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O DIREITO SOB O VÉU DA LITERATURA: ENTRE HOMENS E ARANHAS

LAW UNDER THE LITERATURE'S VEIL: AMONGST MEN AND SPIDERS

Juliana Azeredo Arneitz

RESUMO
O Direito não deve ser compreendido sob uma perspectiva simplesmente autônoma. Os desafios
apresentados à humanidade neste século XXI exigem uma nova postura associativa entre os diversos ramos
do conhecimento. Destaca-se, então, o estudo interdisciplinar entre direito e literatura, não apenas quanto
aos métodos interpretativos, como sugere Dworkin, mas também quanto ao próprio conteúdo literário,
conforme sustenta Posner. Seguindo essa última proposta, sugere-se um breve estudo de caso com a análise
do conto A Sereníssima República: conferência do cônego Vargas, de Machado de Assis, em que é narrado
o desenvolvimento de uma república de aranhas. Seu conto, escrito com a forte ironia machadiana, tece
considerações bastante aguçadas a respeito da democracia e de seu sistema eleitoral. Cumpre notar que a
literatura, embora não tenha o dever de ser engajada, é capaz de perceber o fenômeno social e, também,
jurídico com contornos mais nítidos do que os assertos realizados pelos próprios juristas.
PALAVRAS-CHAVES: Direito. Literatura. Interpretação. Crítica literária. Filosofia do Direito.

ABSTRACT
Law must not be understood just under an unattended perspective. In this century, the challenges submitted
to humanity require a new associative attitude between the various parts of knowledge. It is necessary to
highlight the interdisciplinary study of Law and literature, which is not restricted to the interpretative
methods, as Dworkin suggests, but also includes the literary subject itself, as Posner says. Following this last
proposal, it is suggested a brief study of case, analyzing Machado de Assis’ tale A Sereníssima República:
conferência do cônego Vargas, which narrates the development of a republic of spiders. This tale, written in
the famous Machadian irony, presents sharp considerations about democracy and its electoral system. It is
also necessary to notice that literature, although not necessarily socially engaged, is capable to realize social
and legal phenomenona with even more clarity than jurists.
KEYWORDS: Law. Literature. Interpretation. Literary Criticism. Law´s Philosophy.

INTRODUÇÃO

No cenário global deste século XXI ocorre um fenômeno bastante singular: ao mesmo tempo em que se
busca a ampliação dos direitos humanos, em prol das minorias e da coletividade, vêem-se reforçadas as
desigualdades histórico-sociais.[i] O fenômeno da globalização, melhor compreendido como a
internacionalização das instituições e dos valores, influencia, significativamente, os ambientes políticos,
jurídicos, econômicos e sociais de todas as nações.

A insuficiência do positivismo jurídico[ii] na promoção da justiça social, constatada após as atrocidades da


Segunda Guerra Mundial, desencadeia reflexões acerca da suposta autonomia do Direito. Nesse contexto, as
contemporâneas correntes de Filosofia do Direito propõem um estudo interdisciplinar, relacionando o Direito
com outros campos do conhecimento como, por exemplo, a economia e a literatura a fim de importar novos
paradigmas de áreas aparentemente isoladas do saber.

Propõem-se, inicialmente, algumas considerações a respeito da interdisciplinaridade, como fenômeno


intrinsecamente ligado à moderna condição humana de compartimentalização do saber, bem como da
literatura, como ramo do conhecimento que percebe a totalidade da vida humana mesmo dentro de sua
natureza ficcional.

O presente trabalho procura corroborar com as teorias filosóficas que estabelecem uma conexão entre direito
e literatura, especialmente as de Ronald Dworkin e de Richard Posner. Intenta-se ressaltar a importância
desse estudo para uma melhor compreensão do fenômeno jurídico, uma vez que o estudo do Direito não é
completo em si mesmo, embora as academias e os tribunais tradicionalmente costumem apresentar esse
enfoque limitado.

Apresenta-se, então, uma análise acadêmica, a título de exercício interpretativo, de um conto machadiano,
com vistas a elucidar as conseqüências positivas que podem advir desse estudo, pois a literatura, mesmo
metafórica, consegue transmitir uma visão de mundo além de seu próprio engajamento.

O PROCESSO DE INTERDISCIPLINARIDADE

O fenômeno da interdisciplinaridade surgiu como resposta à deficiente produção de conhecimento enfrentada


em face da excessiva segmentação do conhecimento. Na verdade, “a interdisciplinaridade tem a finalidade de
mediar as divisões e fragmentações dos saberes, de aproximar [...] a ciência, a universidade e a
sociedade”[iii].
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 1892
É cediço que a globalização promoveu um avanço inimaginável no segmento das telecomunicações,
entretanto criou também uma situação paradoxal: ao mesmo tempo em que atrelou a comunicação à rapidez
de acesso ao conhecimento, proveniente de todas as partes do mundo, inversamente obteve uma redução na
qualidade da produção do saber.

O homem contemporâneo está cercado de informações e conhecimentos acerca das mais diversas áreas,
contudo sua postura passiva e educação demasiadamente especializada obstam a formação de uma
consciência crítica libertadora. Assim, a interdisciplinaridade propõe um intercâmbio de conceitos, métodos e
paradigmas entre as áreas do saber e seus respectivos estudiosos a fim de romper as barreiras da
sistematização.

O conhecimento não se move de modo linear entre causa e efeito, mas adota o modelo
circular de racionalidade. Hoje, o caráter sistêmico e auto-criativo das teorias e das
metodologias, das ações e decisões esbarra contra a estrutura e o funcionamento das
universidades não adaptadas às regras do novo estatuto do conhecimento. O
conhecimento não pode ser sufocado pelos ritos e entraves burocráticos. Afinal, a
interdisciplinaridade é uma estratégia de busca de algo novo.[iv]

Urge compreender, então, que a interdisciplinaridade não intenta criar novas disciplinas ou findar as
existentes, mas tão somente inter-relacionar as teorias e as experiências desenvolvidas nas diversas
disciplinas, para evitar o simples acúmulo ou a mera reprodução de informações, os quais não geram
conhecimento.

A LITERATURA COMO MODO DE RECONSTRUÇÃO DA VIDA

O estudo interdisciplinar entre literatura e Direito impõe uma prévia investigação a respeito da relação da
literatura com o modo de produção da vida. Deve-se questionar, inicialmente, se a literatura é um espelho da
vida, constituindo-se como uma fonte histórica perfeita, ou se possui uma natureza própria, o que a tornaria
uma forma de representação bastante peculiar do mundo.

Georg Lukács, em sua obra intitulada Ensaios sôbre literatura, indaga-se a respeito da composição literária,
se sua intenção é narrar ou descrever. Na verdade, a narração pressupõe o acúmulo de fatos e a sua
documentação sob certa perspectiva, de forma que os recortes feitos por cada autor, sua seleção e síntese
das informações deixe ver a realidade e, também, a si próprio, enquanto que a simples descrição não permite
essa interpretação da vida.

Outro questionamento decorrente desse primeiro é se uma representação literária realista seria uma descrição
fidedigna da realidade ou uma articulação de elementos captados pelo autor. O renomado crítico afirma,
categoricamente, em resposta a ambas as indagações, que “o método descritivo é inumano”[v], pois a
“descrição rebaixa os homens ao nível das coisas inanimadas”[vi].

Nesse sentido, Antonio Candido acrescenta que “é decisiva a maneira pela qual são tratados os elementos
particulares, os pormenores que integram uma descrição ou uma narração”[vii], pois estes serão essenciais
para que o leitor ou o crítico construam “uma visão coerente e verossímil”[viii] do texto ao buscar sua
verdade ficcional.

Apreende-se, então, que a representação literária é a composição de uma realidade ficcional, isto é, de um
lócus literário próprio, construído a partir da transfiguração da realidade. O que implica dizer que a
representação supera o mecânico processo de reprodução, pois a literatura é uma forma de apreensão da
realidade, ou seja, envolve escolhas, recortes e ideologias, serve de alegoria não só do objeto como do
próprio indivíduo, inserido em seu contexto sociológico e temporal.

Convém, portanto, adentrar ao estudo interdisciplinar com a consciência de que o texto literário é uma forma
de mediação entre o conhecimento do mundo e o próprio mundo, pois é fruto de um processo de
desagregação da realidade em pormenores e sua posterior articulação, por meio de uma lógica integradora,
conforme a singular visão de cada autor, que desenvolve mais do que o intencional, revelando nuances
inacessíveis por uma análise direta.[ix]

A ÓTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO

A Filosofia do Direito Contemporânea, em suas múltiplas correntes, pretende desmistificar a autonomia do


Direito, propagada pelo positivismo jurídico. Em verdade, a crise vivenciada após a Segunda Guerra Mundial
decorreu da falência das concepções da supremacia estatal absoluta e da irresponsabilidade dos Estados,
argumentos que justificaram as atrocidades cometidas, naquele momento, contra a pessoa humana.[x]

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 1893
O positivismo clássico, segundo o qual “o direito ‘posto’ pela vontade do Estado (jus possitum)”[xi], isto é,
a lei é a principal fonte do direito, não consegue responder efetivamente ao complexo fenômeno de
humanização que o Direito está vivenciando neste século XXI e que impõe a interdisciplinaridade como
recurso necessário à compreensão plena dos múltiplos fatores que permeiam a experiência humana.

Em um primeiro momento, a filosofia do direito debruça-se sobre a literatura para estudar os seus métodos
interpretativos e viabilizar sua aplicação no contexto jurídico, especialmente quanto à interpretação das leis,
pois a prática jurídica está, de um modo geral, relacionada a constantes exercícios de interpretação.[xii] Esse
foi o caminho traçado por Dworkin ao propor o estudo da literatura para melhorar a própria compreensão do
direito.

O problema central da doutrina jurídica analítica diz respeito ao sentido que se deve dar
às proposições de Direito.
[...]
A dificuldade surge porque as proposições de Direito parecem descritivas – dizem
respeito a como as coisas são no Direito, não como deveriam ser – e, no entanto, revelou-
se extremamente difícil dizer exatamente o que é que elas descrevem.[xiii]

Com efeito, o estudo literário apresenta uma série de métodos interpretativos, o que causa, inclusive, certo
embate ideológico entre seus críticos. Importa notar que textos de qualquer natureza apresentam algumas
informações mais sensíveis, aquelas disponíveis em primeira leitura, e outras menos sensíveis, que exigirão de
seu leitor uma leitura metódica e apurada.

Quando nos colocamos ante uma obra, ou uma sucessão de obras, temos vários níveis
possíveis de compreensão, segundo o ângulo em que nos situamos. Em primeiro lugar, os
fatores externos, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na designação de sociais;
em segundo lugar o fator individual, isto é, o autor, o homem que a intentou e realizou, e
está presente no resultado; finalmente, este resultado, o texto, contendo os elementos
anteriores e outros, específicos, que o transcendem e não se deixam reduzir a eles.[xiv]

Ocorre que um texto jurídico, logicamente, apresenta óbices a uma interpretação demasiadamente extensiva,
mas a mera interpretação literal pode ser tecnicista a ponto de reduzir o próprio fim social contido na norma.
Aliás, vale ressaltar que não existe interpretação destituída de ideologia seja histórica, social ou cultural, pois
ambas as vivências – a do autor e a do intérprete – influenciarão suas críticas. A esse respeito, Antonio
Candido, talvez o maior crítico literário brasileiro, aponta que:

[...] a crítica é um ato arbitrário, se deseja ser criadora, não apenas registradora.
Interpretar é, em grande parte, usar a capacidade do arbítrio; sendo o texto uma
pluralidade de significados virtuais, é definir o que se escolheu, entre outros. A este
arbítrio o crítico junta a sua linguagem própria, as idéias e as imagens que exprimem a
sua visão, recobrindo com elas o esqueleto do conhecimento objetivamente
estabelecido.[xv]

A apropriação dos métodos de interpretação literários pelo direito parece, de fato, uma proposta consistente
e frutífera, mas é preciso indagar se é este o único caminho possível para o estabelecimento dessa
interdisciplinaridade. Posner responde a esse questionamento da seguinte forma – “A área mais evidente, mas
a menos fértil, é a do método interpretativo. [...] os textos literários e jurídicos são tão diferentes que os
métodos interpretativos úteis para um tipo não são úteis para o outro.”[xvi]

Contudo, a defesa de Dworkin não é superficial a ponto de lançar-se sobre as teorias literárias de
interpretação sem um respaldo lógico. O seu estudo deriva de apurada análise das proposições de Direito e
suas subsunções aos casos práticos, submetidos à apreciação de magistrados e de cortes judiciais.

Em outras palavras, sua análise decorre da compreensão de que as proposições jurídicas, sustentadas pelos
positivistas como inteiramente descritivas, não são válidas para casos mais difíceis, em que se exige um
esforço interpretativo do magistrado. Assim, a busca por métodos de interpretação parte da premissa de que
as proposições de Direito reúnem, concomitantemente, elementos de descrição e de valoração.

Devemos estudar a interpretação como uma atividade geral, como um modo de


conhecimento, atentando para outros contextos dessa atividade. [...]
Nem todas as discussões na crítica literária são edificantes ou mesmo compreensíveis,
mas na literatura foram defendidas muito mais teorias da interpretação que no Direito,
inclusive teorias que contestam a distinção categórica entre descrição e valoração que
debilitou a teoria jurídica.[xvii]

Posner, como já dito, contrapõe-se à apropriação pelo Direito dos métodos interpretativos aplicados pela
crítica literária, sob a argumentação de que os textos literários e jurídicos possuem distintas naturezas.
Segundo ele, em literatura as obras que vigorarão na posteridade são aquelas cujo conteúdo é, de certa
forma, atemporal; fenômeno este que não ocorre no direito, em que os textos estão inexoravelmente
atrelados a uma determinada sociedade e época, tornando-se apenas documentos históricos no futuro.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 1894
A posição de Posner apresenta, portanto, certa objeção à restrição do estudo interdisciplinar apenas quanto
aos métodos interpretativos, pois estes geralmente não respondem eficazmente às dificuldades interpretativas
do direito. Sua proposta, no entanto, é de que o conteúdo literário e sua crítica permitem o conhecimento do
próprio direito, principalmente quanto à sua evolução histórica e cultural.

A literatura também pode iluminar as eternas questões de filosofia do direito que


decorrem da tensão entre direito e eqüidade (e, mais amplamente, entre justiça formal e
justiça material), e pode lançar luz sobre os estágios críticos do desenvolvimento do
direito, o tema da Escola Histórica. [xviii]

Aponta, não obstante, que os recursos literários de retórica como, por exemplo, o emprego de metáforas,
servem, reiteradas vezes, de suporte a decisões judiciais em casos cujo argumento jurídico não é
suficientemente justificado ou, ainda, a discursos sobre questões ético-jurídicas como as discussões acerca do
aborto e da homossexualidade, em que a “ausência de métodos convencionais de análise jurídica”[xix]
requerem o uso da força retórica.

Vê-se, portanto, que ambos os filósofos defendem que a interdisciplinaridade entre Direito e literatura pode
ser muito proveitosa para o aprimoramento do primeiro, seja por intermédio da apropriação de teorias da
interpretação, como defende Dworkin, seja por meio da proposta de idéias para os problemas jurídicos ou do
emprego de recursos de retórica, conforme explicitado na teoria de Posner. O que importa é a compreensão
de que o Direito pode ser estudado a partir de conceitos e ferramentas da crítica literária ou, ainda, pode ter
suas origens histórico-sociais buscadas na literatura.

Assim, tradicionalmente as tragédias gregas e as shakespearianas são utilizadas para a análise entre Direito e
literatura, mas inúmeras outras obras literárias permitem essa análise como, por exemplo, Os Miseráveis, de
Victor Hugo, O Processo, de Franz Kafka, Crime e Castigo, de Dostoiévski. O presente trabalho versará, no
entanto, sobre um escrito mais voltado à realidade local, embora inexoravelmente, universal – A Sereníssima
República: conferência do cônego Vargas, de Machado de Assis –, de forma a ilustrar o método, a
praticidade e a profundidade da prática interpretativa.

A EXPERIÊNCIA JURÍDICA ARACNÍDEA

A Sereníssima República: conferência do cônego Vargas é um conto bastante irônico, bem ao estilo
machadiano, sobre uma descoberta científica acerca da linguagem das aranhas e uma tentativa de
organização social delas pelo autor da descoberta. A história, rica em detalhes, constitui uma crítica explícita
ao sistema democrático, especialmente quanto ao procedimento eleitoral e permite, ainda, uma reflexão
sobre a natureza humana.

Um naturalista, o cônego Vargas, apresenta, em uma conferência, sua descoberta da língua das aranhas e da
possibilidade de lhes dar um regime social. Cumpre notar, incialmente, a perspectiva do naturalista de que a
organização de uma sociedade depende da constituição de um regime político e, necessariamente, jurídico; o
que resgata o famoso brocardo jurídico ubi soietas, ibi jus, que dispõe que onde há uma sociedade,
necessariamente estabelece-se um Direito.

Merece, também, destaque a afirmação do naturalista de que a comunidade está presente à conferência por
simpatia pessoal atrelada à curiosidade científica. É possível dessumir-se dessa assertiva uma ironia inicial
pela consideração de que o povo necessita de um orador carismático, uma realidade constantemente
vivenciada pelos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.

Logo depois, é denunciada a dominação cultural, o que prenuncia o tom político que permeará todo o texto.
Veja-se o contraste entre as escolhas semânticas do autor: “sábio inglês” e “modesto naturalista”, “invento
do Padre Bartolomeu” e “insigne Voador”, “Oxalá” e “Europa”[xx]. Tais contradições apresentadas pelo
naturalista, logo no início de sua conferência, demonstram sua plena consciência da condição periférica do
País, face ao seu passado histórico.

Outra referência no mesmo sentido é a sua declaração de utilização do conhecimento da língua e da


imposição da força para realizar o processo de dominação – “Duas forças serviram principalmente à empresa
de as congregar: – o emprego da língua delas, desde que pude discerni-la um pouco, e o sentimento de terror
que lhes infundi.”[xxi]. Veja-se que o personagem ironicamente imputa às aranhas o mesmo processo de
colonização vivido pelo próprio povo brasileiro.

Logo em seguida, desperta-se a consciência social do leitor pelo chamamento dos ouvintes a vencerem seus
preconceitos, por meio do conhecimento para, então, poderem reconhecer a conduta das aranhas como
exemplo de humanidade, o que importaria uma relação de admiração e respeito pelos aracnídeos, de forma a
combater o processo de destruição de seu trabalho pela “vassoura inconsciente do vosso criado”[xxii].

A discussão essencialmente jurídica inicia-se quando da tentativa de associação das aranhas sob a égide de
“um governo idôneo”[xxiii]. O naturalista recorre, então, à constituição de uma república, nos moldes da
antiga Veneza, adotando inclusive seu procedimento eleitoral, qual seja, o sorteio de bolas, postas dentro de
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 1895
um saco, cada qual com um nome.

A escolha do regime político foi determinada por sua singularidade, isto é, optou o naturalista por uma forma
de governo que não existisse em qualquer outro lugar para evitar “comparações que poderiam amesquinhá-
la”[xxiv]. Assim sendo, restaurou-se a forma Veneziana que, inclusive, possuía um processo eleitoral
bastante simples.

No desenrolar da história são narradas diversas fraudes ocorridas durante os processos eleitorais.
Constataram-se problemas nos sacos, nas interpretações das normas e, ainda, nas próprias leis, as quais
foram constantemente emendadas para evitar “abusos, descuidos e lacunas”[xxv]. Entretanto, a despeito das
constantes alterações legais, as falcatruas perpetuaram-se ainda com maior acuidade.

Chama à atenção a contundente crítica do autor no sentido de que a complexidade ou simplicidade do


sistema jurídico-político não é capaz de evitar as ações corruptivas, pois estas derivam da vontade e do
caráter dos agentes. Vale ressaltar que, no presente momento, essa representação literária é mais tangível do
que poderia imaginar o seu autor, uma vez que a profusão de normas no direito ambiental brasileiro e no
direito constitucional, a respeito da proteção dos direitos individuais, pouco ou nada altera a quantidade de
abusos ou transgressões. Assim, vê-se um exemplo da mencionada atemporalidade literária sustentada por
Posner.

O naturalista reconhece, então, a impossibilidade de se alcançar à perfeição, pois incompatível com a própria
natureza aracnídea e, postas de lado as transfigurações, também a humana. Entretanto, acredita que a
perseverança é uma virtude essencial “à duração de um Estado”[xxvi] e que o tempo amadurecerá seu povo,
pois um papel não é capaz de o fazer.

Não direi senhores, que a obra chegou à perfeição, nem que lá chegue tão cedo. Os meus
pupilos não são os solários de Campanela ou os utopistas de Morus; formam um povo
recente que não pode trepar de um salto ao cume das nações seculares. Nem, o tempo é
operário que ceda a outro a lima ou o alvião; ele fará mais e melhor do que as teorias do
papel, válidas no papel e mancas na prática.[xxvii]

Ocorre que essa perseverança, aparentemente enaltecida, esbarra na compreensão da absoluta falibilidade do
ser e, em conseqüência, das leis, percebida pela afirmação de que – “o comentário da lei é a eterna
malícia”[xxviii]. Eterna, pois imutável a natureza humana, tão facilmente corrompida.

Note-se, também, que no supracitado trecho o naturalista reafirma sua condição periférica e ainda propaga a
ideologia ilustrada de que o que separa sua nova nação daquelas desenvolvidas é apenas o tempo, como se
esse agisse inevitavelmente no sentido do progresso, ou seja, sem a responsabilização dos agentes
diretamente envolvidos no processo, o qual levará ou não a uma amadurecida prática republicana.

Em seqüência, a impunidade ganha destaque no texto, uma vez que a distração, os erros de ortografia e
retórica não mereciam punição, conquanto fossem, respectivamente, “fenômeno psicológico inelutável”[xxix]
e uma “simples elipse”[xxx]. Justificavam-se, assim, as variadas corrupções por falhas absolutamente
escusáveis, nunca pela má-fé.

Ao fim, celebra-se a sapiência, termo grafado em maiúsculo no texto como referência, concomitantemente,
ao seu significado de sabedoria e à própria natureza humana de homo sapiens, ditada pela racionalidade.
Paciência e tempo parecem ser os elementos necessários para a humanização dos homens e de suas leis.

Buscando-se, então, uma interpretação da obra como um todo, como sugere Dworkin, é possível concluir
que o Direito, por mais bem estruturado que seja, depende da interpretação humana. As proposições
jurídicas efetivamente possuem um caráter valorativo, conforme apresenta a teoria filosófica do referido
autor, e, por isso, estão sujeitas à discricionariedade humana, a qual pode ser limitada pela aplicação de
teorias de interpretação literária.

Historicamente, Machado revela ao leitor que a justiça social, assim como não se concretizou na república
das aranhas, também não vigia no século XIX, à sua época. E, na verdade, ainda hoje se constitui apenas
como um ideal utópico, o que contribui para a caracterização da obra como atemporal.

No âmbito jurídico, desponta a consideração de que o abrandamento da legalidade, a fim de facilitar a prática
da corrupção, não pode ser atribuído à falta de amadurecimento da República das aranhas ou do Brasil. O
tempo da “Nova República” se fora e com ele findou-se a utopia ilustrada de “Ordem e Progresso”, isto é, de
que o progresso inevitavelmente aguarda esta Nação no futuro.

Afora os risos que ressoam da leitura de um texto com tal grau de ironia, remanesce a pesada consciência de
que a frágil mentalidade política de hoje é a mesma desde a proclamação da República, ou ainda anterior a
ela, e assim permanecerá enquanto os homens justificarem sua falta de caráter na falibilidade humana.

Machado, ao representar uma sociedade de aranhas, deixa ver uma sociedade de homens governada por
alguns em prol do bem próprio e não em benefício da coletividade. Resta, então, a crítica de que o homem é
falível na primeira vez que comete um erro, mas torna-se desonesto à medida que incide nele reiteradas
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vezes.

A experiência da Sereníssima República revela que os princípios jurídicos da boa-fé e o da legalidade são
basilares em qualquer sociedade republicana, seja de aranhas ou de homens, neste século ou no próximo.

CONCLUSÃO

A interdisciplinaridade, assim entendida como um processo de diálogo entre as diversas disciplinas do


conhecimento humano, é requisito essencial para o desenvolvimento científico e social da humanidade, bem
como para a formação de uma consciência jurídica universal em prol da efetivação dos direitos humanos.

O estudo dos textos literários constitui uma nova perspectiva de análise do campo jurídico e, nesse sentido, é
importante ressaltar que as críticas externas ao próprio sistema podem servir de apoio a sua reestruturação.
A autonomia deve ser substituída pela interdisciplinaridade, a fim de servir aos propósitos humanistas do
direito.

A literatura, embora não seja uma ciência e nem sempre esteja declaradamente engajada, é uma forma
peculiar de conhecimento do mundo e, principalmente, da natureza humana. O estudo da periodização
literária perpassa a evolução histórica, social, econômica e, também, jurídica das sociedades humanas,
compondo um complexo acerco material sobre tais eventos.

No sentido humanista, cabe ressaltar a forma com que Direito e literatura se aproximam. Ambos partilham,
enquanto manifestações concretas do exercício comunicativo, elementos ou, ao menos, possíveis técnicas de
análise, de forma que a segunda serve de representação e registro de peculiaridades usualmente ocultas do
primeiro.

Deve-se, no entanto, adentrar com cautela o campo do estudo interdisciplinar, pois o excesso de expectativa
pode criar a ilusão de que todos os problemas jurídicos e sociais serão facilmente resolvidos. Apesar das
teorias mais otimistas, a literatura não é capaz de transformar a sociedade, pode apenas ajudá-la em uma
tomada de consciência, e tampouco o Direito promoverá, por si só, o ideal de justiça social.

Cumpre observar, por fim, que o direito e a literatura são criações humanas. Um direito que pretenda
alicerçar uma sociedade de homens e, não apenas de instituições, deve buscar compreender essa natureza
humana e, talvez, a literatura seja um dos possíveis caminhos.

REFERÊNCIAS

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[iii] PAVIANI, Jayme. Disciplinaridade e interdisciplinaridade. Revista de estudos criminais. São Paulo, v. 3, n. 12, p. 59-85,
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[iv] PAVIANI, Jayme. Disciplinaridade e interdisciplinaridade. Revista de estudos criminais. São Paulo, v. 3, n. 12, p. 59-85,
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[v] LUKÁCS, Georg. Narrar ou descrever. In: _____. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 76.

[vi] LUKÁCS, Georg. Narrar ou descrever. In: _____. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 69.

[vii] CANDIDO, Antonio. Realidade e Realismo (via Marcel Proust). In: _____. Recortes. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Ouro sobre
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[viii] CANDIDO, Antonio. Realidade e Realismo (via Marcel Proust). In: _____. Recortes. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Ouro sobre
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[ix] CANDIDO, Antonio. Realidade e Realismo (via Marcel Proust). In: _____. Recortes. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Ouro sobre
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[x] TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. A humanização do direito internacional. São Paulo: Del Rey, 2006.

[xi] DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Direito Internacional Público. Alain. Tradução de Vítor Marques Coelho.
2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 79.

[xii] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 217.

[xiii] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 217-218.

[xiv] CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. v.1, p.
33.

[xv] CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. v. 1, p.
37.

[xvi] POSNER, Richard A. Problemas de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 527-528.

[xvii] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 220-221.

[xviii] POSNER, Richard A. Problemas de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 530.

[xix] POSNER, Richard A. Problemas de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p 529.

[xx] ASSIS, Machado de. A Sereníssima República: conferência do cônego Vargas. In: _____. A Sereníssima República e outros
contos. São Paulo: FTD, 1994, p. 53.

[xxi] ASSIS, Machado de. A Sereníssima República: conferência do cônego Vargas. In: _____. A Sereníssima República e outros
contos. São Paulo: FTD, 1994, p. 55.

[xxii] ASSIS, Machado de. A Sereníssima República: conferência do cônego Vargas. In: _____. A Sereníssima República e outros
contos. São Paulo: FTD, 1994, p. 54.

[xxiii] ASSIS, Machado de. A Sereníssima República: conferência do cônego Vargas. In: _____. A Sereníssima República e outros
contos. São Paulo: FTD, 1994, p. 55.

[xxiv] ASSIS, Machado de. A Sereníssima República: conferência do cônego Vargas. In: _____. A Sereníssima República e outros
contos. São Paulo: FTD, 1994, p. 55.

[xxv] ASSIS, Machado de. A Sereníssima República: conferência do cônego Vargas. In: _____. A Sereníssima República e outros
contos. São Paulo: FTD, 1994, p. 60.

[xxvi] ASSIS, Machado de. A Sereníssima República: conferência do cônego Vargas. In: _____. A Sereníssima República e outros
contos. São Paulo: FTD, 1994, p. 56.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 1898
[xxvii] ASSIS, Machado de. A Sereníssima República: conferência do cônego Vargas. In: _____. A Sereníssima República e
outros contos. São Paulo: FTD, 1994, p. 56.

[xxviii] ASSIS, Machado de. A Sereníssima República: conferência do cônego Vargas. In: _____. A Sereníssima República e
outros contos. São Paulo: FTD, 1994, p. 59.

[xxix] ASSIS, Machado de. A Sereníssima República: conferência do cônego Vargas. In: _____. A Sereníssima República e outros
contos. São Paulo: FTD, 1994, p. 57.

[xxx] ASSIS, Machado de. A Sereníssima República: conferência do cônego Vargas. In: _____. A Sereníssima República e outros
contos. São Paulo: FTD, 1994, p. 58.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 1899

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