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AO EGRÉGIO ÓRGÃO ESPECIAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO


ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Representação por inconstitucionalidade: 0031421-042.2019.8.19.0000

TJRJ 202000278984 26/05/2020 15:46:00 JEC; - PETIÇÃO ELETRÔNICA Assinada por RODRIGO AZAMBUJA MARTINS
A DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO,
presentada pelos defensores públicos que esta subscrevem, vem, à presença de Vossa
Excelência, com fundamento na norma dos artigos 4.º da Lei Complementar n.º 80/94,
com a redação da Lei Complementar n.º 132/2009, e 7.º, § 2.º da Lei n.º 9.868, e art. 138
do Código de Processo Civil, requerer seu ingresso como

AMICUS CURIAE

nos autos da arguição de descumprimento de preceito fundamental acima mencionada,


ajuizada pela ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO DO ESTADO
DO RIO DE JANEIRO, sendo interessado o Excelentíssimo Senhor GOVERNADOR
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO e a augusta ASSEMBLÉIA LEGISTATIVA
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, pelos fundamentos abaixo expostos:

I. O CABIMENTO DO INGRESSO COMO AMICUS CURIAE. A


REPRESENTATIVIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA. PERTINENCIA DE
SUAS ATRIBUIÇÕES FUNCIONAIS COM A QUESTÃO SUBJACENTE À
DEMANDA

O amicus curiae é uma espécie de intervenção de terceiro, cujo objetivo é


permitir que um sujeito que não é parte na causa contribua para a sua solução. Almeja-se,

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assim, a ampliação do debate, democratizando os argumentos lançados, nos moldes


pretendidos por Peter Härbele.

A sociedade aberta de intérpretes da Constituição reclamava a ampliação do


debate constitucional, que não podia restar exclusiva aos legitimados para a propositura
dos processos de controle concentrado de constitucionalidade.

Não é à toa que a Lei n.º 9.868/1996 dispôs que o relator de ações diretas de
inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade “considerando a relevância
da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível,
admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos
ou entidades”, nos termos do art. 7.º, § 2.º.

Recentemente, houve substancial modificação da admissibilidade da


intervenção como amicus curiae implementada pelo Código de Processo Civil de 2015,
“que aproxima o direito brasileiro do direito italiano, possibilitando a intervenção do
amicus curiae já em primeiro grau, em qualquer tipo de processo e não apenas naqueles
de caráter objetivo ou em determinados procedimentos”1.

No CPC de 2015, há três causas que autorizam a intervenção como amicus


curiae: (i) relevância da matéria; (ii) especificidade do tema objeto da demanda; ou (iii)
repercussão social da controvérsia (art. 138, caput, do CPC), sendo requisitos
alternativos.

No caso em tela, certo é que se verifica a relevância da matéria posta sob


julgamento (aspecto qualitativo), bem como a própria repercussão social da controvérsia
(aspecto quantitativo).

1
BECKER, Rodrigo. TRIGUEIRO, Victor. O tratamento do amicus curiae no CPC/15. Disponível em:
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/o-tratamento-do-amicus-curiae-
no-cpc15-23062017. Acesso em 02/10/2019.

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A relevância da matéria decorre do fato de que se trata da impugnação de ato


legislativo, de efeitos genéricos portanto. Ademais, cuida-se da possibilidade de agentes
públicos que lidam com adolescenes utilizarem de arma de fogo, em potencial dano e
prejuízo a toda coletividade.

Não fosse isso, resulta patente que a Defensoria Pública do Estado do Rio de
Janeiro tem representatividade adequada2, isto é, representa porção significativa
(quantitativa ou qualitativamente) de grupo social que guarda relação com a matéria em
debate. O elemento essencial, portanto, é a potencialidade de aportar elementos úteis para
a solução.

Nesse sentido, constata-se que a representatividade não se resume a uma


simples expressão numérica, bastando à entidade a comprovação de que expressa, de
modo considerável, as ideias de um determinado grupo social.

Dessa forma, saliente-se que a atuação em prol da proteção integral às


crianças e aos adolescentes pela Defensoria Pública está prevista expressamente na
legislação específica de sua organização, sendo uma de suas funções institucionais
típicas, como previsto nos arts. 1.º, caput e 4.º, inciso VII, da Lei Complementar n.º 80/94,
com a redação da Lei Complementar n.º 132/2009:

Art. 4º - São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:


XI - exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do
idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência
doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial
do Estado;

2
“A lei aludiu a “representatividade adequada”. Mas não se trata propriamente de uma aptidão do terceiro
em representar ou defender os interesses de jurisdicionados. Não há na hipótese representação nem
substituição processual. A expressão refere-se à capacitação avaliada a partir da qualidade (técnica,
cultural...) do terceiro (e de todos aqueles que atuam com ele e por ele) e do conteúdo de sua possível
colaboração (petições, pareceres, estudos, levantamentos etc.). A “representatividade” não tem aqui o
sentido de legitimação, mas de qualificação. Pode-se usar aqui um neologismo, à falta de expressão mais
adequada para o exato paralelo: trata-se de uma contributividade adequada (adequada aptidão em
colaborar).” (TALAMINI, Eduardo. Amicus curiae no CPC/15. Disponivel em:
https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI234923,71043-Amicus+curiae+no+CPC15. Acesso em
02/10/2019..)

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O Estatuto da Criança e do Adolescente também contempla a legitimidade da


Defensoria Pública para a atuação na defesa dos direitos da criança e do adolescente. A
Lei n.º 8.069/90 instituiu a proteção judicial dos interesses individuais, coletivos e difusos
em seus artigos 208 a 224, prevendo, inclusive, a aplicação da Lei n.º 7.347/85 (cf. artigo
224 da Lei 8069/90).

Assim, crianças e adolescentes, em razão de sua especial condição de pessoas


em desenvolvimento, são, indubitavelmente, necessitados para fins do disposto no art.
134 da CR/88. “Necessitado” não é considerado unicamente como hipossuficiente
econômico. A renomada Professora ADA PELLEGRINI sustenta, em textual:

A exegese do texto constitucional, que adota um conceito jurídico


indeterminado, autoriza o entendimento de que o termo necessitados abrange não apenas os
economicamente necessitados, mas também os necessitados do ponto de vista organizacional,
ou seja, os socialmente vulneráveis. Ainda que se entenda que função obrigatória e precípua
da Defensoria Pública seja a defesa dos economicamente carentes, o texto constitucional não
impede que a Defensoria Pública exerça outras funções, ligadas ao procuratório, estabelecidas
em lei.

Logo, em havendo relevância da matéria e representatividade adequada,


impõe-se o deferimento da admissão da Defensoria Pública enquanto amicus curiae na
presente arguição de descumprimento de preceito fundamental.

II. A LEI IMPUGNADA

Nesta representação por inconstitucionalidade, a Ordem dos Advogados do


Brasil ataca os artigos 1º, IV, 2º e 3º da Lei RJ 8.400, que, a pretexto de regulamentar as
prerrogativas dos agentes de segurança socioeducativos, permite que lhes seja atribuído
porte de arma.

Art. 1º Os Agentes de Segurança Socioeducativos, ativos e inativos, gozarão das


seguintes prerrogativas, entre outras estabelecidas na legislação federal:
IV – ter porte de arma, categoria defesa pessoal, em ambiente fora do âmbito do
sistema de atendimento ao adolescente infrator.

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Art. 2º Os integrantes do quadro efetivo de agentes de segurança socioeducativos


poderão portar arma de fogo de propriedade particular e fora de serviço, desde que
sejam:
I – submetidos a regime de dedicação exclusiva;
II – sujeitos à formação funcional, com comprovação de capacidade técnica e aptidão
psicológica;
III – subordinados a mecanismos de fiscalização e de controle interno.
Parágrafo único. O Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio
de Janeiro deverá destinar espaço nas suas unidades para a custódia e segurança das
armas de fogo de propriedade particular, que serão consignadas pelos Agentes de
Segurança Socioeducativos, sendo vedado o porte e uso pelos mesmos no exercício
da profissão.

Art. 3º Ficam incluídos, no Artigo 1º da Lei nº 7.755, de 20 de outubro de 2017, os


agentes de segurança socioeducativa do Degase

Para tanto, a Ordem dos Advogados do Brasil alega que a lei impugnada
violou a Carta Estadual, especificamente os artigos 72 e 98, uma vez que teria legislado
sobre norma de matéria penal, de competência da União. Explicou que as atividades
desempenhadas pelos agentes públicos aos quais se atribuiu o direito ao porte de arma
não são de segurança pública; possuindo, ao revés, caráter eminentemente pedagógico,
de “tutoria”.

O pedido foi julgado extinto sem exame de mérito, mas, acolhendo embargos
de declaração opostos pela Procuradoria Geral do Estado, aquele julgamento foi anulado
(index 000396).

Manifestaram-se nos autos:

1) A Assembleia Legislativa (index 000026), assentando a


constitucionalidade do ato normativo;
2) O Sindicato dos Servidores da Carreira Socioeducaiva do Estado do Rio
de Janeiro – SIND-DEGASE (index 000035), assentando a constitucionalidade do ato

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normativo, pois seriam os agentes socioeducativos espécie do gênero agntes de


segurança, assim como os agentes penitenciários;
3) O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (index 000281),
assentando a inconstitucionalidade do ato normativo, pois cabe à União “a definição dos
requisitos para a concessão do porte de arma de fogo e dos possíveis titulares de tal direito,
inclusive no que se refere a servidores públicos estaduais ou municipais”
4) A Procuradoria Geral do Estado (index 000295), assentando a
inconstitucionalidade do ato normativo, seja por invasão da competência legislativa da
União, seja por vício de iniciativa, afinal cuida-se de ato legislativo de iniciativa
parlamentar e que trata de prerrogativas funcionais de determinados agentes públicos;

Desde a propositura da representação por inconstitucionalidade foram


publicados o Decreto 46.818, de 01º de novembro de 2019, e a Portaria DEGASE 767 de
04 de novembro de 2019, que regulamentaram a legislação impuganda.

Como abaixo demonstrar-se-á, a representação por inconstitucionalidade


deve ser julgada inteiramente procedente.

III. O MÉRITO
A INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL ORGÂNICA. OFENSA AOS
ARTIGOS 72 E 74 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO. NORMA DE CONTEÚDO
PENAL. COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DA UNIÃO.

Ao estabelecer o porte de armas para agentes do DEGASE, o Parlamento


Estadual acabou por invadir competência privativa da União Federal para legislar sobre
direito penal. Ao assim agir, restaram violadas as regras do art. 72 e 74 da Constituição
Estadual, segundo as quais:
Art. 72 - O Estado exerce todas as competências que não lhe sejam vedadas pela
Constituição da República.
§ 1º - As competências político-administrativas do Estado são exercidas com
plenitude sobre as pessoas, bens e atividades em seu território, ressalvadas as
competências expressas da União e dos Municípios.

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***
Art. 74 - Compete ao Estado, concorrentemente com a União, legislar sobre:
I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;

II - orçamento;
III - juntas comerciais;
IV - custas dos serviços forenses;
V - produção e consumo;
VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos
recursos naturais, proteção ao meio ambiente e controle da poluição;
VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;
VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos
de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
IX - educação, cultura, ensino e desporto;
X - criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas;
XI - procedimentos em matéria processual;
XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;
XIII - assistência jurídica e defensoria pública;
XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;
XV - proteção à infância e à juventude;
XVI - organização, garantias, direitos e deveres da polícia civil.
§ 1º - O Estado, no exercício de sua competência suplementar, observará as normas
gerais estabelecidas pela União.
§ 2º - Inexistindo lei federal sobre normas gerais, o Estado exercerá a competência
legislativa plena, para atender às suas peculiaridades.
§ 3º - A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei
estadual, no que lhe for contrário.

Com efeito, a norma constitucional estadual, pressuposto de validade da Lei


cuja constitucionalidade se aponta, inicia por dispor que que o Estado do Rio de Janeiro
tem competência legislativa subsidiária, é dizer: pode legislar sobre todas as matérias que
não forem atribuidas a outros entes federados (art. 72).

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Em seguida, a mesma norma cita exemplo de matérias que seriam sujeitas a


deliberação pelo parlamento estadual (art. 74), donde se conclui não estar naquele rol o
possível exercício da atividade legislativa para criação de norma com conteúdo penal.

Isso porque, a Constituição da República dispõe ser competência exclusiva


da União legislar sobre matéria de natureza penal “Art. 22. Compete privativamente à
União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário,
marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”.

E o Estatuto do Desarmamento ( Lei 10826/2003 ) tem nítido caráter penal,


eis que, além de descrever condutas típicas, normas incriminadoras, também traz normas
permissivas. O citado Estatuto veda, como regra geral (art. 6º. caput), o porte de arma de
fogo em todo o território nacional. Andar armado em território brasileiro é, portanto,
exceção em vista de decisão legislativa, que adequou uma série de direitos fundamentais
em possível conflito, entendendo que a proteção da segurança pública era mais eficiente
a partir do controle da circulação de armas.

Desse modo, ao ampliar o rol de pessoas que podem andar armadas, o Estado
do Rio de Janeiro exerceu competência legislativa exclusiva da União, descriminalizando
uma conduta.Ao assim agir, incidiu em crasso vício de incompetência.

Sobre o tema, o STF já decidiu em inúmeras oportunidades que a concessão,


por legislação estadual, de porte de armas para determinadas carreiras é inconstitucional.
Exemplificativamente, cita-se:

GARANTIAS E PRERROGATIVAS DE PROCURADORES DO ESTADO. LEI


COMPLEMENTAR ESTADUAL. Ação direta de inconstitucionalidade. 2.
Impugnados dispositivos da Lei Complementar n. 240, de 27 de junho de 2002, do
Estado do Rio Grande do Norte. 3. Ação julgada procedente para declarar a
inconstitucionalidade do inciso I e §§ 1º e 2º do artigo 86 e incisos V, VI, VIII e IX
do artigo 87. 3. Reconhecida a inconstitucionalidade da expressão "com porte de
arma, independente de qualquer ato formal de licença ou autorização", contida no
art. 88 da lei impugnada.

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( ADI 2729, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR
MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 19/06/2013 )

Nesse contexto de ideias, vale mencionar inclusive a ADIN 5.359/SC, proposta pela
Procuradoria-Geral da República no Supremo Tribunal Federal, em que se discute a
(in)constitucionalidade de lei do Estado de Santa Catarina que, em dispositivos semelhantes ao
da Lei do Estado do Rio de Janeiro ora questionada, autoriza o porte de armas para agentes
socioeducativos. Apesar de não ter sido ainda julgada, em virtude do pedido de vistas do Ministro
Gilmar Mendes, a ação já conta com 05 (cinco) votos favoráveis ao reconhecimento da
inconstitucionalidade da referida lei, entre eles os votos do Ministro relator Edson Fachin, bem
como das ministras Rosa Weber, Cármen Lucia e dos ministros Ricardo Lewandowski e Marco
Aurélio, votos que, justamente por entenderem que a norma catarinense invadiu campo legislativo
exclusivo da União Federal, corroboram as teses ora sustentadas na presente demanda. A título
ilustrativo, cumpre transcrever as partes do voto do Ministro Relator Edson Fachin que aqui nos
interessa, in vervis:

“A Constituição conferiu à União a competência para legislar sobre material bélico


(art. 22, XXI), bem como sobre direito penal (art. 22, I). Dando vida ao mandamento
constitucional, o porte de armas de fogo foi regulamentado pela Lei nº 10.826/2003
(Estatuto do Desarmamento). Como não é difícil concluir, o regramento
constitucional e legal da matéria foi desenhado de forma a dar tratamento uniforme
para o tema em todo o território nacional, à luz da preservação do interesse nacional,
como se denota, de forma nítida, do art. 6º, caput, da Lei
(...)
Como se observa do caput do art. 6º, a exigência de que o porte seja estendido a todo
território federal, inequivocamente indica que a “legislação própria” somente é que
a for estabelecida pela União. À luz do que previu a legislação federal, é inegável
concluir-se que a norma federal, de forma nítida, afastou a possibilidade do exercício
das competências complementares e suplementares dos Estados e Municípios, ainda
que a pretexto de regular carreiras ou de dispor sobre segurança pública, seja para
garanti-lo aos inativos da carreira dos agentes penitenciários, seja para estender o
porte à carreira dos agentes do sistema socioeducativo.
(...)
No que se refere aos agentes do sistema socioeducativo, a resposta da legislação
federal é inequívoca: trata-se de carreira que não foi contemplada entre as que
excepcionalmente se admite o porte. Há, neste ponto, até uma razão material para
tanto. Nos termos da lei, a autorização do porte se justifica apenas para pessoas cujo
exercício da profissão se sujeite a alguma periculosidade, ressalvada a hipótese
esportiva prevista no art. 6º, IX, da Lei nº 10.826/2003. E a sua necessidade tão
somente se justifica a partir do confronto com o caso concreto, ou seja, com os fins
relacionados a cada profissão.
Não obstante haja exceção legal para o porte pelos integrantes do quadro efetivo de
agentes e guardas prisionais (art. 6º, §1º), não se pode fazer letra morta do disposto
no art. 227 da Constituição da República, em que estão estampados os deveres

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compartilhados da família, de toda a sociedade e do Estado com a criança, com o


adolescente e com o jovem.
Dessa forma, o agente de segurança socioeducativo trabalha sob à égide do
tratamento constitucional conferido à criança e ao adolescente, ou seja, à luz da
doutrina da proteção integral em que estes são vistos como sujeitos de direito
em desenvolvimento.
Nessa perspectiva, as medidas socioeducativas possuem caráter pedagógico,
voltado à sua preparação e reabilitação para a vida em comunidade, formando,
portanto, cidadãos.
Permitir o porte de armas para os agentes nestes casos significa, assim, reforçar
a errônea ideia do caráter punitivo de tal rede de proteção. A medida
socioeducativa não tem por escopo punir, mas prevenir e educar.
Dessa forma, os agentes inseridos nessa realidade detêm o dever de orientar pessoas,
conforme se conclui da leitura do art. 18-A e art. 18-B, ambos da Lei 8.069/1990
(Estatuto da Criança e do Adolescente).
Assim, para além da questão formal ligada à federação e a divisão de
competências, seria possível vislumbrar até mesmo inconstitucionalidade
material da norma impugnada.
Consigno, por oportuno, que reputar que "por melhores que sejam as medidas
socioeducativas aplicadas, por mais educação, proteção, orientação que se dê aos
adolescentes que cometem atos infracionais, esses agentes lidam com adolescentes
que já optaram pelo crime, motivo pelo qual chegam a ser internados e a cumprir
medidas socioeducativas" (eDOC 19) demonstra clara crença na falência do
projeto constitucional de ressocialização dos adolescentes infratores,
implicando a necessidade de que esta Corte não se quede silente diante da necessária
tarefa de reafirmar a diferenciação entre as medidas socioeducativas e aquelas
propriamente penais.
De todo modo, conclui-se que as medidas de prevenção e repressão contra o crime
na específica hipótese de porte não autorizado de arma de fogo atenderão, a partir da
legislação nacional, a critérios uniformes em todo país, afastadas quaisquer
discriminações odiosas entre os cidadãos.
(...)
Ou seja, conforme já decidido por esta Corte a regulamentação referente ao
registro e ao porte de arma de fogo, bem como a previsão de exceções legais
para a tipicidade penal são ambas competência privativa da União.
(...)
Para além da vigência não coincidente entre a norma estadual impugnada e a lei nº
12.993/2014, bem como de se pretender a extensão de exceção legal por analogia -
prática hermenêutica de duvidosa regularidade -, vê-se que a lei impugnada teve
como objetivo “aproximar” as feições de categorias funcionais (agente e guarda
prisionais e agente de segurança socioeducativo), versando, assim, sobre matéria
cujas exceções só podem ser previstas em lei de competência privativa da União.
Em síntese, Ministro Presidente: a) entendo que o inciso V e o caput do art. 55, no
que estende o porte a inativos, da Lei Complementar nº 472/2009 do Estado de Santa
Catarina, não se mostram compatíveis com a Constituição; b) em uma dimensão
formal, a Constituição conferiu à União a competência para legislar sobre material
bélico (art. 22, XXI), bem como sobre direito penal (art. 22, I) e, de forma nítida,
este ente federativo editou lei exaustiva sobre o tema (Lei 10.826, de 2003); e c) em
uma dimensão material, permitir o porte de armas para os agentes de segurança
socioeducativo significaria reforçar a errônea ideia do caráter punitivo da medida
socioeducativa, e não o seu escopo educativo e de prevenção, como corolário do art.
227 da CRFB.

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Conclusão
Diante de todo o exposto, converto o julgamento da medida cautelar no mérito da
ação direta, para i) declarar a inconstitucionalidade do inciso V do art. 55 da Lei
Complementar nº 472/2009 do Estado de Santa Catarina, no que autoriza o porte de
arma para agente de segurança socioeducativo; e ii) declarar parcialmente a nulidade
sem redução de texto da expressão “inativos” constante do caput do mesmo art. 55,
no que o estende aos servidores inativos da carreira de agente penitenciário daquele
Estado. Julgo, por consequência, procedente o pedido formulado na presente ação
direta. Determino, ainda, que sejam comunicados: i) o Departamento de Polícia
Federal para dar integral cumprimento à presente decisão, expedindo o necessário
para a adequada ciência dos afetados; ii) o Estado de Santa Catarina para cientificar
da presente decisão todos os ocupantes do cargo de agente de segurança
socioeducativo na ativa e aposentados, assim como todos os agentes penitenciários
inativos. É como voto”

Veja-se que não se pretende que essa Corte utilize como parâmetro para o
controle de constitucionalidade da Lei inquinada as disposições da Constituição Federal,
o que seria vedado nesta sede, e aliás, a nosso juízo equivocadamente reconhecido no
acórdão que restou anulado (index 000310).

As normas da Constituição Estadual, por fazerem referência à Constituição


Federal, devem com ela ser interpretadas em conjunto, afinal há expressa referência das
normas federais na regional. Esse é o único motivo pelo qual faz-se menção ao art. 22 da
CF/88, sem o que não terá qualquer sentido e possibilidade de interpretação para os
artigos 72 e 74 da Constituição Estadual. Entretanto, daí não se pode interpretar que a
alegação é de violação da Carta Federal, do que decorreria a incompetência deste TJRJ.

Em hipóteses muito semelhantes, em que se discutia a invasão de


competência legislativa da União para dispor sobre direito do trabalho, este Órgão
Especial já decidiu que: “É de ser firmada a competência deste Sodalício Estadual, haja
vista que inexiste usurpação de competência da Excelsa Corte Suprema, tendo em conta
que o exame da competência legislativa deste Estado do Rio de Janeiro se dá à luz dos
artigos 72 a 74 da Constituição Estadual. Descortina-se, com isto, o exame do mérito,
no sentido de se observar se, ao promulgar a lei impugnada, estaria o legislador estadual
a desbordar das balizas estabelecidas pela Carta Estadual, nomeadamente por ter, em

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tese, legislado sobre direito do trabalho, no que respeita à definição de jornada laboral”
– processo 015375-75.2019.8.19.0000, relator: Des. Custodio Tostes.

Não há, portanto, qualquer razão para se afastar desse precedente, como
equivocadamente, data vênia, fez o julgamento anulado.

Ainda sobre a alegação de incompetência formal orgânica, não se venha


argumentar que o legislador estadual apenas teria legislado sobre prerrogativas inerentes
ao cargo.

Por prerrogativas do ocupante de cargo público deve-se entender como os


privilégios/direitos atribuidos a determinado servidor público, com vistas a permitir o
desempenho de suas funções. Por óbvio, ao pretexto de criar prerrogativas, o estado-
membro não pode invadir área de competência legislativa inerente a outro ente federativo.

Lado outro, as prerrogativas decorrem da posição especial que a


Administração Pública ocupa em relação aos particulares em geral. São concedidas para
permitir a tutela dos interesses da coletividade, derrogando o regime comum.

Nesse ponto, convém destacar que a atividade desempenhada pelos


agentes socioeducativos não é de segurança pública. O modelo federal instituído
reconhece um rol de órgãos encarregados de prestar segurança pública, como se observa
do art. 144 da CF/88. Isso porque, segundo a Constituição da República, a preservação
da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio competiria à: i) polícia
federal, ii) polícia rodoviária federal, iii) polícia ferroviária federal, iv) polícias civis, v)
polícias militares e corpos de bombeiros militares, vi) e as polícias penais federal,
estaduais e distrital.

Esse rol é taxativo, como já afirmou o Supremo Tribunal Federal, que julgou
inconstitucional em parte o artigo 183 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, no
ponto em que incluía a polícia penitenciária dentre os órgãos encarregados pela segurança
pública, além de também expurgar a expressão “que inclui a vigilância intramuros nos

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estabelecimentos penais”. Isso porque, à época, as polícias penais estaduais não


integravam o rol de órgãos do art. 144 da CF/88, alterado por força da emenda
constitucional 104 de 2019.

O acórdão está assim ementado:

“Incompatibilidade, com o disposto no art. 144 da Constituição Federal, da norma


do art. 180 da Carta Estadual do Rio de Janeiro, na parte em que inclui no conceito
de segurança pública a vigilância dos estabelecimentos penais e, entre os órgãos
encarregados dessa atividade, a ali denominada "Polícia Penitenciária". Ação direta
julgada procedente, por maioria de votos.
(ADI 236, Relator(a): Min. OCTAVIO GALLOTTI, Tribunal Pleno, julgado em
07/05/1992)”

Do voto condutor, extrai-se que: “tendo em conta que a norma da


Constituição Federal, objeto do confronto estabelecido pelo requerente (art. 144),
consiste em preceito explícita e diretamente dirigido aos Estados, porquanto contém na
enumeração do caput, a referência a dois órgãos de natureza inequívoca e
exclusivamente estaduais, tais sejam as polícias militares e os corpos de bombeiro (item
V). Isso sem, sem falar no plural “policiais civis” (item IV), a remeter às duas espécies
conhecidas, a federal e a estadual. Dessa direta e palmar aplicação da norma, à
organização dos Estados, decorre não poderem estes, em suas leis ou Constituição,
alterar ou acrescer o conteúdo substancial do dispositivo da Constituição da República”.

Desse modo, como o rol do art. 144 da CF/88 é taxativo, qualquer pretensão
de interpretação extensiva é inconstitucional, como aquela que pretende empregar o
SIND-DEGASE.

Aliás, essa interpretação também decorre da Lei Federal 13.675/2018, que


instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e criou a Política Nacional de
Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS).

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O referido sistema único é integrado pelos órgãos previstos no art. 144 da


CF/88, cujo rol é exaustivo como vimos acima, além de guardas municipais e integrantes
estratégicos e operacionais, todos listados no art. 9, § 1º e 2º. Dentre os referidos órgãos
não estão aqueles relacionados à gestão do sistema socioeducativo, tratando-se de
um silêncio eloquente.

Isso porque, inicialmente, havia a previsão, no inciso IX do art. 9, § 2º, de


integrarem o sistema único os “IX – órgãos do sistema socioeducativo”. Entretanto, a
disposição foi vetada pela Presidência da República, ao fundamento de que: “Os
dispositivos referem-se a matérias já tratadas na legislação de forma sistêmica, integradas
ao Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), vinculado ao Ministério
dos Direitos Humanos, constituído por políticas públicas diferenciadas com base na
natureza pedagógica e peculiar dos indivíduos aos quais se destinam e por leis específicas,
que atendem inclusive a princípios e normativas internacionais que abordam a temática.
Assim, não se justifica sua vinculação a outro sistema ora instituído pelo Projeto”.

Ora, os órgãos do sistema socioeducativo não estão referidos no art. 144, e


nem mesmo integram o sistema único de segurança pública. Afinal, a norma geral federal
expressamente os excluiu. Não é correta a interpretação de que agentes socioeducativos
são espécies do gênero de agentes de segurança pública, ou assemelhados aos guardas
prisionais, porque esses servidores estão no rol do art. 144 e mencionados na Lei 13.675..

Em verdade, essa afirmação confunde dois conceitos: i) segurança pública,


cuja finalidade é a preservação da “ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio”; e ii) segurança individual dos adolescentes em cumprimento de medida
socioeducativa, direito/dever do estado por força do art. 125 do Estatuto da Criança e do
Adolescente: “É dever do Estado zelar pela integridade física e mental dos internos,
cabendo-lhe adotar as medidas adequadas de contenção e segurança”.

Tal distinção não passou despercebida pelo Supremo Tribunal Federal, ao


examinar a constitucionalidade do art. 183 da CF/88, no julgamento da ADI 236, já
mencionada. Nos exatos dizeres do Ministro Relator: “a limitação da atividade à área

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interna (“vigilância intramuros”) dos estabelecimentos não condiz o caráter público da


defesa do Estado, a caracterizar a disposição que preenche o capítulo III do Título V da
Constituição Federal”.

E prossegue: “a prevalecer elastério pretendido pelo constituinte fluminense,


a vigilância dos recintos das repartições, dos museus ou coleções de arte, e até mesmo
de estabelecimentos de educação ou de saúde (escolas correcionais e estabelecimentos
psiquiátricos, por exemplo), poderia ser matéria de segurança, em linha de identidade
com o desempenho policial”.

Ou seja, em hipótese alguma se sustentam os argumentos daqueles que


defendem a constitucionalidade da medida.

A INCONSTITUCIONALIDADE POR VÍCIO DE INICIATIVA. LEI


RESULTADO DE PROJETO DE LEI INICIADO POR DEPUTADO ESTADUAL.
REGIME JURÍDICO DE SERVIDORES PÚBLICO. COMPETÊNCIA
EXCLUSIVA DO CHEFE DO EXECUTIVO PARA INICIAR O PROCESSO.

Some-se à incostitucionalidade orgânica a existência de flagrante vício de


iniciativa da Lei 8.400/2019, afinal é resultado de projeto de lei iniciado por parlamentar,
ao passo que a matéria é de iniciativa privativa do Governador, conforme art. 112, §1°,
II, b da CERJ.

Art. 112 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro
ou Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de
Justiça, ao Ministério Público e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta
Constituição.
§ 1º - São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que: I - fixem ou
alterem os efetivos da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; II -
disponham sobre: a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na
administração direta e autárquica do Poder Executivo ou aumento de sua
remuneração; b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de

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cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, reforma e transferência de militares


para a inativida

Com efeito, ao estabelecer as prerrogativas dos ocupantes do cargo de agente


de segurança socioeducativa, inegavelmente disciplinou sobre o regime jurídico do cargo.

A iniciativa legislativa, no ponto, é exclusiva do chefe do executivo. Nesse


sentido, Conselho Especial do TJDFT, considerou inconstitucional a Lei Distrital nº
4.963/2012, que disciplinava o porte de arma de fogo, mesmo fora do serviço, pelos
agentes de atividade penitenciária do DF.

De acordo com a decisão, a lei de iniciativa conjunta de vários deputados


distritais fere as competências legislativas privativas do Chefe do Poder Executivo e da
União. O aresto está assim ementado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DISTRITAL Nº


1.398/1997, ALTERADA PELA LEI Nº 2.176/1998. ALEGAÇÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE FRENTE À LEI ORGÂNICA DO DISTRITO
FEDERAL. PORTE DE ARMA. NOVA ATRIBUIÇÃO A SECRETARIA DE
GOVERNO. SERVIDORES DO DISTRITO FEDERAL. INICIATIVA
PRIVATIVA DO GOVERNADOR DO DISTRITO FEDERAL. COMPETÊNCIA
PRIVATIVA DA UNIÃO. DIREITO PENAL E BÉLICO. Reconhecido o vício
formal de iniciativa da lei proposta pela Câmara Legislativa Distrital, que confere
nova atribuição à Secretaria de Segurança Pública e dispõe sobre o direito ao porte
de arma de fogo de servidores do Distrito Federal, considerando que deveria ter sido
proposta privativamente pelo Governador do Distrito Federal (art. 71, § 1º, II e IV,
e art. 100, VI e X, LODF). Ademais, a referida legislação invade a competência
privativa da União para legislar sobre direito penal e bélico, a incluir o porte de arma,
prevista no artigo 22, inciso I, da Constituição Federal. Com isso fere o artigo 14 da
Lei Orgânica do Distrito Poder Judiciário da União Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e dos Territórios Declarada, com efeitos erga omnes, a inconstitucionalidade
da Lei Distrital nº 1.398, de 10/03/1997, com as alterações da Lei nº 2.176, de
29/12/1998, em face dos artigos 14, 53, caput, 71, § 1º, incisos II e IV, e 100, incisos
VI e X, todos da Lei Orgânica do Distrito Federal. Efeito temporal, por razões de

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segurança jurídica, a partir da data da publicação deste acórdão do Dje (Processo


2012002027331-0, julgado em 29.10.2012).

Nem mesmo a posterior sanção, ou expedição de decreto regulamentar


convalida o vício, como reiteradamente tem decidido o STF, ao afirmar a insubsistência
do verbete 05 de sua súmula de jurisprudência.

A INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL. DEVER ESTATAL DE


COLOCAR CRIANÇAS E ADOLESCENTES A SALVO DE TODA FORMA DE
VIOLÊNCIA, CRUELDADE E OPRESSÃO. IMPOSSIBILIDADE DE
CONCESSÃO DE PORTE DE ARMA A AGENTE SOCIOEDUCATIVO, AINDA
QUE FORA DO AMBIENTE DE TRABALHO.

As inconstitucionalidades não param em questões formais.

A atribuição do porte de arma a agentes socioeducativos do DEGASE, ainda


que exclusivamente fora do trabalho, viola o art. 45 da Carta Estadual, segundo a qual:

“Art. 45 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente, ao jovem e ao idoso, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão”

Isso porque a citada legislação prevê que o armamento deverá ser custodiado
em espaço próprio, dentro das unidades de internação, caso o agente opte por andar
armado, já que está vedada a utilização de armas no exercicio da função. Entretanto, tal
medida não protege adequadamente os adolescentes, colocando-os a salvo de
episódios de violência e crueldade.

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O que garante que, em situações de disturbios, essas armas não caiam em


mãos erradas? O que garante que as armas não serão utilizadas em serviço? A Legislação
não previu, por exemplo, a efetiva necessidade de os socioeducadores ingressarem nos
estabelecimentos após passarem por scaners...

Pensando nessa problemática a legislação nacional determina que o poder


público deve construir unidades de internação em espaços seguros e livres de violência
como determina o art. 125 do ECA.

Não por outra maneira, o CONANDA determinou que a segurança armada


desses espaços deve ser realizada por Policiais Militares, a se posicionarem externamente
aos equipamentos . Nada justifica, portanto, o porte de arma por agentes socioeducativos.

Ademais, a Resolução 119/2006 do CONANDA, que dispõe, dentre outros,


sobre a estrutura física das unidades de internação e semiliberdade, não prevê a
existência de espaços para guarda de armas.

Eventual construção dos mesmos resultará em violação da Lei Federal que


dispões sobre a proteção aos adolescentes, em especial ao art. 16, segundo o qual: “A
estrutura física da unidade deverá ser compatível com as normas de referência do Sinase”.

Isso sem falar do viés sociopedagógico das medidas socioeducativas, que não
se coadunam com a figura de socioeducadores armados, que farão incutir no imaginário
do adolescente a ideia de que é perigoso, frustrando, portanto, os objetivos da
socioeducação. É que, diferentemente dos agentes e guardas prisionais, o agente
socioeducativo exerce suas funções sob a égide da doutrina da proteção integral, a qual
garante especial proteção aos adolescentes e jovens que, por estarem em pleno processo
de formação de sua personalidade, gozam de especial proteção e direitos. Como muito
bem destaca o escólio de VÁLTER KENJI ISHIDA, tal doutrina baseia-se em dois

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pilares: o de reconhecimento do adolescente como pessoa em desenvolvimento e do


princípio do melhor interesse 3.
Nesse diapasão, a despeito de não se poder negar um certo caráter
sancionador, sobretudo diante do caráter aflito da medida privativa de liberdade, fato é
que as medidas socioeducativas caracterizam-se como essencialmente de nítida natureza
pedagógica, já que objetivam justamente educar o adolescente, revertendo a situação de
delinquência, de modo a prepará-lo e transformá-lo em individuo capaz de conviver em
sociedade.
A atividade fim do agente socioeducativo é, portanto, velar pela integridade
moral e psicofísica do adolescente e jovem privado de liberdade, cuidando de sua
segurança, alimentação, higiene pessoal, devendo conduzi-lo para audiências, hospitais
ou outras instituições; contribuindo para sua formação, educação, crescimento pessoal
para o retorno à sociedade, entre outros. Aqui reside a distinção entre as medidas
socioeducativas e aquelas de caráter propriamente penais!
Por essa razão é que o ambiente onde a medida socioeducativa é aplicada
necessita ser humano, isto é, capaz de transmitir valores ao adolescente que permitam
ajudá-lo no seu desenvolvimento e processo de integração social. Não seria, portanto,
cabível a violência, a ofensa à dignidade e muito menos recomendável que agentes
socioeducativos possuam o porte de armas, ainda que fique vedado a sua utilização
durante o exercício da função. É que, como muito bem salientado pelo voto do Ministro
Edson Fachin na ADIn 5.359 acima mencionada, o porte de arma pelos agentes
socioeducativa passaria a ideia “repressiva e ameaçadora” contrária à ideia de
acolhimento e proteção da criança e do adolescente.
Não podemos olvidar, ainda, que a tendência de ampliar o rol das pessoas
legitimadas ao exercício do porte de armas vai de encontro as estatísticas nacionais
e internacionais sobre o aumento das taxas de homicídios e acidentes com armas.
Um estudo revelado pela Revista Veja, da Sociedade de Pediatria, revela que a cada hora,
uma criança ou adolescente morre em decorrência de disparos acidentais ou intencionais

3ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina e Jurisprudência, 20. ed. rev.
ampl. e atul. Salvador: JusPODIVM, 2019, p. 341.

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por arma de fogo no Brasil, revelando ainda que o número anual de mortos (9,5mil)
dobrou desde o levantamento feito em 19974.
Por fim, porém, não menos importante, faz-se mister destacar que o porte de
arma a agentes socioeducativos não resolve o problema das agressões e fugas no sistema
socioeducativo, ao contrário, apenas incrementa o risco e as consequências da violência
estrutural já institucionalizada nas unidades socioeducativas do estado do Rio de Janeiro.
Daí porque tal legislação viola o princípio da proporcionalidade, na sua vertente
adequação.

IV. PEDIDO

Diante do exposto, requer a V. Ex.ª:

(i) seja deferida a admissão da Defensoria Pública do Rio de Janeiro


como amicus curiae, determinando-se sua intimação para todos os
atos do processo e realização de sustentação oral;
(ii) seja julgado procedente o pedido para declarar inconstitucionais os
dispositivos impugnados.

Nesses termos, pede deferimento.


Rio de Janeiro, 26 de maio de 2020.

Rodrigo Azambuja Martins


Defensor Público

Beatriz Carvalho De Araujo Cunha


Defensora Pública

Angélica Rodrigues da Silveira


Defensora Pública

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Disponível em:<https://veja.abril.com.br/brasil/a-cada-hora-uma-crianca-ou-adolescente-morre-por-
arma-de-fogo-no-brasil/>. Último acesso em 25.05.2020.

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