quadro descrito aqui se torna ainda mais complexo se notamos que o referido Inaf inclui, em seu conceito de
‘alfabetismo’, não apenas o letramento, mas também o numeramento: “[p]ara o Inaf, Alfabestimo é a capacidade
de compreender e utilizar a informação escrita e refletir sobre ela [...]. Dentro desse campo, distinguem-se dois
domínios: o das capacidades de processamento de informações verbais, que envolvem uma série de conexões
lógicas e narrativas, denominada pelo Inaf como letramento, e as capacidades de processamento de informações
quantitativas, que envolvem noções e operações matemáticas, chamada numeramento” (INSTITUTO PAULO
MONTENEGRO, 2018, p. 4 - grifos no orig.). Ou seja, no que diz respeito ao Inaf, os baixos índices de
letramento estão associados a baixos índices de numeramento. Ressalte-se que os preocupantes resultados da
avaliação de ‘letramento matemático’ no PISA 2018 (cf. nota 12, acima) apontam para a mesma correlação (cf.
BRASIL, 2019, p. 109-110). Essa falta de habilidade em lidar com operações matemáticas e relações numéricas
pode ser tão prejudicial para o ensino-aprendizagem de filosofia quanto o baixo letramento, haja vista a estreita
relação construída entre matemática e filosofia no decorrer da história desses campos do saber (cf. MAINZER,
2013).
19
Cf., acima, nota 1.
20
Cf., acima, nota 9.
25
(ibid.) destes últimos, acerca do qual os professores nada poderiam fazer. Formulada dessa
maneira, tal dificuldade parece, decerto, insolúvel. Além disso, é preciso reconhecer que
muitas vezes os estudantes claramente não se engajam nas atividades de ensino. Porém, seria
essa atitude realmente fruto de uma decisão livre de natureza psicológica (ou, quiçá,
psicanalítica), consciente ou não, de se ‘recusar a filosofar’ ou de ‘não querer aprender’? Se
sim, não há muito o que possamos fazer como professores! Mas, uma vez que pretendemos
considerar o processo de ensino-aprendizagem na medida em que o professor pode nele
intervir, tomando para si essa responsabilidade, podemos perguntar: e se a ausência de
engajamento dos estudantes for, antes, responsabilidade do professor e não do estudante?
Como diz Steven Cahn (2018, p. 4):
Saber um tema e saber como ensiná-lo efetivamente são bem diferentes. Sem
dúvida, você se lembra de que, durante seus próprios cursos de graduação e
pós-graduação, você experimentou muita instrução ineficiente. O problema
não era principalmente que os professores fossem desinformados sobre o
tema, mas que eles não sabiam como engajar [engage] os estudantes.
Apresentava-se informação, mas o processo era chato, confuso e
insatisfatório21.
Ora, para Cahn (ibid.), um dos elementos fundamentais para engajar o estudante é a
motivação. Podemos, então, perguntar: e se aquilo que alguns professores veem como uma
‘recusa a filosofar’ ou ‘a aprender’ por parte do estudante for, de fato, uma ausência de
motivação para estudar o tema? Agora se torna possível para o professor oferecer uma
solução para esse problema que era, antes, aparentemente insolúvel. Mas, como motivar o
estudante? Para respondê-lo, precisamos recorrer a trabalhos que nos permitam buscar uma
compreensão, ainda que introdutória ou inicial, sobre o que seria a motivação do estudante22.
Um primeiro passo para a compreensão da noção de motivação seria a distinção entre
motivação intrínseca e motivação extrínseca. No contexto da discussão sobre a motivação
para o estudo, uma interessante apresentação das duas noções é fornecida por Roger
Mucchielli (2016). Para ele, as motivações extrínsecas “são os incentivos (ou estímulos)
21
“Knowing a subject and knowing how to teach it effectively are quite different. No doubt you remember that
during your own undergraduate and graduate careers you experienced much ineffective instruction. The problem
was not primarily that the teachers were uninformed about the subject but that they did not know how to engage
students. Information was presented, but the process was boring, confusing or unsatisfying”.
22
Como é patente, no presente trabalho partimos do princípio de que cabe falar em motivação do estudante. No
entanto, é importante destacar que determinadas correntes de psicologia rejeitam um discurso sobre motivação
(cf. TODOROV; MOREIRA, 2005). Daí que um autor como B. F. Skinner (1968, p. 144-168) prefira falar não
em ‘motivar o estudante’, mas em ‘reforçar comportamentos’. Decerto, não fará parte do presente trabalho
aprofundar esta discussão, mas considero relevante sublinhar que estamos, aqui, conscientemente, adotando a
noção de ‘motivação’ como válida para nossa reflexão sobre o processo de ensino-aprendizagem da filosofia.
26
utilizados para chamar ou captar a atenção”23 (ibid., p. 91). Tais estímulos podem ser de dois
tipos, na medida em que são voltados (ibid.) 24 : seja para evitar a distração (como a
manutenção da disciplina, avaliações ‘surpresa’ etc.), seja para excitar a atenção (a exemplo
das diversas estratégias discursivas ou didáticas que permitem captar a atenção do auditório).
Já as motivações intrínsecas, na educação, seriam os “interesses espontâneos [...] dos
alunos”25 (ibid., p. 93). Quanto a estes, seria papel do professor “utilizar e [...] ‘dirigir’ os
interesses espontâneos” 26 (ibid.) dos estudantes. O problema é que, enquanto motivações
extrínsecas podem ser criadas pelo professor, as motivações intrínsecas são, justamente,
espontâneas – elas partem do próprio estudante, não podendo, por definição, ser impostas de
fora. Mas, e se nosso estudante não possuir motivação interna para o estudo da filosofia? Ao
que parece, retornamos ao problema inicial da impossibilidade de ensino da filosofia por
razões internas ao estudante – simplesmente, agora não dizemos que ele decidiu não aprender
ou não filosofar, mas que ele não possui motivação intrínseca para fazê-lo. Em todo caso, não
parece que possamos fazer muito como professores...
É justamente para escapar a esse aparente caminho sem saída que Mucchielli sugere a
possibilidade não de criarmos motivações intrínsecas (pois isso, como vimos, seria uma
contradição), mas de explorá-las para fomentar a aprendizagem. Assim, ele sugere que haja
“motivações intrínsecas exploráveis [motivations intrinsèques exploitables]” (ibid., p. 95).
Isto é, motivações intrínsecas que, muito embora não sejam diretamente motivações para o
estudo ou a aprendizagem, podem ser exploradas ou manipuladas (ibid., p. 93-95) para que os
estudantes se dediquem ao estudo de determinado tema. Nesse caso, caberia ao professor, no
início de cada etapa do processo de aprendizagem, buscar diagnosticar as motivações
intrínsecas de seus estudantes, de modo a poder explorá-las, planejando e executando um
processo de ensino-aprendizagem que a elas corresponda. Mucchielli propõe uma complexa
classificação das motivações intrínsecas exploráveis, dividindo-as em individuais e comuns,
bem como destacando certas motivações típicas dos adultos (ibid., p. 96-99). Não será o caso,
porém, de reproduzir essa classificação aqui. Mais importante é notar que, para ele, talvez
essas:
23
“Nous appellerons ‘motivations extrinsèques’ les incentifs (ou stimuli) utilisés pour éveiller et capter
l’attention”.
24
“La pédagogie classique se sert de deux ensembles convergentes de moyens: d’une part l’évitement des
facteurs de distraction (c’est-à-dire d’attention à autre chose qu’à l’objet de l’instruction), d’autre part la mise en
oeuvre d’excitants de l’attention spontanée”.
25
“[...] intérêts spontanés (donc authentiquement intrinsèques) des élèves [...]”. A relação entre motivação e
interesse também é destacada por J. Piaget (1975, p. 85-86), no quadro de sua concepção de educação (sobre a
qual, cf. adiante a nota 120).
26
“L’instructeur est amené à utiliser et à ‘diriger’ les intérêts spontanés, c’est-à-dire à les manipuler”.
27
27
“Peut-être toutes les motivations ci-dessus se résument-elles en une seule qui domine largement le tableau: la
signification de la tâche actuelle. Certes, il s’agit d’abord, pour chaque enseigné, de la signification que la tâche
a pour lui, avec tout ce que cela implique de subjectif, mais aussi ce qu’il en attend pour lui et pour son avenir,
pour l’atteinte de ses objectifs, comme jalon sur l’itinéraire qu’il va ou veut parcourir”.
28
Aproximamo-nos aqui, novamente, da noção de ‘aprendizagem significativa’ (cf. nota 17).
29
Voltaremos à noção de feedback adiante, no item 3.1.
28
alunos com essa orientação entendem que sucesso nas realizações escolares
consiste na melhora em conhecimento e habilidades [...]. Além disso, tais
alunos têm a convicção ou crença de que os resultados positivos nas tarefas
derivam maximamente de esforço, que é um fato interno e sob seu controle
(ibid., p. 61-62).
Já a meta performance pode ser distinguida em dois componentes (ibid., p. 65-66): “o de
aproximação (busca de aparecer como inteligente, ou de ser o primeiro ou de figurar entre os
melhores) e o de evitação (de aparecer como incapaz ou de estar entre os mais fracos da
classe)”.
Portanto, basicamente, haveria três metas de realização: meta aprender, meta
performance-aproximação e meta performance-evitação. Essa troica se relaciona de maneira
complexa no processo de ensino-aprendizagem, como mostra Bzuneck (ibid., p. 66), tomando
diversos estudos por referência:
30
A oposição entre ‘processamento de profundidade’ e ‘processamento de superfície’ é reminiscente da chamada
‘teoria de níveis de processamento (levels of processing)’. Segundo essa teoria, desenvolvida inicialmente em
CRAIK; LOCKHART, 1972, a retenção de informação na memória estaria diretamente associada à
profundidade de processamento de tal informação: “[...] sugere-se que a marca na memória é mais bem descrita
em termos de profundidade de processamento ou grau de estímulo de elaboração. Uma análise mais profunda
leva a uma marca mais persistente [it is suggested that the memory trace is better described in terms of depth of
processing or degree of stimulus elaboration. Deeper analysis leads to a more persistent trace]” (ibid., 677).
Para os autores, o processamento de profundidade se caracteriza pelo estabelecimento de uma relação entre o
estímulo ou a informação recebida e outras estruturas cognitivas já existentes: “[e]stímulos muito familiares e
significativos são compatíveis, por definição, com estruturas cognitivas existentes. Tais estímulos (por exemplo,
desenhos ou frases) serão processados em um nível profundo mais rapidamente do que os estímulos menos
29
significativos e serão bem retidos [Highly familiar, meaningful stimuli are compatible, by definition, with
existing cognitive structures. Such stimuli (for example, pictures and sentences) will be processed to a deep level
more rapidly than less meaningful stimuli and will be well-retained]” (ibid., p. 676). Assim, o processamento de
profundidade é ‘profundo’, porque “implica um maior grau de análise semântica ou cognitiva [implies a greater
degree of semantic or cognitive analysis]” (ibid., p. 675), pelo qual a nova informação é relacionada às
informações já possuídas previamente. Ao que parece, portanto, novamente não estamos longe da concepção de
aprendizagem significativa desenvolvida por D. Ausubel (cf. nota 17, acima) – em ambos os casos, a
aprendizagem se associa à possibilidade de relacionar informações novas àquelas já possuídas. Assim, quando se
diz que a meta aprender está associada ao processamento de profundidade, isso significa que estudantes
orientados por essa meta tendem a relacionar novas informações obtidas com as estruturas cognitivas que já
possuem, fazendo com que os estímulos recebidos formem traços mais persistentes em suas memórias. Por outro
lado, os estudantes orientados pela meta performance-aproximação desenvolvem apenas uma memória de curto
prazo acerca das novas informações obtidas, sem relacioná-las a conhecimentos anteriores e, portanto, realizando
apenas um processamento de superfície dessas novas informações.
30
31
Cf., acima, nota 21.
32
Cabe destacar que, no contexto da reflexão sobre educação, a própria noção de ‘massificação’ pode assumir
conotações ou significados diversos dependendo do autor que tomemos por base para nosso estudo. Por exemplo,
Paulo Freire, em seu clássico Educação como prática da liberdade, se utiliza de uma noção preponderantemente
negativa de ‘massificação’, ao dizer que a “produção em série, como organização de trabalho humano, é,
possivelmente, dos mais instrumentais fatores de massificação do homem [...]. Desumaniza-o [...]. Faz dele um
ser passivo” (2011, p. 118, nt. 56). Da mesma maneira, na Pedagogia do oprimido, a ‘massificação’ se opõe à
‘libertação’ (2018, p. 199, nt. 111). Não é, porém, a essa concepção de massificação que nos referimos. De fato,
a noção de ‘massificação’ da educação nos interessa aqui não tanto como uma caracterização (ou, mesmo,
denúncia) da situação imposta ao homem na sociedade industrializada contemporânea, mas antes como uma
descrição estatística (quantitativa e qualitativa) das condições de acesso ao ensino superior. Em poucas palavras,
‘massificação’ aqui não possui conotação negativa, assim como também não possui conotações necessariamente
positivas; pelo contrário, queremos considerá-la com os ganhos e desafios que traz consigo.
31
do sistema de ensino superior, esse “crescimento dos números também significou uma maior
diversidade dos estudantes com respeito às suas origens sociais e outras características, a suas
motivações, aspirações, interesses [...]”33 (1973, p. 46). Essa diversificação dos estudantes,
por sua vez, contribui para a democratização da sociedade:
33
“As I have suggested several times in this essay, the growth of numbers has also meant an increasing diversity
of students in respect to their social origins and other characteristics, in their motivations, aspirations, interests,
and adult careers”.
34
“The movement toward mass higher education will contribute to this fundamental democratization of society,
but also the democratization of society will feed back upon and contribute to the extension of educational
opportunities”.
35
Mais adiante, no próximo item, veremos como o caráter democrático do ensino, atrelado à diversidade de
interesses, é fundamental em uma discussão sobre o processo de ensino-aprendizagem de filosofia.
32
estudo. Somente assim, dizíamos, seria possível superar aquela aparente ‘falta de vontade de
aprender’ apontada nos estudantes por professores da área de filosofia e que buscamos
reinterpretar como ausência de motivação para o estudo.
Nesse caso, uma vez que há aqui a centralidade da consideração do interesse do
estudante para a efetivação de uma aprendizagem significativa, quanto maior a diversificação
dos interesses dos estudantes, tanto mais difícil será o trabalho aqui proposto. Por isso mesmo,
um autor como Miguel Zabalza (2007), igualmente interessado no fenômeno da massificação
do ensino superior e da consequente diversificação do público estudantil (ibid., p. 25, 27-28),
aponta como resultado desse processo, no que diz respeito ao professor: “a necessidade de
reforçar a dimensão pedagógica da nossa docência para adaptá-la às condições variáveis de
nossos estudantes” 36 (ibid., p. 32). Em poucas palavras, se objetivamos um processo de
ensino-aprendizagem efetivo, que parta dos interesses dos estudantes para possibilitar uma
aprendizagem significativa, a massificação – e a consequente diversificação de interesses
discentes – exige do professor uma formação pedagógico-didática de qualidade.
36
“Por eso se ha hecho patente la necesidad de reforzar la dimensión pedagógica de nuestra docencia para
adaptarla a las condiciones variables de nuestros estudiantes”.
37
Essa tabela foi desenvolvida em colaboração com os colegas Rodrigo, Leonildo e Michelli para a apresentação
da “Comunicação 4 – Educação superior brasileira: transição para sistema de massa” no curso Fundamentos da
Educação Superior, ministrado pelo prof. Marcelo G. Furtado, durante o 1º sem./2018, como parte da
Especialização em Docência do Ensino Superior (Senac Aclimação). Cabe aproveitar este espaço para definir o
que se entende aqui por Taxa de Matrícula Bruta e Taxa de Matrícula Líquida. Ambas são indicadores
educacionais aceitos e definidos pela UNESCO (2009). A Taxa de Matrícula Bruta (Gross Enrolment Ratio) é “a
matrícula total em um nível específico de educação, desconsiderada a idade, expressa como uma porcentagem da
população na idade escolar apropriada oficial que corresponda ao mesmo nível de educação em um dado ano
escolar [Total enrolment in a specific level of education, regardless of age, expressed as a percentage of the
eligible official school-age population corresponding to the same level of education in a given school year]”
(ibid., p. 9); já a Taxa de Matrícula Líquida (Net Enrolment Rate) é definida como a “matrícula do grupo de
idade oficial para um dado nível de educação expresso como uma porcentagem da população correspondente
[Enrolment of the official age group for a given level of education expressed as a percentage of the
corresponding population]” (ibid., p. 10).
33
Não obstante o destaque para a relevância social da formação de professores, já neste trecho
os autores chamam nossa atenção para um problema grave: a descontinuidade das políticas de
formação de professores. Poderíamos nos referir, igualmente, ao despreparo das diferentes
instituições associadas à formação de professores. Assim, muito embora desde sua primeira
versão – e ainda hoje, após diferentes redações38 – o art. 62 da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (lei 9.394/96), admitindo a formação de professores em nível médio para
certas fases inicias da Educação Básica, dê destaque à sua formação em nível superior39, Gatti
et al (2019, p. 308) sublinham a:
pretendem passar por tal formação (os futuros professores), como também aquelas dos futuros
estudantes desses professores em formação. Haveria, portanto, um desalinhamento entre o
planejamento desses cursos de formação, as expectativas do público a ser formado e as
necessidades do nível de ensino em que esse público atuará profissionalmente. De um ponto
de vista mais amplo, podemos acrescentar, haveria um desalinhamento entre o incentivo à
formação dos professores em nível superior na LDB (lei 9.394/96) e a falta de um
planejamento educacional por parte das instituições de ensino superior que, efetivamente,
forneça ao futuro professor uma formação de qualidade.
Ora, como fica patente no último trecho destacado, estamos até o momento
discorrendo sobre a formação de professores para atuação na Educação Básica. Assim,
poderiam essas mesmas dificuldades serem encontradas na formação de professores para
atuação no Ensino Superior?
A resposta a essa pergunta é complexa, uma vez que nem mesmo podemos dizer que
haja cursos para a formação de professor em nível superior. Como dizem Gaeta e Masetto
(2013, p. 10 - grifo no orig.), o “professor iniciante” no nível superior “apresenta uma
primeira grande expectativa de aprender como exercer seu novo ofício, pois, na maioria dos
casos, não lhe foi oferecida durante sua formação a oportunidade de aprender a ser docente no
ensino superior”. Descrevendo a mesma dificuldade, Pimenta e Anastasiou (2014, p. 36) nos
dizem que:
ensina, isto é, dispõe os conhecimentos aos alunos. Se estes aprendem ou não, não é problema
do professor, especialmente do universitário, que muitas vezes está ali como uma forma de
concessão” (PIMENTA; ANASTASIOU, 2014, p. 36-37). Em outras palavras, o professor em
nível superior pode terminar por não se ver como responsável pela formação dos estudantes
que frequentam suas disciplinas – assim, ocorre aquilo que Miguel Zabalza denominou como
um “esvaziamento do sentido formativo de nosso papel na Universidade”40 (2007, p. 44).
Talvez esteja associado a esse esvaziamento formativo e à desvalorização da formação
didático-pedagógica do professor universitário um recurso típico da formação superior em
filosofia – a saber, aquilo que, como já mencionado, François Galichet chama de ‘mimética’:
“[...] a exposição, diante dos alunos, de um pensamento e/ou de uma livre escolha,
argumentado e organizado [raisonné], que solicita a liberdade deles, sem jamais a compelir”41
(1997, p. 44). Em uma passagem que já citamos acima, o autor completa: esta “abordagem
[...] não pode ser senão essencialmente mimética (‘pensar diante dos alunos para fazê-los
pensar’)” 42 (ibid.). A tarefa do estudante, nesse caso, seria observar o ‘livre pensar’ do
professor para, ao fazê-lo, aprender a ‘pensar livremente’ por si mesmo.
Um primeiro problema com essa estratégia é que nada garante que, ao observar o
‘livre pensar’ do professor, o estudante aprenderá a ‘pensar livremente’. Com efeito, se, como
Neil Postman e Charles Weingartner (1969, p. 19), crermos que “o conteúdo crítico de
qualquer experiência de aprendizagem é o método ou processo por meio do qual a
aprendizagem ocorre”43, a ‘mimética’ descrita por Galichet não produzirá ‘livres-pensadores’,
mas sim estudantes preparados unicamente para observar passivamente outros exercerem
uma tal liberdade de pensamento. Ensina-se ao estudante, portanto, que deve sempre esperar
que outro pense por ele. Porém, ainda que desejemos que alguns dos estudantes consigam
superar o estágio de observação e, unicamente por meio desta, aprendam a ‘livremente pensar’
por si mesmos, Galichet (1997, p. 45) nos diz, o “ensino de filosofia assim concebido não
pode ser, por essência, senão elitista” 44 . Com efeito, já de saída, consideraríamos que
atingirão a formação necessária em filosofia somente aqueles estudantes que, por si mesmos,
conseguirem ultrapassar (por algum mecanismo próprio, inacessível ao professor) a
observação passiva do ‘livre pensar’. Com isso, o professor se abstém da responsabilidade
40
“[...] vaciamiento del sentido formativo de nuestro papel en la Universidad”.
41
“Celui-ci ne pourrait consister qu’en une activité d’instruction, c’est-à-dire l’exposition, devant les élèves,
d’une pensée et/ou d’un choix libre, argumenté et raisonné, qui solicite leur liberté sans jamais la contraindre”
(grifo no orig.).
42
Cf. nota 4, acima.
43
“[...] the critical content of any learning experience is the method or process through which the learning
occurs”.
44
“L’enseignement philosophique ainsi conçu ne peut être, par essence, qu’élitiste”.
36
sobre a formação dos estudantes, pois deixa de exercer uma de suas competências mais
fundamentais: aquela de planejar o processo de aprendizagem a ser colocado em execução (cf.
GAETA; MASETTO, 2013, p. 100)45. Assim, a falta de formação didático-pedagógica dos
professores de ensino superior (e, em particular, dos professores de filosofia em nível
superior) pode terminar por descaracterizá-los enquanto professores de suas respectivas
disciplinas.
Parece-me, porém, que os “professores [...] não podem abster-se de sua
responsabilidade em guiar o processo de aprendizagem” (CAHN, 2018, p. 1). De fato, o
presente trabalho é o resultado de um esforço pessoal por superar essa ausência de formação
inicial como professor, com vistas à atuação no nível superior. Por isso mesmo, a concepção
de ensino-aprendizagem de filosofia que descreverei aqui rejeita a possibilidade de uma
aprendizagem da filosofia por ‘mimetismo’, retomando o termo de Galichet. Pelo contrário,
proporemos um modelo de aprendizagem de filosofia (e, em especial, do componente
45
Retornaremos à noção de planejamento adiante, no item 3.1. Vale notar desde já, no entanto, que a ênfase na
caracterização do professor como aquele capaz de planejar um processo de ensino-aprendizagem está
fundamentalmente associada à concepção da prática educacional como uma prática intencional. Nas palavras de
J. C. Libâneo (2013, p. 132): “[...] a prática educacional se orienta, necessariamente, para alcançar determinados
objetivos, por meio de uma ação intencional [...]”. Assim, o professor é aquele que coloca objetivos educacionais
e propõe ações que levem à consecução de tais objetivos. Essas ações formam o processo de ensino-
aprendizagem: “as aprendizagens se dão somente em situações de ensino mais ou menos explícitas ou
intencionais, nas quais é impossível dissociar, na prática, os processos de aprendizagem dos de ensino [estos
aprendizajes sólo se dan en situaciones de enseñanza más o menos explícitas o intencionales, en las cuales es
imposible disociar, en la práctica, los procesos de aprendizaje de los de enseñanza]” (ZABALA, 2000, p. 20).
Ora, estabelecer os objetivos educacionais e o processo de ações intencionais (isto é, as situações de ensino-
aprendizagem) que levarão à consecução daqueles objetivos é parte fundamental do trabalho do professor. Como
diz Zabala, a “esta visão processual da prática [...] estão estreitamente ligados o planejamento, a aplicação e a
avaliação [esta visión procesual de la práctica [...] están estrechamente ligadas la planificación, la aplicación y
la evaluación]” (ibid., p. 15). Destarte, é papel fundamental do professor planejar um processo de ensino-
aprendizagem, o qual se comporá de “ações do professor e dos alunos” (GAETA; MASETTO, 2013, p. 70).
Agora, dando mais um passo, poderíamos perguntar: o que seria uma ‘ação intencional’? Se nos voltarmos para
o estudo da palavra ‘intenção’ realizado por G. E. M. Anscombe (1963), lemos que “uma expressão de intenção
é uma descrição de algo futuro no qual o falante é algum tipo de agente; ele justifica tal descrição (se ele a
justifica) por razões para agir, isto é, razões pelas quais seria útil ou interessante [attractive] que a descrição se
tornasse verdadeira [an expression of intention is a description of something future in which the speaker is some
sort of agent, which description he justifies (if he does justify it) by reasons for acting, sc. reasons why it would
be useful or attractive if the description came true]” (ibid., p. 6). A partir dessa descrição, Anscombe adiciona
que ações intencionais (intentional) “são as ações para as quais é aplicável um certo sentido da pergunta ‘por
quê?’ [...] [are the actions to which a certain sense of the question ‘Why?’ is given application]” (ibid., p. 10).
Esse certo sentido de ‘por quê?’ é aquele no qual tal pergunta admite uma razão como resposta (ibid.). Se
adotarmos essa posição para a consideração do processo de ensino-aprendizagem, podemos dizer que as ações
educacionais são intencionais na medida em que sua utilidade ou interesse na consecução de objetivos
educacionais postos pode ser justificada por razões. Dessa maneira, ao caracterizarmos o professor como aquele
que planeja o processo de ensino-aprendizagem, devemos compreender que ele põe objetivos educacionais e
estabelece uma série de ações a serem realizadas por ele próprio e pelos estudantes com vistas à consecução dos
objetivos colocados; para além disso, porém, ele deve ser capaz de justificar por razões a utilidade ou interesse
de tais ações para a consecução dos objetivos colocados. É essa possibilidade de a relação entre ação didática e
objetivo educacional ser justificada pelo professor que caracteriza tal ação como intencional. E, precisamente ao
relacionar ação didática e objetivo educacional, a intencionalidade da ação torna-se marca basilar do
planejamento do processo de ensino-aprendizagem.
37
“História da Filosofia Medieval”) que não exija do estudante a imitação de um modelo, mas
antes a prática ativa da discussão, leitura e escrita filosóficas – isto é, em geral, do discurso
filosófico.
Dessa maneira, parece-me que aquelas duas alegações dos professores de filosofia
denunciadas por François Galichet e das quais partimos nesta etapa – a saber, [i]
‘insuficiência do nível intelectual e cultural dos alunos’ e [ii] uma ‘recusa de filosofar’46 –
apontam não tanto para limitações nos estudantes, mas para falta de formação didático-
pedagógica por parte dos professores. Com efeito, se o professor se propõe a diagnosticar
problemas, deveria ele igualmente propor soluções. Como vimos neste item, sem dúvida há
sérias dificuldades associadas à atuação do professor em nível superior em nosso e em outros
países – isso vale, também, para o ensino da filosofia em nível superior. O mais grave desses
problemas, porém, parece ser a falta de formação didático-pedagógica do professor de
filosofia em nível superior, pois essa ausência de sólida formação para o exercício de sua
função o impede de solucionar todo outro problema diagnosticado. Aqui, pretende-se
justamente propor um planejamento de ensino-aprendizagem de filosofia que assuma a
responsabilidade de democraticamente lidar com os temas discutidos acima.
Com base na discussão acima, pudemos estabelecer e discutir os vários desafios com
que deve lidar um professor de filosofia em nível superior. A consideração desses desafios, no
entanto, também nos aponta uma possível solução para as dificuldades destacadas, a saber: a
proposta de um processo de ensino-aprendizagem de filosofia que tenha por base o estudante
– as habilidades e interesses que traz consigo –, sem jamais reduzir-se, portanto, à mimética
descrita acima. Consequentemente, essa proposta deve ter por base a atividade filosófica não
do professor, mas do próprio estudante para sua formação. Mas, como propor e executar um
tal processo de ensino-aprendizagem de filosofia? Nossa finalidade na presente etapa do
trabalho é, precisamente, fornecer as bases teóricas – educacionais e filosóficas – para uma tal
proposta. Como veremos, tanto a teoria da educação como a filosofia atuais reclamam um
processo de ensino-aprendizagem centrado na ação do estudante.
Alguns dos principais trabalhos da segunda metade do século XX sobre ensino-
aprendizagem de filosofia foram aqueles desenvolvidos por Matthew Lipman e seus
colaboradores (LIPMAN et al. 1980; LIPMAN, 1988; SPLITTER; SHARP, 1995, entre
46
Cf. nota 1, acima.
38
Assim, para Lipman a educação é – ou, pelo menos, deveria ser – um processo de
desenvolvimento de habilidades de pensamento, que se reflitam em habilidades como leitura
ou matemática. O problema é, justamente, segundo ele, que a educação escolar não é voltada
para o desenvolvimento das habilidades de pensamento. Isso ocorre, por exemplo, no caso da
aprendizagem das habilidades de leitura: “É estranho o modo como a leitura se tornou um fim
em si mesmo [...]. [...] cada vez mais a ênfase é posta na leitura, enquanto que os processos de
pensamento que ela deveria construir são negligenciados” 48 (ibid., p. 19). O ensino-
aprendizagem da filosofia surge neste contexto, para Lipman, como um espaço na educação
básica voltado para o desenvolvimento de habilidades de pensamento. Temos aqui, portanto, a
defesa da filosofia como uma disciplina do bem pensar: “a filosofia é uma disciplina que
47
“Reading and mathematics are sometimes called ‘basic skills’ because they are said to be able to unlock and to
reinforce other cognitive skills. But reading and mathematics are simply two expressions of cognitive
processing; performance in these areas can be no better than the thinking skills that underlie them. From an
educational point of view, the improvement of thinking skills is of crucial and foundational importance [...].
There is rather general agreement that children with reading problems are also likely to be hampered in their
thinking. Improving the way such children read, it is believed, will likely improve the way they think. But it is
our contention that reading and thinking are interdependent. Each ministers to the other. Consequently, helping
children think can very well result in helping them to read”.
48
“It is odd how reading has become an end in itself. There was a time when it was considered simply a means
[...]. But increasingly the stress is on reading, while the thinking process it was supposed to build are neglected”.
39
49
“Philosophy is a discipline that contains logic and therefore is concerned to introduce criteria of excellence
into the thinking process, so that students can move from merely thinking to thinking well”.
50
“Thinking is natural, but it can also be recognized as a skill capable of being perfected. There are more
efficient and less efficient ways of thinking. We are able to say this with confidence, because we possess criteria
that enable us to distinguish between skillful and clumsy thinking. These criteria are the principles of logic. By
means of such rules, we can tell the difference between valid and invalid inferences”.
51
Nesse contexto, Lipman et al. (1980, p. 43-44) discutem se o desenvolvimento dessas habilidades de
pensamento exigiria necessariamente uma disciplina de filosofia ou não poderia ser realizado por cada professor
nas outras disciplinas já existentes e mais comuns no currículo da educação básica. Sua conclusão é uma
tentativa de ultrapassar a oposição entre essas duas opções: “Não há necessidade, na realidade, de escolher entre
essas duas abordagens que possuem seus méritos, uma vez que elas não são incompatíveis entre si. Aqueles que
ensinaram filosofia para crianças como uma disciplina separada e distinta notaram que ela quase inevitalmente
transborda para outras disciplinas [There is really no need to choose between these two meritorious approaches,
since they are not incompatible with one another. Those who have taught philosophy as a separate and distinct
discipline to children have noted that it almost inevitably spills over into other disciplines]” (ibid., p. 44).
Tanto Brocanelli (2010, p. 34) quanto Obiols (2002, p. 87) veem nessa relação entre a filosofia e as outras
disciplinas escolares o caráter interdisciplinar da primeira. Pois bem, se assumirmos o desafio de
ultrapassamento de um currículo formado por disciplinas estanques e aceitarmos a distinção entre
multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, podemos assim descrever estas últimas,
seguindo Anastasiou (2004): a multidisciplinaridade “é caracterizada pela proposição simultânea de disciplinas
[...], sem que se explicitem relações entre elas [...]” (ibid., p. 52); já a interdisciplinaridade exige a “interação de
campos conceituais, leis e princípios, podendo até ocorrer o surgimento de uma nova disciplina, como é o caso
da bioquímica” (ibid.); por fim, a transdisciplinaridade “corresponde a uma integração total, dentro de um
sistema globalizador, de modo a explicar a realidade para além do parcelamento disciplinar” (ibid.). De fato, se
seguirmos essas definições, a filosofia possui um caráter interdisciplinar, como querem Brocanelli e Obiols, na
medida em que sua interação com outras áreas do saber pode ser extremamente íntima e profícua, levando
mesmo ao surgimento de novas disciplinas, como filosofia da matemática, filosofia do direito, filosofia da
ciência, entre outras. Por outro lado, ultrapassando a abordagem disciplinar, a filosofia pode ser pensada também
de um ponto de vista transdisciplinar, na medida em que ela “pode tomar a forma de uma investigação sobre as
estruturas epistêmicas e a ética [morals] de outras disciplinas, aprendizagem e práticas [it can take the form of an
enquiry into the epistemic structures and morals of other disciplines, learning and practices]” (UNESCO, 2007,
p. 108). De fato, como veremos no próximo item, um processo de aprendizagem de filosofia pode integrar
conteúdos que, retomando a distinção de Zabala (1995, p. 132; 2000, p. 81-88), vão além daqueles conceituais e
procedimentais, atingindo os atitudinais. Isso coloca a aula de filosofia como um espaço propício a uma
abordagem transdisciplinar ao modo de Edgar Morin (2005, p. 29), isto é, que tome o homem como um todo
“simultaneamente biológico, físico, social, afetivo, racional [ainsi l’être humain est à la fois biologique,
psychique, social, affectif, rationnel]” (MORIN, 1999, p. 16).
Nesse sentido, poderíamos dizer que as diversas competências abordadas em um componente de filosofia (como
problematização, leitura etc., cf. o próximo item) são, em seu nível mais geral, transversais – seja com respeito a
outros componentes do curso de filosofia, seja com respeito a outras áreas do saber –, se compreendermos os
temas transversais como aqueles que “devem impregnar toda a prática educativa e estar presentes em diferentes
áreas curriculares [se denomina temas transversales, de los que se dice que deben impregnar toda la práctica
educativa y estar presentes en las diferentes áreas curriculares]” (MORENO, 1993, p. 12 – cf. tb. GALLO,
2006). Quiçá, precisamente por essa transversalidade das competências associadas à filosofia, seja esta uma área
tão propícia a uma abordagem inter- ou transdisciplinar (para uma tentativa de aproximação entre
transversalidade e de interdisciplinaridade, cf. ARAÚJO, 2014). Em todo caso, vemos como a discussão
levantada por Lipman sobre a relação entre aprendizagem de filosofia e aprendizagem de outras disciplinas pode
ser aprofundada.
40
Assim, de acordo com Lipman, o meio pelo qual os estudantes desenvolvem as habilidades
associadas ao bem pensar é a prática desse pensar em um contexto propício a tal prática. Esse
contexto será aquele de abertura para um diálogo com base em critérios de racionalidade, no
qual todos os membros da comunidade sejam igualados por um respeito mútuo. O papel do
professor nesse processo dialógico será aquele de guiar a discussão, mantendo o caráter
cooperativo e racional desta (ibid., p. 104-128), sem oferecer respostas fáceis – mesmo
porque muitos dos problemas abordados em uma aula de filosofia não terão respostas óbvias e,
além disso, toda ênfase deve recair no “processo de discussão”54 (ibid., p. 103 – grifo no
orig.). De fato, grande parte da importância do professor estará em fazer, no momento
propício, as perguntas adequadas 55 , isto é, que contribuam para que o diálogo seja,
preponderantemente, entre estudantes, de modo que estes possam ouvir uns aos outros e,
assim, aprender uns com os outros (ibid., p. 104-106).
52
“Certain conditions are prerequisites: the readiness to reason, mutual respect (of children towards one another,
and of children and teachers towards one another), and an absence of indoctrination”.
53
“When children are encouraged to think philosophically, the classroom is converted into a community of
inquiry. Such a community is committed to the procedures of inquiry, to responsible search techniques that
presuppose an openness to evidence and to reason. It is assumed that these procedures of the community, when
internalized, become the reflective habits of the individual”.
54
“[...] the stress in the philosophy for children program is on the process of discussion [...]”.
55
A descrição dos tipos de ‘pergunta’ relevantes para o funcionamento comunidade de investigação, tal como
descrita por Lipman, é objeto de estudo em SPLITTER; SHARP, 1995, p. 48-63. Retornaremos a esse tema no
próximo item.
41
56
“[...] as far as children themselves are concerned, no educational plan will be worthy of the name unless it
results in meanignful school and after-school experiences [...]”.
57
“It has already been indicated that meanings emerge from the perception of part-whole relationships as well as
of means-end relationships”. Novamente, flertamos aqui com a noção de aprendizagem significativa, sobre a
qual cf. a nota 17, acima.
58
“In this sense, what has no context has no meaning”.
59
Sobre a comunidade de investigação como experiência, cf. MURARO; SOUSA, 2019, p. 85. Para de fato
compreendermos os fundamentos da tese de Lipman segundo a qual a aprendizagem individual ocorre a partir da
experiência na comunidade de investigação é preciso recorrer à obra de Lev Vigostski, uma das principais
influências de Lipman et al. (1980, p. 23). Para Vigostki, o “processo de educação deve basear-se na atividade
pessoal do aluno, e toda a arte do educador deve consistir apenas em orientar e regular essa atividade”, pois, “no
processo educacional, a experiência pessoal do aluno é tudo” (VIGOSTSKI, 2001, p. 64). Essa experiência ativa
do estudante é concebida por Vigotski como fundamentalmente social, como fica claro pelo fato de o autor
considerar que o educador regula a atividade do aluno precisamente ao agir como um “organizador e
administrador do meio social educativo” (ibid., p. 67). Para tanto, o educador deve tomar como ponto de partida
a “própria experiência do aluno, a qual é inteiramente determinada pelo meio” (ibid.) – isto é, pelo meio social.
Por outro lado, o próprio Vigostki afirma que “o processo educacional é um processo psicológico [...]” (ibid., p.
10). Ou seja, de alguma maneira, o meio social influi em processos psicológicos do indivíduo durante a
aprendizagem. Pois bem, o mecanismo pelo qual a experiência determinada pelo meio social influi na
aprendizagem do indivíduo é aquilo que Vigotski denomina ‘internalização’. De fato, segundo ele, o processo
“de internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto
característico da psicologia humana [...]” (VIGOTSKI, 2007, p. 58). Através desse processo, as interações
sociais (entre mãe/pai e filho/a, entre colegas, entre estudante e professor etc.) por meio de signos externos
levam ao desenvolvimento das funções superiores internas – assim, gradualmente a fala externa produz uma
“fala interna” e o pensamento complexo (ibid.). Nesse sentido, para Vigotski, aprendizagem e desenvolvimento
estão profundamente entrelaçados, de modo que se, de um lado, o processo de aprendizagem deve ser planejado
de acordo com os níveis de desenvolvimento do aluno, de outro, o próprio processo de aprendizagem influi no
desenvolvimento do indivíduo (ibid., p. 95). Para explicar como essa complexa relação ocorre, o autor introduz a
distinção entre Zona de Desenvolvimento Real (ZDR) e Zona de Desenvolvimento Proximal ou Imediato (ZDI).
A primeira é “o nível de desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabeleceram como resultado
de certos ciclos de desenvolvimento já ‘completados’” (ibid., p. 95-96 – grifo no orig.). A ZDR de dado
indivíduo poderá ser determinada pela observação daquelas tarefas que o indivíduo pode realizar por si. Já a ZDI
de dado indivíduo é determinada por aquelas tarefas que ele consegue realizar com ajuda de outrem (2007, p. 96),
pois “[e]la é a distância entre o nível de desenvolvimento real [...] e o nível de desenvolvimento potencial,
determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes” (ibid., p. 97). Ou seja, a ZDI se compõe daquelas “funções que ainda não
42
amadureceram, mas que estão em processo de maturação [...]” (ibid., p. 98). Destarte, a maturação dessas
funções ocorre justamente na interação com outros – ou seja, em interação social. Sendo assim, quando Vigostki
afirma que o papel do professor é de organização e regulação de um meio social propício para experiências
ativas e educativas por parte dos alunos, ele o faz porque aprendizagem e desenvolvimento – cada um a seu
ritmo e de maneira complexamente entrelaçada (ibid., p. 103) – só se dão pela internalização da interação social.
Voltando a Lipman, é por essa razão que este último pode defender que a interação em uma comunidade de
investigação seja um mecanismo eficaz para a aquisição de habilidades de pensamento em nível individual – em
um palavra, isso ocorre por internalização.
60
Dentre as obras dos principais responsáveis pela recepção brasileira da proposta de Lipman para a
aprendizagem de filosofia, podemos citar: LORIERI, 2002; KOHAN, 2008; MURARO; SOUSA, 2019. Vale
notar que o prof. Darcísio Muraro vem oferecendo, nos últimos anos, cursos de formação de professores no
Instituto de Filosofia e Educação para o Pensar / Fundação Sidónio Muralha (Curitiba, PR), com base no
programa de Lipman.
61
Para as principais críticas recebidas no Brasil à concepção de aprendizagem de filosofia proposta por Lipman,
cf. SILVEIRA, 2001 e 2003. Particularmente interessante é a descrição, em SILVEIRA, 2003, p. 89-115, das
discussões sobre ensino de filosofia que ocorreram na década de 1980 por ocasião da tentativa de implantação da
proposta de Lipman na educação básica do Estado de São Paulo.
62
“Aunque a veces la exposición del profesor titular o la lectura y comentario de textos del docente auxiliar
pueden ser originales y hasta brillantes, desde hace años, esta metodología tradicional ha sido objeto de críticas
entre las que se ha señalado que el alumnado tiene un papel demasiado pasivo, que lo que aprende es una
cantidad de contenidos enciclopédicos pero que no logra desarrollar habilidades intelectuales específicas”.
43
“que se funda no diálogo argumentativo entre aqueles envolvidos diretamente na aula, que
além de dialogarem entre si têm a obrigação de pensar os problemas filosóficos com os
filósofos, os textos filosóficos, a história da filosofia, o conhecimento científico etc.”63 (ibid.,
p. 81 – grifo meu). Temos aqui, parece-me, o fundamental da proposta de Lipman aplicado ao
ensino-aprendizagem de filosofia em nível superior. Para Obiols, a aula de filosofia em nível
superior deve ser não apenas um espaço dedicado à “exposição do professor titular ou a
leitura e comentário de textos do docente auxiliar” que “podem ser originais ou, mesmo,
brilhantes” 64 (ibid., p. 36), mas deve ser antes um espaço de atividade de professores e
estudantes no qual se pratique conjuntamente o pensamento filosófico, fazendo-se da “sala de
aula um lugar de ensino e produção filosófica” 65 (ibid., p. 65; cf. tb. ibid., p. 81). Um
elemento que, adiante, mostraremos ser basilar nessa pratica conjunta já é destacado em uma
das citações de Obiols, a saber: a leitura conjunta e colaborativa de textos filosóficos. De fato,
como vimos na etapa anterior, um dos maiores desafios enfrentados por docentes de filosofia
em nível superior são as dificuldades de leitura herdadas do nível médio pelos estudantes.
Assim, proporemos que essa aprendizagem ativa e colaborativa de filosofia tenha por base,
precisamente, a colocação de problemas e a discussão acerca deles com base na leitura de
textos filosóficos66.
Antes, entretanto, de adentrarmos os detalhes das competências a serem postas em
prática na aprendizagem de filosofia segundo a concepção de ensino-aprendizagem aqui
proposta para esta área, é preciso ressaltar que tal concepção não é externa à filosofia. Pelo
contrário, a exigência de um planejamento de ensino-aprendizagem de filosofia que envolva a
participação ativa dos estudantes é fruto da própria reflexão filosófica contemporânea.
Um dos filósofos apontados como fonte tanto por Matthew Lipman (2003, p. 34-38; cf.
tb. BROCANELLI, 2010, p. 42-60) como por Guillermo Obiols (2002, p. 72-73) é John
Dewey. Este último desenvolve toda uma teoria da educação associada à defesa de uma
sociedade democrática. Com efeito, para Dewey, a democratização da sociedade está
diretamente atrelada à exigência de uma educação sistemática:
63
“El modelo es emancipador para los estudiantes y para el profesor en la medida que se funda en el diálogo
argumentativo entre los involucrados directamente en la classe, que además de dialogar entre sí, tienen la
obligación de pensar en los problemas filosóficos con los filósofos, los textos filosóficos, la historia de la
filosofia, el conocimiento científico, etc.”.
64
Cf. nota 62, acima.
65
“[...] haga del aula un sitio de enseñanza y de producción filosófica”.
66
Cf. próximo item.
44
67
“Upon the educational side, we note first that the realization of a form of social life in which interests are
mutually interpenetrating, and where progress, or readjustment, is an important consideration, makes a
democratic community more interested than other communitites have cause to be in deliberate and systematic
education. The devotion of democracy to education is a familiar fact. The superficial explanation is that a
government resting upon popular suffrage cannot be successful unless those who elect and who obey their
governos are educated [...]. But there is a deeper explanation. A democracy is more than a form government; it is
primarily a mode of associated living, of conjoint communicated experience [...]. A society which is mobile,
which is full of channels for the distribution of a change occurring anywhere, must see to it that its members are
educated to personal initiative and adaptability”.
68
No Brasil, a concepção de educação de Dewey foi basilar para autores como Fernando de Azevedo e Anísio
Teixeira, entre outros associados ao movimento da Escola Nova ou ‘escolanovista’, que dominou as discussões
sobre a educação brasileira entre as décadas de 1930 e 1970. A noção de educação associada ao movimento pode
ser conhecida, em suas linhas gerais, pela leitura de seus Manifestos, publicados em 1932 e 1959 (cf. AZEVEDO
et al., 2010). A principal crítica ao movimento escolanovista viria somente com Escola e Democracia, de
Dermeval Saviani (2018), cuja primeira edição veio à luz 1983.
69
“[...] there is an intimate and necessary relation between the processes of actual experience and education”.
70
“So we come back to the idea that a coherent theory of experience, affording positive direction to selection
and organization of appropriate educational methods and materials, is required by attempt to give new direction
to the work of schools” (grifo no orig.).
71
“[...] the principle of continuity of experience means that every experience both takes up something from those
which have gone before and modifies in some way the quality of those which come after”.
45
trabalho docente consiste em selecionar e propor aos estudantes aquelas experiências mais
adequadas – isto é, mais bem relacionadas às experiências já possuídas por estes – para que
eles possam expandir suas respectivas capacidades de obter novas experiências. Nas palavras
do autor:
[...] esses interesses não devem ser saciados nem reprimidos. Reprimi-los é
substituir a criança pelo adulto e, assim, enfraquecer a curiosidade e a
atenção [alertness] intelectual, suprimir a iniciativa e amortecer o interesse.
Saciar os interesses é substituir o permanente pelo transitório. O interesse é
72
“It is also essential that the new objects and events be related intellectually to those of earlier experiences [...].
It thus becomes the office of the educator to select those things within the range of existing experience that have
the promise and potentiality of presenting new problems which by stimulating new ways of observation and
judgement will expand the area of further experience. He must constantly regard what is already won not as a
fixed possession but as an agency and instrumentality for opening new fields which make new demands upon
existing powers of observation and of intelligent use of memory”.
73
Sobre o caráter intencional do planejamento educacional, cf. a nota 45, acima.
74
“I believe that these interests are to be observed as showing the state of development which the child has
reached”.
75
“I believe that they prophesy the stage upon which he is about to enter”.
46
76
“I believe that these interests are neither to be humored nor repressed. To repress interest is to substitute the
adult for the child, and so to weaken intelectual curiosity and alertness, to suppress initiative, and to deaden
interest. To humor the interests is to substitute the transient for the permanent. The interest is always the sign of
some power below; the important thing is to discover this power. To humor the interest is to fail to penetrate
below the surface [...]”.
77
Ainda sobre a relação entre educação, democracia e interesse em Dewey, cf. MURARO, 2019. Note-se que,
tal como ocorria no item anterior em meio à discussão sobre motivação para o estudo, mais uma vez vemos ser
destacada a centralidade do interesse do estudante para um processo de ensino-aprendizagem que se queira
democrático.
78
Outro autor que desenvolve uma teoria da educação estritamente atrelada à defesa da sociedade democrática é
Jean Piaget. Em sua investida contra a relação entre coerção ou autoridade e educação estabelecida por Émile
Durkheim (cf., por exemplo, 2013, pp. 57-8, 66-7), Piaget nos diz: “A sociedade contemporânea tem por ideal a
cooperação: dignidade da personalidade e respeito pela opinião comum elaborada na discussão livre. Como se
leva a criança a este espírito cívico e humano que as sociedades democráticas postulam: seria pela própria
prática da cooperação a partir do momento em que ela seja psicologicamente possível, pela democracia na escola,
segundo a feliz expressão de Foerster, ou por uma iniciação verbal aos mecanismos da sociedade adulta? As
lições de história e de sociologia, os comentários de instrução cívica e de iniciação jurídica terão o menor
impacto sobre o espírito infantil se a escola continuar a ser o sistema monárquico de autoridade que Durkheim
preconiza? [La société contemporaine a pour idéal la coopération: dignité de la personnalité et respect de
l’opinion commune élaborée dans la discussion libre. Comment amener l’enfant à cet esprit civique et humain
que postulent les sociétés démocratiques: est-ce par la pratique même de la coopération, dès que celle-ci est
psychologiquement possible, para la démocratie à l’école suivant l’heureuse expression de Foester, ou par une
initiation verbale aux mécanismes de la société adulte? Les leçons d’histoire et de sociologie, les commentaires
d’instruction civique et d’initiation juridique auront-ils la moindre prise sur l’esprit enfantin, si l’école reste le
système monarchique d’autorité que préconise Durkheim?]” (1973, p. 297). Sobre a discussão entre Piaget e
Durkheim, cf. LA TAILLE et al., 2016, p. 55-62. Ainda que com base em uma concepção de democracia distinta
daquela de Dewey ou Piaget, Paulo Freire igualmente destaca a fundamental relação entre educação e
democracia: “Parecia-nos, deste modo, que, das mais enfáticas preocupações de uma educação para o
desenvolvimento e para a democracia, entre nós, haveria de ser a que oferecesse ao educando instrumentos com
47
Dito isso, é importante frisar que outra característica basilar da concepção de educação
– e, em especial, de educação filosófica – defendida por Lipman está igualmente associada a
desenvolvimentos contemporâneos da filosofia, a saber: o caráter dialógico do processo de
ensino-aprendizagem. Sem dúvida, a ênfase no caráter dialógico da educação é marcada no
discurso pedagógico contemporâneo 79 . Para além disso, porém, muitos filósofos atuais
destacam a centralidade da comunicação discursiva e dialógica, seja como fundamento da
sociedade contemporânea, seja como elemento característico do próprio fazer filosófico, seja,
finalmente, como base para o processo educativo.
Com efeito, um dos autores mais importantes a pensar a comunicação de um ponto de
vista filosófico nos séculos XX e XXI tem sido Jürgen Habermas. No artigo Teorias da
verdade, publicado primeiramente em 1973, Habermas defende o que denomina como ‘teoria
da verdade por consenso’. Segundo tal posição, a validade de uma asserção deve possuir por
critério uma situação de fala, na qual:
Em outras palavras, a situação de fala que permite a produção de asserções que possam ser
tidas por válidas por todos os falantes – ou seja, a ‘situação ideal de fala’ (ideale
que resistisse aos poderes do ‘desenraizamento’ de que a civilização industrial a que nos filiamos está
amplamente armada [...]. Uma educação que possibilitasse ao homem a discussão corajosa de sua problemática.
De sua inserção nesta problemática” (FREIRE, 2011, p. 118).
79
Uma das defesas mais eloquentes da dialogicidade da educação é aquela realizada por Paulo Freire. De fato,
sua oposição à educação ‘bancária’, na qual “o educador vai ‘enchendo’ os educandos de falso saber, que são os
conteúdos impostos” (FREIRE, 2018, p. 100), em favor de uma ‘prática problematizadora’, em que “vão os
educandos desenvolvendo o seu poder de captação e de compreensão do mundo que lhes aparece, em suas
relações com ele [...] como uma realidade em processo” (ibid.), está atrelada à sua concepção de ‘diálogo’ como
“uma exigência existêncial”, como “o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos
endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado” e que “não pode reduzir-se a um ato de depositar
ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos
permutantes” (ibid., p. 109). Em Freire, essa concepção de diálogo “como encontro dos homens, mediatizados
pelo mundo, para pronunciá-lo” (ibid. – grifo no orig.) torna-se elemento central para a descrição daquela
educação que se quer problematizadora. De fato, tal educação é essencialmente dialógica (ibid., p. 107-166).
Piaget (1977, p. 143-171) é outro autor a destacar a relação entre diálogo e educação, agora de um ponto de vista,
a uma só vez, psicológico e sociológico (LA TAILLE et al., 2016, p. 11-21) – cf., adiante, a nota 82.
80
“Ideal nenne ich eine Sprechsituation, in der Kommunikationen nicht nur nicht durch äußere kontingente
Einwirkungen, sondern auch nicht durch Zwänge behindert werden, die sich aus der Struktur der
Kommunikation selbst ergeben. Die ideale Sprechsituation schließt systematische Verzerrungen der
Kommunikation aus. Und zwar erzeugt die Kommunikationsstruktur nur dann keine Zwänge, wenn für alle
Diskursteilnehmer eine symmetrische Verteilung der Chancen, Sprechakte zu wählen und auszuführen, gegeben
ist”.
48
Sprechsituation – cf. ibid.) é aquela situação na qual todos os falantes possuem iguais
oportunidades de fala, sem que nenhum participante seja atingido por qualquer tipo de
coerção. Somente em uma tal situação de fala é possível dizer que há uma busca pelo
consenso entre os participantes do diálogo. Assim, “qualquer consenso que seja construído
argumentativamente sob as condições de uma situação ideal de fala pode ser visto como
critério para o cumprimento de cada pretensão de validade tematizada” 81 (1984, p. 179).
Enfim, descrita filosoficamente, a situação de fala que pode ser tomada como critério para a
discussão sobre a validade de asserções ou crenças é aquela na qual todo e cada participante
possui igual oportunidade de ação e fala82.
Ora, temos aqui uma possível descrição filosófica do diálogo, por assim dizer,
legítimo em uma sociedade na qual se defenda oportunidades de discurso e ação simétricas
para todo e qualquer indivíduo. Porém, há autores que atribuem à filosofia não somente o
papel de descrever um tal diálogo, mas igualmente aquele de promovê-lo. Richard Rorty, por
exemplo, defende que “o ponto de edificar a filosofia é manter a conversa fluindo e não
encontrar uma verdade objetiva”83 (2009, p. 377). Para Rorty, ‘manter a conversa’ é “um
objetivo suficiente para a filosofia”, assim como a ‘sabedoria’ consiste justamente “na
habilidade de sustentar uma conversa”84 (ibid., p. 378). Ou seja, agora a filosofia surge não
apenas como o campo teórico no qual o diálogo é descrito, mas igualmente como aquele saber
que promove o diálogo – construir a filosofia é manter a conversa viva! Nesse caso, aprender
filosofia é aprender a continuar a conversa, o diálogo. Mas, como fazê-lo?
Uma pista nos é dada por Stanley Cavell (1979, p. 125), quando diz: “ao filosofar,
devo trazer à imaginação minha própria linguagem e vida. Preciso reunir os critérios de minha
cultura para confrontá-los com minhas palavras e vida tal como as tomo e como as posso
imaginar [...]”. Em poucas palavras, devo “confrontar a cultura consigo mesma ao longo das
linhas pelas quais ela me atinge”85. Segundo Cavell, essa é “a tarefa que justifica o nome de
81
“Deshalb darf jeder Konsensus, der argumentativ unter Bedingungen einer idealen Sprechsituation erzeugt
worden ist, als Kriterium für die Einlösung des jeweils thematisierten Geltungsanspruchs angesehen werden”.
82
Vale notar que Jean Piaget igualmente buscou desenvolver uma teoria da comunicação – mais propriamente,
em suas palavras, de ‘troca intelectual’ – na qual são distinguidos sistemas de reciprocidade entre participantes,
aos quais se segue um equilíbrio, e sistemas de coerção, aos quais se segue um desequilíbrio (PIAGET, 1977, p.
158-68; cf. tb. LA TAILLE et al., 2016, p. 11-21).
83
“[...] the point of edifying philosophy is to keep the conversation going rather than to find objective truth”.
84
“To see keeping a conversation going as a sufficient aim of philosophy, to see wisdom as consisting in the
ability to sustain a conversation, is to see human beings as generators of new descriptions rather than beings one
hopes to be able to describe accurately”.
85
“In philosophizing, I have to bring my own language and life into imagination. What I require is a convening
of my culture’s criteria, in order to confront them with my words and life as I pursue them and as I may imagine
them [...]: to confront the culture with itself, along the lines in which it meets in me”.
49
filosofia” e, “sob essa luz, a filosofia se torna a educação de adultos”86 (ibid.). Temos aqui,
portanto, finalmente, a filosofia como educação. Por meio dela, nos voltamos para nossa
cultura e perguntamos “por que fazemos o que fazemos, julgamos como julgamos, como
chegamos a essa encruzilhada” 87 (ibid.). Isto é, perguntamos não somente sobre o que
fazemos ou como julgamos, mas perguntamos também por que perguntamos – questionamos
nossa cultura e o fato de ela nos levar a questioná-la.
Com isso, nos aproximamos curiosamente de outra obra, que não se quer filosófica,
mas chega a um resultado semelhante àquele defendido por Cavell. Com efeito, se vamos ao
livro Ensinar como atividade subversiva, os autores N. Postman e C. Weingartner descrevem
a concepção de educação por eles proposta justamente como aquela que permite ao indivíduo
adotar uma perspectiva para além de sua própria cultura:
Ora, se seguirmos Cavell, a filosofia pode ser, justamente, essa educação ‘subversiva’ a que
se referiam Postman e Weingartner.
Nesse ponto, acredito, está claro como se torna improvável uma aprendizagem
contemporânea da filosofia que se fie na passividade dos estudantes. Se a filosofia se propõe
como um discurso acerca da comunicação (como para Habermas) e, mais, como promotora
dessa conversa (como diz Rorty) e desse diálogo que se coloca para além de barreiras
culturais (como quer Cavell), essa ‘filosofia como educação de adultos’ só poderá ser
aprendida pela prática ativa, pela participação dos estudantes em tal diálogo89. Voltando a
uma citação de Postman e Weingartner (ibid., p. 19) que já encontramos neste trabalho, “o
86
“This seems to me a task that warrants the name of philosophy [...]. In this light, philosophy becomes the
education of grownups”. Essa concepção de ‘filosofia como educação de adultos’ foi retomada por Hilary
Putnam (1999) e, mais recentemente, por Pierre Hadot (2010), que à relaciona à filosofia antiga (com especial
atenção à República de Platão) e à filosofia moderna (com ênfase na Antropologia de um ponto de vista
pragmático de Immanuel Kant). Ainda sobre o texto de Cavell, cf. ROCHA, 2000, p. 170-173.
87
“But I may take the occasion to throw myself back upon my culture, and ask why we do what we do, judge as
we judge, how we have arrived at these crossroads”.
88
“We are talking about the schools’ cultivating in the young that most ‘subversive’ intellectual instrument – the
anthropological perspective. This perspective allows one to be part of his own culture and, at the same time, to
be out of it. One views the activities of his own group as would an anthropologist, observing its tribal rituals, its
fears, its conceits, its ethnocentrism”. Cf. tb. MOREIRA, 2010.
89
É interessante notar que essa noção de filosofia nos traz de volta a uma concepção dialógica de educação
próxima àquela defendida por Paulo Freire (2018, p. 107-166), como vimos na nota 79, acima. Sublinhe-se, aliás,
que o próprio educador já associava essa educação dialógica à aprendizagem por método ativo (FREIRE, 2011, p.
140-141, 157), ao qual voltaremos adiante.
50
90
Cf. nota 43, acima.
51
À relação entre conhecimento prévio e conhecimento novo enfatizada por Moreira, podemos
adicionar o que diz, por sua vez, Carl Rogers sobre a aprendizagem significativa (agora,
significant):
91
“[...] it is important to note that Lindeman (1926) also identified several key assumptions about adult learners.
His assumptions [...] have been supported by later research and constitute the foundation of adult learning theory
[...]”.
92
Sobre a aprendizagem significativa em Ausubel, remeto novamente à nota 17, acima.
93
“By significant learning I mean learning which is more than an accumulation of facts. It is learning which
makes a difference – in the indidividual’s behavior, in the course of action he chooses in the future, in his
attitudes and in his personality”. Note-se que Rogers também utiliza o inglês meaningful para descrever
experiências de aprendizagem, por exemplo em ROGERS, 1961, p. 298 ou em ROGERS, 1969, p. 26.
52
Assim, vemos que a ação necessária para a aprendizagem do adulto não diz respeito somente
a atividades colaterais ao momento da aula – isto é, não cabe, na educação de adultos,
distinguir entre um momento passivo para os estudantes (como a aula) e um momento ativo
(fora da aula). Pelo contrário, segundo os autores citados, toda a aprendizagem de estudantes
adultos deve se dar pela ação dos próprios estudantes, dentro e fora de sala.
Pois bem, vemos que as características apontadas pelos autores como próprias da
educação de adultos não se distanciam, no fundamental, daquilo que Dewey ou Lipman, na
esteira daquele, proporiam no contexto da educação para crianças. O próprio Knowles (2005,
p. 40) admite que haja uma continuidade entre os princípios da educação de adultos e aqueles
que deveriam reger a educação de crianças. Em todo caso, talvez se possa dizer que haja uma
diferença de ênfase: na ‘pedagogia do adulto’ estaríamos lidando com indivíduos em posse de
maior autonomia, que trazem consigo uma enorme e complexa bagagem de conhecimentos e
experiências prévias, quando comparados a estudantes mais jovens. Nesse contexto, o foco na
atividade e no conhecimento prévio do estudante deve caracterizar a ‘pedagogia do adulto’
simplesmente porque, sem a atenção a esses fatores, a processo educativo se tornaria
completamente ineficaz. Esse parece ser, ao menos, o modo como a educação de adultos vem
sendo compreendida desde a primeira metade do século XX, momento a partir do qual ela
passa a ser concebida como um campo delimitado.
Para designar esse campo do saber que se volta para os processos de aprendizagem
típicos dos adultos, Knowles et al. (2005) advogam o uso do termo andragogia95. Ele, porém,
94
“[...] the richest resources for learning reside in the adult learners themselves. Hence, the emphasis in adult
education is on experimental techniques – techniques that tap into the experience of the learners, such as group
discussions, simulation exercises, problem solving activities, case methods, and laboratory methods instead of
transmittal techniques”.
95
À noção de andragogia está associada aquela de heutagogia. De acordo com Hasen e Kenyon (2000, n.p.), a
heutagogia “é o estudo da aprendizagem autodeterminada [Heutagogy is the study of self-determined learning]”,
53
não é o criador da expressão. Pelo contrário, ela possui uma história que retorna ao início do
século XIX96, quando Alexander Kapp (1833) propôs o uso do termo Andragogik como uma
contraparte ao alemão Pädagogik em seu estudo sobre a noção de educação na filosofia de
Platão. Para o comentador, ‘andragogia’ designa precisamente aquela educação que Platão
propõe como sendo voltada para o adulto (ibid., p. 241) e que possuiria como finalidade a
formação (Bildung) para os diferentes tipos de ocupações ou profissões (Berufsarten) que
ocorrem na cidade (ibid., p. 188-9). Se o termo ‘andragogia’, eventualmente, obteve aceitação
como designação da educação de adultos, a definição proposta por Kapp pode ser tomada
atualmente como muito restritiva, dada sua ênfase exclusiva na relação entre educação de
adultos e formação para profissão. De fato, se formos a um autor como James A. Draper
(1998), lemos que “a definição genérica de educação de adultos/andragogia não é
determinada pelo conteúdo, habilidades, atitudes ou valores que estejam sendo aprendidos”,
mas por ser a educação de adultos “um processo de facilitação e gerenciamento de uma
aprendizagem intencional (formal e não-formal) de adultos”. Assim, para o autor, “é a
aprendizagem intencional que é a essência da educação de adultos/andragogia”, sendo a
“intenção do aprendiz adulto” (ibid., p. 23-4) de aprender o elemento chave na andragogia97.
Mais uma vez, temos aqui o adulto no centro do processo de sua própria aprendizagem.
Ora, há pouco dizíamos que tanto a filosofia como a pedagogia atuais reclamavam,
para a aprendizagem da filosofia em nível superior, estratégias didáticas que pusessem ênfase
na atividade do aluno em sala. Agora, porém, notamos que a relação entre a filosofia
contemporânea e a pedagogia de adultos concebida como andragogia é mais estreita do que
poderíamos esperar. Vimos acima que a filosofia contemporânea é concebida por autores
centrais não somente como um discurso sobre o diálogo, mas como um saber que propicia e
dizendo respeito a uma “aprendizagem centrada no aprendiz que veja o aprendiz como o principal agente em sua
própria aprendizagem, que ocorre por meio de experiências pessoais [Heutagogy is concerned with learner-
centered learning that sees the learner as the major agent in their own learning, which occurs as a result of
personal experience]” (HASEN; KENYON, 2007, p. 112). Em outras palavras, a heutagogia é uma abordagem
da aprendizagem que, reconhecendo a centralidade da experiência do estudante para o processo de aprendizagem,
destaca igualmente este último como o principal motor de sua aprendizagem, compreendendo-a como um
processo autodeterminado. Ainda sobre o tema, cf. tb. BLASCHKE, 2012 e COELHO et al., 2016.
96
Sobre a história do termo ‘andragogia’, bem como da área de estudo por ele designada, cf. ENCKEVORT,
1971; DRAPER, 1998; PICONEZ, 2002, p. 99; KNOWLES et al., 2005, p. 58-60.
97
“It is intentional learning which is the essence of adult education/andragogy. Therefore, one can argue that the
generic definition of adult education/andragogy is not determined by the content, skills, attitudes or values being
learned (such as literacy education or professional continuing education); by any particular age group of adults;
by the sponsoring agency or location of the educational program; or by the methods of teaching and learning
being used. These are only variables for describing specific educational programs. The key to which
philosophical orientation is most appropriate at a given point in time is determined by the intent of the adult
learner and the time and resources available. Over the years, adult education has come to be viewed as a process
of facilitating and managing the intentional (formal and non-formal) learning of adults (always accompanied by
incidental or informal learning)”.
54
fomenta um diálogo aberto. Pois bem, a pedagogia e a didática contemporâneas (em particular
aquelas voltadas para a educação de adultos, mas não somente) advogam justamente uma
aprendizagem que possua o trabalho ativo e cooperativo por parte dos estudantes como
elemento central. Nesse caso, possibilitar uma aprendizagem com base na participação ativa
em um diálogo entre iguais já é praticar em sala tanto a andragogia como a filosofia. A
aprendizagem da filosofia, tal como hoje concebemos esta última, só pode ocorrer pela prática
ativa do diálogo, do debate, da pesquisa e da leitura filosóficas em sala, como elemento
central do processo de aprendizagem98.
Mas, como se torna possível refletir na prática pedagógico-didática esse caráter
dialógico do ensino-aprendizagem de filosofia, exigido não somente pela pedagogia
contemporânea, mas também pela própria reflexão filosófica atual? Como garantir, com base
na atividade dialógica, uma educação democrática tal como proposta por Dewey? Parece-me
que o meio para tanto é a atribuição ao professor da responsabilidade pela manutenção do
diálogo por meio de metodologias ativas. Estas últimas, nas palavras de José Moran (2018, p.
4), se caracterizam por dar “ênfase ao papel protagonista do aluno, ao seu envolvimento direto,
participativo e reflexivo em todas as etapas do processo [...], com orientação do professor
[...]”. Assim, “[m]etodologias ativas são estratégias de ensino centradas na participação
efetiva dos estudantes na construção do processo de aprendizagem [...]” (ibid.). O papel do
professor no processo de ensino-aprendizagem seria aquele de planejar situações nas quais os
estudantes participem ativamente e, por meio de tal participação, atinjam determinado
objetivo educacional99.
Se nos voltarmos para Roger Mucchielli (2016), podemos ser ainda mais precisos na
descrição das metodologias ativas. Para esse autor, estas se caracterizam (ibid., p. 78): [i] pela
atividade dos sujeitos a serem instruídos; [ii] por considerar a motivação intrínseca dos
estudantes (e, portanto, seus interesses)100; [iii] por serem atividades realizadas em grupo; [iv]
por ser nelas o docente antes um facilitador – ou, nas palavras de Gaeta e Masetto (2013, p.
55-56), um mediador – do que alguém que instrui (ou que transmite conhecimento); [v] por a
aprendizagem ser, primordialmente, avaliada pelos próprios participantes nas atividades
98
Nesse sentido, retornamos à citação de Rogers acima (cf. nota 93), onde se diz que a aprendizagem
significativa modifica o comportamento. Se for esse o caso, a aprendizagem da filosofia produz um indivíduo
mais aberto, apto ao diálogo, à leitura e à discussão. Utilizando a noção de ‘competência’ advogada por Philippe
Perrenoud (1999), poderíamos dizer que a competência oriunda da aprendizagem da filosofia é justamente a
capacidade de manter o diálogo equânime, o debate e a leitura. Voltaremos a isso no próximo item.
99
Sobre esse caráter intencional do planejamento educacional, cf. nota 45, acima.
100
Acerca da noção de ‘motivação intrínseca’ e sua relação com ‘interesse’, cf. o item anterior.
55
101
Nas palavras de Masetto (2003, p. 154), um “processo contínuo de avaliação”, como almejamos colocar em
prática aqui (cf. próx. nota), “deverá contar com a hetero e a auto-avaliação”. A primeira é o momento em que
os estudantes “recebem informações de outras pessoas que colaboram para o desenvolvimento do processo de
aprendizagem. Podem ser o próprio professor, os colegas de turma em atividades coletivas, profissionais ou
especialistas [...]”. Já a autoavaliação é caracterizada por Masetto (ibid.), como “a capacidade das pessoas de se
aperceberem de seu processo de aprendizagem e serem capazes de oferecer a si mesmas as informações
necessárias para desenvolver suas aprendizagens. Capacidade esta que exige o desenvolvimento de habilidades
como a de observar a si mesmo, comparar e relacionar seu desempenho com os objetivos propostos [...]”. Assim,
a defesa da inserção de um momento autoavaliativo no processo de aprendizagem não significa a exclusão da
heteroavaliação, mas exige que, como diz Mucchielli (2016, p. 30), “o pedagogo cesse de ser o juiz único dos
progressos dos alunos [le pédagogue cesse d’être le juge unique des progrès des élèves]”. De fato, nossa
finalidade é que o docente e discentes colaborem no processo avaliativo.
102
Trabalhamos aqui com a tríplice distinção, encontrada em BLOOM et al. 1971, entre avaliação somativa,
formativa e diagnóstica. A avaliação somativa diz respeito a uma “apreciação geral sobre o grau no qual os
resultados mais amplos foram obtidos no decorrer de todo um curso ou de uma parte substancial dele [summative
evaluation is directed toward a much more general assessment of the degree to which the larger outcomes have
been attained over the entire course or some substantial part of it]” (ibid., p. 61). A avaliação formativa é “o uso
de avaliação sistemática no processo de construção de currículo, de ensino e de aprendizagem com o propósio de
aperfeiçoar qualque um desses três processos [Formative evaluation is for us the use of systematic evaluation in
the process of curriculum construction, teaching, and learning for the purpose of improving any of these three
processes]” (ibid., p. 117). Já a avaliação diagnóstica, “realizada antes da instrução [...], busca focar a instrução
ao localizar o ponto de partida apropriado [Diagnostic evaluation performed prior to instruction has placement
as its primary function; that is, it attempts to focus instruction by locating the proper starting point]” (ibid., p.
87). Juntas, portanto, as três avaliações devem envolver todas as etapas do processo de ensino-aprendizagem.
Elas devem perfazer um processo de avaliação “integrado ao processo de aprendizagem como um elemento de
incentivo e motivação para a aprendizagem” (MASETTO, 2003, p. 149), fornecendo subsídios, tanto para o
docente como para os estudantes, por meio dos quais o processo de aprendizagem possa ser continuamente
aperfeiçoamento. Ou seja, retomando a formulação de Gaeta e Masetto (2013, p. 91), propomos “um processo de
avaliação como informação (feedback) contínua, que oriente o aluno a conseguir seus objetivos de formação
[...]”. Em particular sobre a avaliação formativa, cf. FERNANDES, 2006. Para outra proposta de classificação
das estratégias de avaliação, cf. DE KETELE, 2010.
103
Em outras palavras, será tarefa do professor realizar a transposição didática do conteúdo filosófico a ser
aprendido (sobre a noção de ‘conteúdo’, cf. o item 2.3). Com efeito, não há uma perfeita identidade entre um
determinado conteúdo [i] tal como trabalhado em um contexto de interlocução entre profissionais que já o
dominam e [ii] tal como trabalhado em um contexto de interlocução no qual deve ser aprendido por parte dos
interlocutores. A passagem da abordagem de um conteúdo no contexto [i] para sua abordagem no contexto [ii]
56
Mais acima (no item 2.1), tivemos a oportunidade de recorrer à noção de competência
no contexto da discussão sobre a relevância das habilidades de leitura para o estudo da
filosofia e sobre a consequente dificuldade enfrentada pelos docentes dessa área em nível
superior devido ao baixo letramento herdado da educação básica pelos estudantes. A noção de
competência de que lançamos mão foi aquela elaborada por Perrenoud (1999, p. 15), segundo
o qual, como já lemos: “[p]ossuir conhecimentos e capacidades não significa ser competente”,
uma vez que a “atualização em um contexto singular [...] daquilo que se sabe é reveladora da
‘passagem’ à competência”104. Ora, se a competência envolve, para além do conhecimento, a
capacidade de atualizar esse conhecimento em contextos singulares – e, portanto, novos,
distintos dos contextos de aprendizagem – nos quais ele possa ser útil, consequentemente
possuir competência envolve, igualmente, a capacidade de transferência de conhecimento,
como ademais também já foi adiantado. Ou seja, o indivíduo competente em uma área ou em
uma prática é aquele que, dado um contexto singular inédito, consegue atualizar ou mobilizar
os conhecimentos já possuídos que possam ser úteis na solução de desafios associados a esse
novo contexto. Sendo assim, uma vez que o processo de ensino-aprendizagem vise ao
desenvolvimento de competências, ele deverá igualmente se ocupar do exercício e
aprendizagem da capacidade de transferência de conhecimento, algo frequentemente
desconsiderado no ambiente educacional:
exige, justamente, uma transposição didática de tal conteúdo. Nas palavras de Chevallard (1985, p. 39 – grifos
no orig.): “Tendo um conteúdo de saber sido designado como conteúdo a ser ensinado, ele sofre imediatamente
um conjunto de transformações adaptativas que vão torná-lo apto a tomar lugar entre os objetos de ensino. O
‘trabalho’ que faz de um objeto de saber a ser ensinado um objeto de ensino é chamado transposição didática
[Un contenu de savoir ayant été désigné comme savoir à enseigner subit dès lors un ensemble de
transformations adaptatives qui vont le rendre apte à prendre place parmi les objets d’enseignement. Le ‘travail’
qui d’un objet de savoir à enseigner fait un objet d’enseignement est appelé la transposition didactique]”. Em
outros termos, há aqui uma “passagem de um conteúdo de saber preciso a uma versão didática desse objeto de
saber [passage d’un contenu de savoir précis à une version didactique de cet objet de savoir]” (ibid.). Ora, o que
se propõe no presente trabalho é, justamente, que a transposição didática, no caso em estudo, vise à
aprendizagem de conteúdos filósoficos por meio de metodologias ativas. Para uma visão crítica com respeito a
certas concepções de transposição didática, cf. PERRENOUD, 2011, p. 96-99.
104
Cf. nota 15, acima.
57
uma prova, se revela incapaz de se servir dela na prática, pois ele jamais foi
orientado a fazê-lo. Sabemos hoje: a transferência de conhecimentos não é
automática; ela se adquire pelo exercício e [por] uma prática reflexiva, em
situações que dão a ocasião de mobilizar saberes, de transpô-los, de
combiná-los, de inventar uma estratégia original a partir de recursos que não
a contêm e não a ditam105 (ibid.).
Dessa maneira, ter competência é conseguir transferir conhecimentos. Isso exige a capacidade
de mobilizar, em situações complexas novas, conhecimentos já possuídos e, portanto, a
105
“On evoque souvant le transfert de connaissance pour souligner qu’il ne s’opère pas très bien: tel étudiant, qui
maîtrisait une théorie à l’examen, se révèle incapable de s’en servir en pratique, parce qu’il n’a jamais été
entraîné à le faire. On le sait aujourd’hui: le transfert de connaissances n’est pas automatique, il s’acquiert par
l’exercise et une pratique réflexive, dans des situations qui donnent l’occasion de mobiliser des savoirs, de les
transposer, de les combiner, d’inventer une stratégie originale à partir de ressources qui ne la contiennent et ne la
dictent pas”.
106
“La mobilisation des connaissances se développe dans des situations complexes, qui obligent à poser le
problème avant de le résoudre, à repérer les connaissances pertinentes, à les réorganiser en fonction de la
situation, à extrapoler ou combler les vides”.
58
107
“El primer momento, el de inicio, se trata de plantear un problema o cuestión filosófica que será objeto de
consideración; el planteo es responsabilidad fundamental del profesor, es una propuesta de trabajo que debe
incluir las acciones necesarias para que los estudiantes hagan suyo el problema o cuestión filosófica: se trata de
problematizar el problema, de provocar perplejidad y despertar el interés ante lo que será objeto de tratamiento”.
108
Sobre a relação entre o professor e as perguntas em Lipman, cf. o item 2.2; para o mesmo tema em Obiols, cf.
a nota anterior.
109
Nesse ponto, aproximo-me de Splitter e Sharp (1995, p. 59), para os quais “[...] na comunidade de
investigação, o papel de Sócrates é assumido por alunos e, também, pelo professor [... in the community of
inquiry, the part of Socrates is taken by students as well as by the teacher]”. Vale notar, igualmente, que, muito
embora haja uma ênfase no estudo de problemas e perguntas na concepção de aprendizagem de filosofia aqui
exposta, ela se afasta de certas concepções de Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) justamente pela
ênfase na formulação do problema pelo estudante. Com efeito, na ABP tal como descrita, por exemplo, em
Gutiérrez et al. (2012), o processo de aprendizagem se inicia pela “apresentação do problema: ‘o problema
sempre aparece primeiro’ [Presentación del problema: ‘el problema siempre aparece primero’]” (ibid., p. 79),
pois em “qualquer profissão o problema se apresenta primeira [En cualquier profesión el problema se presenta
primero]” (ibid., p. 81). No presente trabalho, pelo contrário, seguimos de perto Perrenoud (cf. nota 106, acima),
quando este afirma que inicialmente, antes ainda do problema, somos postos em geral perante uma situação
singular a ser problematizada. Assim, do nosso ponto de vista (pelo menos, no que diz respeito à aprendizagem
da filosofia), cabe dar um passo atrás com respeito à ABP e aprender não apenas pela solução de problemas, mas
pela formulação e solução de problemas. Com efeito, como afirma Moreno (1993, p. 40), “existe uma grande
diferença entre aprender a resolver um problema e saber colocá-lo [Es importante destacar que existe una gran
diferencia entre aprender a resolver un problema y saber plantearlo]”. Assim, o papel do professor seria aquele
de propor não problemas, mas situações problematizáveis – que deem a oportunidade aos estudantes de colocar
problemas e propor soluções para eles.
59
convém formular nesse contexto. Esse tema foi estudado mais profundamente por Laurence
Splitter e Ann Sharp (1995, p. 32-63). Sem pretender aqui percorrer todas as etapas da
pesquisa por eles produzida, contento-me em destacar duas características das perguntas cuja
formulação, segundo esses autores, deve ser privilegiada na aprendizagem de filosofia. A
primeira é a descrição dessas perguntas como abertas, em oposição a perguntas fechadas.
Para eles, uma pergunta se caracteriza como aberta ou fechada não exatamente por admitir,
respectivamente, inúmeras ou apenas um conjunto limitado de respostas. Antes, uma pergunta
se caracteriza como aberta com respeito ao contexto ou ambiente110 em que tal pergunta é
produzida:
110
Essa caracterização da pergunta não de acordo com seu conteúdo, mas de acordo com o contexto de sua
formulação é tributária das pesquisas filosóficas contemporâneas acerca da linguagem, com particular ênfase em
seu uso. Com efeito, já lemos nas Investigações filosóficas, de Wittgenstein, (2001, p. 9, § 21 – grifo no orig.)
que, ao considerarmos a diferença entre uma ordem e um relato, “podemos também pensar que o tom [i.e., da
voz em uma fala] seja o mesmo – pois uma ordem e um relato podem ser pronunciados com vários tons e várias
expressões faciais – e que a diferença esteja apenas no uso [Aber wir können uns auch denken, daß der Ton der
gleiche ist, – denn ein Befehl und eine Meldung können in mancherlei Ton ausgesprochen werden und mit
mancherlei Miene – und daß der Unterschied allein in der Verwendung liegt]”. Relação semelhante entre ‘ato da
fala’ (speech act) e ‘situação de fala’ (speech situation) é classicamente estabelecida por J. L. Austin (1962, p.
148).
111
“If the environment encourages the the formation of questions as an important activity in its own right, and if
it encourages those involved to bring to bear a range of strategies and dispositions for treating both questions and
putative answers as grist for further inquiry, then and only then, should we say that the questioning is open”.
60
perguntas formuladas sejam tratadas como perguntas abertas. Assim, recorrendo às palavras
dos autores, uma “comunidade de investigação em sala de aula é caracterizada, na maior parte,
por perguntas procedimentais abertas e substanciais abertas, que são construídas e feitas pelos
estudantes uns com respeito aos outros” 112 (ibid., p. 59). Em poucas palavras, portanto,
quando atribuímos à formulação de perguntas papel central no processo de ensino-
aprendizagem de filosofia, estamos nos referindo à exigência de manutenção da sala de aula
como ambiente aberto para problematizações que partam, preferencialmente, dos próprios
estudantes e que sejam tomadas como elementos de fomento à aprendizagem113.
Dito isso, cabe perguntar acerca do que deveria incidir a formulação de perguntas e,
em geral, o trabalho de problematização no processo de ensino-aprendizagem de filosofia
aqui proposto. Isto é, sobre o que cabe perguntar? Sem dúvida, poderá haver perguntas sobre
112
“A classroom comunity of inquiry is characterised, for the most part, by open procedural and open
substantive questions which are constructed and asked by students of one another”. Em outras palavras, a sala de
aula deve ser o local em que todo questionamento é válido – seja sobre o conteúdo em estudo, seja sobre o
próprio questionamento. Essa afirmação pode nos remeter à seguinte passagem de J. Derrida (2001, p. 16): “A
universidade deveria, então, ser também o lugar no qual nada está ao abrigo do questionamento, nem mesmo a
figura atual e determinada da democracia; e nem mesmo a ideia tradicional de crítica, como crítica teórica, e nem
mesmo a autoridade da forma ‘questão’, do pensamento como ‘questionamento’. É por isso que falei, sem
demora e sem disfarce de desconstrução [L’université devrait donc être aussi le lieu dans lequel rien n’est à
l’abri du questionnement, pas même la figure actuelle et déterminée de la démocratie; et pas même l’idée
traditionnelle de critique, comme critique théorique, et pas même l’autorité de la forme ‘question’, de la pensée
comme ‘questionnement’. C’est pourquoi j’ai parlé sans retard et sans masque de déconstruction]”. Cf. tb.
FABBRINI, 2005, p. 19.
113
Retomando a noção de ‘situação ideal de fala’ que vimos no item anterior ser desenvolvida por Habermas, é
preciso que os participantes dessa comunidade formada na sala de aula tenham “as mesmas oportunidades de
utilizar atos da fala comunicativos, de maneira que a qualquer momento eles possam abrir, bem como perpetuar
discursos [Diskurse] através da fala [Rede], réplica, pergunta e reposta [Alle potentiellen Teilnehmer eines
Diskurses müssen die gleiche Chance haben, kommunikative Sprechakte zu verwenden, so daß sie jederzeit
Diskurse eröffnen sowie durch Rede und Gegenrede, Frage und Antwort perpetuiren können]”. Da mesma
maneira, “[t]odos os participantes do discurso devem ter as mesmas oportunidades de avançar interpretações,
asserções, recomendações, esclarecimentos e justificações, bem como de problematizar, fundamentar ou
contradizer a pretensão de validade destes [Alle Diskursteilnehmer müssen die gleiche Chance haben, Deutungen,
Behauptungen, Empfehlungen, Erklärungen und Rechtfertigungen aufzustellen und deren Geltungsanspruch zu
problematisieren, zu begründen oder zu widerlegen ...]” (HABERMAS, 1984, p. 177). É preciso destacar, no
entanto, que há uma diferença relevante entre a ‘situação ideal de fala’ descrita por Habermas e o contexto
dialógico de aprendizagem que propomos aqui: enquanto a ‘situação ideal de fala’, como vimos no item anterior,
se apresenta como aquela situação na qual seria possível chegar ao consenso acerca da validade de uma
proposição (ibid., p. 179), o contexto dialógico de aprendizagem vale, principalmente, pelo processo de
discussão e não por seu resultado, como descado por Lipman (cf. nota 54, acima). Assim, no contexto
educacional não haveria a necessidade de atingir um consenso, embora atingi-lo seja possível. Com efeito, essa
descrição do processo educacional como um processo dialógico sem finalidade consensual – algo como um
‘diálogo pelo diálogo’ – é defendida, em uma crítica a Lipman, por Galichet (1997, p. 51-52): “A discussão,
então, não é mais finalizada [...] e, no entanto, ela é necessária, não em razão de um pertencimento dos
protagonistas a uma comunidade discursiva de conceitualização racional, mas pelo contrário em razão de sua
própria exclusividade radical que repudia a priori toda possibilidade de ‘síntese’ entre eles e interdita toda ideia
de coexistência [La discussion alors n’est plus finalisée ..., et cependant elle est nécessaire, non en raison de
l’appartenance des protagonistes à une communauté discursive de conceptualisation rationelle, mais au
contraire en raison même de leur exclusivité radicale qui répudie a priori toute possibilite de ‘synthèse’ entre
eux et interdit toute idée de co-existence]”. Nesse sentido, para Galichet (ibid., p. 54), a relevância do estudo da
filosofia estaria, precisamente, na ultrapassagem dessa ‘exclusividade radical’ (exclusité radicale) em direção à
‘coexistência’ (coexistence).
61
114
“Der Auf- und Ausbau einer anspruchsvollen Lesekompetenz (in enger Verbindung mit einer analogen
Schreibkompetenz) ist dafür eine unverzichtbare Schlüsselqualifikation”. Vale destacar que a ênfase posta na
leitura de texto não exclui que haja, na formação em filosofia, o trabalho com imagens – aquilo que Santaella
(2012, p. 7-11) denomina de leitura de imagens. Esta última, de fato, pode ser fundamental em certas áreas da
filosofia, como a estética ou a filosofia da arte. Ainda assim, parece-me que, em filosofia, a leitura de imagem
não substitui nunca completamente a leitura de texto, podendo no máximo acompanhá-la.
115
É interessante notar que a competência em escrita, não obstante seja fundamental nesse contexto, não é
geralmente destacada nos estudos sobre ensino-aprendizagem de filosofia – por exemplo, ela não é citada nas
DCN da graduação em filosofia (BRASIL, 2001b). Esse parco interesse pela escrita em tal contexto foi notado
por Pfister (2016, p. 275): “Surpreendentemente, no entanto, a escrita por muito tempo não recebeu especial
atenção na discurssão sobre didática especial [Erstaunlicherweise erhielt das Schreiben jedoch in der
fachdidaktischen Diskussion lange Zeit keine besondere Aufmerksamkeit]”. Por outro lado, é importante destacar
que o foco na escrita filosófica não deve significar uma desatenção à expressão oral, no processo de ensino-
aprendizagem de filosofia. Pelo contrário, as expressões escrita e oral – em nosso caso, as intervenções orais e
escritas na discussão filosófica – são, ambas, relevantes para a formação em filosofia. Sobre a relação entre
oralidade e escrita no ensino, cf. SCHNEUWLY; DOLZ et al., 2004, p. 139-140.
116
“Im Studium der Philosophie spielt das Schreiben eine zentrale Rolle. Dies Zeigt sich bereits an der
Bedeutung von Seminar- und Abschlussarbeiten. Auch die Forschung entwickelt sich schriftlich, haupsächlich
über Monographien und Aufsätze in Fachzeitschriften”.
62
nachvollziehbar] para outros”117 (ibid., p. 276). No mais, a escrita é sempre um exercício que
contribui, justamente para ‘aprender a escrever’ (Schreiben zu lernen – cf. ibid.). Sem dúvida,
como já notado, a escrita pode ser realizada com esses objetivos no processo de ensino-
aprendizagem de diversas áreas do conhecimento. O mesmo é válido para os critérios de
qualidade da escrita filosófica elencados por Pfister: “clareza conceitual e argumentação”118
(ibid., p. 286). No fim, o que faz com que certos textos particulares sejam reconhecidos como
filosóficos é que “eles possuam um conteúdo e uma abordagem filosófica”119 (ibid., p. 277).
No caso do processo de ensino-aprendizagem aqui proposto, portanto, a problematização de
textos filosóficos deverá ser acompanhada pela expressão escrita – argumentativa e
conceitualmente clara – desse trabalho de formulação de perguntas e busca por respostas, que
se toma por filosófico por ser voltado para o estudo de obras filosóficas. A exigência,
sublinhada por Pfister, de que a produção escrita seja compreensível para outros é
fundamental, não apenas para que o professor a compreenda ou avalie, mas principalmente
para que ela possa fomentar a discussão em turma e o trabalho conjunto, em comunidade,
como um todo. De outra parte, a falha do texto (ou, mesmo, de uma intervenção oral) em se
fazer compreensível para o interlocutor não deve significar um fracasso do estudante120, mas
117
“Ist der Zweck des Schreibens das Lernen von etwas Neuem, so muss der entstandene Text in der Regel für
andere verständlich und nachvollziehbar sein”.
118
“Zwei Aspekte sind für das philosophische Schreiben besonders wichtig: begriffliche Klarheit und
Argumentation”.
119
“Alle gennanten Arten des Schreibens sind nicht spezifisch philosophisch. Sie werden jedoch philosophisch,
wenn sie einen philosophischen Inhalt und Zugang haben”. Para uma concepção mais ampla de escrita filosófica,
que abranja textos literários ou poéticos, cf. HERMANN, 2010, p. 179-189. É importante sublinhar, ainda, que
qualquer texto pode se dar a uma leitura filósofica. Como diz Fabbrini (2005, p. 8): “[...] o que faz da leitura de
um texto uma atividade filosófica não é a natureza disciplinar do texto lido, mas o modo como o leitor lê este
texto; ou seja, o essencial dessa atividade está no modus operandi do leitor em face às diferentes formas de
enunciação”.
120
Sendo assim, assumimos neste trabalho aquela concepção de ‘erro’ como ‘erro construtivo’ derivada de J.
Piaget. Com efeito, se formos ao livro A equilibração das estruturas cognitivas (1975, p. 13-17), vemos Piaget
descrever o desenvolvimento cognitivo a partir da noção de equilibração (équilibration), isto é, grosso modo, um
processo de assimilação (assimilation) de elementos exteriores em um esquema (schème) cognitivo já dado e de
acomodação (accommodation) deste àqueles, de modo que ambos sejam conservados, ainda que transformados,
e dessa maneira seja mantido um equilíbrio cognitivo. Nesse contexto, a noção de desequilíbrio ganha papel de
destaque: “Está claro, com efeito, que em uma perspectiva de equilibração, uma das fontes de progresso no
desenvolvimento dos conhecimentos deve ser buscada nos desequilíbrios enquanto tais, que são aquilo somente
que obriga um sujeito a ultrapassar seu estado atual [...] [Il est en effet clair qu’en une perspective
d’équilibration l’une des sources de progrès dans le développement des connaissances est à chercher dans les
déséquilibres comme tels, qui seuls obligent un sujet à dépasser son état actuel...]” (ibid., p. 17). Nas palavras de
La Taille (1997, p. 36), “para Piaget, a evolução da inteligência e, por conseguinte, dos conhecimentos tem como
essencial fonte as regulações advindas de situações perturbadoras. Fica evidente nessa tese a importância do erro
na aprendizagem e no desenvolvimento [...]. Vale dizer que o erro pode levar o sujeito a modificar seus
esquemas, enriquencendo-os”. No entanto, para que o erro possa assumir esse caráter positivo no
desenvolvimento do estudante é preciso que este não apenas seja ‘informado de que errou’, mas tenha “acesso a
qualidade de seu erro” (ibid. – grifo no orig.). Em nosso caso, é importante que o estudante saiba em que medida
sua intervenção escrita ou oral não se mostrou compreensível para o interlocutor, de modo que ele possa
modificar a formulação de tal intervenção, aperfeiçoando-a. Ou seja, uma consideração construtiva do erro no
63
deve ser compreendida – em uma comunidade de discussão aberta – como uma oportunidade
para a formulação de perguntas procedimentais, que permitam a reformulação e o
esclarecimento da intervenção escrita (ou oral) anterior. Com efeito, é justamente por meio
desse tipo de troca que deve se desenvolver o diálogo na comunidade em sala de aula.
Nesse ponto, acredito ter estabelecido aquelas que serão as quatro principais
competências a serem desenvolvidas no processo de ensino-aprendizagem de filosofia que
proponho adiante: [i] problematização, com base em [ii] leitura e [iii] escrita filosóficas, por
meio da [iv] colaboração em uma comunidade formada na sala de aula. Os objetivos a serem
propostos para cada etapa do componente curricular serão, basicamente, meios de fomento ao
desenvolvimento dessas competências que, parece-me, possuem um caráter transversal com
respeito ao estudo da filosofia em nível superior121. Os objetivos educacionais que visem ao
desenvolvimento dessas competências (e, em particular, da capacidade de transferência dos
conhecimentos associados a tais competências) serão a ocasião do desenvolvimento de uma
variedade conteúdos122.
Para apresentar de maneira geral os conteúdos a serem aprendidos no planejamento de
aprendizagem de filosofia aqui proposto, podemos inicialmente retomar a distinção de Zabala
(1995, p. 132; 2000, p. 81-88) entre conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais. Os
conteúdos conceituais são aqueles que “requerem uma compreensão do significado” 123
(ZABALA, 2000, p. 83 – grifo no orig.). “Nesse tipo de conteúdo”, nos diz o autor, “são
totalmente necessárias [...] atividades que possibilitem o reconhecimento dos conhecimentos
prévios, que assegurem a significatividade e a funcionalidade [...]” 124 (ibid., p. 83). Os
planejamento da aprendizagem põe imeditamente a questão do feedback, sobre o qual falaremos no item 3.1,
adiante. Ainda sobre a relação entre erros e metodologias ativas, cf. MUCCHIELLI, 2016, p. 72-74, que, em
lugar de ‘erro’, prefere falar em ‘tentativas’ (essais) ou em um ‘tatear experimental’ (tâtonnement expérimental).
121
Sobre a transversalidade em educação, cf. acima nota 51.
122
Em nossa compreensão da relação entre competências, objetivos educacionais e conteúdos, buscamos seguir
de perto Gaeta e Masetto (2013). Como estes destacam, em seu trabalho de planejamento da aprendizagem, o
professor, além de considerar os documentos relevantes da IES em que exerce sua atividade, deve “colocar-se a
par das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em que atuará, identificando quais
conhecimentos, competência e atitudes são propostos [...]” (ibid., p. 23). Conhecendo as competências a serem
adquiridas pelos estudantes do curso em que atua, cabe ao professor planejar a “disciplina [...] em razão dos
objetivos de formação profissional a serem alcançados pelos alunos e não unicamente em razão dos conteúdos a
serem transmitidos” (ibid., p. 70 – cf. tb. ibid., p. 100). Uma vez estabelecidos os objetivos, selecionam-se os
conteúdos a serem estudados de modo a alcançar os objetivos formulados, isto é, “os assuntos e temas que serão
estudados em uma unidade e que estejam em consonância com os objetivos a serem alcançados” (ibid., p. 73).
Ou seja, o caminho a ser seguido no planejamento parte do conhecimento das competências a serem adquiridas
pelos estudantes, passa pela formulação dos objetivos que eles devem atingir para adquiri-las e chega à seleção
dos conteúdos que lhes permitirão atingir tais objetivos. Voltaremos aos objetivos educacionais adiante, no item
3.3.2.
123
“Dado que los conceptos y principios son temas abstractos, requieren una comprensión del significado [...]”.
124
“En este tipo de contenido son totalmente necesarias las diferentes condiciones establecidas anteriormente
sobre la significatividad en el aprendizaje: atividades que posibiliten el reconocimiento de los conocimientos
64
conteúdos procedimentais são aqueles que dizem respeito à realização de ações, estando
associados a “exercícios suficientes e progressivos das diferentes ações que conformam os
procedimentos, técnicas ou estratégias”125 (ibid., p. 84) a serem aprendidos. Já os conteúdos
atitudinais estão imbricados a um ‘componente afetivo’ (ibid., p. 85), pois abarcam “as
relações pessoais que cada um estabelece com o objeto de atitude ou valor”126 (ibid.). Em
poucas palavras, há aqui uma distinção próxima àquela proposta por Mucchielli (2003, p.
122) entre ‘saber’ (savoir), ‘saber-fazer’ (savoir-faire) e ‘saber-ser’ (savoir-être).
Assim, retomando as quatro competências que nortearão nosso trabalho, enumeradas
acima, podemos dizer que [i] a problematização e [ii] a leitura filosófica tanto dizem respeito
a conteúdos conceituais (ao ‘saber’, o conhecimento do tema ou assunto a que diz respeito o
texto problematizado), como também se relacionam, tal qual [iii] a escrita filosófica, a
conteúdos procedimentais (um ‘saber-fazer’, o procedimento de problematização, leitura e
escrita de textos filosóficos). Além disso, [iv] a colaboração para o trabalho filosófico se
associa a conteúdos atitudinais (o ‘saber-ser’, pois envolve o trato com o outro e a
consideração do interlocutor como um igual, o que vimos ser tão relevante para a educação
filosófica segundo Lipman e para a filosofia como um todo em diversos outros autores)127.
Dando mais um passo, podemos dizer igualmente que o estabelecimento de conteúdos
a partir dos objetivos formulados com base nas competências acima descritas vai ao encontro
daquilo que J. Delors et al. (1996) denominaram como os ‘quatro pilares da educação’:
aprender a conhecer, isto é, ter os instrumentos que permitam buscar o conhecimento (ibid., p.
85); aprender a fazer, a colocar em prática seus conhecimentos (ibid., p. 86); aprender a
conviver socialmente e pacificamente com o outro (ibid., p. 90-92); aprender a ser, como
pessoa autônoma e crítica (ibid., p. 92). Com efeito, não somente pretendemos aqui que os
estudantes aprendam determinado conteúdo. Mais do que isso, emprestando particular ênfase
prévios, que aseguren la significatividad y la funcionalidad, que sean adecuadas al nível de desarrollo, que
provoquen una actividad mental, etc.”.
125
“En este caso, el dato más relevante viene determinado por la necesidad de realizar ejercitaciones suficientes
y progressivas de las diferentes acciones que conforman los procedimentos, las técnicas o estrategias”.
126
“Las actividades de enseñanza necesarias tienen que abarcar, al mismo tempo que los campos cognoscitivos,
los afectivos y conductuales, dado que los pensamientos, los sentimentos y el comportamiento de una persona no
sólo dependen de lo socialmente establecido, sino, sobre todo, de las relaciones personales que cada uno
estabelece con el objeto de la actitud o el valor”.
127
A partir dessa distinção entre três tipos de conteúdos de aprendizagem, Obiols propõe que distingamos
aqueles conteúdos que dizem respeito à aprendizagem da filosofia e aqueles que dizem respeito à aprendizagem
do filosofar: “Aprender filosofia pode ser entendido como aprender conteúdos conceituais filosóficos [...].
Aprender a filosofar poderia ser aprender conteúdos procedimentais e atitudinais filosóficos ou desenvolver
alguns procedimentos e algumas atitudes filosóficas [...] [Aprender filosofía puede entenderse como aprender
contenidos conceptuales filosóficos ... Aprender a filosofar prodría ser aprender cotenidos procedimentales y
actitudinales filosóficos o desarrollar unos procedimentos y unas actitudes filosóficas ...]” (OBIOLS, 2002, p.
65). Note-se que essa distinção é reminiscente daquela proposta por Immanuel Kant (1874, p. 699 - B865), na
Crítica da Razão Pura, entre aprender ‘filosofia’ (Philosophie) e aprender a ‘filosofar’ (philosophieren).
65
à transferência de conhecimento, como visto acima, é nosso fim que eles transfiram também a
capacidade de problematização e discussão colaborativa para outras situações novas e
complexas. Somente dessa maneira poderão saber, pela problematização de cada novo
contexto, quais conhecimentos novos devem adquirir para compreendê-lo e como aplicá-los à
nova situação. Se damos ênfase à leitura do texto pelo estudante em nosso planejamento de
ensino-aprendizagem é porque, seguindo Paulo Freire (2016, p. 58), cremos que a leitura da
palavra é o caminho para a releitura do mundo. Assim, um curso de filosofia deve ser
dedicado a leitura, escrita, problematização e discussão rigorosas e, por meio dessas
atividades, à formação do indivíduo para o diálogo colaborativo, para a vida em sociedade e
para a ação autônoma e crítica, aspectos da aprendizagem igualmente mencionados nas DCN
da graduação em filosofia128.
Porém, para realizar um planejamento educacional para um componente curricular é
preciso, a partir dessas considerações de ordem geral, descer à especificidade do componente
em questão. Como adiantado na introdução ao presente trabalho, trata-se aqui de propor um
PTD para o componente curricular “História da Filosofia Medieval”. Esse componente é, em
geral, parte do grupo de disciplinas obrigatórias nos Bacharelados e Licenciaturas em
Filosofia. Uma vez que, frequentemente, as graduações em Filosofia dão grande liberdade
para o estudante no que diz respeito à seleção das disciplinas que cursará a cada período letivo,
não se pode determinar precisamente o período da graduação durante o qual tal disciplina será
cursada129. Destarte, em geral, não é possível saber ao início da disciplina que componentes já
foram cursados por cada estudante da turma. Esse é mais um dos elementos (para além
daqueles discutidos acima, nos itens 2.1 e 2.2) que tornam necessária, em um planejamento de
128
Neste âmbito, as DCN da graduação em filosofia fazem referências a: “Capacidade de desenvolver uma
consciência crítica sobre conhecimento, razão e realidade sócio-histórico-político [...]; Percepção da integração
necessária entre a filosofia e a produção científica, artística, bem como com o agir pessoal e político; Capacidade
de relacionar o exercício da crítica filosófica com a promoção integral da cidadania e com respeito à pessoa,
dentro da tradição dos direitos humanos” (BRASIL, 2001b, p. 3). Cabe notar que a Classificação Brasileira de
Ocupações (BRASIL, 2010, p. 345) também destaca a relação entre o estudo dos textos clássicos e a reflexão
sobre o mundo na atividade filosófica, quando afirma que os filósofos “[r]efletem crítica e sistematicamente
sobre o ser e o destino do homem e do mundo, por meio da assimilação dos clássicos do pensamento e da
realização de pesquisas sobre temas filosóficos [...]”. A International Standard Classification of Occupation –
ISCO-08 (UNITED NATIONS, 2012, p. 162) também ressalta a vocação do filósofo para a reflexão sobre o
mundo contemporâneo. Por fim, note-se que, almejando a associação entre formação profissional e formação
para a cidadania, nossa compreensão do planejamento da aprendizagem se mostra mais uma vez inspirada por
Gaeta e Masetto (2013, p. 29), segundo os quais “[o] profissional precisa se formar com ampla competência
técnica em sua área, mas ao mesmo tempo com profundo comprometimento com a cidadania”.
129
Esse é o caso, por exemplo, na graduação em Filosofia da Universidade de São Paulo (cf. o site: < http://
www.filosofia.fflch.usp.br/graduacao/curriculo >, acesso em: 07 abr. 2020), da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (cf. o site: < https://ifcs.ufrj.br/index.php/graduacao/filosofia/bacharelado >, acesso em: 07 abr. 2020) e
da Universidade Federal de Minas Gerais (cf. o site: < https://filosofia.fafich.ufmg.br/graduacao/sobre/ >, acesso
em: 07 abr. 2020), que estão entre as principais referências para a formação superior em filosofia no Brasil.
66
Um mundo de textos que circulam uns nos outros, sustentados por uma
palavra e uma memória externas: aquela da lectura [i.e., o comentário ao
texto], da ‘explicação do texto’ conduzida publicamente por um mestre,
aquela da disputatio [i.e., a disputa sobre o texto], que faz reluzir o referente
textual no jogo da argumentação. Este é o arquivo medieval, esta é também a
exegese que o explora: uma prática intertextual que estrutura e recompõe
indefinidamente a massa arquivada130 (ibid., p. 10).
Ora, se for assim – isto é, se o tema privilegiado na historiografia da filosofia (e, em particular,
da filosofia medieval) forem os textos e a intertextualidade –, o componente curricular
“História da Filosofia Medieval” se torna uma ocasião especialmente propícia para o
desenvolvimento de competência em leitura, escrita e em problematização dos textos
estudados. Que o trabalho de problematização seja realizado ativamente pelos estudantes
130
“Un monde de textes circulant les uns dans les autres, soutenus par une parole et une mémoire externes, celle
de la lectura, de l’‘explication de texte’ conduite publiquement par un maître, celle de la disputatio, qui fait
éclater le référent textuel dans le jeu de l’argumentation, telle est l’archive médiévale, telle est aussi l’exégèse
qui l’exploite: une pratique intertextuelle qui structure et recompose indéfiniment la masse archivée”.
67
dependerá de o docente ser bem-sucedido em propor como contexto para estudo das fontes
textuais aquele ambiente comunitário e aberto de que falávamos há pouco. Dependerá do
professor também – pelo menos, em um primeiro momento – a seleção de textos a serem
trabalhados colaborativamente com os estudantes. Não obstante, a abertura comunitária aqui
proposta também deixa espaço para que os próprios estudantes possam interferir na
bibliografia do componente, propondo a leitura de textos que venham a contribuir para a
discussão colaborativa131.
Porém, dizíamos acima que o trabalho filosófico de problematização textual em um
ambiente de discussão aberta e comunitária não somente nos leva a pensar sobre o texto lido,
mas também a problematizar o nosso mundo e, assim, a agirmos autonomamente. Sendo
assim e retomando os termos de Paulo Freire (2016, p. 58), pergunto: em que medida a leitura
de um texto filosófico medieval poderia contribuir para a releitura de nosso próprio mundo?
Ou melhor, em que medida um leitor, ao ler um texto filosófico medieval, aprende sobre o seu
próprio mundo contemporâneo? A melhor resposta para essa pergunta, parece-me, está em
Kurt Flasch (1994, p. 28-9 – grifos no orig.):
Com efeito, o trabalho com história da filosofia – e, portanto, a leitura de textos filosóficos do
passado – é um modo de nos conhecermos a partir do outro. De compreender aquilo que nos
caracteriza e, também, de narrar historicamente como chegamos a ser o que somos hoje.
Assim, ler um texto filosófico medieval e problematizá-lo é, como propúnhamos, um primeiro
131
Um interessante exemplo do tipo de coautoria no planejamento da aprendizagem a que nos referimos aqui
pode ser lido em GANZELA, 2018.
132
“Die Beschäftigung mit den Denkern der Vergangenheit beginnt philosophisch zu werden, nicht, indem wir
uns auf dieselben Dinge beziehen wie sie, sondern indem wir unsere Beziehung zu unseren Dingen in unserer
Welt konfrontieren mit ihrer Beziehung zu ihrem Dingen in ihrer Welt. Nur indem wir diesen unvermeidlich
Bruch der unmittelbaren Gegenstandsbeziehung mitvollziehen, denken wir historisch. Und dies zu wissen, dient
nicht der Rechtfertigung des Anekdoten-sammelns, sondern unserer Selbstfassung als denkender Wesen, die
historisch sind und auch im Denken zeitlich sind, gerade auch dann, wenn sie Konstruktionen ausdenken, die fast
zeitlos sind”.
68
133
Um exemplo recente da tentativa de pensar um problema contemporâneo à luz da história da filosofia
medieval pode ser encontrado em Pensar na Idade Média, de Alain de Libera (1991). Nesse livro, o autor mostra
como uma reflexão sobre as – de fato, um resgate das – origens árabes e muçulmanas medievais de muitos dos
temas fundamentais para a formação do pensamento ocidental moderno poderia, se introduzida no currículo da
educação básica europeia, ser de valia para uma maior integração dos imigrantes de ascendência árabe que hoje
vivem na França e, em geral, na Europa (ibid., p. 98-142). Ou seja, toma-se a história da filosofia como
fundamento para a reflexão sobre o mundo contemporâneo e sobre nosso agir nesse mundo. Nesse sentido, o
estudo da história da filosofia medieval também poderia contribuir para aquele ensino de filosofia que seja capaz
de, nas palavras de Renato Nogueira (2019, p. 98), “promover um aprendizado antirracista e edificante”. Essa
concepção de aprendizagem da filosofia, sem dúvida, se associa àquela das DCN da graduação em filosofia
(BRASIL, 2001b), que reclamam uma aprendizagem que contribua para a reflexão sobre o agir político, a
“promoção integral da cidadania” e o “respeito à pessoa, dentro da tradição da defesa dos direitos humanos” (cf.,
acima, nota 128).
134
E, poderíamos adicionar, em consonância com as atividades de pesquisa do professor, uma vez que no ensino
superior – e isso é particularmente válido para a graduação em filosofia – os resultados de pesquisa do docente
frequentemente possuem impacto direto no conteúdo por ele ministrado em sala. Sobre essa relação entre
pesquisa e ensino na graduação em filosofia, cf. UNESCO, 2007, p. 103-104.
135
Sobre a relação entre objetivos e conteúdos, cf., acima, a nota 122.
69
136
As considerações sobre o tempo e o espaço educacionais são fundamentais no planejamento, pois elas
incidem sobre ele como restrições institucionais às atividades propostas – cf. MUCCHIELLI, 2016, p. 126-127.
Cf. tb. GAETA; MASETTO, 2013, p. 66.
70
“podem e devem ser retomadas a qualquer momento” (SALGADO, 2019, p. 16). Em uma
palavra, portanto, o planejamento da aprendizagem deve ser flexível. Nos dizeres de Heloísa
Lück (2009, p. 34):
Portanto, como um plano ou projeto educacional, por mais bem delineado
que seja, não consegue prever todas as condições e situações da dinâmica
educacional, não deve ser considerado como uma camisa de força que tolha
iniciativas necessárias para fazer face a situações não previstas e emergentes;
deve também prever a necessidade de adaptações, a partir do princípio da
flexibilidade. Daí porque a tomada de decisões do processo de planejamento
deve acompanhar também a implementação dos planos delineados, seu
monitoramento e avaliação.
O planejamento da aprendizagem, então, deve prever uma avaliação constante, que forneça
“informação (feedback) contínua” (GAETA; MASETTO, 2013, p. 91), por meio da qual
decisões anteriores possam ser revistas e modificações implementadas137.
De fato, para um autor como Mucchielli (2016, p. 38-43), a comunicação educacional
se caracteriza fundamentalmente por um duplo feedback, que permite a regulação pelo
professor e pelos estudantes de suas respectivas comunicações. O primeiro feedback é aquele
que vai na direção ‘receptor (estudante) emissor (professor)’. Assim, uma vez que o
emissor (professor) produza uma comunicação com respeito ao receptor (estudante), um
“feedback é necessário ao emissor se ele quiser saber em que medida ele se comunicou e o
que ele deve fazer para garantir a comunicação”138 (ibid., p. 39); em outras palavras, esse
feedback permite uma “regulação adaptativa do emissor [régulation adaptative de l’émetteur]”
(ibid., p. 41). Já o segundo feedback vai na direção contrária: ‘emissor (professor) receptor
(estudante)’. Esse, para Mucchielli, é o feedback que permite que “o receptor” (estudante) “se
torne ator e é sua ação [acte] que o formador deve regular por diversos meios”139 (ibid., p. 43),
os quais compõem o segundo feedback. Destarte, a comunicação pedagógica se caracteriza,
para Mucchielli, como uma troca contínua de feedbacks que permitem ao professor e ao
estudante regularem continuamente suas respectivas ações.
Poderíamos, aqui, expandindo a proposta de Mucchielli, afirmar que esse segundo
feedback não necessariamente precisa provir do professor, podendo igualmente ser originário
de pares ou de uma autoavaliação140. Qualquer que seja o caso, se a formação do estudante
137
É interessante sublinhar que essa exigência de uma revisão constante do planejamento educacional nos
aproxima das concepções do professor como profissional reflexivo ou como pesquisador, sobre as quais cf.
acima a nota 39.
138
“Le feed-back est nécessaire à l’émetteur s’il veut savoir dans quelle mesure il a comunique et ce qu’il doit
faire pour assurer la communication”.
139
“[...] le récepteur devient acteur, et c’est son acte que le formateur doit réguler par divers moyens [...]”.
140
Sobre heteroavaliação (por pares ou pelo professor) e autoavaliação, cf. acima a nota 101; sobre a avaliação
por pares, em especial, cf. adiante a nota 162.
71
exige um feedback contínuo a respeito de suas ações, será necessário que ele aja. Assim,
“para que se opere o feedback regulador da formação, é preciso necessariamente dar ao ‘aluno’
a iniciativa de uma ação que aplique, de uma maneira ou de outra, a informação”141 (ibid.).
Com isso, notamos que o próprio planejamento educacional, ao se conceber como
flexível e, portanto, ao exigir um feedback contínuo tal como descrito por Mucchielli, reclama
a participação ativa dos estudantes. Desse modo, se, como propusemos acima (no item 2.3),
pretendemos fomentar o desenvolvimento de certas competências por parte dos estudantes,
deveremos dar espaço para que eles exerçam tais competências e, com base no feedback
recebido (do professor, de seus pares ou em uma autoavaliação), possam aperfeiçoá-las.
Como lemos em KÜLLER; RODRIGO, 2013, p. 71:
Com isso, vemos que, em última instância, a própria concepção de planejamento educacional
aqui adotada exige uma aprendizagem baseada na ação do estudante – exige, portanto, o uso das
metologias ativas, a que já nos referimos acima (no cap. 2). Isto é, propor um planejamento da
aprendizagem que colabore para o desenvolvimento de competências como [i] problematização,
[ii] leitura, [iii] escrita e [iv] colaboração em discussões, reclama a seleção de estratégias
didáticas nas quais os estudantes exerçam tais competências142 e, assim, elaborem produções
que permitam um feedback constante a respeito de sua atuação. Enfim, em nossa proposta de
PTD, o processo de avaliação (tal como o feedback dela resultante) deve não somente ser
141
“Or, pour que s’opère le feed-back régulateur de la formation, il faut nécessairement donner à l’‘élève’
l’initiative d’une action qui appliquerait d’une manière ou d’une autre l’information”.
142
Aquilo que denomino aqui como estratégias didáticas poderia ser compreendido, à luz de MASETTO, 2003,
p. 86, como contendo dois elementos: [i] as ‘estratégias’, que “constituem-se numa arte de decidir sobre um
conjunto de disposições, que favoreçam o alcance dos objetivos educacionais pelo aprendiz, desde a organização
do espaço sala de aula com suas carteiras até a preparação do material a ser usado [...] ou o uso de dinâmicas de
grupo, ou outras atividades individuais” (ibid.); e [ii] as ‘técnicas’, entendidas como “o conjunto de recursos”
usados “na realização de uma arte que se chama docência. São exemplos de técnicas: recursos audiovisuais,
dinâmicas de grupo [...]” (ibid.) etc. Dito isso, tal como utilizo os termos aqui, as metodologias se encontrariam
em um nível mais amplo – elas diriam respeito ao “caminho a ser percorrido” (SALGADO, 2019, p. 37) como
um todo. Assim, tomando emprestada a metáfora de Salgado (ibid.), poderíamos dizer que, em nosso PTD, a
adoção de metodologias ativas é a decisão de enfatizar a ação discente por todo o percurso do componente
curricular. Essa decisão tem impacto direto na escolha das estratégias didáticas particulares a serem utilizadas
para efetivar a metodologia escolhida. Por fim, cabe chamar a atenção para a importância de determinar, durante
o planejamento, os recursos físicos e temporais necessários para a execução das estratégias escolhidas (cf. ibid.,
p. 38-39), pois – como mencionado acima, na nota 136 – o espaço e o tempo educacionais podem agir como
restrições durante o planejamento docente.
72
Por meio do ensino híbrido, podemos propor estratégias de aprendizagem que associem direta e
continuamente as atividades em sala àquelas realizadas fora de sala – e vice-versa. A
possibilidade de interação entre os participantes do processo de aprendizagem antes e após o
encontro em sala (cf. GAETA; MASETTO, 2013, p. 87) permite, além disso, não somente a
frequência do feedback, mas também sua imediatez, outro fator enfatizado por Mucchielli (2016,
p. 41 – cf. tb. MASETTO, 2003, p. 131-132) como fundamental para a efetividade do feedback.
Note-se que essa multiplicação dos contatos do professor com os estudantes e dos estudantes,
uns com os outros, por meio de ambientes online pode não apenas fornecer ao docente
informações a respeito da atuação dos estudantes nas atividades requisitadas, mas também pode
dar pistas a respeito dos interesses desses estudantes. Ora, a consideração da diversidade de
interesses dos estudantes, como vimos nos itens 2.1 e 2.2, é fundamental para o planejamento de
um processo de aprendizagem que seja motivador e democrático.
Em resumo, portanto, o que se buscou fazer para aplicar as considerações gerais,
realizadas em nível teórico no capítulo anterior, a um caso de particular de Plano de Trabalho
Docente foi dar foco ao processo de planejamento, tomando este último como um planejamento
flexível e, portanto, continuamente revisável. Sendo necessário um feedback contínuo como
fundamento para tal revisão, tornou-se igualmente necessário focar os objetivos educacionais,
estratégias didáticas e instrumentos avaliativos na ação dos estudantes (como, aliás, vimos, no
cap. 2, ser exigido por reflexões pedagógicas e filosóficas atuais). Por fim, para garantir a
continuidade do feedback exigida pelo planejamento flexível, recorreu-se ao ensino híbrido
como ferramenta para a manutenção da constante interação entre os participantes do processo
143
“[...] blended learning is any formal education program in which a student learns at least in part through
online learning, with some element of student control over time, place, path, and/or pace”.
73
Objetivos do componente:
Geral:
- Contrastar as concepções de ética elaboradas, respectivamente, por Tomás de Aquino
(1225-1274) e por João Duns Escoto (c. 1265-1308), inserindo-as no contexto das
discussões filosóficas tardo-medievais sobre ética.
Específicos:
I - Diferenciar as origens histórico-filosóficas das concepções contemporâneas de “Idade
Média” e “medieval”.
II - Interpretar textos de Tomás de Aquino sobre ética, à luz de comentadores.
III - Aplicar a textos de Duns Escoto sobre ética as mesmas práticas interpretativas.
IV – Relacionar as concepções de ética de Tomás de Aquino e Duns Escoto, identificando
suas respectivas consequências para o pensamento de cada autor.
Conteúdo programático:
144
O modelo de tabela que proponho para a apresentação do PTD é o resultado de uma mescla do modelo
utilizado pelo Senac Aclimação e de sugestões feitas pelas profas. Silvana Donadio e Cecília Gaeta, em suas
respectivas disciplinas na Especialização em Docência no Ensino Superior.
74
Conteúdos
Objs.
Critérios
Objs.
Bibliografia:
NB: textos em língua estrangeira serão disponibilizados em tradução
Básica:
TOMÁS DE AQUINO. Opera omnia. Iussu Leonis XIII P. M. edita. Tomus septimus. Romae: Ex
Typographia Polyglotta, 1892.
_______. Suma de teologia. Vol. II. Ed. da trad. J. Pereira. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2005.
DUNS SCOTUS. Opera omnia. Ed. L. Wadding. 12 vols. Lyon, 1639.
_______. Opera omnia. Ed. Vaticana. Vol. XIX. Roma: Typis Polyglottis Vaticanis, 1993.
_______. Prólogo da Ordinatio. Trad., introd. e notas R. H. Pich. Porto Alegre: EdiPUCRS - Ed.
Universitária São Francisco, 2003.
_______. Scotus e a liberdade: textos escolhidos sobre a vontade, a felicidade e a lei natural. Trad.
79
Complementar:
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80
3.3.1. Ementa
145
Sobre a relação entre decisão e planejamento, cf., acima, item 3.1.
81
docentes distintos. Que a ementa proposta seja focada na enumeração de conteúdos se deve ao
próprio caráter desta etapa do planejamento pedagógico, uma vez que, segundo Salgado (2019,
p. 17), “[a] ementa é o elemento do plano que descreve os conteúdos de uma disciplina, numa
sequência apresentada em forma de frases nominais”. Na redação da ementa, preferi manter a
ênfase em conteúdos conceituais 146 , de maneira a deixar a cada docente a liberdade de
enfatizar conteúdos procedimentais ou atitudinais, de acordo com sua concepção do trabalho
didático. O único conteúdo procedimental mencionado é um daqueles que, como vimos no
item 2.3, se derivam diretamente das DCN de filosofia (BRASIL, 2001b, p. 3), a saber, o trato
com textos – principalmente, a leitura –, pois consideramos que esse conteúdo procedimental
é elemento fundamental que deve, obrigatoriamente, ser abordado em disciplinas de filosofia,
obviamente por diferentes estratégicas de acordo com as concepções didáticas de que partir o
docente.
3.3.2. Objetivos
educacionais recai sobre a escolha dos verbos a serem utilizados. Essa escolha pode ser feita
com base na clássica taxonomia de objetivos educacionais de Bloom et al. (1956),
recentemente revista e expandida (ANDERSON; KRATHWOHL, 2001). A importância da
taxonomia, principalmente em sua versão revista, está no fato de que ela permite uma
classificação e organização dos objetivos educacionais em termos de processo cognitivo e de
conhecimento:
Assim, se a expressão dos objetivos deve ocorrer por verbos no infinitivo, indicando as ações
que os estudantes estarão aptos a realizar ao fim de dado período de formação, a escolha
desses verbos – e, portanto, das ações – deve ser criteriosa. Em nosso caso, adotamos por
critério justamente essa classificação bidimensional de objetivos educacionais.
Com efeito, podemos apresentar os objetivos específicos de nosso PTD com base
nessa taxanomia (cf. tabela 2). Assim, o objetivo específico I 149 , com base no verbo
‘diferenciar’ envolve lembrar e compreender (dimensão processo cognitivo), bem como
conhecimentos factuais sobre as origens das concepções atuais de ‘Idade Média’ e ‘medieval’.
O objetivo específico II 150 , a partir do verbo ‘interpretar’ diz respeito a compreender e
analisar (dimensão processo cognitivo) textos a partir dos quais se poderá aprender
conhecimentos conceituais (a noção de ética em Tomás de Aquino), mas também
procedimentais (como ler um texto filosófico escolástico). O objetivo específico III151, por
meio do verbo ‘aplicar’, nos remete à aplicação de procedimentos já aprendidos, mas também,
148
“In our Taxonomy we are classifying objectives. A statement of an objective contains a verb and a noun. The
verb generally describes the intended cognitive process. The noun generally describes the knowledge students
are expected to acquire or construct [...]. In contrast with the single dimension of the original Taxonomy, the
revised framework is two-dimensional. As suggested in the preceding paragraph, the two dimensions are
cognitive process and knowledge [...]. The cognitive process dimension [...] contains six categories: Remember,
Understand, Apply, Analyze, Evaluate, and Create [...]. The knowledge dimension [...] contains four categories:
Factual, Conceptual, Procedural, and Metacognitive”.
149
“Diferenciar as origens histórico-filosóficas das concepções contemporâneas de ‘Idade Média’ e ‘medieval’”,
cf. acima p. 71.
150
“Interpretar textos de Tomás de Aquino sobre ética, à luz de comentadores”, cf. acima p. 71.
151
“Aplicar a textos de Duns Escoto sobre ética as mesmas práticas interpretativas”, cf. acima p. 71.
83
Nas palavras de Salgado (2019, p. 20), “[o]s conteúdos respondem à pergunta sobre
‘O que ensinar?’. Para respondê-la, o primeiro passo é compreender aonde se quer chegar, ou
seja, quais são os objetivos”. Essa mesma prioridade dos objetivos com respeito aos
conteúdos é destacada por Gaeta e Masetto154, que os explicam como “os assuntos e temas
que serão estudados em uma unidade e que estejam em consonância com os objetivos a serem
alcançados” (GAETA; MASETTO, 2013, p. 73). Em nosso PTD, apresentamos inicialmente
uma listagem sob a rubrica de conteúdo programático e, no quadro de programação das aulas,
especificamos os conteúdos específicos a serem trabalhados a cada etapa do componente
curricular.
152
Sobre a ‘transferência de conhecimentos’, cf. acima o item 2.3.
153
“Relacionar as concepções de ética de Tomás de Aquino e Duns Escoto, identificando suas respectivas
consequências para o pensamento de cada autor”, cf. acima p. 71.
154
Cf., acima, nota 122.
84
155
Sobre esse tema, cf. a nota 133, acima, bem como LIBERA, 2014.
85
Entendemos por estratégia didática neste trabalho, seguindo Anastasiou e Alves (2004),
“a arte de aplicar ou explorar os meios e condições favoráveis e disponíveis, com vista à
consecução de objetivos específicos” (ibid., p. 68-69)156. Sendo assim, no planejamento de um
processo de ensino-aprendizagem, cabe ao professor selecionar estratégias, isto é, “estudar,
selecionar, organizar e propor as melhores ferramentas facilitadoras para que os estudantes se
apropriem do conhecimento” (ibid., p. 69). Assim, estabelecidos (a partir da enumeração das
competências a serem desenvolvidas pelos estudantes e da ementa) os objetivos educacionais e
o conteúdo programático, coube a nós selecionar as estratédias didáticas que poderiam levar ao
cumprimento dos objetivos e à aprendizagem dos conteúdos.
Ora, como vimos acima (no item 2.3), à exigência de trabalho com textos na formação
em filosofia está atrelado o desenvolvimento de, pelo menos, quatro competências: [i]
problematização, [ii] leitura, [iii] escrita e [iv] colaboração em discussões filosóficas. Destarte,
quando a ementa exige o trato com textos, quando os objetivos propõem o desenvolvimento da
capacidade de interpretar textos, quando o conteúdo programático lista certas concepções
filosóficas de autores a serem aprendidas, esses três elementos do PTD exigem, ainda que sem
mencioná-lo, o desenvolvimento daquelas quatro competências enumeradas. As estratégias que
selecionamos para cumprir os objetivos e, portanto, para fomentar a aprendizagem do conteúdo
programático proposto visam a favorecer o desenvolvimento de tais competências. Sendo assim,
as estratégias selecionadas envolvem, em geral: leitura, escrita e discussão, em sala ou fora de
sala.
Havíamos estabelecido, com base na discussão desenvolvida no cap. 2, que a
aprendizagem de filosofia reclama a utilização de metodologias ativas. Além disso (como
mencionamos no item 3.1), consideramos relevante para nossa proposta de PTD o uso de
recursos associados ao ensino híbrido. Sendo assim, muitas das estratégias selecionadas para o
componente curricular mesclam elementos de metodologias ativas e de ensino híbrido – ou seja,
busca-se fomentar a aprendizagem ativa do estudante também por recursos online, com o uso de
um Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA). Uma vez que grande ênfase é dada, no PTD, à
leitura e interpretação de textos, bem como à escrita filosófica, o AVA será utilizado
principalmente como plataforma para tais atividades. A centralidade da leitura para o presente
curso também explica o fato de, neste comentário, associarmos as estratégias didáticas à
bibliografia: as estratégias que propomos passam, sempre, pela leitura e interpretação da
bibliografia proposta (principalmente aquela básica, mas também a complementar). Assim, ao
156
Cf. tb., na nota 142, acima, a relação entre estratégia, técnica e metodologia, no contexto educacional.
86
termo do componente, os estudantes terão trabalhado – em sala e/ou fora de sala –, ao menos,
com os trechos mais relevantes de toda a bibliografia elencada. Em outras palavras, na nossa
proposta, estratégias didáticas e bibliografia são elementos fundamentalmente imbricados no
processo de ensino-aprendizagem.
Desse modo, já na primeira aula, propomos uma atividade de leitura em pequenos
grupos (MASETTO, 2003, p. 113-120). Essa não será ainda uma leitura filosófica; pelo
contrário, pretendemos aqui propor atividades de leitura e problematização de reportagens com
a finalidade de obter uma primeira avaliação diagnóstica das habilidades de leitura,
problematização e discussão dos estudantes. A essa estratégia estará atrelado um brainstorming
(ANASTASIOU; ALVES, 2004, p. 82-83; MASETTO, 2003, p. 94-95) com as expressões
disparadoras157 ‘Idade Média’ e ‘medieval’, o que permitirá conhecer mais sobre as concepções
prévias sobre esses termos trazidas pelos estudantes. A partir do segundo encontro, todas as
aulas terão por base uma leitura prévia – desse momento em diante, leituras filosóficas –
disponibilizada pelo AVA; dessa maneira, podemos dizer que em todas essas aulas utilizaremos
a estratégia conhecida como sala de aula invertida (BERGMANN; SAMS, 2012; HORN;
STAKER, 2015, p. 55; VALENTE, 2018, p. 29-32). Essa leitura será discutida com os
estudantes ao início da aula158 ou será tema de uma aula expositiva dialogada, como na aula 3
(MASETTO, 2003, p. 96-100; ANASTASIOU; ALVES, 2004, p. 79-80)159.
Como desenvolvimento da leitura prévia, serão propostas várias atividades de leitura
dirigida em sala (ANASTASIOU; ALVES, 2004, p. 80, 84-85), voltadas para a análise,
problematização ou comparação de textos de um mesmo ou de diferentes autores. Essas tarefas
157
Agradeço à profa. Glória Calado pela sugestão do uso da terminologia ‘expressão disparadora’ no contexto do
brainstorming.
158
Valente (2018, p. 30) assevera que “[a] abordagem de sala de aula invertida não deve ser novidade para
professores de algumas disciplinas, nomeadamente no âmbito das ciências humanas. Nessas disciplinas, em geral,
os alunos leem e estudam o material sobre literatura ou filosofia antes da aula e, em classe, os temas estudados
são discutidos”. Há um elemento determinante, porém, que separa o modo corrente de se lecionar filosofia da
estratégia conhecida como sala de aula invertida. Nesta, “a entrega principal de conteúdo e instrução é online
[The primary delivery of content and instruction is online]” (HORN; STAKER, 2015, p. 55), sendo a aula
dedicada principalmente a atividades orientadas pelo professor (ibid.), que tomem por base as leituras (e demais
materiais) previamente trabalhados. Isso, porém, como vimos ser denunciado por diversos autores (por exemplo,
em OBIOLS, 2002, p. 36 – cf. nota 62, acima), não é o que ocorre em geral nas aulas de filosofia. Pelo contrário,
ainda que sejam requisitadas leituras prévias para tais aulas, frequentemente não se espera do estudante que
realize qualquer atividade em sala com base em tais leituras, sendo requerido dele apenas que ouça o professor
discorrer sobre o texto lido. Aqui, pelo contrário, o que defendemos é um uso fiel da sala de aula invertida,
propondo aos estudantes leituras prévias que fometarão discussões e atividades em sala.
159
Como se pode observar no quadro de estratégias do PTD, haverá uso de aulas expositivas dialogadas em
todas as aulas. Elas serão usadas, principalmente, nas situações sugeridas por Masetto (2003, p. 97): [i] abertura
do tratamento de um tema e [ii] síntese de um tema estudado. O importante a ser observado é que, dada a ênfase
do PTD em metodologias ativas, as aulas expositivas (mesmo dialogadas) não devem tomar tempo significativo
da aula. Pelo contrário, elas devem ser exposições de “20 minutos mais ou menos” (ibid., p. 97), que abram
espaço – ou, melhor, que incentivem – intervenções dos estudantes (cf. ANASTASIOU; ALVES, 2004, p. 79).
87
de leitura em sala requisitarão aos estudantes, além da leitura, rápidas exposições orais da
interpretação resultante acerca do texto, bem como registros desta última. Dessa maneira,
sempre será o caso de colocar por escrito os problemas ou leituras formuladas, ainda que em
termos resumidos. De outra parte, as tarefas de leitura propostas no AVA permitirão registros
escritos mais elaborados. Essas atividades serão: fóruns online (MASETTO, 2003, p. 135-136;
ANASTASIOU; ALVES, 2004, p. 85; MATTAR, 2012, p. 120-121), assim como a produção
de um mapa mental (ANASTASIOU; ALVES, 2004, p. 83-84; CAMARGO; DAROS, 2018, p.
81-82) e de um fichamento (MELO, 2016). Por fim, haverá também uma atividade de registro
oral no AVA: o pitch (SOUZA, 2018), em áudio ou vídeo. Todas essas produções, quando
requisitadas, serão explicadas e, uma vez realizadas, serão disponibilizadas online e discutidas
em sala.
Em paralelo ao foco dado à leitura, haverá, em especial nas três últimas aulas, períodos
dedicados a uma oficina de escrita filosófica (BRÄUER, 1998, cap. 13, n.p.; OBIOLS, 2002, p.
72-73; ANASTASIOU; ALVES, 2004, p. 96; NIWESE; BAZILE, 2014; BOUADJIO et al.,
2017), durante a qual os estudantes poderão já escrever trechos de sua dissertação final e
colocá-los em discussão. Tal dissertação, aliás, será desenvolvida no decorrer de diversas
atividades, desde a terceira aula, quando os estudantes colocarão o problema de que tratará a
dissertação, até a última aula, passando por várias atividades em sala ou fora de sala, como os
fóruns e as oficinas de escrita. Essa escrita paulatina e constantemente comentada, tanto pelos
estudantes como pelo professor, é uma tentativa de atrelar a avaliação final ao próprio processo
de ensino-aprendizagem. Com efeito, como espero ter deixado claro no quadro do PTD, a
avaliação será realizada por meio das próprias estratégias de aprendizagem propostas.
3.3.5. Avaliação
Da descrição feita acima sobre as estratégias didáticas, decorre que a avaliação será
realizada durante todo o percurso de aprendizagem – desde uma avaliação diagnóstica inicial,
passando pela avaliação formativa para ajustes durante o percurso formativo e, finalmente,
uma avaliação somativa final160. Esta última, ainda que esteja atrelada ao encerramento do
componente, não estará dissociada do processo de aprendizagem, porque o instrumento
utilizado para realizá-la (a dissertação final) terá sido produzido durante a disciplina e, assim,
terá passado por ajustes no decorrer da avaliação formativa. Que a avaliação esteja envolvida
em todas as etapas do processo de ensino-aprendizagem é fundamental devido à sua estreita
160
Sobre a distinção entre esses três tipos de avaliação, cf. acima a nota 102.
88
relação com os objetivos educacionais – com efeito, o processo de avaliação é o que permite
“verificar se os objetivos foram alcançados” (SALGADO, 2019, p. 23). Assim, manter a
avaliação como processo constante permite que, a todo tempo, docente e discentes obtenham
os feedbacks necessários para a realização de ajustes que levem à consecução dos objetivos
educacionais propostos161.
Para manter a estreita relação entre o processo de ensino-aprendizagem e o processo
de avaliação, busquei uma identificação entre os instrumentos de avaliação e as estratégias
didáticas, de modo a que haja “um feedback contínuo em todas as ocasiões de aprendizagem”
(GAETA; MASETTO, 2013, p. 92). Em outras palavras, algumas das estratégias didáticas
serão, também, instrumentos de avaliação. Isso permite, igualmente, fugir a uma armadilha
frequentemente associada à avaliação somativa, a saber: a necessidade de atribuir uma nota
final com base em uma única atividade que, muitas vezes, não reflete a atuação do estudante
durante todo o processo de ensino-aprendizagem. Como alternativa, buscamos pulverizar a
atribuição de notas por diversos instrumentos de avaliação (com exceção daqueles utilizados
para o diagnóstico inicial). Assim, com respeito a cada objetivo específico, duas estratégias
didáticas serão, também, instrumentos de avaliação, uma a ser realizada em sala e outra a ser
realizada online no AVA. Em todos os casos, as produções dos estudantes serão tema de
discussão em sala ou no AVA, de modo que o feedback dado pela avaliação não se resuma a
uma nota, mas se componha por perguntas e interveções do professor e, principalmente, dos
demais colegas 162 , havendo espaço igualmente para intervenções do próprio estudante ou
grupo cujo trabalho é avaliado.
A essa oportunidade de interveção na própria avaliação e naquela dos colegas, busquei
adicionar momentos de autoavaliação163. Dessa maneira, a cada duas aulas será pedido que
cada estudante preencha dissertativamente um formulário de autoavaliação no AVA e se
atribua uma nota, que será considerada no cálculo final de sua nota total. Assim, buscamos,
seguindo as sugestões de Masetto (2003, p. 155) quanto à utilização de autoavaliações, não
161
Acerca da relação entre feedback e avaliação, cf. acima o item 3.1.
162
Nas palavras de Topping (1998, p. 250), avaliação por pares “é definida como uma combinação na qual
indivíduos consideram o volume, nível, valor [value, worth], qualidade ou sucesso dos produtos ou resultados da
aprendizagem dos pares de status similar [is defined as an arrangement in which individuals consider the
amount, level, value, worth, quality, or success of the products or outcomes of learning of peers of similar
status]”. Como vantagens da avaliação por pares, o mesmo autor destaca, no que diz respeito àquele que avalia,
o fato de que ela contribui para “consolidar, reforçar e aprofundar a compreensão [help to consolidate, reinforce,
and deepen understanding] (ibid., p. 254) do tema em estudo; do ponto de vista do estudante avaliado, ela
permite ao estudante “se localizar com relação à performance dos pares e prescrever alvos ou prazos de
aprendizagem [enabling a student to locate himself or herself in relation to the performance of peers and to
prescribe learning targets and deadlines]” (ibid., p. 255) para si mesmo.
163
Sobre a autoavaliação, cf. acima a nota 101.
89
reduzir estas últimas à atribuição de uma nota, mas multiplicar as oportunidades de sua
aplicação no decorrer do curso, para que o estudante possa vagarosamente desenvolver
“atitudes como honestidade pessoal para reconhecer tanto seus sucessos como suas falhas”
(ibid., p. 154). Dessa maneira, em nossa proposta de processo avaliativo, cada estudante terá a
oportunidade de participar da avaliação de seus colegas e, também, da sua própria, de modo a
ajustar continuamente sua aprendizagem e colaborar para a de seus pares. Ao final do
componente, haverá um instrumento pelo qual o estudante poderá, também, avaliar o próprio
planejamento da aprendizagem e sua execução pelo professor, de modo que este último tenha
dados para um aperfeiçoamento ulterior de sua atuação docente.
4. CONCLUSÃO
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