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As bases para a nova sociedade1

A quarta e última parte do livro do Êxodo expõe as bases constitucionais da nova sociedade do povo de
Iahweh, o Deus libertador. Na seção onde era esperável a história da construção da nova sociedade, temos a
coleção de leis que lhe serviram de constituição.
As leis constitucionais de Israel necessitaram da autoridade clara da experiência de libertação da
escravidão no Egito, tanto ao nível da vida tribal de Israel como ao nível de sua existência monárquica. Não
tendo referência à criação de Estado israelita, estas leis constitucionais exigem lealdade exclusiva a Iahweh, e,
por seu marco narrativo, ao seu profeta Moisés. A velha ordem contra a qual os camponeses hebreus do Egito
e as tribos israelitas de Canaã se rebelaram, era uma sociedade tributária em que o Estado era coextensivo com
a classe exploradora. O Estado que se conhecia nesta época vivia dos tributos das aldeias camponesas. Israel
pretendia rechaçar não somente o faraó e os reis de cidades como Siquém e Hazor, mas também toda forma de
dominação estatal. Para este efeito, o êxodo propõe como alternativa uma legislação que estabelece condições
de igualdade. Não propõe medidas para suprir as necessidades de liderança. Dá-se por entendido que haverá a
liderança “natural” fornecida pelos vínculos de parentesco. O pai de família será o líder, e a reunião dos anciãos
do povo resolverá questões que ultrapassem a família. Segundo o relato do êxodo, Iahweh mesmo, com o seu
profeta Moisés, dirigiu o movimento de libertação. Na nova sociedade, Iahweh, o Deus libertador, ocupará
o lugar que os reis ocupavam nas outras nações.
Moisés ocupa na construção da sociedade nova sem classes papel único e sem sucessão. As histórias do
deserto legitimam o papel de líder de Moisés. Sobre o monte Sinai Iahweh lhe aparece em densa nuvem, e o
povo o ouve falando com Moisés: “para que também creiam sempre em ti” (19,9). Moisés não tomou deles
sequer um asno e não fez mal a nenhum deles (Nm 16,15), mas sempre representou sem vacilar os interesses
da revolução. No livro do Deuteronômio se pensará numa sucessão de profetas de Iahweh que continuarão a 1
missão de Moisés (Dt 18,16-20). Mas no relato normativo do livro do Êxodo não se prevê nenhum tipo de
sucessão para Moisés. Antes, Moisés é mediador das normas que Iahweh dita para a vida da sociedade sem
classes, e estas normas bastarão. A autoridade de Moisés é única e intransferível.
Não havendo sistema reconhecido de legitimação de uma liderança política, a legislação converte-se em
algo de fundamental para manter o caráter revolucionário da sociedade nova. Na prática, esta sociedade
anticananeia e antiestatal pôde existir por cerca de duzentos anos (1200 a 1000 a.C. aproximadamente). E então
a insistente pressão militar dos filisteus levou a que também em Israel se nomeasse “um rei como as nações”,
legitimando-o em nome de Iahweh, o Deus do êxodo. A redação do êxodo data deste período monárquico, e,
portanto, a omissão de qualquer instituição de condução política não é ingênua, mas aponta à resistência da
tradição legal de Israel à instituição monárquica. Ao insistir na autoridade única e exclusiva de Moisés como
aquele que fala com Iahweh como um amigo fala com seu amigo (Ex 33,11), nosso texto reduz ao seu lugar
os reis que se diziam designados por Iahweh para mandar em seu povo. Pelo seu silêncio, a legislação afirma
a possibilidade de um Israel sem instituições estatais. No livro do Êxodo, o único Estado que aparece é o
egípcio, e este implica claramente morte para os seus súditos.
Nós, os crentes, temos dificuldade inversa para ler este texto ao mesmo tempo religioso e revolucionário.
A arraigada tradição liberal de separar religião e política torna muito difícil para o crente perceber que o êxodo
é texto-guia de um povo em revolução. Nos é difícil ler a experiência de Israel como autêntica revolução, uma
façanha em que o povo tomou em suas mãos o seu destino histórico, que lhe tinha sido arrebatado pelos reis.
Seguindo a interpretação nacionalista da redação javista, foi-nos ensinado a ler no êxodo o resgate por Deus
do seu povo, depois da aberração de um período transitório de escravidão. Nesta leitura, a nacionalidade é
anterior ao êxodo, que não serve mais do que para restaurá-la. Ao situar a produção do relato do êxodo dentro
das lutas dos camponeses israelitas para conseguir e defender condições dignas de vida diante dos reis de
Canaã, devolvemos o caráter revolucionário à luta contra o faraó. Nesta luta, os benjaminitas e demais
camponeses de Canaã, viam refletida sua própria luta.

1
Cf. Jorge PIXLEY. Êxodo. p. 135-160.
Em todo caso, o texto teórico principal desta antiga revolução é profundamente religioso. Uma revolução
secular não era verdadeira opção para os camponeses de Canaã, que não toleravam mais os tributos que lhes
impunham os seus reis. Criam que os deuses lhes mandavam a chuva. Criam que os deuses os libertavam da
peste. A alternativa que se lhes apresentava não era como a disjuntiva dos revolucionários russos do começo
do século XX, entre uma religião que legitimava uma ordem social opressiva e uma doutrina revolucionária
que fazia do povo trabalhador o agente de sua própria história. O camponês cananeu dependia dos deuses para
a sobrevivência. Sua opção era entre os deuses dos reis, Baal e companhia, e o Deus dos pobres, Iahweh.
Iahweh era um Deus novo para eles, mas o conheciam pelo testemunho dos hebreus do Egito como um Deus
que os tinha conduzido em sua luta contra a opressão. Era um Deus capaz de encabeçar e orientar sua
revolução. Só que teriam de prestar-lhe lealdade exclusiva e dele depender para funções que antes recebiam
de Baal, como a chuva. Desta forma compreendemos como um povo autenticamente revolucionário pôde
confessar que Deus os libertou e lhe impôs as normas para a nova sociedade sem classes.

A análise crítico-literária de Ex 19–40. Apesar de muitos esforços dos exegetas, não foi possível conseguir uma
análise segura dos textos que foram combinados para produzir o texto atual da revelação no monte Sinai, texto que é
claramente o resultado de processo complicado de composição. Parece seguro reconhecer três elementos distintos na
passagem do Sinai. Cada um deles é por sua vez complexo, com sua própria história. Mas já a análise interna a cada
elemento é menos segura e menos importante para efeitos da interpretação do texto.
A. O relato fundamental da revelação do Sinai combina as versões javista e eloísta, que já encontramos na
narrativa da luta contra a opressão do faraó. A revelação de Iahweh nestas versões antigas do êxodo tem dois focos:
o Decálogo em Ex 20,1-17 e a lista de dez ou doze mandamentos que se apresenta como o que Moisés escreveu nas
tábuas de pedra por ordem de Iahweh em Ex 34,14-26. É provável que o primeiro seja a versão eloísta da revelação
no Sinai, e o segundo a versão javista. Estão ligados no texto atual pela quebra das primeiras tábuas no contexto do
relato do bezerro de ouro. A conexão destes três momentos (decálogo, bezerro de ouro e as tábuas escritas por Moisés)
é estreita, e sugere a obra de redator que com seu trabalho fez mudanças importantes nas redações javista e eloísta,
2
redator que os críticos literários designam com a sigla RJE. Provavelmente situado no tempo de Ezequias, constitui-
se das seguintes passagens: 19,9-20,21; 24,1-2.9-15a; 31,18-34,35.
B. Inserida neste relato básico está uma coleção antiga de leis com sua introdução e conclusão: 19,3-8; 20,22-
23,33; 24,3-8. O código legal em 20,22-23,33 conhece-se na exegese moderna como o “Código da Aliança”. Este
nome é-lhe atribuído principalmente em razão de sua apresentação em 19,3-8, e da conclusão em 24,3-8, que
apresentam as leis como as obrigações que Israel aceitou ao entrar em aliança com Iahweh seu Deus. A preocupação
pelo cumprimento da aliança é característica da escola deuteronomista, e é provável que a interpretação das leis do
Sinai como as condições para a aliança com Iahweh venham do mesmo contexto. Essa longa adição ao relato do
Sinai provém do contexto da reforma em Judá no decorrer do século VIII a.C. A própria coleção de leis é, pois, como
se vê claro, muito mais antiga que sua inserção no relato do Sinai.
C. Segundo a interpretação sacerdotal da revelação, seu conteúdo foram as instruções sobre a construção do
tabernáculo e seus adornos, para que houvesse uma forma regularizada de aproximar-se de Iahweh. O texto sacerdotal
encontra-se em Ex 24,15b-31,17; 35,1-40,38. O contexto histórico em que se produziu esta releitura da revelação é
o projeto sacerdotal [P] de um Israel centrado no templo reconstruído sob a proteção das autoridades persas, e
provém do século VI a.C.
Em esquema:

RJE 19,9–20,21 24,1-2 24,9-15a 31,18–34,35

Dtr 19,3-8 20,22–23,33 24,3-8

P 24,15b–31,17 35,1–40,38

Decálogo C. Aliança Dez palavras


Leis
20,1-17 20,22–23,33 34,14-26
A chegada ao Sinai (19,1-2)

No terceiro mês depois da saída do país do Egito, naquele dia, os filhos de Israel chegaram ao deserto
do Sinai, e acamparam no deserto. Israel acampou lá adiante da montanha. Então Moisés subiu a Deus.

Esta breve anotação sobre o movimento do povo revela a complexidade da história da composição do livro
do Êxodo. A informação sobre o movimento procede do itinerário sacerdotal: “partiram de Rafidim e
acamparam no deserto do Sinai” (Nm 33,15). Liga-se perfeitamente com a localização geográfica da escassez
de água (17,1). Mas o relato do encontro com Jetro foge ao itinerário, pois se situa no “monte de Deus”. A
explicação usual deste desdobramento da chegada ao Sinai é que Ex 18 provém da redação eloísta, onde
pertencia ao ciclo do Sinai, enquanto 19,1-2 pertence à redação sacerdotal que supõe que os acontecimentos
no monte começaram com a manifestação de Iahweh a Moisés sobre o monte.

NORMAS PARA VIVER COMO O POVO DE IAHWEH (Ex 19,9-20,21; 24,1-2.9-15a; 31,18–34,35)
Estas passagens formam o relatório básico da perícope do Sinai. Devem sua forma atual ao redator que
juntou o relato original javista com o eloísta (ver esquema). Conserva algumas incoerências que se explicam
por sua dupla origem. As mais notáveis são:
(1) As duas listas muito diferentes dos mandamentos que Iahweh entregou a Moisés e ao povo como
constituição de sua vida como povo de Iahweh: Ex 20,1-17; 34,14-26.
(2) A maneira de conceber a presença de Iahweh sobre o monte. Em alguns textos, Iahweh desce ao monte
para encontrar-se com Moisés (19,18.20; 34,5), o que constitui provavelmente a interpretação do
antigo relato javista. Outros textos parecem supor, pelo contrário, que Iahweh mora sobre o monte e
Moisés sobe para encontrar-se com ele (24,1.9s.l2; 34,2). 3
(3) Segundo 31,18 e 32,15-16, Iahweh escreveu sobre as placas de pedra com seu próprio dedo; mas
segundo 34,28, foi Moisés quem escreveu o que Iahweh lhe indicou. A redação do conjunto resolveu
algumas dessas diferenças mediante a colocação do rompimento das primeiras tábuas da lei por causa
do pecado do bezerro de ouro, o que obriga a preparar outras tábuas. Resultou um relato vigoroso e
coerente em suas linhas gerais.

Iahweh manifesta-se com poder (19,9-25)

Iahweh disse a Moisés: “Eis que virei a ti na escuridão de uma nuvem, para que o povo ouça quando eu falar contigo, e
para que também creiam em ti”. (E Moisés relatou a Iahweh as palavras do povo) (19,9).

A nuvem tem dois efeitos, o de ocultar Iahweh e o de demonstrar que efetivamente está presente. O povo
ouvirá como Iahweh fala com Moisés, e assim saberá que haverá de escutar a seu líder. A frase que pusemos
entre parênteses parece ter chegado a este lugar por incidente em sua transmissão.

Iahweh disse a Moisés: “Vai ao povo, e faze-o santificar-se hoje e amanhã; lavem as suas vestes, estejam prontos depois
de amanhã, porque depois de amanhã Iahweh descerá aos olhos de todo o povo sobre a montanha do Sinai. E tu fixarás
os limites da montanha, e lhes dirás: ‘Guardai-vos de subir à montanha, e não toqueis nos seus limites. Todo aquele
que tocar na montanha será morto. Ninguém porá a mão sobre ela; será apedrejado ou flechado: quer seja homem
quer seja animal, não viverá!’ Quando soar o chifre de carneiro, então subirão à montanha”.
Moisés desceu da montanha e foi encontrar-se com o povo; ele o fez santificar-se e lavarem as suas vestes. Depois
disse ao povo: “Estai preparados para depois de amanhã e não vos chegueis à mulher” (19,10-15).
É natural e compreensível que o povo tenha que purificar-se para o encontro com Deus. Preparativos
semelhantes fizeram Jacó e sua comitiva antes de chegar a Betel (Gn 35,1-5), bem como o povo de Israel antes
de cruzar o Jordão e entrar na terra prometida (Js 3,1-13).
À luz dos acontecimentos seguintes surpreende que “eles” subirão ao som da trombeta. Somente em 24,9-
11 se menciona um grupo que sobe ao monte: Moisés, Aarão, Nadab, Abiú e setenta anciãos. E possível que
originalmente tenha sido a esta passagem que o texto tenha se referido. Mas, na forma atual do texto, o povo,
ao ouvir a voz de Iahweh, temeu e pediu que Moisés subisse em seu lugar e servisse de intermediário entre
Iahweh e o povo (20,18-21). De forma que predomina no texto atual a ideia de que somente Moisés subiu para
falar com Iahweh.

Ao amanhecer do terceiro dia, houve trovões, relâmpagos e uma espessa nuvem sobre a montanha, e um clamor
muito forte de trombeta; e o povo que estava no acampamento pôs-se a tremer. Moisés fez o povo sair do
acampamento ao encontro de Deus, e puseram-se ao pé da montanha. Toda a montanha do Sinai fumegava, porque
Iahweh descera sobre ela no fogo; e sua fumaça subiu como a fumaça de uma fornalha, e toda a montanha tremia
violentamente. O som da trombeta ia aumentando pouco a pouco; Moisés falava e Deus lhe respondia na voz
(19,16-19).

Tem-se pensado que o povo conheceu a presença de Iahweh que aqui se descreve no meio de manifestações
vulcânicas. Contudo, se tal fosse o caso, deveríamos pensar em uma localização diferente da tradicional que
situa o evento na península do Sinai, talvez nas montanhas ao oriente do golfo de Áqaba. Mas não é necessário
supor uma experiência vulcânica. Pode ser que o texto se baseie na experiência da manifestação de Deus no
meio das nuvens de incenso no culto. Em todo caso, para efeitos de compreensão do texto, pouco importa a
experiência original. O que importa é a grande impressão que causou a descida de Iahweh sobre o monte. Em
meio a espantoso ruído e grande tremor, Moisés falava com Iahweh e Iahweh lhe respondia. Assim Iahweh 4
confirmava Moisés como o autêntico representante do Deus do êxodo.
Deus respondia “com voz” (BJ traduz por “no trovão”), uma expressão curiosa. A palavra hebraica qol
(“voz”) é a mesma que se usou um pouco antes para dizer os trovões na oração “trovões e relâmpagos”. Mas
o contexto torna claro que o povo entendeu as palavras que Iahweh dirigia a Moisés, palavras que se
apresentarão imediatamente como sendo o decálogo. A expressão é curiosa, mas não incompreensível: Deus
falava, e o povo ouvia a sua voz.

Iahweh desceu sobre a montanha do Sinai, no cimo da montanha. Iahweh chamou Moisés para o cimo da montanha,
e Moisés subiu. Iahweh disse a Moisés: “Desce e adverte o povo que não ultrapasse os limites para vir ver Iahweh,
para muitos deles não perecerem. Mesmo os sacerdotes que se aproximarem de Iahweh devem se santificar, para que
Iahweh não os fira”. Moisés disse a Iahweh: “O povo não poderá subir a montanha do Sinai, porque tu nos advertiste,
dizendo: Delimita a montanha e declara-a sagrada”. Iahweh respondeu: “Vai, e desce; depois subirás tu e Aarão
contigo. Os sacerdotes, porém, e o povo não ultrapassem os limites para subir a Iahweh, para que não os fira”. Desceu,
pois, Moisés até o povo, e lhes disse... (19,20-25).

Este trecho volta à etapa dos preparativos para a manifestação de Iahweh, sublinhando o que antes se disse
acerca da importância de não se ultrapassar os limites do sagrado. Sua linguagem não tem nenhum laço estreito
com nenhum dos estratos do Pentateuco, pelo que geralmente se considera como adição.
Formalmente é interessante constatar como Moisés rechaça a ordem divina com uma citação das próprias
palavras de Iahweh: “O povo não poderá subir à montanha do Sinai, porque nos advertiste, dizendo: Delimita
a montanha e declara-a sagrada”. A técnica de citar o interlocutor ou o adversário para refutá-lo por suas
próprias palavras é frequente nos profetas.
A última frase é interrompida sem explicar quais foram as palavras de Moisés ao povo. O trecho seguinte
começa com palavras de Deus.
Iahweh impõe sua lei a Israel (20,1-17)

Deus pronunciou todas estas palavras, dizendo:


“Eu sou Iahweh teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão.
Não terás outros deuses diante de mim.
Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima, nos céus, ou embaixo na
terra, ou nas águas que estão debaixo da terra.
Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás, porque eu, Iahweh teu Deus, sou um Deus ciumento, que
puno a iniquidade dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam, mas que também ajo com
amor até a milésima geração para aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos.
Não pronunciarás em vão o nome de Iahweh teu Deus, porque Iahweh não deixará impune aquele que pronunciar em
vão o seu nome.
Lembra-te do dia do sábado para santificá-lo. Trabalharás durante seis dias, e farás toda a tua obra. O sétimo dia,
porém, é sábado de Iahweh teu Deus. Não farás nenhum trabalho, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo,
nem tua escrava, nem teu animal, nem o estrangeiro que está em tuas portas. Porque em seis dias Iahweh fez o céu, a
terra, o mar e tudo o que eles contêm, mas repousou no sétimo dia; por isso Iahweh abençoou o dia do sábado e o
santificou.
Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que Iahweh, teu Deus, te dá.
Não matarás.
Não cometerás adultério.
Não roubarás.
Não apresentarás falso testemunho contra o teu próximo.
Não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás a sua mulher, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu
boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo”.
5

O decálogo é uma lista de mandamentos dirigidos ao homem israelita adulto. Dirigem-se a ele na segunda
pessoa do masculino. Sua forma é categórica, sem matizes nem consideração de circunstâncias especiais. Não
apontam os castigos que se aplicarão em caso de violação. Constituem em seu conjunto a solene declaração de
Iahweh acerca das condições para se pertencer ao povo de Iahweh. Quem não viver de acordo com estas
normas, não poderá considerar-se parte do novo povo de Israel. Em outras partes se apresentarão leis
orientadoras para os juízes sobre o procedimento a seguir com referência a criminosos. Aqui o que interessa é
deixar estabelecidos os limites do possível para a nova sociedade que agora se funda.

Antes de comentar cada um dos mandamentos em si, convém ver o decálogo no seu conjunto. É evidente que
este decálogo tem sua história anterior à sua forma atual: (1) Por sua forma, dois dos mandamentos, o primeiro
e o segundo, são declarações de Deus mesmo, ao passo que um, o terceiro, não o é, como também não o são
as cláusulas explicativas dos mandamentos quarto e quinto. Os outros cinco são ambíguos quanto ao sujeito
que fala. (2) Por sua estrutura rítmica, três mandamentos são de dois acentos (no hebraico), e os outros de
três ou quatro acentos, sem incluir as notas explicativas. (3) A inserção do decálogo dentro da passagem do
Sinai dá mostras, por causa de sua vinculação obscura com o seu contexto, de ter sido introduzida em bloco
em relato já existente. Por estas razões é claro que o decálogo, representa um ponto de chegada na tradição
jurídica de Israel, e que historicamente não é o início desta tradição. Isto absolutamente impede que seja o
texto constitucional básico de Israel.
No contexto atual, é o próprio Deus quem pronuncia as palavras do decálogo desde o cimo do Sinai. Ao ouvir
a voz de Deus, o povo teme e pede que a seguir Deus use de Moisés como seu intermediário para comunicar
as suas leis (20,18-21). A Moisés Deus lhe revela a coletânea legal que conhecemos como o Código da
Aliança (20,22–23,19). Além disso, Deus dá a Moisés as placas de pedra que escreveu com seu próprio dedo
(31,18). Infelizmente, Moisés quebra estas (32,19) e tem de substituí-las por outras que se inscrevem com a
lista de leis “cultuais” de Ex 34,14-26 (34,1.28). O Deuteronômio reinterpreta este relato para que se entenda
que o conteúdo das placas era o decálogo, tanto da primeira como da segunda vez, mas esta não é a intenção
do texto do Êxodo. No livro do Êxodo, a lista de leis “cultuais” é o conteúdo das segundas tábuas, e
provavelmente também das primeiras. A tradição posterior reconheceu a superioridade do decálogo, e em
geral preferiu a reinterpretação deuteronômica ao relato do Êxodo. Contudo, não é necessário chegar a este
extremo, pois o Êxodo também destaca o decálogo ao colocá-lo como a primeira revelação de Iahweh, e a
única que deu diretamente ao povo e não através de Moisés.

Deus pronunciou todas estas palavras, dizendo: “Eu sou Iahweh teu Deus, que te fez sair da terra do Egito,
da casa da escravidão” (20,1-2).

A fórmula de auto-apresentação “eu sou Iahweh teu Deus” tem relação estreita com os mandamentos que
introduz. Sua função é identificar a Deus que fala como o Deus que libertou o povo da escravidão. É este ato
que dá a Iahweh autoridade para impor a Israel os limites de uma sociedade revolucionária. E vice-versa, este
povo que conseguiu o triunfo em sua luta revolucionária está obrigado a viver segundo as normas de Iahweh,
o Deus que os acompanhou na luta.
A fórmula “eu sou Iahweh” aparece muitas vezes no “Código de santidade” (Lv 17,26) como a base da
autoridade de suas normas. Também é frequente no livro de Ezequiel. Não aparece, porém, em Amós,
Miqueias, Isaías, nem na literatura sapiencial. Usa-se a fórmula para acompanhar no culto a proclamação da
lei de Iahweh. Seu contexto social é o culto. Donde se deduz a conclusão nada surpreendente que o decálogo,
em determinada época, foi uma lei pregada em contexto cultual.
Na expansão da fórmula “que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão”, deve-se frisar que o
emprego do verbo “fazer sair” ou “tirar”, em oposição ao outro verbo que se usa em contextos semelhantes
“fazer subir”, qualifica o êxodo como uma redenção da condição de escravidão.
No judaísmo ortodoxo, estre trecho “eu sou Iahweh teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da
escravidão” constitui a primeira das “dez palavras”. Em consequência, para não ultrapassar o número dez
combinam-se num só mandamento as proibições de idolatria e de imagens. Todavia, por considerações de 6
ordem formal, é evidente que essa frase constitui uma introdução e não integra a série de leis que formam o
decálogo.

1. Não terás outros deuses diante de mim (20,3).

Esta é a lei fundamental para a vida de Israel como uma sociedade nova. Uma vez bem entendida a natureza
de Deus como Iahweh “que te fiz sair da terra do Egito, da casa da escravidão”, concluem-se todas as normas
para uma vida social justa a partir desta lealdade exclusiva a ele. Se o Deus do universo é na verdade Iahweh,
então não poderá um homem dominar sobre o outro de forma alguma, roubando, matando ou cobiçando o que
é dele. Pois Deus é Iahweh que liberta os oprimidos, ouvindo os gemidos que provocam seus opressores.
A lealdade a Iahweh há de ser exclusiva. Não é evidente que devesse ser assim. Um babilônio podia ter
lealdade em primeiro lugar para com Marduk, o deus de Babilônia, mas, chegada a hora de enfrentar a morte,
recorrer a Ishtar, a deusa da região dos mortos. E com isto não era desleal a Marduk. Ao contrário, o decálogo
proíbe que se renda culto a outro deus ao lado de Iahweh.
Este mandamento não proíbe culto a outros deuses em virtude de sua nulidade. Isso será ideia recorrente
nos profetas do século VI (cf. Jr 10,1-16; Is 44,9-20). Em textos antigos existe não negação de sua existência,
mas desprezo para com os deuses, como se expressa na caçoada à impotência de Dagon, deus dos filisteus
(1Sm 5) e à incapacidade de Baal de Tiro para competir com Iahweh em fazer cair fogo do céu para consumir
seu sacrifício (1Rs 18). Em ambos os casos demonstra-se Iahweh mais forte que o deus inimigo, mas o texto
não nega a existência e o poder dos outros deuses.
Que razões existem então para proibir o culto a outros deuses? Antes de tudo convém recordar que o culto
a Baal em particular foi constante tentação para os camponeses de Israel. Baal era o deus da chuva, necessidade
vital. Sua mitologia estava muito desenvolvida, como se pode ver nos textos de Ugarit. Assim, Oseias
denunciou a “infidelidade” dos camponeses, que atribuíam a Baal o trigo e o mosto, a lã e o linho que Iahweh
lhes dava (Os 2,4-17). O problema não consiste certamente em chamar Iahweh ou Baal ao Deus da chuva. Por
detrás do conflito entre estes deuses está a realidade da tensão/luta de sectores sociais. Iahweh tinha dado a
Israel a terra e lhes mandava a chuva a seu tempo, mas revelou sua natureza específica ao apoiar o levante
contra os que os oprimiam. Baal era em primeiro lugar o doador da chuva, mas também o protetor da ordem
social onde o rei era a máxima autoridade com o direito de dispor das propriedades de seus súditos. As
consequências sociais de sua oposição deixam-se ver claramente no relato como o rei Acab pegou para si a
vinha hereditária de Nabot, seguindo a justiça dos reis cananeus e de Baal, enquanto a lei de Iahweh protegia
a Nabot em seu direito de conservá-la para sempre mesmo contra a cobiça dos reis (1Rs 21).
A formulação polêmica do mandamento de adorar a Iahweh tem, portanto, como explicação a longa luta
dos camponeses para desvencilhar-se da dominação de uma série de reis, primeiramente dos reis cananeus, e
depois dos reis israelitas que ressuscitaram as formas anteriores de dominação de classe. Israel não surgiu num
país vazio, impondo sua ordem social sobre uma natureza virgem. Israel surgiu dentro de uma sociedade
“civilizada”, em luta contra reis e seus burocratas. Para um povo religioso era fundamental manter a
consciência do seu Deus Iahweh e a postura de alerta para rechaçar os outros deuses, os deuses dos opressores.
Foi uma tentação para os camponeses abandonar seus campos inóspitos nas montanhas para descer às planícies,
onde podiam sujeitar-se aos reis do lugar e cultivar uma terra mais fértil. A pressão de exércitos como o filisteu
tentou o povo a criar um exército profissional, nomeando um rei israelita. Contra estas tentações, a lei
fundamental de Israel estabelecia que não era possível transigir entre Iahweh e os outros deuses. Quem
pertencesse a Israel devia necessariamente rechaçar qualquer forma de lealdade a estes deuses que não tinham
salvado os escravos do Egito.
Esta primeira norma da vida de Israel expressou-se diversamente em suas leis: “Quem sacrificar a outros
deuses será entregue ao anátema” (Ex 22,19); “Não fareis menção do nome de outros deuses: nem se ouça da
vossa boca” (Ex 23,13); “Não adorarás outro deus. Pois Iahweh tem por nome zeloso: é um Deus zeloso” (Ex
34,14); “Nunca haja em ti um deus alheio, nunca adores um deus estrangeiro” (Sl 81,10); “Seguireis a Iahweh
vosso Deus e a ele temereis” (Dt 13,5). Em todas as suas formulações o mandamento tem caráter polêmico. 7
O que se proíbe é pretender ser leais a Iahweh e a outro deus. Numa sociedade revolucionária seria
estabelecer a paz com o inimigo.

2. Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima, nos céus, ou
embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra.
Não te prostrarás diante destes deuses e não os servirás, porque eu, Iahweh teu Deus, sou um Deus
ciumento, que puno a iniquidade dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam,
mas que também ajo com amor até a milésima geração para aqueles que me amam e guardam os meus
mandamentos (20,4-6).

As tradições católica-romana, luterana e judaica ortodoxa entenderam que a proibição de imagens faz parte
da proibição de prestar culto a “outros deuses”. Os antigos intérpretes Josefo e Fílon distinguiram, porém, dois
mandamentos, e os críticos modernos são quase unânimes em tomar a proibição de imagens como proibição
de imagens de Iahweh. Portanto, coisa diversa da proibição de adorar a “outros deuses”. O mais antigo
comentário a este mandamento, Dt 4,9-40, indica que em Israel no século VI a proibição de imagens era tida
como proibição distinta do primeiro mandamento.
Na redação atual do decálogo, este segundo mandamento recebeu várias ampliações que têm o efeito de
aproximá-lo do primeiro mandamento. Existe mudança significativa do sujeito gramatical de um singular
original (“imagem”) para um plural (“não os servirás”). A ampliação é, pois, posterior à formação da lista dos
mandamentos e se liga a partir da expressão “não te prostraras diante” (BJ) ou “não adorarás” com o primeiro
mandamento.
A proibição de fazer imagem de Iahweh tem o propósito, segundo Dt 4, de proteger a liberdade e a
soberania de Iahweh. No Sinai o povo ouviu a voz de Iahweh, mas não viu nenhuma figura. A voz viva com
que Iahweh sempre se confrontará com o seu povo é uma presença que interpela, uma exigência permanente
de justiça. Fazer uma imagem deste Deus serviria para apagar esta interpelação exigente.
Este mandamento também aparece em outras formas: “Não fareis deuses de prata ao lado de mim, nem fareis deuses
de ouro para vós” (Ex 20,23); “Não farás para ti deuses de metal fundido” (Ex 34,17); “Não mandeis fundir deuses
de metal” (Lv 19,4); “Não fareis ídolos, não levantareis imagem ou esteia e não colocareis em vossa terra pedras
trabalhadas para vos inclinardes diante delas, pois eu sou Iahweh vosso Deus” (Lv 26,1); “Maldito o homem que faz
um ídolo esculpido ou fundido, abominação para Iahweh, obra de artesão, e o põe em lugar secreto!” (Dt 27,15). Esta
lista não nos ajuda a compreender o motivo da proibição e mostra que desde os primeiros tempos houve dificuldade
em distingui-la da que excluía o culto a outros deuses. A formulação mais categórica é a de Dt 27,15 que, junto com
Ex 20,4-6, exclui toda representação artística12.

À diferença, pois, da religião da classe dominante em Canaã, Israel tinha um culto a Iahweh sem imagens.
Os textos pré-monárquicos falam de dois objetos sagrados: a arca e a tenda da reunião. A arca era uma caixa
que continha as tábuas de pedra que se supunham escritas pelo dedo de Deus. Era símbolo da presença de
Iahweh e, como tal, se levava à guerra (1Sm 46; Nm 10,33-36). No templo de Salomão foi adornada com os
“querubins”, imensas figuras aladas que formavam um trono para Iahweh. Esta aparente violação da proibição
de imagens nunca se denuncia como tal nos textos. A tenda da reunião era uma tenda onde Iahweh falava com
Moisés ou outro representante do povo. Era, pois, lugar de encontro e não santuário para uma imagem de
Iahweh. Em contraste, Baal era comumente representado sob a imagem de um touro, e as deusas cananeias em
figuras de mulher. Neste ambiente, a proibição de representar Iahweh tinha o propósito de manter a pureza da
opção dos camponeses de Israel contra a religião que justificava a opressão de classe. Mas foi muito difícil
manter essa proibição, como o demonstra a história do homem de Efraim que fabricou uma imagem para ele
e montou um santuário aos cuidados de um levita (Jz 17). Tudo indica que a imagem era uma semelhança de
Iahweh. Gedeão fez o mesmo em Efra, ele, o herói javista na campanha contra Madiã (Jz 8,24-27). Nestes dois
casos, os textos condenam a fabricação de imagens, o que se deve entender como aplicação do mandamento 8
que comentamos. A arbitrariedade com que se aplicou se vê pela condenação do bezerro de ouro feito por
Jeroboão (1Rs 12,26-33) ao lado da tolerância para com os querubins no templo (1Rs 6,23-30), ou seja, até o
século X não se tinha clareza sobre esta proibição. O fato de que sua violação, tanto por Jeroboão como por
Salomão, tenha sido simultâneo com o estabelecimento de sociedades de classes pode-se tomar como indício
de quão correto fora a proibição como norma básica da legislação revolucionária de Israel.
Iahweh era, pois, um Deus zeloso e um Deus guerreiro (Ex 15,3). Seu zelo era tal que exigia a exclusão
da comunidade dos que demonstravam lealdades divididas, incluindo a netos e bisnetos. Para que não se
interpretasse mal esta severidade, que tinha que ver com o perigo de abandonar a atitude revolucionária, a
ampliação indica também que Iahweh é misericordioso até a milésima geração para com os que amam e
guardam os seus mandamentos.

3. Não pronunciarás em vão o nome de Iahweh teu Deus, porque Iahweh não deixará impune aquele que
pronunciar em vão o seu nome (20,7).

Em Israel tinha-se como grande privilégio conhecer o nome de Deus (Sl 9,11; 91,14; Ex 6,2-6). Salomão
edificou o templo para dedicá-lo ao nome de Iahweh (1Rs 3,2; 5,17.19; 8,17.20.29), e Iahweh “pôs ali o seu
nome” (Dt 12,5.21; 1Rs 8,29; 2Rs 23,27). Era em nome de Iahweh que Israel derrotava os seus inimigos (Sl
44,6). O nome de Iahweh era, pois, algo que se devia tomar a sério em Israel.
Como nos casos dos dois primeiros mandamentos, este se repete em várias coleções legais da Bíblia.
Não espalharás notícias falsas, nem darás a mão ao ímpio para seres testemunha de injustiça (Ex 23,1).
Não jurareis falsamente pelo meu nome, pois profanarias o nome do teu Deus. Eu sou Iahweh (Lv 19,12).
A Iahweh teu Deus temerás e servirás, a ele te apegarás e por seu nome jurarás (Dt 10,20).
É a Iahweh teu Deus que temerás. A ele servirás e pelo seu nome jurarás (Dt 6,13). ,
À luz destas outras versões do terceiro mandamento se esclarece que o contexto principal de referências
são os juramentos. Não se proíbe jurar pelo nome de Iahweh, mas sim usar este nome em juramentos falsos.
Expressão muito semelhante é a do Salmo 24 (v. 4): “Quem tem mãos inocentes e coração puro, e não se
entrega à falsidade, nem faz juramentos para enganar”.
Contudo, a comparação com Lv 19,12 evidencia que a formulação do mandamento é mais ampla do que
o que se requereria se se tratasse somente de juramentos falsos. Também se proíbem outros usos “vãos” do
nome de Iahweh, como no caso de encantamentos, o que, com base em informações de papiros, se demonstra
que era frequente, pelo menos nos tempos pós-babilônios.
É difícil separar o que é simplesmente tabu religioso do que é simplesmente injusto. Jurar falso é violação
da relação com Iahweh, mas é também violação da relação inter-humana. Se Deus é Iahweh, é natural que seja
grave delito usar o seu nome para prejudicar a outrem.

4. Lembra-te do dia do sábado para santificá-lo. Trabalharás durante seis dias e farás toda a tua obra. O
sétimo dia, porém, é o sábado de Iahweh teu Deus. Não farás nenhum trabalho, nem tu, nem teu filho, nem
tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu animal, nem o estrangeiro que está em tuas portas.
Porque em seis dias Iahweh fez o céu e a terra, o mar e tudo o que eles contêm, mas repousou no sétimo
dia; por isso Iahweh abençoou o dia do sábado e o santificou (20,8-11).

Sobre a substância desta lei não há dificuldades. O descanso de todos os trabalhadores será obrigatório em
Israel. Isso está bem de acordo com a existência de Israel como povo de trabalhadores em rebelião contra um
Estado que deles exigia trabalhos forçados. Em Israel também o estrangeiro terá um dia semanal de descanso
garantido. Como os outros nove mandamentos, este é um dos marcos constitucionais da nova sociedade. Sua
antiguidade e importância se frisa já por estar junto com o primeiro e o segundo mandamentos na lista básica 9
de leis em Ex 34. Violar o sábado acarretava a pena de morte (Ex 31,15; Nm 15,32-36).
Já em suas formas mais antigas, o mandamento sublinhava que o central do sábado era o descanso. “Seis
dias trabalharás; mas no sétimo descansarás, quer na aradura quer na colheita” (Ex 34,21). “Durante seis dias
farás os teus trabalhos e no sétimo descansarás, para que descanse o teu boi e o teu jumento, e tome alento o
filho da tua serva e o estrangeiro” (Ex 23,12).
A expressão “lembra-te” em uma lei é estranha. Dentro do conjunto do livro se refere ao fato de que Israel
já praticava o descanso do sábado, como se viu no relato do maná (Ex 16). O Deuteronômio muda a palavra
para “guarda”.
Surpreende que se fundamente esta lei com uma alusão à criação, e a uma forma da história da criação
semelhante à versão sacerdotal de Gn 1, que se supõe ser de origem pós-exílica. Dt 5,12-15 omite esta
fundamentação e tem no seu lugar uma alusão à servidão do Egito. Esta e outras diferenças entre as duas
versões do decálogo sugerem que este teve existência independente, mesmo depois de sua incorporação ao
relato de RJE. No Êxodo não se pode supor uma dependência do relato escrito sobre a criação em Gn 1, mas
de uma forma anterior.
Alguns pensam que a “santificação” do sábado implica que na sua origem era um dia de festa que se
celebrava nos santuários. Com o exílio ou talvez com a reforma do século VII teria passado a ser observância
familiar com ênfase no repouso. Mas o mandamento não apresenta nenhum indício de que assim fosse, nem
os textos históricos testemunham casos de assembleias aos sábados. O sábado tem antes a finalidade de
assegurar o descanso a todos os trabalhadores.

5. Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que Iahweh teu Deus te dá (20,12).

Este mandamento impõe à comunidade o cuidado dos anciãos que já não são produtivos. Pr 19,26 mostra
o problema que com o mandamento se quer prevenir: “Quem maltrata o pai e expulsa a mãe é filho indigno e
infame”. Esta lei aparece dentro do Pentateuco somente uma vez fora do decálogo, em Lv 19,3: “Cada um de
vós respeitará sua mãe e seu pai”. Mas na literatura sapiencial tem muitos paralelos (Pr 1,8; 18,26 etc.). Nos
provérbios, porém, a ênfase recai sobre a admoestação a escutar os ensinamentos dos pais. O comentário
bíblico mais amplo sobre este mandamento está em Eclo 3,1-16, que em parte diz:
Filho, cuida do teu pai na velhice, não o desgostes em vida. Mesmo se sua inteligência faltar, seja indulgente
com ele, não o menosprezes, tu que estás em pleno vigor (Eclo 3,12-13).

Em Nuzi e outras localidades da Mesopotâmia, houve contratos de adoção em troca de cuidados para os
tempos de velhice, e nos testamentos se ameaçava às vezes deserdar o filho que não cuidava da velhice de seus
pais. Nos textos também existe o caso de um pai ancião que, prevendo sua morte, impõe aos filhos o respeito
à sua mãe, assim como também o caso de um pai que se retira da vida ativa e passa os seus direitos ao filho
com a recomendação de que não despreze a velhice de seus pais.
O mandamento, como todos os outros da lista, é dirigido ao varão adulto, mas não exclui de seu olhar o
respeito que os filhos menores devem aos pais, embora não seja este o seu principal interesse, pois, se se
dirigisse a menores, pediria obediência e não honra.
A obrigação de cuidar dos pais é muito séria. Em Ex 21,15 recomenda-se a morte para quem bater no seu
pai ou na sua mãe. A mesma pena se impõe a quem maldisser a seus pais em Ex 21,17. E Dt 21,18-21 exige
que a comunidade apedreje a um jovem que não dá atenção a seus pais.
A promessa de longa vida sobre a terra é motivação frequente no Deuteronômio (Dt 4,40; 5,33; 11,9 etc.).
Aqui se deve entender como uma ampliação proto-deuteronômica.

6. Não matarás (20,13).

Esta é a primeira das três leis mais breves de todo o corpo legal israelita. São exigências categóricas. Não 10
admitem escusas nem exceções. Não se pode tirar a vida do próximo.
Esta lei, porém, tem diversos paralelos, com diversas explicitações. Diz Dt 27,24: “Maldito seja aquele
que fere seu próximo às escondidas!” E Ex 21,12: “Quem ferir a outro e causar a sua morte, será morto”. E Lv
24,17: “Se um homem golpear um ser humano, quem quer que seja, deverá morrer”. Há legislação específica
no código israelita sobre os diversos casos de homicídio intencional ou de morte violenta não intencional.
Este mandamento contra o homicídio é mais sóbrio e categórico do que os outros. Estabelece, como todos
os mandamentos do decálogo, um limite que não poderá ultrapassar quem desejar continuar como membro da
nova sociedade. Contudo, qual seria exatamente este limite? Não exclui a pena de morte executada pelo povo
a pedradas, depois da sentença das autoridades. A história das pragas que culmina com a morte dos
primogênitos egípcios pela mão de Iahweh, bem como a guerra contra os amalecitas deixam claro que a lei de
Iahweh não proíbe a matança de inimigos no combate.
Para esclarecer toda a área restante, a única chave é o verbo usado, razah. Usa-se este verbo 46 vezes no
Antigo Testamento, ao passo que harag e hemit, que significam também matar, usam-se 165 vezes e 201 vezes
respectivamente. No início parece que se usava razah para designar mortes violentas que exigiam vingança,
quer dolosas quer culposas, ou mesmo sem intenção. A partir do século VII tem o sentido de morte dolosa (Is
1,21; Os 6,9; Jó 24,14; Pr 22,13; SI 94,6). É evidente que a lei contra o homicídio dentro do decálogo não
busca ser precisa, mas contundente. Outras leis formularão as circunstâncias atenuantes.

7. Não cometerás adultério (20,14).

O varão israelita deverá respeitar o matrimônio do seu próximo. Quem violar esta norma de convivência
merecerá a morte (Dt 22,22; Lv 20,10). A seriedade do adultério se depreende de alguns relatos antigos de
Israel, como aquele que narra o horror de Abimelec ante o risco que correu de violar o matrimônio de Abraão
(Gn 20,9), a recusa de José às propostas adúlteras da mulher de Putifar (Gn 39,9), e a condenação de Davi por
seu adultério com a mulher de Urias (2Sm 12,7-10).
Cumpre notar que o mandamento é dirigido ao varão, embora nas leis acima citadas (Lv 20,10 e Dt 22,22)
se tenha por culpada também a mulher casada nestes casos. O homem peca contra o seu próximo quando
comete adultério com sua esposa. Não era considerado adultério o fato de um homem ter relações sexuais com
uma prostituta, ainda que fosse casado (Gn 38). Ter relações sexuais com uma moça não casada era delito que
requeria medidas especiais para resolvê-lo, mas não exigia a pena capital nem se considerava adultério (Ex
22,15-16; Dt 22,23-29). A mulher casada, porém, pecava contra o seu marido e cometia adultério quando tinha
relações sexuais com outro homem qualquer, casado ou não. Destas várias situações se deduz que a finalidade
deste mandamento era proteger a instituição do matrimônio. O matrimônio em Israel não era necessariamente
monogâmico (Dt 21,15- 17), e o divórcio era permitido (Dt 24,1-4), mas o matrimônio vigente era protegido
com todo o rigor da lei.

8. Não roubarás (20,15).

A proibição do roubo é sóbria e categórica, sem entrar em circunstâncias especiais, e sem estabelecer pena
em caso de ser desobedecida. Com esta forma geral só tem um paralelo na Bíblia (Lv 19,11). Existem, de mais
a mais, proibições pormenorizadas de roubos, procedimentos para investigar roubos e penas que se aplicarão
em diferentes casos de roubo (Ex 21,37; 22,1-3.9-12; Dt 25,13-16).
Contrariamente aos outros casos do decálogo, o roubo não se considerava em Israel delito merecedor da
pena de morte. A pena que se estabelece é antes a restituição do que foi roubado com acréscimos (cinco bois
por cada boi roubado, ou o duplo do que foi tirado de uma casa onde se entrou sem autorização). Isto levou os
exegetas a buscar um sentido mais específico e mais grave do que o simples roubo. Albrecht Alt pensa que se
proíbe o sequestro de pessoas, delito que de fato levava à pena de morte (Ex 21,16; Dt 24,7). Não é improvável
que na pré-história deste mandamento tivesse havido um objeto ao verbo “roubar”; a forma brevíssima faz
pensar nisso. Mas no texto atual Iahweh proíbe ao israelita pegar o alheio sem o consentimento de seu dono, 11
inclusive o seu corpo. O delito de roubar não é tão grave como os outros que se enumeram no decálogo, mas
dificilmente poderia subsistir uma sociedade sem aplicar-lhe penalidades.

9. Não apresentarás falso testemunho contra o teu próximo (20,16).

Por seu vocabulário, vê-se que este mandamento visa a situação concreta, a de disputa legal. Esta se
realizava perante um grupo de vizinhos que tinham a obrigação de ouvir as duas partes e emitir uma sentença,
indicando a pena a ser aplicada ao culpado. Estes tribunais populares nunca foram eliminados pelos juízes que
os reis vieram a nomear mais tarde na história israelita. Testemunho falso era grave ofensa à vítima falsamente
acusada, bem como à corte de vizinhos respeitados no lugar e à própria sociedade em seu conjunto. As muitas
queixas que aparecem nos Salmos contra acusadores falsos evidenciam que este delito era frequente. E um
exemplo dramático fornece a história de Nabot (1Rs 21), apedrejado por causa de testemunho falso de pessoas.
Segundo Dt 19,16-21, a penalidade por acusação falsa era aplicar ao acusador a pena que se aplicou ao seu
acusado, se a corte tivesse sentenciado contra este. Para proteger os acusados, a tradição instruía a corte a não
condenar ninguém à morte pelo testemunho de uma só pessoa (Nm 35,30; Dt 19,15).
A proibição de falso testemunho estabelece uma norma básica para a justiça na nova sociedade do povo
de Iahweh.

10. Não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás a sua mulher, nem o seu escravo, nem a sua
escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo (20,17).

Não existem paralelos propriamente ditos para este mandamento entre as leis de Israel. Distingue-se das
outras proibições dos dez mandamentos pelo fato de enfatizar o impulso e a inclinação, e não a violação
concreta dos direitos dos outros. Mas não convém exagerar a diferença, pois normalmente a cobiça precede ao
ato de tomar o alheio (ver Js 7,21 e Mq 2,2).
Este último e o antepenúltimo mandamentos cobrem aproximadamente o mesmo campo. Surge, pois, a
pergunta: Em que se diferenciam? A resposta parece estar em dois aspectos:
(1) cobiçar enfatiza o início interno da ação, ao passo que roubar frisa o próprio ato externo;
(2) cobiçar tem a ver com o ato de um superior que tem recursos para tomar o alheio publicamente, ao
passo que roubar é o ato de quem se vê forçado a tomar o alheio em segredo por não dispor destes
recursos.
Rouba quem arromba a parede de uma casa para tomar o que há dentro dela (Ex 22,1-3). Ao contrário, o
rico da parábola de Natã não precisa meter-se na casa do pobre para tomar-lhe sua ovelha, bastando-lhe dar
ordens e exigi-la (2Sm 12,1-4). O mesmo sucedeu com o rei Acab, que cobiçou a vinha de Nabot e dela pôde
apropriar-se mediante julgamento falso (1Rs 21). Se esta interpretação é correta, a proibição dirige-se em
particular contra o poderoso, que pode usar de seus recursos para apoderar-se do que pertence ao seu próximo
mais fraco. Mostra-se assim Iahweh como o protetor do fraco.
Há duas diferenças entre o texto deste mandamento em Êxodo e em Dt 5,21:
(1) No Deuteronômio se invertem os termos, pondo em primeiro lugar a mulher como objeto da cobiça
e deixando em segundo lugar a casa alheia. Não há dúvida de que a ordem original é a do Êxodo,
pois a “casa” inclui a mulher, que logo encabeça os conteúdos da casa. O efeito da alteração é separar
a cobiça da mulher da cobiça do resto da casa do próximo. Isto levou as tradições católica e luterana
a dividir em dois este mandamento, seguindo assim o Deuteronômio.
(2) O verbo que se usa no Deuteronômio, tit’aveh, enfatiza o elemento interior da cobiça. Também neste
ponto a versão do Êxodo é mais primitiva.
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