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As mulheres romanas entre a censura e a apologia: o ideal de feminilidade no discurso

de intelectuais pagãos e cristãos nos séculos IV e V d.C.¹

Luzia Beatriz Ramos Alves²


Profa. Dra. Márcia S. Lemos³
Resumo
O Império Romano, entre os séculos IV e V d.C., passou por um conjunto de transformações
que promoveu a estruturação do Dominato, a constituição da basileia e o cristianismo como
religião oficial do Império, bem como a difusão de valores e símbolos balizados pelo novo
credo. A partir deste processo histórico, o presente artigo objetiva discutir como intelectuais
vinculados à tradição pagã ou cristianizados, utilizando a apologia e a censura ao
comportamento das mulheres por eles descritas, contribuíram para formular e projetar um ideal
de feminilidade que ainda repercute no mundo contemporâneo. Esta análise também evidencia
como a Igreja cristã reforçou o regime patriarcal por meio da valorização da castidade,
subserviência e inferioridade feminina. O corpus desta pesquisa é constituído por duas fontes,
Dos bens da viuvez: cartas a Proba e a Juliana de Agostinho de Hipona e Elogio à Imperatriz
Eusebia de Juliano, e será examinado com o auxílio das premissas teóricas e metodológicas de
Mikhail Bakhtin, Antonio Gramsci e Heleieth Saffioti.

Palavras-chave: Mulheres. Feminilidade. Regime patriarcal. Intelectuais. Império Romano.


Igreja cristã.

Introdução
A partir do processo histórico de estruturação do Dominato, da instituição da basileia e
do ascenso do cristianismo no Império Romano, entre os séculos IV e V d.C., este artigo propõe-
se a analisar o discurso de intelectuais vinculados às tradições cristã e pagã, Agostinho de
Hipona e Juliano, respectivamente. A fim de discutir como a produção e reprodução de valores
das ordens dominantes sobre um ideal de feminilidade4 constituiu-se em instrumento de censura
e apologia às mulheres na Roma Imperial. Dessa forma, o artigo objetiva analisar
dialeticamente a interação entre os textos de Agostinho e Juliano com a realidade material da
sociedade romana tardo-imperial e a ideologia5 das ordens dirigentes.
Apontamentos sobre o método e a natureza das fontes
Para pensar como o método materialista histórico e dialético opera nessa pesquisa, que
utiliza as premissas de Mikhail Bakhtin, Antonio Gramsci e Heleieth Saffioti, faz-se necessário,
“começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo” (MARX, 2011, p. 76). O
método materialista histórico-dialético deve ser entendido como uma “mediação [...] entre o
real e o universo dos conceitos. Ele é aquilo que permite [...] compreender as contradições do
real e, compreendo-as, expressá-las em conceitos” (IASI, 2019, p. 19). Portanto, o método
funciona como uma mediação entre o mundo real e a produção do conhecimento sobre este.
A partir dessas premissas, busca-se compreender a realidade do Império Romano nos
séculos IV e V d.C. A conjuntura de ascenso da fé cristã e instituição do Dominato e da Basileia
é marcada por rupturas, continuidades e assimilações que resultaram numa nova sociedade.
Nesta perspectiva será analisado o corpus da pesquisa, Dos bens da viuvez: cartas a Proba e
a Juliana de Agostinho de Hipona e Elogio à Imperatriz Eusebia de Juliano.
Sobre as epístolas agostinianas, Oliveira (2007, p. 178-179) menciona que a carta 130 e
131 datam de 411 e 412, respectivamente. A carta 150 data do final de 413 ou início de 414,
felicitando Proba e Juliana pela cerimônia de velatio de Demetríades. A carta-opúsculo data
também dos anos de 413-414. As missivas foram escritas na conjuntura do saque à Roma pelos
visigodos em 410, como explica Bustamante (1990, p. 65-66), condição esta que motivou a
migração de seus habitantes e consequente refúgio na África Romana. Acerca das cartas
destinadas as nobres romanas, Oliveira (2007, p. 177) destaca que as missivas possuíam um
tom de interesse pastoral. Integrando tratados de edificação, bem como consolação ao grupo de
mulheres que buscavam auxílio espiritual na doutrina cristã (OLIVEIRA, 2007, p. 182; p. 214).
Quanto ao Elogio a Imperatriz Eusébia, Blanco (1979, p. 165-166) lembra um fato
peculiar do panegírico, que o seu destinatário é a mulher do imperador e não o próprio. Blanco
(1979, p. 166) aponta que, apesar do discurso laudatório ser direcionado à imperatriz, Juliano
se esforça para fazer alusão a Constâncio II e não deixá-lo apagado, visto que isso “supondría
una grande transgresión de los límites de la conveniencia”.
Conforme explicita Gonçalves e Franchi (2013, p. 135-136), os panegíricos se
configuram como textos políticos que se valem da retórica laudatória ao proclamar um discurso,
e destacam as figuras de prestígio no meio político, operando como ferramentas
propagandísticas e de divulgação dos feitos e obras do elogiado. Para Gonçalves e Franchi
(2013, p. 137-143), o dominus detinha prerrogativas para indicar o orador e o conteúdo, e os
argumentos passavam pelo crivo do soberano a fim de consolidar a ideologia e legitimidade das
instituições imperiais. De acordo com Gervás (2004, p. 134), o Elogio a Imperatriz Eusébia foi
composto por Juliano não só com o objetivo de demonstrar “su lealtad y conformidad con la
política de Constancio”. O texto apologético revela, consoante a Gervás (2004, p. 135-136), a
influência e atuação de Eusébia nas decisões políticas.
As fontes foram selecionadas para constituir o corpus da pesquisa porque seus autores
produziram escritos destinados às e sobre as mulheres de sua época, reforçando os paradigmas
patriarcais já existentes no Império e naturalizando os papéis sociais atribuídos às figuras
femininas. Observa-se que as relações sociais de sexo/gênero não são abstrações ideais dos
homens, mas são constructos pensados e formulados a partir de uma realidade social concreta,
pois, segundo Marx e Engels (2007, p. 94), “não é a consciência que determina a vida, mas a
vida que determina a consciência”.
Conforme Netto (2011, p. 8-10), o acesso ao objeto de pesquisa segue alguns passos:
investigar sua gênese, sua estrutura, sua dinâmica e seu desenvolvimento dentro de dada
realidade, para, enfim, “extrair dele as suas múltiplas determinações” (NETTO, 2011, p. 25).
Dentre as categorias bakhtinianas úteis à análise está o signo, compreendido como parte da
realidade, que tanto a reflete quanto a refrata (BAKHTIN, 2006, p. 30) e a palavra, “o modo
mais puro e sensível de relação social” (BAKHTIN, 2006, p. 34).
O Império entre os séculos IV e V d.C.
Investigar a produção intelectual de Agostinho de Hipona e Juliano pressupõe uma
análise da sociedade na qual estavam inseridos, dado que um novo sistema organizativo,
político, socioeconômico, mítico-religioso e ideológico – o Dominato –, se constituiu e
modificou as relações sociais no Império. O ascenso e afirmação da basileia, como ressalta
Silva (2015, p. 17), é marcado pela presença de elementos da tradição pagã assimilados a
elementos sacro-cristãos que se expressam nas relações de poder estabelecidas pelo Dominato.
A basileia, conforme explicita Silva (2015, p. 110), “foi um processo que resultou de uma
reelaboração do próprio culto imperial e não da sua supressão”. Por fim, o Dominato, segundo
Silva e Mendes (2006, p. 193), se configurou como um sistema capaz de articular Estado e
sociedade civil visando contornar a instabilidade do Império e as contendas externas e internas.
Quanto às reformas socioeconômicas e político-administrativas institucionalizadas no
Dominato, Silva e Mendes (2006, p. 203) destacam: a burocratização da administração central
e provincial; a centralização do poder nas mãos do dominus e do seu comitatus e um rearranjo
do exército e da corte. Tais mudanças tinham como finalidade defender o território de possíveis
assédios externos contínuos, combater as usurpações de poder e sublevações constantes na
Anarquia Militar, assegurar a manutenção do exército profissional e, sobretudo, reorganizar o
Estado Romano. Com a dilatação do Império, Silva (2015, p. 22) reitera que uma conjuntura
que possibilitou “adesão incondicional dos homens aos aspectos irracionais da existência,
evidenciando-se assim o crescimento do misticismo como um fator de segurança pessoal diante
do colapso iminente do modus vivendi estabelecido” (SILVA, 2015, p. 22).
A categoria realeza sagrada (SILVA, 2015, p. 103) evidencia os elementos simbólicos
emanados do soberano. Nesse sentido, o aspecto ideológico da basileia enfatizava um discurso
no qual os tetrarcas6 eram os heróis enviados pelas divindades romanas para reorganizar o orbis
romanorum. Assim, a concepção dessa teologia política será propelida com Constantino e o
contributo do cristianismo. Como expressa Silva (2015, p. 114), o basileus é a “lei encarnada”.
Isso significa que o imperador envolto de todos os atributos de poder e sacralidade era o mais
hábil a executar as normas do mundo sensível e terreno.
A rigor, Silva (2015, p. 88) aponta que durante o período de perseguição à tradição
judaico-cristã, os cristãos7 edificaram uma hierarquia consistente e trabalharam na formulação
da ortodoxia. Para Silva (2015, p. 12), no século IV, outra questão se mostra aparente, a
ascensão do cristianismo como religião oficial do Estado Romano. Segundo Silva, “o poder
imperial não cede diante do avanço do cristianismo, mas o instrumentaliza para sacralizar a si
próprio” (SILVA, 2015, p. 13). O imperador Constantino declara por encerrada a política
persecutória aos cristãos nos domínios imperiais e estabelece os privilégios da Igreja dentro do
território romano, efetivando outra Era para o cristianismo (SILVA, 2006b, p. 253).
A partir da legalização do cristianismo, Lemos (2004, p. 33) expõe que outra relação
Estado/Igreja se delimitava. A autora enuncia que, em 380, por meio do Edito de Tessalônica,
o imperador Teodósio “adotou a ortodoxia cristã como a religião oficial do Estado Romano. A
essa decisão se seguiu, nas províncias, a apreensão ou destruição de templos e lugares
consagrados aos cultos politeístas, bem como a proibição de ritos e sacrifícios pagãos”
(LEMOS, 2004, p. 34). Contudo, Lemos (2004, p. 34) destaca que mesmo após a oficialização
do cristianismo, o processo de consolidação da Igreja Cristã e conversão dos fiéis foi paulatino
e enfrentou dissidências dentro da própria fé. Muitos aspectos simbólicos e ideológicos da
tradição imperial pagã e da tradição judaico-cristã sofreram uma fusão, isto é, uma síntese. No
que concerne ao âmbito eclesiástico e a hierarquia da Igreja Cristã, Lemos (2004, p. 37) discorre
que os bispos configuraram-se como personalidades com autoridade espiritual e terrena.
Agostinho de Hipona, segundo Bustamante (1990, p. 10), situa-se como uma
personalidade expoente da Igreja Cristã dos séculos IV e V d.C. Em virtude de sua vasta
produção intelectual para fundamentar a doutrina foi consagrado como Pai da Patrística. Quanto
a sua formação intelectual, Agostinho instruiu-se em conformidade com a tradição literária
clássica. Como ressalta Bustamante (1990, p. 54-55), ao longo da sua formação religiosa e
filosófica, Agostinho aderiu ao maniqueísmo, ao ceticismo e acompanhou os sermões de
Ambrósio. Por volta do ano de 384 aproximou-se da Igreja Cristã; em 396 já era bispo auxiliar
de Hipona, cidade do Norte da África.
Conforme Lemos (2012, p. 155), Juliano pertencia à dinastia constantiniana, nasceu no
ano de 331 em Constantinopla, e devido a sua origem vinculava-se a ordem dirigente do Império
Romano. Sua educação foi iniciada em ambiente cristão, mas, por meio do eunuco Mardônio,
conheceu o helenismo. Ainda segundo a autora, em 355 d.C. foi eleito César pelo imperador
Constâncio II e em 360 foi conclamado Augusto por suas tropas. Para Lemos (2012, p. 155), o
breve reinado de Juliano compreendeu uma série de reformas, como os decretos favoráveis aos
antigos cultos romanos. Além disso, Blanco (1979, p. 7-8) ressalta que Juliano ficou conhecido
como “Apóstata” para os cristãos, e figura piedosa para os pagãos8.
As mulheres romanas entre a censura e a apologia
Proba e Juliana ao se estabeleceram em Cartago conheceram Agostinho de Hipona.
Oliveira (2007, p. 215) ressalta que a troca de correspondência do Bispo com as matronas serviu
para aproximá-las da fé cristã. Segundo Agostinho, as mulheres eram classificadas numa
hierarquia, a virgindade ocupava o estado de excelência; a viuvez, o segundo lugar; o
matrimônio, o terceiro. E Juliana e Proba são alocadas no segundo estado de graça. O
pertencimento de Proba e Juliana a ordem senatorial permitia a elas inúmeras prerrogativas,
entre estas, manter comunicação com um membro do episcopado. Relembrado por Lemos
(2004, p. 18-19), Agostinho, membro da ordem eclesiástica, “determina o que é aceitável,
normal e legítimo e, estabelece o que deve ser combatido, punido e rechaçado”.
Os discursos do gênero encomiástico eram comuns nas cortes imperiais, manifestavam
respeito e admiração do orador pelo elogiado e seus respectivos feitos. Com base nos dados
analisados, pode-se verificar que o Elogio à Imperatriz Eusébia foi um meio de Juliano
reconhecer o papel da monarca na preservação da sua vida e na sua nomeação como César do
Império Romano. Juliano honrou Eusébia com o discurso laudatório, mas o panegírico está
eivado de intereses políticos. É importante lembrar que esse tipo de texto passava pelo crivo do
imperador e seguia normas de produção. O discurso proferido não necessariamente expressava
o que o autor pensava, mas sim o que ele desejava que o homenageado pensasse. Nesse caso,
Juliano percebe e age politicamente, pois reconhece na Imperatriz Eusébia uma importante
mediadora entre ele e o imperador Constâncio II.
Partindo das categorias bakhtinianas, é possível verificar que os signos e as palavras
utilizadas por Juliano e Agostinho expressam a sociedade romana tardo-imperial e patriarcal, e
por meio dessas categorias de análise, os intelectuais operam a censura e/ou apologia,
estabelecem comportamentos normativos para as mulheres.
Em Agostinho, as mulheres são descritas em tom elogioso, poucos são os reparos feitos
às condutas das aristocratas. São mulheres da ordem senatorial romana e possuem relação direta
com homens notáveis, tal aspecto se repete nas epístolas, as mulheres são, de modo geral,
associadas a homens “ilustres”. No que diz respeito a família de Proba, Oliveira (2007, p. 177-
178) registra que “Fâltonia Proba era nobre senhora da influente gens Anicia”; “havia sido
esposa de Probus, o eterno prefeito da cidade e cônsul no ano de 371”; foi mãe de dois cônsules,
“Probino e Olíbrio (...) e Petrônio Probo”. Conforme Oliveira (2007, p. 178; p. 223), com
relação à Juliana, a patrícia casou-se com o cônsul Anício Hermogeniano Olíbrio e desse
matrimônio tiveram Demetríades. Eusébia também pertencia a ordem senatorial romana e, de
acordo com Blanco (1979, p. 165), foi “la segunda esposa de Constancio”, “hija de Flavio
Eusebio, cónsul en 347, y tenía dos hermanos, Flavio Eusebio y Flavio Hipatio, que fueron
también cónsules en 359”. Por fim, Eusébia estava sempre próxima ao imperador Constâncio
II, seus familiares e mantinha uma estreita relação com Juliano (BLANCO, 1979, p. 165-166).
Nas epístolas, dentre as nobres mencionadas, as protegidas das matronas e as mulheres
das Escrituras Sagradas destacam-se os comportamentos subservientes e resilientes. Elas
reproduzem os valores do regime patriarcal que norteiam a sociabilidade no Império. Em
Juliano, as mulheres são lembradas e representadas por seu carisma, seu comedimento e atitudes
modestas. Aspecto que confirma a argumentação de Bakhtin (2006, p. 35-36) ao dizer que as
palavras – as qualificações – “são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem
de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (BAKHTIN, 2006, p. 35-36).
Na obra de Juliano predomina o perfil de subserviência, uma vez que as características
de boa esposa e doçura se sobressaem às demais qualidades, com exceção das atitudes de
Eusébia, Nitócris, Rodoguna e Tômiris. Elas subverteram a ordem sob a qual estavam
colocadas. Eusébia mantinha comportamentos considerados cordatos, mas atuava no meio
político, âmbito no qual a presença feminina era estranhada. Nos dados cotejados do encômio,
de todas as mulheres citadas por ele, somente três figuras e seus comportamentos foram
censurados, Nitócris, Rodoguna e Tômiris. Juliano (1979, p. 198-199) afirma que as atitudes
destas eram viris. Tal conduta era reprovada, pois um ser tido como “inferior” não deveria
buscar se igualar ao sujeito social “másculo” e “valoroso”. Em síntese, o espaço doméstico era
o locus privilegiado de atuação das mulheres, sendo o espaço público reservado ao homem.
É possível perceber tanto nas cartas quanto no encômio, recomendações para as
mulheres de como devem se portar. Em Agostinho (2007, p. 212), as atividades das mulheres
estão restritas a esfera familiar. Agostinho chama atenção para a casa das matronas da família
Anício. De acordo com o Bispo, dentro do ambiente privado, ou “igreja doméstica” e “pequena
igreja de Cristo” (2007, p. 268; p. 275), as mulheres nobres possuíam uma elevada posição de
poder. Proba e Juliana detinham autonomia em relação aos homens acerca das finanças e
formação doutrinal dos seus protegidos, se constituindo como modelo de inspiração aos
presentes no lar. A censura apresenta-se de forma velada. Possivelmente isso ocorre não só por
serem mulheres representadas como “dignas” de elogio, virtuosas pela ótica cristã e por
seguirem os costumes patriarcais normativos, mas por serem oriundas de uma família influente.
Sobre a vida das mulheres, Agostinho (2007, p. 53) afirma que é interditado a elas terem
diversos maridos, porque ao fazerem isso se tornariam desonestas. Isso expressa a censura a
sexualidade das mulheres na tradição cristã, a normatização da subserviência e da dominação.
Nas missivas, Agostinho faz apologia ao estado de viuvez pautado em súplicas diárias, caridade,
prudência, castidade e beleza espiritual. Essas características foram historicamente construídas
e atribuídas a figura da “mulher universal”, criando uma natureza feminina, o ideal do que
deveria ser a mulher, como afirma Kehl (2008, p. 49). As qualidades domésticas, como destaca
Bustamante (1990, p. 96), demonstravam o papel social tradicional feminino, daquela que cede
em benefício do marido, que age em função da continuidade e bem estar do matrimônio.
Devido à natureza do encômio, Juliano faz apologia a nobreza das mulheres citadas e
sua igual beleza e moderação. Por exemplo, Eusébia é elogiada por ser excelente, uma mulher
que reúne todas as virtudes e possui muitas e belas qualidades. É prudente, honrou seus parentes
e amigos próximos ao colocá-los em altos cargos e posições de poder. Ademais, foi julgada por
Constâncio II como digna de compartilhar o matrimônio, por ter uma perfeita educação, uma
inteligência harmoniosa e juventude.
Numa sociedade patriarcal como a formação social romana, diversos desses louvores
concernem ao significado do matrimônio. Consoante a Saffioti (2015, p. 60), o patriarcado
“configura um tipo hierárquico de relação, que invade todos os espaços da sociedade; tem base
material; corporifica-se; representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto
na violência.” E, conforme expõe Bustamante (1990, p. 95), “na antiga sociedade romana, o
casamento objetivava essencialmente (...) uma descendência legítima (...), a perpetuação da
família, do seu culto e do seu patrimônio.”
Os elementos de valorização da castidade, subserviência e inferioridade feminina
mostram-se presentes em Agostinho quando este estabelece a hierarquia entre o matrimônio, a
viuvez e a castidade. Agostinho (2007, p. 240) reitera continuamente a excelência do estado de
castidade, na virgindade ou viuvez. Então, o ideal de comportamento seria aquele levado a cabo
por Demetríades, uma dedicação superior ao próprio casamento. A subserviência também se
manifesta quando Agostinho cita a submissão aos propósitos de Deus, a necessidade de agradar
não só o marido, mas a Deus. Juliano denota a inferioridade quando para elogiar uma mulher a
situa em relação a homens de prestígio social. Mesmo Eusébia não sendo censurada
diretamente, sua intromissão nos assuntos do reino é utilizada por Juliano para detratar
Constâncio II de forma velada. Dito isso, as características do patriarcado como descrito por
Saffioti se fazem presentes no discurso dos dois autores.
Saffioti (1987, p. 16) também destaca que “o patriarcado, sistema de relações sociais
[...], garante a subordinação das mulheres ao homem.” Observado o exposto, as mulheres
romanas, submetidas ao regime de dominação-exploração, são socializadas para desenvolver e
reproduzir condutas pudicas, prudentes, recatadas e, ainda, são consideradas como objetos de
satisfação dos desejos dos homens. Saffioti (2015, p. 57) também afirma que assim como as
relações patriarcais, as formas de hierarquia advindas dela e a base do seu poder afetam a
sociedade em sua totalidade. Nesse sentido, o direito patriarcal não se encerra na sociedade
civil, mas entranha-se também no Estado.
O reforço do regime patriarcal pela Igreja Cristã no discurso de Agostinho pode ser
verificado em um trecho do opúsculo à Juliana. Agostinho utiliza excertos dos Apóstolos Pedro
e Paulo para justificar uma prática patriarcal, ao colocar a mulher numa posição de inferioridade
e de subordinação aos seus maridos, “Não se diga, pois, que seja desonesto, o que o apóstolo
são Pedro diz: “Maridos, tratai vossas esposas com honra, como a seres mais frágeis, e que vos
são submissas, porque elas são co-herdeiras da graça” (1Pd 3,7) (AGOSTINHO, 2007, p. 235).
Desse modo, conforme define Gramsci (1982, p. 3), Agostinho de Hipona constituiu-se
num intelectual tradicional, pois desempenhou uma função intelectual no seio da hierarquia
eclesiástica, mas também se tornou um intelectual organicamente ligado a ordem dominante,
ou seja, a aristocracia fundiária cristã. Os eclesiásticos,
a mais típica destas categorias [de] intelectuais (...) monopolizaram durante
muito tempo (...) alguns serviços importantes: a ideologia religiosa, isto é, a
filosofia e a ciência da época (...). A categoria dos eclesiásticos pode ser
considerada como a categoria intelectual organicamente ligada à aristocracia
fundiária: era juridicamente equiparada à aristocracia fundiária, com a qual
dividia o exercício da propriedade feudal da terra e o uso dos privilégios
estatais ligados à propriedade (GRAMSCI, 1982, p. 5).
Agostinho auxilia a construir a hegemonia da ordem que está organicamente ligado por
meio da orientação e dos ensinamentos às mulheres da aristocracia romana. Juliano possuía
notável formação intelectual e tornou-se um intelectual orgânico da ordem senatorial, sua
ordem de nascimento. Contudo, estava ligado à fração pagã dessa mesma ordem e ficou
conhecido como “O Apóstata”, por ser o único imperador declaradamente cristão após a
ascensão de Constantino. Em que pese a distância temporal entre os intelectuais e a distinta
crença religiosa, a reprodução de um ser mulher conformado ao regime patriarcal está presente
em ambos os discursos. Eles projetam e reproduzem um ideal de feminilidade vinculado a
piedade, continência e pudicícia que se expressa na subordinação social da mulher ao homem,
justificado por sua “natural inferioridade”.
O ideal de feminilidade construído na formação social romana, aperfeiçoado aos modos
do cristianismo e propagado pelos seus patriarcas continua a reverberar na contemporaneidade.
Para Kehl (2008, p. 65), a feminilidade constituiu-se como um discurso produzido a partir da
ótica masculina “à qual se espera que as mulheres correspondam”. Nesse sentido, com base na
análise dos dados cotejados nas fontes, nota-se que a tradicional literatura pagã sobre as
mulheres encontrou respaldo e repercussão na literatura cristã. Cabe, então, questionar porque
o patriarcado manteve-se enquanto estrutural tanto na sociedade romana tardo-imperial quanto
no mundo atual.
Considerações Finais
Portanto, os discursos analisados nesta pesquisa evidenciam um ideal de feminilidade
construído por intelectuais a partir da apologia e censura ao comportamento das mulheres que
aparecem em suas narrativas. A partir dessas fontes, afirmamos que as formulações desses
intelectuais estão balizadas pela realidade concreta, marcada pelo regime de dominação-
exploração de mulheres no Império Romano entre os séculos IV e V d.C., e demonstram como
a Igreja cristã reforçou a ordem patriarcal estabelecida.
Notas
1
Pesquisa desenvolvida no Programa de Iniciação Científica da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia –
UESB, sob a orientação da Profa. Dra. Márcia Lemos.
2
Discente do curso de graduação em História e integrante do Programa de Iniciação Cientifica da UESB. E-mail:
luzia-alves7@outlook.com
3
Professora titular do curso de graduação em História e do Programa de Pós-graduação em Letras: Cultura,
Educação e Linguagens. Endereço Profissional: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB,
Departamento de História, estrada do Bem-querer, km. 4, campus universitário, 45083900 – Vitória da Conquista,
BA – Brasil – caixa postal – 95. E-mail: marcialemos.uesb@gmail.com
4
A categoria feminilidade é entendida por Maria Rita Kehl (2008, p. 47-48) como o discurso que promove a
adequação das mulheres a uma gama de comportamentos próprios da sua “natureza biológica” feminina.
5
Ideologia compreendida na concepção marxiana enquanto produto sócio-histórico. Segundo Marx e Engels, “as
ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material
dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. (...) As ideias dominantes não são
nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais apreendidas como
ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua
dominação” (MARX; ENGELS, 2007, p. 47).
6
Para Silva e Mendes (2006, p. 199) a Tetrarquia era o aparelho de Estado concebido por Diocleciano no qual
figuras de poder – Augustos e Césares – eram dispostos em partes estratégicas do Império a fim de viabilizar a
administração, a defesa e perpetuação do território conquistado.
7
O cristianismo nos séculos IV e V d.C. não era uma unidade, sua ortodoxia estava em construção. Como afirma
García-Pelayo (1978, p. 352-355 apud LEMOS, 2004, p. 26-27), os cristãos agrupavam-se ao redor das Escrituras
sagradas e na crença do messias, no seguimento das verdades reveladas, a fim de cumprir sua missão histórica na
terra. Segundo Lemos (2009, p. 19-20), o cristianismo a datar de sua gênese é controverso e plural, fracionado em
tendências distintas: a judaizante radical, a judaizante moderada, a helenista e a helenista radical. Além disso,
mesmo nos séculos IV e V d.C., o cristianismo se apresenta eivado de desacordos com a sua doutrina e ortodoxia,
tal aspecto fica evidente no Concílio de Nicéia e nos cismas travados dentro da história da Igreja. Cf. LEMOS,
Márcia Santos. Cristãos, pagãos e cultura escrita: as representações do poder no Império Romano dos séculos IV
e V d.C. 2009. p. 10-34.
8
Nno recorte temporal delimitado, os cristãos e pagãos não eram dois blocos coesos. Segundo Lemos (2004, p.
141), pagãos e cristãos no século V situavam-se próximos espacialmente, o que os separava era o modo como
seguiam suas crenças. Por um lado, os pagãos homenageavam vários deuses, já os cristãos, cultuavam somente
um Deus. Pagão compreendia um conjunto de tradições, mas como se refere Lemos (2009, p. 20), para apreender
“os paganismos”, urge entender a origem do termo paganus. Ao retomar o pensamento de Peter Brown, Lemos
(2009, p. 20) explica que paganus denominava algo de natureza rústica, ou era utilizado para alcunhar de maneira
pejorativa pessoas iletradas. Sem precisar o momento em que o termo obteve uma carga religiosa, Lemos aponta
que uma das hipóteses seria a qual os homens do campo encontravam-se relutantes em abandonar suas antigas
crenças e se converterem a nova religião cristã, estabeleceu-se uma relação próxima entre paganus e o
pertencimento ao politeísmo. “Portanto, o paganismo foi um termo que começou a aparecer nos textos cristãos
com maior frequência a partir do século V d.C. para designar crença nos falsos deuses e a prática de ritos e
costumes condenáveis” (LEMOS, 2009, p. 20).

Documentação textual
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