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DAÇÃO EM PAGAMENTO

Seguindo a trilha de pensamento do insuperável ANTUNES VARELA, “a dação em


cumprimento (datio in solutum), vulgarmente chamada pelos autores de dação em
pagamento, consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, com o
fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação”.
Trata-se, pois, de forma de extinção obrigacional, disciplinada pelos arts. 356 a 359 do
CC-02, por força da qual o credor consente em receber prestação diversa da que fora
inicialmente pactuada.
Assim, se o devedor obriga-se a pagar a quantia de R$ 1.000,00, poderá solver a dívida
por meio da dação, entregando um automóvel ou prestando um serviço, desde que o
credor consinta com a substituição das prestações.
Aliás, cumpre-nos registrar que a obrigação primitiva não precisa ser, necessariamente,
pecuniária. Pouco importa se fora inicialmente pactuada obrigação de dar, de fazer ou
de não fazer. O que realmente interessa é a natureza diversa da nova prestação.
Ressalte-se, todavia, que a dação em pagamento não se confunde com a pluralidade de
prestações existente nas obrigações alternativas, haja vista que, nestas, a diversidade
de prestações está prevista no próprio título da obrigação (p. ex.: nos termos do contrato,
eu me obrigo a entregar um imóvel ou dez mil reais).
Da mesma forma, não é idêntica às obrigações facultativas, porque aqui também existe
prévia estipulação negocial da prestação subsidiária (p. ex.: nos termos do contrato, eu
me obrigo a entregar um imóvel, sendo facultada, em caráter subsidiário, e ao meu
critério, a entrega de dez mil reais).
Diferentemente, na dação em pagamento, estipula-se uma prestação (a entrega de dez
mil reais), e, ulteriormente, por meio de uma nova estipulação negocial entre devedor e
credor, este aceita liberá-lo, recebendo, por exemplo, em troca do dinheiro, um imóvel.

REQUISITOS DA DAÇÃO EM PAGAMENTO


São requisitos dessa forma de extinção das obrigações:
a) a existência de uma dívida vencida — visto que ninguém pode pretender solver uma
dívida que não seja existente e exigível;
b) o consentimento do credor — vale dizer, não basta a iniciativa do devedor, uma vez
que, segundo a legislação em vigor, a dação só terá validade se o credor anuir (até
porque, por princípio, este não estaria obrigado a receber coisa diversa da que fora
pactuada, na forma do art. 313, do CC-02);
c) a entrega de coisa diversa da devida — somente a diversidade essencial de
prestações caracterizará a dação em pagamento, ou seja, a obrigação será extinta
entregando o devedor coisa que não seja a res debita;
d) o ânimo de solver (animus solvendi) — o elemento anímico, subjetivo, da dação em
pagamento é, exatamente, o animus solvendi. Sem esta intenção de solucionar a
obrigação principal, o ato pode converter-se em mera liberalidade, caracterizando, até
mesmo, a doação.
Lembre-se de que, se for estipulado o preço da coisa dada em pagamento (o que ocorre
ordinariamente com os imóveis), as relações entre as partes serão reguladas pelas
normas concernentes à compra e venda, nos termos do art. 357 do CC-02 . Assim, as
regras gerais referentes aos riscos da coisa, à invalidade do negócio, e tudo o mais que
for compatível com o contrato de compra e venda, será aplicado, no caso, à dação em
pagamento.
Ainda segundo a nossa legislação em vigor, não existirá propriamente dação quando a
coisa dada em pagamento consistir em título de crédito, visto que, no caso, haverá mera
cessão de crédito (art. 358 do CC-02), com extinção da obrigação originária por um meio
de pagamento.

EVICÇÃO DA COISA DADA EM PAGAMENTO


A evicção, tema a ser cuidadosamente desenvolvido quando tratarmos da teoria geral
dos contratos, é uma garantia legal típica dos contratos onerosos, em que há
transferência de propriedade (arts. 447 a 457 do CC-02).
Ocorre a evicção — que traduz a ideia de “perda” —, quando o adquirente de um bem
vem a perder a sua propriedade ou posse em virtude de decisão judicial que reconhece
direito anterior de terceiro sobre o mesmo.
Em tal situação, delineiam-se, nitidamente, três sujeitos:
a) o alienante — que responderá pelos riscos da evicção, ou seja, que deverá ser
responsabilizado pelo prejuízo causado ao adquirente;
b) o evicto — o adquirente, que sucumbe à pretensão reivindicatória do terceiro;
c) o evictor — o terceiro que prova o seu direito anterior sobre a coisa.
Vamos imaginar que o credor aceite, ao invés dos dez mil reais, a entrega de um imóvel
pelo devedor.
O que fazer, então, se um terceiro, após a dação ser efetuada, reivindicar o domínio do
bem, provando ter direito anterior sobre ele?
Neste caso, se o credor for evicto da coisa recebida em pagamento — ou seja, perdê-la
para o terceiro que prove ser o verdadeiro dono, desde antes da sua entrega —, a
obrigação primitiva (de dar os dez mil reais) será restabelecida, ficando sem efeito a
quitação dada ao devedor.
Apenas deverão ser ressalvados os direitos de terceiros de boa-fé, a exemplo do que
ocorreria se a prestação originária fosse a entrega de um veículo, e este já estivesse
alienado a terceiro. No caso, havendo sido perdido o imóvel, objeto da dação em
pagamento, por força da evicção, as partes não poderão pretender restabelecer a
obrigação primitiva, mantendo o mesmo objeto (a entrega do carro), que já se encontra
em poder de um terceiro de boa-fé. Deverão, pois, na falta de solução melhor, resolver
a obrigação em termos pecuniários.
É óbvio que este nosso posicionamento se limita à existência do elemento boa-fé, pois,
no mesmo exemplo, demonstrado o conluio entre o devedor e o terceiro/adquirente do
automóvel, deve a situação retornar ao status quo ante, evitando-se que se faça tábula
rasa da boa-fé alheia (no caso, do credor, que aceitou espontaneamente a dação).
Ressalvada, portanto, a boa-fé de terceiros, é possível ainda se enunciar a regra de que
a invalidade da dação em pagamento importará sempre no restabelecimento da
obrigação primitiva, perdendo efeito a quitação dada.

DAÇÃO “PRO SOLVENDO”


Tudo o que até aqui dissemos diz respeito à dação em pagamento (datio in solutum),
forma de extinção das obrigações, que se concretiza quando o credor aceita receber
coisa diversa da que fora inicialmente pactuada.
Entretanto, não há que se confundir a dação “in solutum” com outra figura, muito próxima,
posto diversa, a denominada dação “pro solvendo”, cujo fim precípuo não é solver
imediatamente a obrigação, mas sim facilitar o seu cumprimento.
Irreparável é o exemplo de dação “pro solvendo”, proposto por ANTUNES VARELA:
“A, pequeno retalhista, deve ao armazenista B cem contos, preço da mercadoria que
este lhe forneceu. Como tem a vida um pouco embaraçada e o credor aperta com a
liberação da dívida, A cede-lhe um crédito que tem sobre C, não para substituir o seu
débito ou criar outro ao lado dele, mas para que o credor B se cobre mais facilmente do
seu crédito, visto C estar em melhor situação do que A.
Quando esta seja a intenção das partes, a obrigação não se extingue imediatamente.
Mantém-se, e só se extinguirá se e à medida que o respectivo crédito for sendo satisfeito,
à custa do novo meio, ou instrumento jurídico para o efeito proporcionado ao credor”.
No caso, a dação pro solvendo, a par de conter, embutida, uma cessão de crédito, não
traduz imediata liberação do devedor (cedente do crédito), uma vez que a extinção da
obrigação só ocorrerá quando o credor (cessionário do crédito) tiver sido plenamente
satisfeito.
Por isso que não se trata, tecnicamente, de uma dação em pagamento com finalidade
extintiva, mas sim de simples meio facilitador do cumprimento da obrigação.

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