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Racismo fundiário: a elevadíssima concentração de terras no Brasil tem cor1

Tatiana Emilia Dias Gomes2


O ano era 1960, o dia, 21 de março. Aproximadamente cinco mil pessoas faziam
uma manifestação contra a Lei do Passe, que obrigava a população negra a portar um
cartão para poder transitar. O protesto ocorreu no bairro de Shaperville, cidade de
Gauteng, África do Sul. A Polícia Africâner3, pró manutenção do Apartheid, abriu fogo
contra os(as) manifestantes. Sessenta e nove pessoas foram assassinadas e outras 186,
feridas. Em razão desse massacre, a Organização das Nações Unidas estabeleceu nessa
data o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial.

Geralmente, a dimensão mais lembrada desse sistema político, jurídico e


econômico de segregação, que perdurou oficialmente de 1948 a 1994 na África do Sul, é
a impossibilidade de negros(as) e brancos(as) compartilharem os mesmos equipamentos
públicos (ruas, meios de transporte, ambientes de trabalho etc.), do trânsito livre dos(as)
negros(as), bem como a proibição de construir uniões afetivas (casamentos, por exemplo)
e as prisões e torturas dos(as) que lutaram contra esse regime.

Uma dimensão menos visibilizada do Apartheid foi a expulsão forçada de milhões


de pessoas de suas terras para dar lugar `a invasão protagonizada pelos(as) brancos(as).
De acordo com Wellington Didibhuku Thwala (2004), professor negro de Engenharia da
Universidade de Joannesburgo, a segregação tem início em 1658 a partir da expulsão do
povo Khoi (ou Khoisan) de seus territórios localizados a oeste dos rios Salt e Liesbeck.
Nos séculos seguintes, a segregação foi intensificada a partir de uma rede extensa de leis,
a exemplo da Lei de Terras Nativas (1913), da Lei de Terra e Desenvolvimento Confiável
(1936), da Emenda às Leis Nativas (1937), da Lei de Áreas de Grupo (1950), da Lei de
Autoridades Bantu (1951), da Lei de Prevenção à Usurpação, da Lei de Reassentamento
Negro (1954), da Lei de Promoção do Autogoverno Bantu (1959), da Emenda `as Leis
Nativas (1964) e da Lei de Confiança Nativa (1964).

1
Ensaio publicado na Coluna Vozes das Mulheres, da Comissão Pastoral da Terra/Bahia. Disponível em:
<https://cptba.org.br/racismo-fundiario-a-elevadissima-concentracao-de-terras-no-brasil-tem-cor/>
2
Assessora Jurídica Popular com atuação na Comissão Pastoral da Terra e outras organizações populares,
Professora de Direito Agrário da Universidade Federal da Bahia. Esse ensaio contou com a revisão dos
intelectuais negros Vitor Marques e Samuel Vida, a quem dedico os agradecimentos.
3
A palavra africâner se refere ao grupo supremacista branco que instituiu o regime de segregação racial e
territorial na África do Sul. Esse grupo resultou da fusão entre colonizadores alemães, holandeses e
franceses, que elaboraram uma língua própria – o africâner – derivada do holandês e do alemão (WOODS,
1987).
Em seu conjunto, para os povos negros, essas leis regulamentaram a restrição de
acesso à terra, a remoção de áreas de ocupação ancestral, a proibição de ocupação de
terras e a reserva de terras para confiná-los em áreas muito insuficientes sob o ponto de
vista dimensional e ecológico.

Quase quarenta anos antes de Shaperville, em 24 de maio de 1921, outro massacre


ocorrera. Negros(as) reunidos(as) em torno de uma igreja etíope separatista foram
duramente reprimidos numa expulsão forçada de uma área de terra em Ntabelanga,
também na África do Sul. Essa retirada forçada resultou no assassinato de 169 pessoas e
outras 129 foram feridas por militares e policiais africâneres (DAVIDSON, ISAACMAN,
PELISSIER, 2010). O massacre de Ntabelanga, também conhecido como massacre de
Bulhoek, seria o primeiro efeito trágico da segregação territorial (WOODS, 1987)
enquanto elemento fundamental da segregação racial.

Steve Biko, militante negro sul-africano assassinado pelas forças do Apartheid em


1977, foi uma voz ativa na crítica da política de segregação territorial baseada em reserva
de terras às etnias originárias africanas, que ficou conhecida como bantustão. Tal ideia
surgiu do ideólogo racista Verwoerd que, sob o eufemismo do “desenvolvimento em
separado”, propôs, de fato, “campos de concentração sofisticados” (BIKO, 1987), para os
quais a população negra expropriada de suas terras era obrigada a migrar, tudo isso sob o
amparo do conjunto de leis já mencionadas. Como resultado dessa política, Biko
denunciava que apenas 13% das terras sul-africanas estavam com os(as) negros(as).

O exemplo da África do Sul pode ser estendido a outros cenários para pensar como
as relações raciais são uma perspectiva central para analisar a questão agrária e
socioambiental. Segundo informações preliminares do Censo Agropecuário 2017,
realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), pretos(as) e
indígenas representam 9,48% dos(as) produtores(as) em 5.072.152 de estabelecimentos
rurais (índice inferior ao da África do Sul sob o Apartheid). Por outro lado, os(as)
brancos(as) representam 45,4%.

Mesmo sem leis expressas no século XX proibindo o acesso à terra no Brasil aos(às)
negros(as), semelhante ao ocorrido na África do Sul, tal discriminação se deu justamente
no silêncio da lei. No caso dos índios(as), apesar das menções em alguns instrumentos
normativos (Constituição Federal de 1934, Estatuto do Índio de 1973), tais menções mais
se assemelhavam à política dos bantustões, porque repetiram a lógica da reserva de terras,
lógica essa que o atual governo federal anuncia que adotará. A Constituição Federal atual
veda a ideia de reserva de terras e reconhece os direitos originários dos povos ancestrais
às terras tradicionalmente ocupadas.

Como o racismo é um fenômeno relacional, que não pode ser lido apenas como um
“problema dos(as) negros(as)”, é importante observar os dividendos políticos e
econômicos dos(as) brancos(as) nesse processo, como já nos alertou Maria Aparecida
Silva Bento (2014), psicóloga social e pesquisadora negra. Brancos(as) acumularam

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terras a partir dos genocídios dos povos originários e africanos, a partir da escravização
de africanos(as) articulada a uma rede capitalista transcontinental, a partir de uma

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arquitetura jurídica que atribuiu o direito de propriedade privada sobre a terra apenas

/leanguttur aos(às) que pudessem pagar por ela ou dispusessem dos meios para fraudá-la/grilá-la. E,
a partir de suas redes nos Três Poderes, direcionaram as políticas governamentais e os
recursos do Orçamento Público aos seus interesses, em detrimento de outros. Por
exemplo, há registros historiográficos de comunidades quilombolas no Brasil desde o
período colonial, no entanto, políticas públicas direcionadas a elas só contaram com
previsão orçamentária durante 7 anos (2005 a 2011)4 da experiência social brasileira.

Apesar de algumas conquistas normativas com a Constituição Federal de 1988


(como o reconhecimento da propriedade sobre territórios tradicionais quilombolas, do

fonte
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malhar direito originário das etnias indígenas sobre seus territórios, da função social da
incidiram propriedade), essas mesmas conquistas não incidiram profundamente na malha fundiária
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brasileira de modo a desconcentrá-la das mãos dos(as) brancos(as).

Nos últimos anos, o boom das commodities agrícolas e minerais, potencializado

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pelo “efeito China”, incrementou uma hegemonia política e econômica dos setores
mineral e do agronegócio. Em termos socioambientais, tal hegemonia alavancou a

Eful , degradação de biomas, a distribuição desigual dos danos ambientais e da poluição (o que
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o movimento negro estadunidense chamou de racismo ambiental nos anos sessenta) e o
reconhecimento a conta-gotas de direitos territoriais e sociais de negros(as) e índios(as).

Considerando todos esses elementos, proponho a ideia de racismo fundiário para


tratar dessa complexa rede que articula ações violentas dos(as) brancos(as) contra os
corpos, as culturas, os territórios e bens ambientais de negros(as) e índios(as), as formas
jurídicas limitadoras e ceifadoras dessas cosmovisões, os estrangulamentos

4
Dados do Siga Brasil/Senado Federal.
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orçamentários e políticas estatais vocacionadas a fortalecer seus empreendimentos
predatórios, a pilhagem secular de corpos, minérios, saberes etc. e projetos de mundo.

Entendo que acrescentar esse componente conceitual aos debates políticos e


acadêmicos em torno da questão agrária e socioambiental no Brasil é fundamental. O
elevado índice de concentração fundiária no Brasil tem cor e ele é branco.

Referências

BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e Branquitude no Brasil. In: CARONE,


Iray; ______. (orgs.). Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e
branqueamento no Brasil. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 25-57.

BIKO, Steve. Vamos Falar sobre os Bantustões. In: ______. Escrevo o que Eu Quero.
Tradução Grupo Solidário São Domingos. São Paulo: Ática, 1990. p. 101-108.

DAVIDSON, A. Basil; ISAACMAN, Allen F.; PELISSIER, Rene. Política e


Nacionalismo nas Áfricas Central e Meridional, 1919‑1935. In: BOAHEN, Albert Adu
(ed.). História geral da África: África sob dominação colonial, 1880-1935. 2.ed. rev.
Brasília: UNESCO, 2010. v. 7. p. 787-832.
THWALA, Wellington Didibhuku. A Experiência Sul-africana de Reforma Agrária. In:
MARTINS, Monica Dias (org.). O Banco Mundial e a Terra: ofensiva e resistência na
América Latina, África e Ásia. São Paulo: Viramundo, 2004. p. 145-159.

WOODS, Donald. Biko: a história do líder negro sul-africano Steve Biko. Tradução Édi
G. de Oliveira. São Paulo: Editora Best Seller, 1987.

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