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Discussão e análise do caso1

Identificação da cliente:
Elisa2, 27 anos de idade, enfermeira, com mestrado em sua área de atuação. Atuava profissionalmente
como servidora pública na sua área de formação. Morava sozinha na cidade onde trabalhava, e viajava
frequentemente para visitar os pais em sua cidade natal.
A cliente apresentava histórico de fobia social e depressão na adolescência, e episódio depressivo
importante durante o período da graduação e novamente durante o mestrado. Na época da adolescência e
durante o período da graduação, a cliente buscou acompanhamento psicológico e psiquiátrico.

Queixas apresentadas:
No início do processo da terapia, a cliente era aluna de um programa de pós-graduação e
apresentava grande sofrimento relacionado ao mestrado, com dificuldades em frequentar as aulas e na
elaboração de seu trabalho de pesquisa. A cliente relatava profundo sentimento de inadequação, excessiva
autoexigência e perfeccionismo, bem como comportamentos constantes de procrastinação em relação às
suas atividades acadêmicas. Inicialmente o processo de psicoterapia foi direcionado ao padrão de
comportamento que estava trazendo sofrimento e prejuízos acadêmicos à cliente.
Após a finalização do mestrado, a ansiedade e insegurança da cliente relacionadas à inserção no
mercado de trabalho tornou-se o foco principal do processo. Após o período de alguns meses, a cliente foi
aprovada em um concurso público de sua área, porém tratava-se de uma vaga em outra cidade. Nesta
nova condição, a principal demanda da cliente foi a ansiedade de desempenho no novo trabalho e toda a
adaptação necessária que envolvia mudar-se de cidade e passar a morar sozinha (antes residia com os
pais).
Somente após um período morando na nova cidade a cliente começou a trazer questões
relacionadas à solidão, e as suas dificuldades nas relações interpessoais começaram a se sobressair de
forma significativa. Este passa a ser um momento importante e marcante do processo psicoterápico, no
qual o foco principal passa a ser a dificuldade no estabelecimento de relações sociais e de intimidade
afetiva, além do medo excessivo de avaliação e rejeição por outras pessoas.

Dados relevantes da história de vida e relacionamento familiar:


- Infância: Um fato bastante relevante que marcou a infância de Elisa foi um acidente de carro,
que ocorreu quando ela tinha aproximadamente dois anos e meio de idade. Neste acidente, Elisa, a mãe e
o pai sobreviveram, no entanto, dois irmãos mais velhos e um primo de Elisa faleceram. As recordações
que Elisa tem de sua infância, e coisas que seus pais contaram para ela mais tarde, dão pistas de que seus
pais tiveram grande dificuldade em lidar com o luto e possivelmente apresentaram um quadro depressivo
após o acidente (por exemplo, Elisa lembra-se dos pais muito pouco responsivos às suas necessidades
emocionais e afetivas).
A relação entre Elisa e seus pais, desde sua infância, parece ter sido muito influenciada por esta
situação traumática para a família. Elisa relata uma infância marcada por constantes e intensos conflitos
entre os seus pais. O pai foi descrito como alguém muito controlador, superprotetor, bastante exigente e
também afetivo (a cliente falava de um “amor exigente” para se referir ao comportamento do pai). E a
mãe foi descrita como pouco afetiva e “enigmática”, e como alguém que se opunha à rigidez e controle
excessivo do marido (o que intensificava os conflitos conjugais).
A cliente tem um irmão mais novo, que nasceu quando Elisa tinha sete anos de idade. Este irmão
apresentava diversos problemas de comportamento (foi um bebê que chorava excessivamente e depois de

1 As autoras agradecem à cliente que, com generosidade e coragem, autorizou a publicação deste conteúdo.
2 Dados pessoais e alguns detalhes do histórico de vida da cliente foram modificados para impedir sua identificação.
maior foi descrito pela cliente como sendo uma criança muito difícil de lidar). Os comportamentos
“difíceis” do irmão demandavam muita atenção por parte dos pais, fazendo Elisa se sentir deixada de
lado. Esta dinâmica familiar despertava bastante ciúmes e ressentimento na cliente, que por muitas vezes,
se isolava em silêncio no seu quarto.
Quanto aos contatos sociais, a sua família não tinha parentes morando na mesma cidade e tinham
círculo social bastante restrito. Elisa relatou ter tido poucas amigas, que eram suas vizinhas, com quem
mantinha contato mais próximo e uma boa relação de amizade.
- Adolescência: Neste período Elisa passou por situações significativas de bullying. Uma vizinha,
que também era sua colega de turma na escola, passou a lhe fazer ameaças. Isso contribuiu para
sentimentos de inadequação e comportamentos de isolamento por parte de Elisa. Quando passou para o
ensino médio, mudou de escola, e suas dificuldades sociais se intensificaram. Outras situações de
bullying, relacionadas à sua aparência física, ocorreram com ela na nova escola. O desconforto social foi
crescente até chegar ao cursinho pré-vestibular quando já não conseguia mais frequentar as aulas. Passou
alguns meses sem conseguir sair de casa, seu rendimento acadêmico diminuiu e não foi aprovada no
vestibular. Neste período buscou acompanhamento psicológico e psiquiátrico, e teve o diagnóstico de
fobia social. No ano seguinte, com tratamento, conseguiu retomar os estudos, e foi aprovada no
vestibular. Ainda sobre o período da adolescência, a cliente relata sentir que seus pais não ficavam
sensíveis ao seu sofrimento.
Outro fato relevante ocorreu quando Elisa tinha 13 anos. Seus pais deixaram seu irmão, sob seus
cuidados, brincando em uma praça. Elisa, que ficava ressentida em ter que cuidar do irmão, se distraiu e
seu irmão foi sequestrado. A polícia foi acionada e o menino foi encontrado somente no dia seguinte.
Elisa apenas lembra de “não sentir nada” enquanto a família se desesperava, e ainda, recorda-se de a mãe
reclamar com ela por não estar demonstrando preocupação com o irmão.
Tanto as situações de bullying quanto a situação do sequestro do irmão fizeram Elisa acreditar que
havia algo de muito errado com ela, relatava profundo sentimento de inadequação. Elisa relatou em
alguns atendimentos sentir-se uma pessoa “má”, “fria”, “horrível”, “incapaz”, além de seu intenso
sofrimento com seu corpo e aparência física.
- Na graduação: Elisa refere-se aos primeiros anos do curso como um período especial.
Conseguiu estabelecer novas amizades e mantinha atividades sociais satisfatórias com estas amigas
(como ir a shows, barzinhos, parques, cinema, boliche, frequentar a casa uma da outra). Entretanto, ao
longo do curso, houve alguns desentendimentos entre o grupo de amigas, e Elisa acabou ficando mais
próxima apenas de uma destas amigas.
Quanto ao desempenho acadêmico, apresentou logo no início do curso intenso sofrimento com
situações de avaliação acadêmica, especialmente aquelas que envolviam ter que falar em público. Então
Elisa fez um curso de oratória, o que a ajudou a enfrentar tais situações acadêmicas, mas ainda com
intensa ansiedade. No entanto, após o terceiro ano, as exigências do curso foram aumentando e o contato
com os estágios acentuou novamente o sentimento de inadequação e insegurança de Elisa, que se sentia
incapaz de atuar em sua área. Neste contexto, os padrões de perfeccionismo e procrastinação com
atividades acadêmicas se intensificaram bastante. Ao longo do curso, Elisa apresentou um quadro
depressivo importante, com ideação suicida, e estava tendo acompanhamento psicológico e psiquiátrico.
É importante ressaltar que a aprovação no vestibular e a formatura do curso de graduação foram
alguns dos raros momentos em que a cliente relatou ter sentimentos de satisfação consigo própria.
Identificação de comportamentos-alvo
Conforme descrito anteriormente, a cliente iniciou o processo com dificuldades acadêmicas
importantes, que estavam trazendo prejuízos para o andamento de seu trabalho de pesquisa.
Posteriormente, ela indicou grande sofrimento com a inserção no mercado de trabalho. E, após a mudança
para outra cidade, começou a apresentar o sofrimento relacionado à solidão e dificuldades em estabelecer
relações de intimidade. Podemos identificar elementos comuns nestas dificuldades apresentadas pela
cliente (relacionadas ao desempenho acadêmico, profissional e social): profundo sentimento de
inadequação e “sensação de nunca ser suficiente”, alto nível de ansiedade, pensamentos e ruminação
frequentes de autodepreciação e comportamentos constantes de fuga/esquiva de situações que envolviam
desempenho acadêmico, profissional e social.
Alguns exemplos de topografias de respostas de fuga/esquiva no contexto acadêmico e
profissional: procrastinar atividades acadêmicas, conferir e aprimorar excessivamente seus trabalhos
diminuindo as chances de conterem erros/falhas, falta às aulas, atraso na entrega de trabalhos e estudar
para concurso público (como evitação de situações relacionadas à busca de trabalho/emprego). E
exemplos de topografias de respostas de fuga/esquiva em contextos sociais: dirigir-se a direções
contrárias de onde estavam as pessoas, escolher locais com poucas pessoas ou com pessoas
desconhecidas, retirar-se discretamente de situações de conversas informais entre colegas, dar desculpas
para não almoçar, tomar café ou pegar carona com seus colegas, usar roupas discretas e que escondiam o
corpo, isolar-se em sala de aula ou no trabalho.
Todas estas dificuldades compõem um padrão que podemos chamar de “perfeccionista”, que tem
como função primordial evitar a possibilidade de crítica e desaprovação (sobre seu desempenho ou sobre
suas características pessoais), que são entendidos por Elisa como sinais de rejeição do outro. Alguns
dados de sua história de vida ajudam a compreender como este padrão foi fortalecido, como por exemplo,
o “amor exigente” do pai (para se sentir amada era necessário apresentar alto desempenho) e também as
situações de bullying, extremamente aversivas para a cliente, nas quais houve sinais claros de rejeição por
parte de alguns colegas.

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