Você está na página 1de 50

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................ 2

2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS (DUDH) .......... 3

2.1 Origem da Declaração Universal dos Direitos Humanos...................... 3

2.2 Importante instrumento na defesa dos direitos humanos ..................... 4

2.3 Dispositivos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). 5

2.3.1 Preâmbulo ...................................................................................... 6

3 MOVIMENTOS SOCIAIS E DIREITOS HUMANOS ................................. 12

3.1 Estado ................................................................................................ 12

3.2 Sociedade .......................................................................................... 13

3.3 Direitos humanos ............................................................................... 15

3.4 História e evolução dos direitos humanos no Brasil ........................... 18

3.5 Movimentos sociais em defesa dos direitos humanos........................ 22

4 CRIME ...................................................................................................... 23

4.1 Tipos de crime .................................................................................... 24

4.1.1 Crime profissional ......................................................................... 24

4.1.2 Crime organizado ......................................................................... 25

4.1.3 Crimes do colarinho branco e baseados na tecnologia ................ 26

4.1.4 Crimes sem vítimas ...................................................................... 28

5 PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO ........................................................ 30

5.1 Criminalizações primária, secundária e terciária ................................ 30

5.2 A formação do senso comum ............................................................. 35

5.3 Princípios da ideologia penal dominante ............................................ 41

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 46

1
1 INTRODUÇÃO

Prezado aluno,

O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante


ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um
aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma
pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é
que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a
resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas
poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em
tempo hábil.
Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa
disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das
avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que
lhe convier para isso.
A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser
seguida e prazos definidos para as atividades.

Bons estudos!

2
2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS (DUDH)

2.1 Origem da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Os direitos humanos, não raras vezes, desafiam estudiosos de diversos


âmbitos do conhecimento — como a Filosofia, a Sociologia, a História, o Direito, dentre
muitos outros — a investigarem os precedentes históricos e a desvendarem os seus
conceitos iniciais, tudo isso com a finalidade de entender o processo de surgimento,
proteção, abrangência e universalização desses tão importantes direitos, cujo marco,
no plano internacional, deu-se com a positivação da DUDH – Declaração Universal
dos Direitos Humanos (FRANKLIN SEIXAS, 2021).
Assim, de uma forma geral, o estudo acerca dos direitos humanos apresenta
importantes características, como historicidade, universalidade, essencialidade,
irrenunciabilidade, imprescritibilidade, inviolabilidade e efetividade. Isso porque os
direitos humanos são fruto de um desenvolvimento social e jurídico, visto que tal
proteção surgiu de forma progressiva, à medida que se desenvolvia o conceito e o
reconhecimento de que todas as pessoas humanas são iguais e merecem, dessa
forma, isonomia de direitos e proteção mínima efetiva (FRANKLIN SEIXAS, 2021).
Esse reconhecimento, apesar de parecer óbvio na contemporaneidade, não
aconteceu de forma igualitária nem simultaneamente ao redor do planeta. Na verdade,
esse reconhecimento e essa proteção são fruto de conquistas históricas, construídas
gradualmente, devido à luta de movimentos sociais em prol da dignidade da pessoa
humana (FRANKLIN SEIXAS, 2021).
Dessa forma, é necessário entender o momento histórico no qual foi cunhado
um dos mais importantes documentos de proteção à humanidade, a DUDH -
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que inaugurou uma nova era de direitos
e proteção (FRANKLIN SEIXAS, 2021).
Após a Segunda Guerra Mundial, principalmente devido às atrocidades contra
seres humanos nela cometidas, surgiu a necessidade de uma nova declaração de
direitos de cunho inclusive internacional, como explica Dallari (1993).

3
O processo teve início em 1945, por meio da Carta das Nações Unidas (1930),
com uma norma internacional “[...] destinada a fornecer a base jurídica para a
permanente ação conjunta dos Estados em defesa da paz mundial” (DALLARI, 1993,
p. 178), que serviu de pano de fundo para, em 1948, ser aprovada a DUDH -
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Segundo Silva (2000), os princípios da universalidade e da indivisibilidade dos
direitos individuais são os ideais da DUDH - Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que acabou por divulgá-los em todo o mundo e por ressaltar a condição de
pessoa como requisito para a dignidade de todos. Portanto, com a DUDH, surgiu um
novo conceito de proteção dos direitos humanos e iniciou-se, por consequência, o
desenvolvimento da positivação internacional das normas relativas à proteção desses
direitos mediante inúmeros tratados internacionais. Assim surgiu o chamado sistema
normativo positivo global de proteção dos direitos humanos, composto por
instrumentos de abrangência internacional específicos e gerais.

2.2 Importante instrumento na defesa dos direitos humanos

A DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948 pela


Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, destaca-se como um importante
instrumento de defesa dos direitos humanos no plano internacional, colocando esses
direitos sob outro paradigma: o da necessidade do reconhecimento dos direitos
fundamentais e da dignidade humana como fundamentos da liberdade, da justiça e
da paz mundial, fazendo prevalecer a liberdade individual, a igualdade entre os seres
humanos e o ideal democrático como formas de atingir o progresso econômico, social
e cultural, conforme expõe Silva (2000).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos inaugurou a forma como hoje
entendemos os direitos humanos, uma vez que primou pelos princípios da
universalidade e da indivisibilidade desses direitos e acabou por difundi-los pelo
mundo inteiro. Assim, abriu caminhos para todo um sistema normativo positivo
internacional de proteção e colocou o Direito Internacional em um novo patamar, o do

4
Direito Internacional da Cooperação e da Solidariedade, no lugar do Direito da Paz e
da Guerra. Zarca (1997, p. 9) explica que a DUDH:

[...] traz um aspecto fundamental para a compreensão da modernidade. Um


dos traços essenciais dessa modernidade não reside exatamente na
definição do homem como sujeito de direitos? Sujeito ao qual se ligam,
simplesmente porque é um ser humano, ou seja, naturalmente, direitos. Ora,
essa definição do homem como um ser portador de direitos não é atemporal,
já que foi inventada pela filosofia moral e política moderna, constituindo uma
de suas principais inovações. Poderíamos dar várias formulações sobre a
importância dessa inovação. Mas, eu ficarei com apenas uma: a
transformação da noção renascentista de dignidade do homem na noção de
homem como ser portador de direitos no século XVII. Transformação significa
conservação e mudança. O que se conserva é a ideia de uma especificidade
que caracteriza o homem enquanto tal e o distingue de todos os outros seres
naturais. O que muda profundamente é que a dignitas hominis se refere
menos ao lugar do homem na hierarquia dos seres, já que o homem tem sua
própria liberdade de se constituir naquilo que ele é, e muito mais à noção do
homem como ser portador de direito que define muito mais um dado do que
uma responsabilidade sobre aquilo que ele será.

Dessa forma, baseado em valores essenciais, pode-se dizer que o principal


objetivo da DUDH é que os seres humanos, universalmente, ou seja, onde quer que
se encontrem, consigam ter, no mínimo, uma vida com dignidade, independentemente
de nacionalidade, sexo, idade e cor. Daí a grande importância dessa Declaração no
plano internacional e como instrumento de proteção aos direitos humanos (FRANKLIN
SEIXAS, 2021).

2.3 Dispositivos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)

Como vimos, a DUDH foi aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela


Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris. A sua aprovação se deu por meio de
uma resolução, a Resolução ONU nº. 217-A, destacando-se como um importante
documento de defesa dos direitos humanos no plano internacional. Devido à grande
importância desse instrumento na proteção dos direitos humanos, torna-se necessário
analisar os seus dispositivos legais (FRANKLIN SEIXAS, 2021).

5
2.3.1 Preâmbulo

Preâmbulo é a introdução, a declaração inicial dos termos de um dispositivo


legal. É no preâmbulo que vêm expressos os princípios, valores e objetivos que
fundamentam o texto legal. O preâmbulo da DUDH se inicia trazendo a dignidade
como elemento inerente à pessoa humana e, junto com a isonomia, fundamenta o
ideário de liberdade, justiça e paz no mundo:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os


membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui
o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (ORGANIZAÇÃO
DA NAÇÕES UNIDAS, 2009, documento on-line).

Contudo, nos parágrafos seguintes, o preâmbulo expõe a necessidade de


consciência da humanidade e de se proteger os seres humanos das atrocidades
praticadas pelos próprios seres humanos, de maneira universal:

Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem


conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade e
que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar
e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta
inspiração do homem; Considerando que é essencial a proteção dos direitos
do homem através de um regime de direito, para que o homem não seja
compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão
(ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS, 2009, documento on-line).

O preâmbulo demonstra, na parte final, a necessidade de se universalizar de


maneira isonômica a proteção aos direitos humanos fundamentais, como forma de
promover o desenvolvimento das relações entre as nações, independentemente de
onde se encontre o indivíduo.

Considerando que é essencial encorajar o desenvolvimento de relações


amistosas entre as nações. Considerando que, na Carta, os povos das
Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do
homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos
dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso
social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais
ampla; considerando que os Estados-Membros se comprometeram a
promover, em cooperação com a Organização das Nações Unidas, o respeito
universal e efetivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais;
considerando que uma concepção comum destes direitos e liberdades é da
mais alta importância para dar plena satisfação a tal compromisso: A
Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos
Humanos como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações,
6
a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a
constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por
desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por
medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu
reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos tanto entre as
populações dos próprios Estados-Membros como entre as dos territórios
colocados sob a sua jurisdição (ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS,
2009, documento on-line).

Os arts. 1º e 2º da DUDH proclamam o direito à liberdade e à igualdade de


todos os seres humanos, consagrando assim os princípios da igualdade material e da
liberdade, sem qualquer discriminação:

Artigo 1º - Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e


direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns
aos outros com espírito de fraternidade.
Artigo 2º - Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades
proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente
de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra,
de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra
situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto
político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da
pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou
sujeito a alguma limitação de soberania (ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES
UNIDAS, 2009, documento on-line).

Os arts. 3º, 4º e 5º da DUDH consagram os direitos fundamentais à vida, à


segurança jurídica (diferente da segurança pública) e à liberdade, proibindo a
escravidão e a servidão, assim como o aliciamento das pessoas (é vedada a tortura e
o castigo cruel ou degradante):

Artigo 3º - Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança


pessoal.
Artigo 4º - Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a
escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos.
Artigo 5º - Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes (ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS,
2009, documento on-line).

Os arts. 6º e 7º da DUDH anunciam o princípio da isonomia formal que,


diferentemente da igualdade material, estabelece a necessidade de igualdade entre
as pessoas (igualdade perante a lei), bastando nascer humana para fazer jus ao
reconhecimento e tratamento como ser humano, proibindo inclusive o incitamento de
discriminação a qualquer ser humano, o que viola a DUDH:

7
Artigo 6º - Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento, em todos os
lugares, da sua personalidade jurídica.
Artigo 7º - Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito à igual
proteção da lei. Todos têm direito à proteção igual contra qualquer
discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento
a tal discriminação (ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS, 2009,
documento on-line).

Os arts. 8º, 9º, 10 e 11 trazem as garantias processuais e materiais das pessoas


humanas, tais como: os remédios constitucionais de garantia a direitos protegidos pela
DUDH; o devido processo legal; a vedação à prisão arbitrária, à detenção ou ao exílio
arbitrário; a isonomia processual; a imparcialidade do magistrado; a publicidade dos
atos processuais; a presunção de inocência; a legalidade e a irretroatividade da lei
penal, salvo em benefício do réu.

Artigo 8º - Toda a pessoa tem direito a recurso efetivo para as jurisdições


nacionais competentes contra os atos que violem os direitos fundamentais
reconhecidos pela Constituição ou pela Lei.
Artigo 9º - Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo 10º - Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa
seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e
imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de
qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.
Artigo 11º - Toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente
até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um
processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam
asseguradas.
Ninguém será condenado por ações ou omissões que, no momento da sua
prática, não constituíam ato delituoso à face do direito interno ou
internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a
que era aplicável no momento em que o ato delituoso foi cometido
(ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS, 2009, documento on-line).

O art. 12 proclama o direito à vida privada, à intimidade e à inviolabilidade de


correspondência e domiciliar:

Artigo 12º - Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na


sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua
honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem
direito à proteção da lei (ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS, 2009,
documento on-line).

O art. 13 proclama o direito à liberdade de ir e vir (liberdade de locomoção),


consagrando o direito de transitar pelo país e de sair e voltar quando quiser, in verbis:

8
Artigo 13º - Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a
sua residência no interior de um Estado. Toda a pessoa tem o direito de
abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar
ao seu país (ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS, 2009, documento on-
line).

O art. 14 consagra o direito ao asilo político, excepcionando os casos que não


comportam esse direito, quando o indivíduo é legitimamente perseguido por crimes
de direito comum ou quando se trata de atos contrários aos objetivos e princípios das
Nações Unidas:

Artigo 14º - Toda a pessoa sujeita à perseguição tem o direito de procurar e


de beneficiar de asilo em outros países. Este direito não pode, porém, ser
invocado no caso de processo realmente existente por crime de direito
comum ou por atividades contrárias aos fins e aos princípios das Nações
Unidas (ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS, 2009, documento on-line).

O art. 15 trata do direito à nacionalidade como um direito humano, que deve


ser assegurado a todas as pessoas:

Artigo 15º - Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade. Ninguém
pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de
mudar de nacionalidade (ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS, 2009,
documento on-line).

O art. 16 protege o direito à constituição de família, considerando esta como


um núcleo natural e fundamental da sociedade, ressaltando a igualdade entre os
cônjuges no casamento:

Artigo 16º - A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar
e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou
religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm
direitos iguais. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno
consentimento dos futuros esposos. A família é o elemento natural e
fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado
(ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS, 2009, documento on-line).

O art. 17 consagra um direito de primeira geração, que é o direito à propriedade


sem interferências do Estado:

Toda a pessoa, individual ou coletiva, tem direito à propriedade. Ninguém


pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade (ORGANIZAÇÃO DA
NAÇÕES UNIDAS, 2009, documento on-line).

9
Os arts. 18 e 19 explicitam o direito à liberdade de pensamento, opinião,
expressão, crença e consciência também como um direito humano e universal:

Artigo 18º - Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de


consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião
ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou
convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo
ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.
Artigo 19º - Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de
expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões
e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras,
informações e ideias por qualquer meio de expressão (ORGANIZAÇÃO DA
NAÇÕES UNIDAS, 2009, documento on-line).

O art. 20 traz a liberdade de reunião e de associação pacífica, não podendo


ninguém ser obrigado a fazer parte de uma associação:

Toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas.


Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação
(ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS, 2009, documento on-line).

Os arts. 21 e 22 consagram o direito à utilização dos serviços públicos e à


segurança social e o direito de se fazer representar diretamente ou indiretamente
pelos mesmos, assim como asseguram o direito ao voto e à participação política no
país (FRANKLIN SEIXAS, 2021).

Artigo 21º - Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direção dos
negócios públicos do seu país, quer diretamente, quer por intermédio de
representantes livremente escolhidos.
Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções
públicas do seu país.
A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e
deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar-se periodicamente
por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo
equivalente que salvaguarde a liberdade de voto.
Artigo 22º - Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à
segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos
econômicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e
à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos
de cada país (ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS, 2009, documento on-
line).

Os arts. 23º e 24º consagram os direitos trabalhistas, como o direito de ter um


trabalho em condições justas, de escolher o trabalho, de proteção contra o
desemprego involuntário, de igualdade de condições no trabalho, de remuneração

10
justa e satisfatória, de liberdade de associação em sindicatos, bem como o direito a
repouso e lazer, a uma jornada limitada e a férias periódicas e remuneradas.

Artigo 23º - Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho,
a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o
desemprego.
Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho
igual.
Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que
lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade
humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção
social.
Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se
filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses.
Artigo 24º - Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres,
especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e às férias
periódicas pagas (ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS, 2009, documento
on-line).

Os arts. 25º ao 29º prelecionam que são assegurados os direitos sociais; ou


seja, esses artigos estabelecem uma vida socialmente digna como um direito humano,
incluindo o direito à educação, inclusive gratuita, nos períodos elementares e
fundamentais, assim como a possibilidade de acesso a todos à instrução técnico-
profissionalizante e à instrução superior baseada no mérito. Asseguram também como
direitos humanos a cultura e o pleno desenvolvimento da personalidade, devendo os
direitos e as liberdades serem limitados apenas pela lei.

Artigo 25º - Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe
assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à
alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda
quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no
desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos
de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua
vontade.

A maternidade e a infância têm direito à ajuda e à assistência especial. Todas


as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma proteção social.

Artigo 26º - Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser
gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O
ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser
generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em
plena igualdade, em função do seu mérito.
A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao
reforço dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais e deve
favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e
11
todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das
atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.
Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação
a dar aos filhos.
Artigo 27º - Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida
cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico
e nos benefícios que deste resultam.
Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a
qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria.
Artigo 28º - Toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano
internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efetivos os direitos e
as liberdades enunciadas na presente Declaração.
Artigo 29º - O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual
não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade.
No exercício deste direito e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito
senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a
promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros
e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do
bem-estar numa sociedade democrática.
Em caso algum estes direitos e liberdades poderão ser exercidos
contrariamente e aos fins e aos princípios das Nações Unidas
(ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS, 2009, documento on-line).

O art. 30, último dispositivo da DUDH, assegura uma interpretação ampla das
proteções asseguradas nessa Declaração pelos Estados, proibindo de forma
expressa a utilização das garantias e liberdades como forma de destruição dos direitos
assegurados na própria Declaração:

Artigo 30º - Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser


interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou
indivíduo o direito de se entregar a alguma atividade ou de praticar algum ato
destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados
(ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS, 2009, documento on-line).

3 MOVIMENTOS SOCIAIS E DIREITOS HUMANOS

3.1 Estado

O Estado é uma organização social soberana que possui poder supremo sobre
os indivíduos em uma sociedade, tendo legitimidade para exercê-lo, inclusive com a
força física, se necessária for. Dessa forma, entende-se que somente as organizações
estatais são reconhecidas pelo povo para ditar regras que todos devem seguir e
possuem autoridade e poder para regular o funcionamento da sociedade em um

12
território. O exercício do poder ao qual se refere é a capacidade de o Estado influenciar
a ação e o comportamento das pessoas, de forma decisiva. Apesar das características
citadas, definir Estado não é fácil, uma vez que na ciência política sua definição ainda
é imprecisa, levando as pessoas a confundirem Estado com governo, país, regime
político ou sistema econômico (MARIA FONSECA AFFONSO, 2021)
O conceito de Estado é dinâmico, porém, pode-se dizer que desde sua origem
até os dias atuais certos aspectos prevalecem, como a existência do território e do
povo. Alguns autores afirmam que o conceito de Estado não é universal, servindo
apenas para indicar e descrever uma forma de ordenamento político. O que se pode
afirmar é que “o Estado não admite concorrência e exerce de forma monopolista o
poder político, que é o poder supremo nas sociedades contemporâneas” (COELHO,
2009, p. 16). Nesse contexto, Estado e poder são termos que não se dissociam. O
Estado tem três funções fundamentais, das quais decorrem todas as suas ações:
legislativa: elabora as leis e o ordenamento jurídico, necessários à vida em sociedade;
executiva: assegura que as leis sejam cumpridas; e judiciária: julga a adequação ou
não dos atos particulares sob as leis existentes (COELHO, 2009).

3.2 Sociedade

A sociedade pode ser caracterizada por um grupo de pessoas que


compartilham a mesma cultura e as tradições e se localizam no mesmo tempo e
espaço. Todo homem está concentrado na sociedade em que está inserido, sendo
influenciado por ela em sua formação como indivíduo. A sociedade humana surgiu
com a finalidade de atender as suas necessidades, pois desde os primórdios o ser
humano precisa de ajuda para sobreviver e tem a tendência e a necessidade de viver
em grupo para se desenvolver, o que faz a sociedade ser considerada uma rede de
relações entre indivíduos, grupos sociais e organizações. Essas relações são
chamadas de relações sociais, a base da existência da sociedade, a qual é construída
diariamente por meio da organização social e da participação individual, que definem,
de forma ativa, o seu modelo de referência para determinado grupo de pessoas
(MARIA FONSECA AFFONSO, 2021)

13
Por ter a capacidade de organização e cumprimento de normas, vive-se em
sociedade, na qual a relação estabelecida se constitui por constantes trocas, não
apenas sob a lógica do lucro, mas também sob a forma simbólica, por meio da criação
e manutenção de laços de solidariedade que dão significado à sociedade. Dessa
forma, o comportamento humano é permeado por grande complexidade, em que os
indivíduos são influenciados pelo meio em que vivem, formando-se e agindo conforme
sua formação, influenciando também a sociedade. O comportamento das pessoas
sofre influências culturais e históricas, e para que possam se desenvolver, elas têm
como referência o comportamento ditado pela sociedade (MARIA FONSECA
AFFONSO, 2021)
Quando se fala em sociedade, não se pode deixar de mencionar a sociedade
civil, que é a forma como ela se organiza politicamente para influenciar o Estado e
suas políticas públicas. Não é fácil conceituar sociedade civil, uma vez que ela possui
grande diversidade de significados e é produto de uma construção histórica, cultural,
geográfica, social e política, sofrendo variações à medida que mudam os autores, as
épocas, os contextos históricos e as perspectivas políticas que a influenciam e a
enriquecem (LAVALLE, 1999; SCHOLTE, 2002).
A sociedade civil é uma parte importante da história, uma vez que abrange uma
dimensão ampla da vida social. No Brasil, sua reorganização foi estimulada pela
rápida urbanização quando deslocou pessoas de baixa renda do campo para as
cidades urbanas, em locais onde os serviços públicos eram incipientes, o que as fez
se organizarem para lutar por eles (SANTOS, 1979; CALDEIRA, 2000); e pela
modernização econômica do país, que transformou as políticas de planejamento
urbano, saúde e educação em questões tecnocráticas, fazendo os atores de classe
média (economistas, médicos, advogados, professores universitários) reagirem a
esse projeto, organizando meios de ação coletiva e associação para disputar os
elementos tecnocráticos (BOSCHI, 1987; ESCOREL, 1999; AVRITZER, 2002).
A liberdade, a justiça e a proteção do ambiente, bem como a ideia da divisão
em classes sociais, grupos de interesse e indivíduos centrados na própria realização,
são alguns dos objetivos universais da sociedade civil, na qual todos os membros
correspondem ao seu capital, ao seu conhecimento e à sua capacidade de se

14
organizar e se comunicar. Nesse contexto, as pessoas se unem de modo voluntário
em torno de valores ou iniciativas com objetivos específicos, geralmente na forma de
organizações, associações, institutos, fundações etc. Pode-se entender a sociedade
civil como o local em que a sociedade e o Estado interagem socialmente por meio das
famílias, associações, movimentos sociais e meios de comunicação pública
(TESSMANN, 2007).
Na sociedade civil, os conflitos acontecem e precisam ser administrados pelo
Estado. Nesse contexto, ela atua como uma organização de interesses materiais e
ideais; já o Estado como a organização da autoridade, sendo que ambos são
indivisíveis e interdependentes. No entanto, o motor da história é a sociedade civil,
que firma seu papel em lutas sociais, criação de consenso e ampliação do Estado,
pois quanto maior for a organização popular em uma sociedade, maior é a chance de
o Estado se ampliar, no sentido de abarcar os interesses da coletividade. Dessa forma,
a relação entre eles pode garantir as condições necessárias para enfrentar, romper e
construir uma nova ordem social, que possibilite ao Estado acolher as demandas da
sociedade organizada (MARIA FONSECA AFFONSO, 2021)
Nesse contexto, a participação social é fundamental, uma vez que contribui
para a construção do consenso em relação ao interesse público, orientando o Estado
no atendimento às demandas da sociedade, sejam públicas ou privadas. O
atendimento a essas demandas configura-se como forma de legitimação do Estado,
porque quanto maior for a capacidade de resposta às demandas da população, mais
ele se tornará legítimo como agente de regulação social, apesar de sua essência
política (BEZERRA, 2016).

3.3 Direitos humanos

Pode-se entender os direitos humanos como aqueles inerentes ao ser humano,


como o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e expressão, ao trabalho e
à educação, entre outros, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia,
idioma, religião, opinião política ou qualquer outra condição, por exemplo, origem
social ou nacional, ou condição de nascimento ou riqueza. Todos possuem direitos,

15
sem discriminação. Eles são garantidos por lei e visam proteger os indivíduos e grupos
contra quaisquer ações que possam interferir no gozo das liberdades fundamentais e
na dignidade humana. São características importantes dos direitos humanos
(DIREITOS..., s.d.):

Os direitos humanos são fundados sobre o respeito pela dignidade e o valor


de cada pessoa; os direitos humanos são universais, o que quer dizer que
são aplicados de forma igual e sem discriminação a todas as pessoas; os
direitos humanos são inalienáveis, e ninguém pode ser privado de seus
direitos; eles podem ser limitados em situações específicas. [...]; os direitos
humanos são indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes, já que é
insuficiente respeitar alguns direitos humanos e outros não. Na prática, a
violação de um direito vai afetar o respeito por muitos outros; todos os direitos
humanos devem, portanto, ser vistos como de igual importância, sendo
igualmente essencial respeitar a dignidade e o valor de cada pessoa.

Um dos principais documentos da área é a Declaração Universal dos Direitos


Humanos (DUDH), que foi lançada em 1948 e prevê a proteção universal dos direitos
humanos, fundando os alicerces da nova convivência humana e buscando sepultar o
ódio e os horrores do nazismo, do holocausto e do grande morticínio, o qual tirou a
vida de 50 milhões de pessoas em seis anos de guerra. São diversos os pactos, os
tratados e as convenções internacionais que vieram depois dela, construindo a cada
dia um arcabouço mundial para a proteção dos direitos humanos. A declaração é um
marco na história, uma norma comum que deve ser obedecida por todos os povos e
nações; já serviu de inspiração para a constituição de muitos Estados e democracias
recentes; e é o documento mais traduzido no mundo, em mais de 500 idiomas
(DIREITOS..., s.d.; BRASIL, 2010).
A sociedade civil é um ator essencial para a efetivação dos direitos humanos,
por ser um processo que não se dá apenas pela integração desses direitos em
aparatos legais, no âmbito nacional ou internacional. É ela quem cria e recria as
condições necessárias para que esses direitos sejam validados e concretizados por
meio de ações que devem considerar alguns aspectos (VIEIRA; DUPREE, 2004).
• Promover uma gama de ações para todos os grupos sociais: isso significa que
os discursos dos direitos humanos devem ser objetivos e acessíveis a uma
diversidade de percepções e atrair grupos esquecidos e imperceptíveis como
proponentes das mudanças necessárias à justiça. Na sociedade civil nascem os

16
conflitos entre os pedidos por justiça, e discutir sobre os direitos humanos não cria
mecanismos para a resolução dessas questões. No entanto, enquanto se discute,
cria-se um espaço de interação e diálogo entre todos os envolvidos em determinado
problema, podendo, sim, se chegar à resolução de alguns deles.
• Tornar a injustiça pública: a sociedade civil contribui para a consolidação dos
direitos humanos quando leva a injustiça à esfera pública. Para que isso seja possível,
é preciso que a associação e o diálogo estejam abertos e com o mínimo de
intervenção. Dessa forma, os grupos que atuam em questões sobre os direitos
humanos tornam pública a injustiça ao defender mudanças ou exercer pressão para
que elas aconteçam. Essa pressão pode ocorrer por meio do fornecimento de
informações, educação para o público e outros grupos, propondo políticas públicas e
encaminhando ações legais.
• proteger o espaço privado: os grupos de direitos humanos protegem o espaço
no qual os indivíduos se expressam e se desenvolvem quando buscam as
condições necessárias para essa ação, reforçando os limites de atuação do
Estado e do mercado.
• intervir e interagir diretamente nos sistemas legais e políticos: hoje existem
muitas leis e políticas voltadas para os direitos humanos. No entanto, essas normas
apenas se efetivam de acordo com sua prática, refinamento e aprovação, sendo
validadas pela sociedade civil. Grupos de direitos humanos participam de forma ativa
nesse processo quando levam casos legais aos tribunais, fornecem informações e
dados essenciais para o refinamento das políticas públicas e propõem novos
mecanismos capazes de criar um sistema que apoie os direitos humanos. Essa deve
ser uma intervenção estratégica focada na mudança de paradigma e na pressão sobre
a política governamental, para que seja mais consistente com o seu discurso.
• promover a inovação social: a inovação social precisa ser factível, e o diálogo,
o feedback e os resultados devem estar abertos e serem justificáveis a diversas
perspectivas. A inovação social surge como uma resposta direta às injustiças
localizadas na sociedade civil. Os inovadores são os que possuem profunda
consciência, estão envolvidos com aqueles que são afetados pela injustiça e,
trabalhando com eles, experimentam e criam outras formas de encontrar soluções.

17
A sociedade civil é o principal ator para criar condições a fim de que os direitos
humanos sejam efetivados. Ela promove o discurso que legaliza as normas dos
direitos, voltados principalmente aos grupos esquecidos e imperceptíveis, e que pode
variar de acordo com as diferentes estratégias e meios, os quais permitem a
efetivação da lógica dos direitos humanos na sociedade. Porém, se ela é um agente
tão importante para a consolidação dos direitos humanos, por que isso não acontece?
Para Vieira e DuPree (2004), a sociedade não está protegida contra o Estado e o
mercado, nem possui poder sobre eles, pois é fragmentada, não possui recursos e
necessita de financiamentos. Desse modo, ao mesmo tempo em que flexibilidade,
diversidade e voluntariado são potencialidades da sociedade civil, são também sua
fraqueza, uma vez que ainda são um desafio para os movimentos de direitos humanos
(MARIA FONSECA AFFONSO, 2021)
A fragmentação, a neutralização do discurso e a dependência de recursos são
barreiras que dificultam o avanço dos aspectos citados anteriormente. No entanto,
estratégias como a melhoria da capacidade de comunicação e educação, o
investimento em modelos socialmente inovadores e a construção de redes de direitos
humanos que cessem a fragmentação e fortaleçam a utilização dos recursos podem
possibilitar um maior impacto e melhores resultados na efetivação dos direitos
humanos (VIEIRA; DUPREE, 2004).

3.4 História e evolução dos direitos humanos no Brasil

Por se tratar de um instrumento importante, de proteção a todas as pessoas do


mundo, os direitos humanos são assegurados por muitos tratados e documentos
jurídicos em diversos países, inclusive no Brasil. Há vários meios existentes no país
para assegurá-los a todos os cidadãos, porém, apesar disso, esse objetivo ainda não
foi atingido em sua totalidade. A sua proteção no Brasil está diretamente ligada à
história das Constituições brasileiras, marcada por avanços e retrocessos.
A Constituição Imperial de 1824, a primeira do Brasil, declarou os direitos
fundamentais em 35 incisos do art. 179. Apesar de aprovada, apresentou-se como
uma Constituição liberal, com direitos parecidos com os encontrados nos textos

18
constitucionais dos Estados Unidos e da França, defendendo a imunidade dos direitos
civis e políticos. No entanto, com a criação do poder moderador que dava ao
Imperador poderes constitucionais ilimitados, inclusive o de interferir no exercício dos
demais poderes, a efetivação desses direitos foi prejudicada (DIMOULIS; MARTINS,
2007).
A Constituição Republicana de 1891 manteve os direitos fundamentais
declarados na Constituição de 1824, e no rol de direitos e garantias fundamentais,
instituiu o habeas corpus, antes concedido somente em nível de legislação ordinária;
garantiu a liberdade de culto a todas as pessoas, motivada pela separação entre o
Estado e a Igreja; e ampliou a titularidade dos direitos fundamentais aos estrangeiros
que residiam no país, ao contrário da Constituição de 1824 que os estendia apenas a
cidadãos brasileiros (DIMOULIS; MARTINS, 2007).
A Constituição de 1934 manteve uma série de direitos fundamentais similares
aos especificados na de 1891, mas inovou estabelecendo normas de proteção ao
trabalhador, como a proibição da diferença de salário em virtude de sexo, idade,
nacionalidade ou estado civil; a proibição de trabalho para menores de 14 anos; o
repouso semanal remunerado; a jornada de trabalho limitada a 8 horas diárias; a
determinação de um salário mínimo; e a criação dos institutos do mandado de
segurança e da ação popular (DIMOULIS; MARTINS, 2007).
A Constituição de 1937 instituiu o Estado Novo, reduziu os direitos e as
garantias individuais, destituiu o mandado de segurança e da ação popular, instituídos
na Constituição de 1934, que foram novamente restaurados e ampliados na
Constituição de 1946, assim como os direitos sociais (BULOS, 2003). Em seguida,
com a ditadura militar, a Constituição de 1946 foi derrubada e a de 1967 apresentou
grandes retrocessos, como a supressão da liberdade de publicação, restringindo o
direito de reunião, estabelecendo foro militar para os civis, mantendo todas as
punições e arbitrariedades decretadas pelos Atos Institucionais (AI), entre outros.
Outras modificações foram a redução da idade mínima do trabalho para 12
anos, a restrição ao direito de greve, a eliminação da proibição de diferença de salário
por motivos de idade e nacionalidade, e a cessão de vantagens mínimas ao
trabalhador, como o salário-família. Em 1969, a Constituição de 1967 passa por

19
reformas significativas por meio de emendas aditivas e supressivas, ficando em vigor
até o final de 1968, quando o AI-5 foi decretado, repetindo todos os poderes descritos
no AI-2. Além disso, ampliou a margem de arbítrio, deu poder ao governo para
confiscar bens e suspendeu a garantia do habeas corpus para casos de crimes
políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia
popular. Dessa forma, o AI-5 não se associa à doutrina dos direitos humanos e muito
menos à Emenda de 1969, que incorporou em seu texto as medidas autoritárias dos
AI (DIMOULIS; MARTINS, 2007).
Por fim, a Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, é
promulgada, garantindo a proteção dos direitos humanos, sendo considerada uma das
Constituições mais avançadas do mundo nesse sentido. Ela faz referência aos direitos
fundamentais em várias partes de seu texto e garante aos cidadãos, por exemplo, os
direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais em seu art. 1 e o direito à vida,
à privacidade, à igualdade, à liberdade e a outros direitos fundamentais, individuais
ou coletivos em seu art. 5, entre outros.
Para garantir a cidadania e a dignidade humana, a Constituição de 1988
defende princípios como (MARCHINI NETO, 2012): igualdade de gêneros;
erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais; promoção
do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, gênero, idade ou cor; racismo
como crime imprescritível; direito à saúde, à previdência, à assistência social, à
educação, à cultura e ao desporto; reconhecimento de crianças e adolescentes como
pessoas em desenvolvimento; estabelecimento da política de proteção ao idoso, ao
portador de deficiência e aos diversos agrupamentos familiares; orientação de
preservação da cultura indígena.
Com os direitos humanos garantidos na Constituição de 1988, o Governo
Federal passou a ter compromisso com eles e, hoje, estes são geridos como uma
política pública, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNHD), instituído pelo
Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009, atualizado pelo Decreto nº 7.177, de
12 de maio de 2010.
No entanto, após décadas da promulgação da Constituição de 1988, ainda são
muitas as dificuldades existentes para tirar esses princípios do papel. Os direitos

20
humanos no Brasil são uma questão marcada por contradições, pois, apesar de
assegurar conquistas inéditas concedidas aos direitos sociais, sobretudo em relação
às questões sociais, apresenta grandes desigualdades sociais, nos âmbitos racial e
regional, e precariedade quanto à segurança individual, à integridade física e ao
acesso à justiça, que comprometem o usufruto desses direitos. Para Neves (1997),
ainda existe um hiato significativo no Brasil em relação ao mundo real e legal.
Apesar de o texto constitucional vigente estimular a cidadania ativa, o país está
perdendo o ponto de partida para superar a distância entre o mundo real e o formal.
Dessa forma, um país no qual a sociedade civil tenha real importância; e o Estado,
efetiva função garantidora e implementadora de direitos sociais, ainda é um desafio a
ser superado (MARIA FONSECA AFFONSO, 2021).
De acordo com o relatório estado dos direitos humanos no mundo (2017), o
Brasil ainda apresenta falhas em direitos humanos com a ocorrência de problemas
como (ANISTIA INTERNACIONAL BRASIL, 2017): alta taxa de homicídios,
principalmente entre jovens negros; abusos policiais e execuções extrajudiciais,
efetuados por policiais em operações formais ou paralelas; situação do sistema
prisional; vulnerabilidade dos defensores de direitos humanos, sobretudo em áreas
rurais; violência sofrida pela população indígena, principalmente em decorrência de
falhas nas políticas de demarcação de terras; várias formas de violência contra as
mulheres.
Há grande preocupação com a persistência desses problemas, e muitos
direitos humanos ainda são violados, mesmo com o avanço em questões como a
redução da pobreza. No entanto, apesar das falhas do governo na melhoria dessa
situação, a sociedade tem trabalhado para mudar esse cenário, por meio de
mobilização das periferias e favelas, principais vítimas das violações de direitos
humanos, e de diversas manifestações de pessoas saindo às ruas ou lançando
campanhas para reivindicar seus direitos (MARIA FONSECA AFFONSO, 2021).

21
3.5 Movimentos sociais em defesa dos direitos humanos

Na década de 1970, surgem os movimentos reivindicando a efetivação dos


direitos sociais de igualdade e liberdade quanto à ampliação da participação política
e à igualdade nas relações de raça, gênero, etnia e orientação sexual. Esses
movimentos eram chamados de novos movimentos sociais, que se opunham ao
clássico, marxista e estrutural e davam ênfase ao reconhecimento da diversidade
cultural (GOHN, 2007, p. 25). Para Melucci (2001, p. 95):

[...] os movimentos juvenis, feministas, ecológicos, étnico raciais, pacifistas


não têm somente colocado em cena atores conflituais, formas de ação e
problemas estranhos à tradição de lutas do capitalismo industrial; eles têm
colocado, também, no primeiro plano, a inadequação das formas tradicionais
de representação política para colher de maneira eficaz as questões
emergentes. A mobilização coletiva assume formas, e em particular formas
organizativas, que escapam às categorias da tradição política e que
sublinham a descontinuidade analítica dos fenômenos contemporâneos, no
que diz respeito aos movimentos do passado e, em particular, ao movimento
operário.

A bandeira de luta dos novos movimentos sociais é o respeito aos direitos


humanos, e as ações diretas são seu modo de atuar e contestar a política institucional
e os valores morais e culturais vigentes. Reconhecer a diversidade de interesses e
possibilitar as condições necessárias para a participação social dos sujeitos contribui
para que esses movimentos se mobilizem para mudar a centralidade sociopolítica,
passando de uma democracia política organizada a partir do Estado para uma
democracia participativa e organizada a partir do poder da sociedade civil (MARIA
FONSECA AFFONSO, 2021)
A meta dos novos movimentos sociais é reivindicar continuamente a ampliação
da agenda dos direitos de cidadania e a criação de mecanismos capazes de efetivar
a promoção e a garantia desses direitos, que vão desde a concepção da inclusão
social até a formação de sujeitos de direitos. Essas reivindicações possibilitaram a
concepção jurídica e a revisão da concepção desse sujeito, em que este passa a ser
visto em sua totalidade, especificidades e peculiaridades. Um exemplo disso é a
defesa jurídica dos direitos de mulheres, crianças, grupos raciais minoritários,
refugiados, etc., não há um tratamento generalizado ao indivíduo, e sim categorizado

22
de acordo com gênero, idade, etnia, raça, etc. (RAMÍREZ, 2003). Nesse contexto,
depois da publicação da Declaração Universal de 1948, aconteceram as convenções
sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, eliminação da
discriminação contra a mulher, direitos da criança, entre outros instrumentos
importantes para essa questão (PIOVESAN, 2009).
Em relação às políticas públicas, deve-se destacar o lançamento do PNDH I,
em 1996, que trouxe diretrizes para orientar a atuação do poder público no âmbito dos
direitos humanos, com o objetivo principal de garantir os direitos civis e políticos. O
PNDH foi relançado em 2002, como PNDH II, que aceita as demandas dos
movimentos sociais, contemplando os direitos econômicos, sociais e culturais. Em
2010, o PNDH é atualizado como PNDH III, sintetizando as principais reivindicações
apresentadas pelos movimentos sociais, unindo as resoluções aprovadas nas
conferências territoriais, estaduais e nacionais, realizadas pelo Governo Federal,
desde 2003, em conjunto aos governos municipais, estaduais, aos movimentos
sociais e à sociedade civil, nos 27 estados da Federação (PEREIRA, 2015).
A implementação de ações que visam promover o direito à igualdade, o
combate à discriminação e a promoção da equidade, encontram proteção em
propostas de ações do governo relacionadas à educação, à conscientização e à
mobilização, que estão presentes no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
(2004), no Programa Brasil sem Homofobia (2004), no Plano Nacional de Educação
em Direitos Humanos (2006) e no Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência (2011), gerados com os ativistas. Essas iniciativas são uma demonstração
do reconhecimento do Estado sobre as reivindicações dos movimentos sociais por
cidadania, que são transformadas em políticas públicas (PEREIRA, 2015).

4 CRIME

Um crime é uma transgressão do direto penal à qual algumas autoridades


governamentais aplicam penalidades formais. Representa o desvio das normas
sociais formais administradas pelo Estado. As leis dividem os crimes em diversas

23
categorias, dependendo da gravidade da ofensa, da idade dos criminosos, da punição
potencial e do tribunal que tem jurisdição sobre o caso.
Mais de 1,4 milhão de crimes violentos foram denunciados nos Estados Unidos
em 2000, inclusive mais de 15.500 homicídios. Os ingredientes-chave na incidência
dos crimes de rua parecem ter sido o uso de drogas e a presença difundida de armas
de fogo. Segundo o FBI, 19% de todos os ataques graves denunciados, 42% dos
roubos informados e 67% dos assassinatos em 2002 envolveram uma arma de fogo.
Mesmo com o recente declínio nos crimes mais graves nos Estados Unidos, os níveis
atuais excedem os da década de 1960 (Department of Justice, 2002c, p. 23, 35, 38).

4.1 Tipos de crime

Em vez de se basearem somente nas categorias legais, os sociólogos


classificam os crimes em termos de como são cometidos e como a sociedade vê as
ofensas. Iremos abordar quatro tipos de crime diferenciados pelos sociólogos: crime
profissional, crime organizado, crime do colarinho branco e crime sem vítimas.

4.1.1 Crime profissional

Apesar de o ditado “o crime não compensa” soar familiar, muitas pessoas


fazem uma carreira em atividades ilegais. Um criminoso profissional (ou que tem
carreira criminal) é uma pessoa que pratica crimes como sua ocupação diária,
desenvolvendo técnicas aperfeiçoadas e gozando de um determinado status entre
outros criminosos. Alguns criminosos profissionais se especializam em violações, em
arrombar cofres, roubar cargas, bater carteiras e furtar objetos em lojas. Essas
pessoas adquiriram habilidades que reduzem as chances de ser apanhadas,
condenadas e aprisionadas. Como resultado, elas podem ter longas carreiras na
“profissão” que escolheram (MARIA FONSECA AFFONSO, 2021)
Edwin Sutherland (1973) teve insights pioneiros sobre o comportamento de
criminosos profissionais e publicou um relatório com notas escrito por um ladrão
profissional. Diferentemente das pessoas que praticam crimes uma vez ou duas, o

24
negócio dos ladrões profissionais é roubar. Eles devotam todo o seu tempo de trabalho
para planejar e executar crimes, e às vezes viajam por todo o País para executar seus
“deveres profissionais”. Como outras pessoas em seu trabalho normal, os ladrões
profissionais consultam seus colegas a respeito de demanda de “trabalho”, tornando-
se parte de uma subcultura de indivíduos com o mesmo tipo de ocupação. Eles trocam
informações sobre lugares para arrombar, receptadores de mercadorias roubadas e
maneiras de garantir fiança se forem presos.

4.1.2 Crime organizado

Em 1978, um relatório do governo dedicou três páginas para definir a expressão


crime organizado. Podemos considerar crime organizado como o trabalho de um
grupo que regula as relações entre empreendimentos criminosos envolvidos em
atividades ilegais, inclusive prostituição, jogo e contrabando e venda de drogas ilícitas.
O crime organizado domina o mundo dos negócios ilegais da mesma forma que
grandes companhias dominam o mundo dos negócios convencionais. Nos territórios
alocados, estabelece preços de mercadorias e serviços, e age como um árbitro nas
disputas internas. Atividade secreta, de conspiração, ela geralmente escapa aos
agentes da lei. Toma posse de negócios legítimos, obtém influência nos sindicatos de
trabalhadores, corrompe funcionários públicos, intimida testemunhas em processos
criminais, e até “cobra taxas” dos comerciantes a troco de “proteção” (National
Advisory Commission on Criminal Justice, 1976).
O crime organizado funciona como um meio de mobilidade social para grupos
de pessoas que lutam para escapar da pobreza. O sociólogo Daniel Bell (1953) usava
a expressão sucessão étnica para descrever a passagem sequencial da liderança dos
norte-americanos irlandeses no início do século XX para os norte-americanos judeus
na década de 1920, e depois para os norte-americanos italianos no início da década
de 1930. Recentemente, a sucessão étnica se tornou mais complexa, refletindo a
diversidade dos últimos imigrantes nos Estados Unidos. Imigrantes colombianos,
mexicanos, russos, chineses, paquistaneses e nigerianos estão entre os que

25
começaram a desempenhar um papel importante nas atividades do crime organizado
(Chin, 1996; Kleinknecht, 1996).
Sempre houve um elemento global no crime organizado. Mas os policiais e
legisladores agora reconhecem a emergência de uma nova forma de crime organizado
que tira vantagem dos avanços da comunicação eletrônica. O crime organizado
transnacional inclui tráfico de drogas e armas, lavagem de dinheiro e tráfico de
imigrantes ilegais e mercadorias roubadas, como automóveis (Lumpe, 2003; Office of
Justice Programs, 1999).
No Brasil as duas maiores facções do crime organizado em São Paulo e no Rio
de Janeiro se autodenominam Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando
Vermelho (CV), respectivamente. Ordenam rebeliões em presídios, execução de
bandidos rivais e de policiais, fechamento do comércio e de escolas, incêndios em
ônibus, provocando pânico na população constantemente ameaçada pelo fogo
cruzado da verdadeira guerra entre traficantes e entre traficantes e autoridades
policiais. Seu poder de enfrentamento das autoridades ficou demonstrado nos
acontecimentos de maio de 2006, em São Paulo, quando foram executados mais de
40 policiais e registrados 293 atentados – (82) contra ônibus, (56) casas de policiais,
(17) bancos e caixas eletrônicos, (1) estação de metrô, a (CET, 1) Companhia de
Engenharia de Trânsito e (136) outros, além de 73 rebeliões em presídios paulistas,
com nove presos mortos, segundo o jornal O Estado de S. Paulo de 19 de maio de
2006, Caderno C, p. 9. A repressão ao crime organizado é a causa dessa reação das
facções criminosas.

4.1.3 Crimes do colarinho branco e baseados na tecnologia

Sonegação de imposto de renda, manipulação de estoques, fraude de


consumidores, suborno e exigência de propinas, desfalques e publicidade enganosa
– estes são exemplos de crimes do colarinho branco, atos ilegais cometidos na
execução de atividades comerciais, geralmente por pessoas ricas e “respeitáveis”.
Edwin Sutherland (1949, 1983) equipara esses crimes ao crime organizado porque
eles com frequência são perpetrados por meio de papéis ocupacionais.

26
Um novo tipo de crime do colarinho branco surgiu nas últimas décadas: crimes
de computador. O uso da alta tecnologia permite que os criminosos deem desfalques
ou cometam fraudes eletronicamente, em geral deixando poucas pistas, ou que
ganhem acesso aos estoques de uma companhia sem sair de casa. Segundo um
estudo de 2002 feito pelo FBI e pelo Computer Security Institute, 90% das companhias
que contam com sistemas de computador detectaram quebras de segurança nos
computadores no ano anterior, mas apenas 34% informaram os ataques às
autoridades. Recentemente, uma proporção crescente de tais ataques – 65% em 2003
– tem chegado de fora dos Estados Unidos (Cha, 2003; R. Power, 2002).
Sutherland (1940) cunhou a expressão crime do colarinho branco em 1939 para
se referir a atos executados por indivíduos, mas ela teve seu significado ampliado para
incluir crimes cometidos por negócios e corporações também. Crime corporativo, ou
qualquer ato praticado por uma corporação que seja punível pelo governo, toma
muitas formas e inclui indivíduos, organizações e instituições entre suas vítimas. As
corporações podem ter um comportamento adverso à concorrência, poluir o ambiente,
sonegar impostos, fraudar e manipular ações, fraudar a contabilidade, produzir
mercadorias não-seguras, subornar e corromper, e cometer infrações relacionadas à
saúde e à segurança (Hansen, 2002; Jost, 2002a).
Durante muitos anos, os malfeitores de corporações se livraram com penas
leves nos tribunais documentando sua longa história de contribuições caritativas e
concordando em ajudar os policiais a encontrar outros criminosos do colarinho branco.
Em 2003, nos Estados Unidos, dez companhias de investimentos e dois analistas de
mercado coletivamente pagaram um acordo de US$ 1,4 bilhão por darem informações
fraudulentas aos investidores. A magnitude da multa ganhou as manchetes em toda
a nação, mas o que significa isso comparado com os milhões de investidores que
foram atraídos a comprar bilhões de dólares em ações de companhias que o acusado
sabia que estavam em dificuldade ou à beira do colapso? O fato é que ninguém foi
preso como parte do acordo, e nenhuma companhia perdeu sua licença para fazer
negócios. Os promotores em outras investigações de escândalos corporativos dizem
que pedem sentenças de prisão para criminosos do colarinho branco, mas até hoje a
maioria dos réus foi apenas multada (Labaton, 2003; J. O’Donnell e Willig, 2003).

27
Bancos e empresas envolvidos nos escândalos de corrupção que abalaram o
Brasil em 2005/2006 continuam a desenvolver suas atividades e ninguém foi preso.
A condenação por crime corporativo em geral não fere a reputação e as
aspirações de carreira de uma pessoa, como uma condenação por crimes de rua.
Aparentemente, o rótulo de “criminosos do colarinho branco” não carrega o estigma
do rótulo “condenado por um crime violento”. Os teóricos do conflito não consideram
que tal diferença de tratamento seja uma surpresa. Dizem que o sistema penal não
leva a sério os crimes cometidos pelos ricos e focalizam apenas nos crimes cometidos
pelos pobres. Em geral, se um réu tem status e influência, seu crime é tratado como
menos sério do que os cometidos por outros, e a sanção é muito mais suave (MARIA
FONSECA AFFONSO, 2021).

4.1.4 Crimes sem vítimas

Os crimes do colarinho branco e de rua põem em risco o bem-estar pessoal e


econômico das pessoas contra a sua vontade (ou sem o seu conhecimento direto).
Ao contrário, os sociólogos usam a expressão crimes sem vítimas para descrever a
troca consciente, entre adultos, de mercadorias e serviços desejados, mas ilegais,
como a prostituição (Schur, 1965, 1985).
Alguns ativistas estão trabalhando para descriminalizar muitas dessas práticas
ilegais. Os que apoiam a descriminalização estão atrapalhados com a tentativa de
legislar um código moral para adultos. Na visão deles, a prostituição, o abuso de
drogas, o jogo e outros crimes sem vítimas são impossíveis de se evitar. O sistema
penal já sobrecarregado deveria, ao contrário, dedicar seus recursos para os “crimes
de rua” e outras ofensas com vítimas óbvias (MARIA FONSECA AFFONSO, 2021)
Apesar do amplo uso da expressão crimes sem vítimas, entretanto, muitas
pessoas rejeitam a noção de que não existe uma vítima a não ser o próprio indivíduo
que cometeu tais crimes. Beber em excesso, jogar compulsivamente e usar drogas
ilícitas contribuem para um enorme número de danos pessoais e à propriedade. Um
homem em estado de embriaguez pode bater em sua esposa ou filhos. Um jogador
compulsivo ou usuário de drogas pode furtar para satisfazer sua obsessão. E as

28
sociólogas feministas dizem que a prostituição, bem como os aspectos mais
perturbadores da pornografia, reforça o conceito errado de que as mulheres são
“brinquedos” e podem ser tratadas como objetos e não como pessoas. De acordo com
os críticos da descriminalização, a sociedade não pode dar sua aprovação tácita a
condutas que têm consequências tão danosas (Flavin, 1998; Jolin, 1994; National
Advisory Commission on Criminal Justice, 1976; Schur 1968, 1985).
A controvérsia sobre a descriminalização nos lembra importantes insights dos
teóricos do rótulo e do conflito apresentados anteriormente. Subjacentes a esse
debate há duas perguntas: quem tem o poder de definir o jogo, a prostituição e a
bebedeira em público como “crimes”? E quem tem o poder de rotular tais
comportamentos como “sem vítimas”? A resposta é: em geral os legisladores
estaduais e, em alguns casos, a polícia e os tribunais (MARIA FONSECA AFFONSO,
2021)
O direito penal não é simplesmente um padrão universal de comportamento
combinado por todos os membros da sociedade. Ao contrário, ela reflete uma luta
entre indivíduos e grupos concorrentes para ganhar o apoio governamental para os
seus valores morais e sociais. Por exemplo, organizações como Mães Contra Dirigir
Alcoolizado (Mothers Agains Drunk Driving – MADD) e Estudantes Contra Dirigir
Alcoolizado (Students Against Drunk Driving – SADD) conseguiram modificar, nos
últimos anos, as atitudes públicas em relação à bebida. Em vez de ser visto como um
crime sem vítima, a embriaguez está sendo associada cada vez mais a perigos
potenciais advindos do dirigir alcoolizado. Como resultado, os meios de comunicação
de massa estão dando mais atenção (e fazendo mais críticas) às pessoas que são
consideradas culpadas por dirigir depois de beber, e muitos estados já instituíram
multas pesadas e períodos de prisão para uma ampla variedade de ofensas
praticadas em estado de embriaguez.

29
5 PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO

5.1 Criminalizações primária, secundária e terciária

Para melhor compreender os tipos de criminalização, é imprescindível analisar


a sua diferença em relação à criminalidade. Estes, na verdade, são dois conceitos que
confundem os leigos e instigam os estudiosos, porque não apresentam o mesmo
significado, tornando essa disparidade a responsável pela identificação da
seletividade presente neste processo, que é demasiadamente questionada por todos
(AYRES,2017).
A criminalidade está relacionada à prática de atos tipificados em lei como
delituosos, atitudes que contrariam valores e regras sociais. Todavia, a criminalização
corresponde ao processo de assimilação do indivíduo como delinquente a partir do
momento em que pratica uma conduta desvirtuada. O sujeito passa a ser visto então
como o “mal” da sociedade, fazendo surgir a identificação (etiquetamento) daquela
pessoa como criminosa devendo, portanto, ser punida pelo sistema penal. Nos dizeres
de Zaffaroni et al (2015, p. 43):

Todas as sociedades contemporâneas que institucionalizam ou formalizam o


poder (estado) selecionam um reduzido número de pessoas que submetem
à sua coação com o fim de impor-lhes uma pena. Esta seleção penalizante
se chama criminalização e não se leva a cabo por acaso, mas como resultado
da gestão de um conjunto de agências que formam o sistema penal.

Ressalta-se que há uma abrangência maior da criminalidade em relação à


criminalização, observando-se que esta é marcada pela seleção (exercida não só pelo
sistema penal, mas também pela própria coletividade) dos delinquentes. Quando se
trata das agências do sistema penal, o intuito é de se referir aos seus elementos
formadores, os quais são responsáveis por administrar a criminalização. Neste
diapasão, faz-se mister destacar que nem toda conduta criminosa será criminalizada
posto que tal processo ocorre de forma seletiva (AYRES,2017).
Sendo assim, Araújo (2010, p. 115-116) afirma que este processo se concretiza
por meio do controle social (formal e informal) estabelecendo-o, juntamente com o
sistema penal, como “pilastras da criminalização”. O controle social formal “é o
30
exercido pelas agências de controle ligadas ao poder do Estado de punir, as quais,
em razão disso, operam a criminalização ou convergem na sua produção. Trata-se,
pois, do sistema penal”. Com relação ao controle social informal corresponde “à
fiscalização realizada pela sociedade civil” e, nos dizeres de Andrade (2003), este
controle também chamado de difuso é realizado ainda por instâncias como as famílias,
as escolas, a mídia e etc.
É válido ressalvar que a identificação do indivíduo como criminoso é tão
importante quanto o crime praticado por ele, isso significa que o fato de alguém
cometer um delito não o torna passível de punição até que a coletividade (as agências
e a própria sociedade) o perceba como criminoso. Neste sentido:

[...] o status social de delinquente pressupõe, necessariamente, o efeito das


atividades das instâncias oficiais de controle social da delinquência, enquanto
não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo
comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas
instâncias (BARATTA, 2002, p. 86).

Observada a diferença entre criminalização e criminalidade, passa-se a


analisar então os três tipos de criminalização exercidos, a primária, a secundária e a
terciária. A criminalização primária, como bem entende Zaffaroni et al (2015) é
desempenhada por meio do processo legislativo de criação e sanção da lei penal. É
neste momento que se tipificam as condutas, e aqui se entendem as ações e
omissões, que são consideradas crimes. Tais atitudes violam normas constitucionais,
valores éticos, morais e regras socialmente estabelecidas. O direito penal tutela
direitos essenciais e de interesse de todos tais como, o direito à vida, à integridade
física, à dignidade sexual, ao patrimônio e etc (AYRES,2017).
Este é o primeiro processo de criminalização a ocorrer, como o nome bem
sugere, e é fortemente influenciado pela situação política, econômica e social em que
se encontra o país. Um grande exemplo disso foi a instituição do feminicídio como
crime, entusiasmado pelo clamor das mulheres contra a violência doméstica. Isto
demonstra como as lutas sociais têm uma participação importante na constituição das
leis, demandando uma atuação mais seletiva do legislativo em saber quais as
exigências sociais são válidas e quais são desnecessárias.

31
Há, portanto, uma seletividade que se institui como forma de melhor organizar
a vontade social, mantendo a conformidade com aquilo que é juridicamente possível
de modo que se resguardem os direitos tutelados. Todavia, faz-se mister ressaltar
uma crítica com relação a este aspecto, posto que cabe ao legislativo e ao executivo
(como responsáveis pela sanção e pelo veto) apreciar as leis em trâmites, verificando
sua real aplicabilidade para que tenha, de fato, uma utilidade pública. Neste viés,
pede-se uma atuação mais eficaz desses órgãos no sentido de propor garantias
viáveis aos direitos protegidos (AYRES,2017).
Ademais, o que se recomenda neste ponto é uma atuação mais jurídica e
menos política como meio de se criar um sistema penal mais coerente, evitando assim
o chamado populismo punitivo tratado por Mauricio Martínez na obra “Depois do
grande encarceramento‟ de Abramovay e Malaguti (2010). Este é caracterizado pelo
oferecimento de penas altas como forma de se alcançar a ressocialização que se
acredita ser capaz de diminuir os altos índices de violência na sociedade, para deste
modo angariar votos políticos.
Posto isto, Araújo (2010) destaca que a elaboração de novas leis penais propõe
a instituição de novos crimes e, por conseguinte, cria um novo grupo de criminosos.
Ressalta ainda que nessa primeira etapa:

As normas criminalizadoras são estabelecidas em forma de regramentos


genéricos, programáticos, os quais, para sua aplicação, utilizam-se de um
instrumental jurídico definido, de regras de aplicação, que serão viabilizadas
pelas agências de criminalização secundária (2010, p. 120).

A criminalização secundária, de acordo com Zaffaroni et al (2015) corresponde


à ação punitiva do Estado aos crimes que são identificados. Neste processo o
indivíduo já sofreu a criminalização primária e então passará a ser apreciada sua
conduta pelas instituições do sistema penal. Desta forma, a análise pode começar
com o inquérito policial ou com o próprio juiz, culminando num julgamento que poderá
absolvê-lo, momento no qual estará esse indivíduo livre do sistema, ou condená-lo,
levando o delinquente ao cárcere. O objetivo maior aqui é aplicar a lei penal ao
acusado da prática do crime, e se for comprovado sua culpabilidade, aplicar-lhe a
devida punição.

32
Neste diapasão, Baratta (2002, p. 98) explica que a criminalização secundária
é exercida pelas agências do sistema penal tais como: “a polícia, a magistratura,
órgãos de controle da delinquência juvenil” que serão os responsáveis pela execução
da lei penal. Complementa tal entendimento, Zaffaroni et al (2015) ao analisar que a
atuação das agências policiais também está condicionada ao trabalho de outras
agências, como as políticas (que estão em busca de votos) e as de comunicação
social.
A polícia é, supostamente, a primeira instância a realizar a criminalização
secundária, posto que na maioria dos casos é quem identifica a prática dos delitos e
passa a investigá-los para encontrar seu autor. Atua, bem como as outras agências
do sistema penal, de forma a selecionar aqueles que serão punidos, visto que a
demanda é demasiadamente grande e não há como atender a todos com igualdade.
Observa-se que a seletividade exercida em ambos os processos de
criminalização recai sobre objetos diferentes. Na primária incide sobre os direitos que
serão tutelados e na secundária sobre os indivíduos, sendo, portanto, uma
seletividade mais objetiva. Deste modo, a seleção não atua apenas sobre os
criminosos, mas inclusive sobre os vitimizados (AYRES,2017).
A seletividade é, portanto, uma característica marcante do sistema penal
brasileiro e consiste na identificação do indivíduo como criminoso, ou seja, como o
responsável pela prática de delitos. Tal rotulação do sujeito delinquente, como bem
explica Penteado Filho (2012), foi bastante trabalhada na teoria do labelling approach
(etiquetamento), instituída nos Estados Unidos nos anos 1960. Essa teoria, entende
que a diferença entre o homem comum e o criminoso consiste na rotulação e
estigmatização sofrida por este último. Sendo assim, a estigmatização pode tanto
estereotipar o sujeito como delinquente quanto influenciá-lo a praticar novos crimes.
A rotulação mencionada confere ao sujeito uma característica de difícil retirada,
proporcionando-lhe uma nova identificação, que é negativa e lhe insere no ramo da
criminalidade. Isto porque, a partir deste ponto ele passa a ser visto apenas como
delinquente, e mesmo após cumprir sua pena será ele estigmatizado pela sociedade.
Desta forma, demonstra-se o quanto é forte o etiquetamento e o quanto ele pode
mudar a vida de alguém.

33
Neste diapasão tem-se o seguinte entendimento:

A criminalidade se revela, principalmente, como um status atribuído a


determinados indivíduos mediante um duplo processo: a „definição legal de
crime, que atribui à conduta o caráter criminal, e a “seleção‟ que etiqueta e
estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais
condutas. [...] por isso, mais apropriado que falar da criminalidade (e do
criminoso) é falar da criminalização (e do criminalizado), e esta é uma das
várias maneiras de construir a realidade social (ANDRADE, 2003, p. 41).

Para melhor compreender o referido procedimento, faz-se mister explicar que


o etiquetamento do indivíduo se desenvolve a partir de uma conduta desviante, que é
definida por Penteado Filho (2012) como um comportamento considerado perigoso e
constrangedor. Tal conduta gera uma reação social que é justamente a responsável
pela identificação daquela pessoa como criminosa.
Posto isto, analisa-se que os meio formais e informais de controle social
disseminam uma cultura do pânico na sociedade, propagando que para que haja mais
segurança é preciso marginalizar parte da população, estigmatizando essa parcela
como delinquentes. A partir do momento em que o sujeito é inserido no cárcere tem-
se início a chamada criminalização terciária que corresponde “às consequências
negativas do contato do sujeito com as agências criminalizantes, uma vez que se
enfatizam as mudanças que a experiência pode provocar nele, em sua auto
percepção, e em sua forma de encarar a sociedade”. (Araújo, 2010, p. 127)
Nesta senda, a estigmatização sofrida pelo sujeito pode suscitar
consequências devastadoras. Após passar pelo cárcere, a reinserção na sociedade é
bem delicada. Torna-se difícil encontrar um emprego, fazer novas amizades e interagir
com o meio. A referida situação vem, por conseguinte, a refletir na ordem financeira,
visto que com a falta de oportunidade de trabalho não é possível obter uma renda e,
vendo-se sem opção, o indivíduo volta a praticar crimes. É um ciclo vicioso que tira
todas as perspectivas de melhora do país.
Lemert (1967 apud BARATTA, 2002, p. 90) aduz que a criminalidade apresenta
dois grandes problemas, são eles o desvio primário (que corresponde à prática do
delito pela primeira vez) e as consequências desse comportamento para o indivíduo.
Na conduta primária observa-se que há a influência das questões sociais e culturais
na prática dos atos delinquentes e no desvio sucessivo, que ocorre depois da
34
aplicação da pena, nota-se também a presença de fatores psíquicos que contribuem
para o exercício de outros delitos. Desta forma, ainda com base no referido autor, a
reincidência na execução de crimes “torna-se um meio de defesa, de ataque ou de
adaptação em relação aos problemas manifestos e ocultos criados pela reação social
ao primeiro desvio”.
Não há como almejar que o indivíduo seja bem recebido em sociedade porque
é sabido que no cárcere ele não foi ressocializado, bem como é inevitável que ele
volte à criminalidade se não lhe é dada oportunidade de buscar condições dignas de
viver.
Diante do exposto, no que diz respeito ao estado de vulnerabilidade:

No entanto, ninguém é atingido pelo poder punitivo por causa desse estado,
mas sim pela situação de vulnerabilidade, que é a posição concreta de risco
criminalizante em que a pessoa se coloca. Em geral, já que a seleção
dominante corresponde a estereótipos, a pessoa que se enquadra em alguns
deles não precisa fazer esforço muito grande para colocar-se em posição de
risco criminalizante (e, ao contrário, deve esforçar-se muito para evitá-lo),
portanto se encontra em um estado de vulnerabilidade sempre significativo
(ZAFFARONI et al, 2015, p. 49).

Por fim, e para uma conclusão mais adequada com relação ao processo de
criminalização na sua mais ampla percepção, ressalta-se que sua importância
consiste na intenção de punir a prática dos delitos, para manter a ordem e defender
os direitos da coletividade. O ponto de reflexão a respeito desse cenário é entender
que a criminalidade e a criminalização são práticas sociais, e que, portanto, são
problemas da coletividade e não apenas do Estado. Ademais, tal problema social afeta
não só a segurança pública, mas também a situação econômica e financeira do país,
influenciando na ordem política e social (AYRES,2017).

5.2 A formação do senso comum

Dos complexos processos de interação social surgem comportamentos


caracterizados pela sociedade como adequados ou não, o que implica dizer que a
conduta desviante do sujeito pode provocar uma reação social vultosa capaz de
resultar na criminalização do referido ato. A conduta desviante corresponde àquela

35
que contraria princípios morais, regras sociais de convivência e normas jurídicas.
Quando tal comportamento promove indignação moral e revolta coletivos tem-se uma
reação social que, a depender da gravidade do ocorrido, pode influenciar
demasiadamente na punição do criminoso.
No entanto, a simples conduta desviante do indivíduo não suscita de imediato
uma reação social, é necessário que se interprete tal comportamento para concluir se,
de fato, trata-se de uma conduta repulsiva digna de punição. Ao analisar os
pressupostos da definição do senso comum Kitsuse (1962 apud BARATTA, 2002, p.
94) aduz que a criminalização é realizada por meio de um mecanismo onde,
primeiramente o comportamento é identificado como desviante, em seguida a
sociedade, interpretando o caso, define aquele indivíduo como parte da categoria
desviante, e por fim, põe em prática uma punição apropriada para essa pessoa.
Neste sentido McHugh (1970 apud BARATTA, 2002), para melhor esclarecer
esse processo, apresenta ainda os requisitos da reação social. Ele explica que é
necessário haver: primeiramente a violação da norma, depois a consciência da
conduta e, por fim, a vontade do indivíduo em praticar o delito. Desta forma, ressalta-
se que não é satisfatório a conduta ferir apenas a lei ou a moral, é necessário também
que a sociedade (imbuída do senso comum) a interprete como desviante para haver
sua criminalização (AYRES,2017).
Faz-se mister esclarecer que, nos dizeres de Motta Filho (1945), senso comum
corresponde a um conjunto de princípios e regras nas quais a sociedade assenta seus
motivos e fundamentos para aquilo que entende ser permitido ou não. Aduz ainda que
o senso comum influencia na sociabilidade e na individualidade, posto que quando há
opiniões iguais apela-se para o contrato e quando divergentes, recorre-se à lei.
Para melhor compreender e considerar o senso comum é imprescindível
lembrar-se da ideia do determinismo biológico proposto por Lombroso que, nos
dizeres de Andrade (2003) foi o responsável por elaborar a tese do criminoso nato.
Isso significa dizer que o criminoso é a causa do crime, ou ainda como aduz Baratta
(2002), que o crime é um evento natural causado por fatores biológicos (genéticos).
Sendo assim o indivíduo já nasce com uma predisposição de cometer delitos e
adquire essa característica de forma hereditária. Este entendimento foi posteriormente

36
superado, no entanto exerce influência demasiada no senso comum atual. Isto porque
é comum associar o criminoso a pessoas que se vestem ou se comportam de uma
determinada forma, ou que usem tatuagens, ou ainda que andem de roupas rasgadas.
É, então, criada a imagem do delinquente que já está pronto para cometer crimes.
Ao se verificar o comportamento delinquente observa-se que sua origem está
nas questões sociais, culturais e inclusive psicológicas do indivíduo, o qual ao ser
criminalizado apresenta uma tendência maior de praticar outros crimes, sendo este
processo denominado por Lemert (1967 apud BARATTA 2002) de condutas
desviantes sucessivas.
As consequências da criminalização, mesmo depois da aplicação da pena, se
perpetuam de forma que o indivíduo encontra muitos problemas para se inserir
novamente no meio social, não somente pelo preconceito de ser ex-detento, mas
também pelo estigma que advém da própria criminalização, limitando muito esse
retorno. Ocorre então o seu isolamento, que é uma das sequelas mais comuns da
pena (AYRES,2017).
Demonstra-se desta forma que a sociedade atua não só no processo de
criminalização da conduta primária como também influencia no exercício da conduta
desviante secundária. A teoria do labelling approach explica bem o etiquetamento
promovido pela reação social diante de uma conduta considerada desviante. Os mais
diversos setores da sociedade atuam nesse sentido, ainda que de forma inconsciente,
tais como as escolas, as igrejas, e as próprias famílias, são os chamados por Andrade
(2003) de mecanismos de controle social informal. Essa discriminação realizada por
eles contribui no modo como a sociedade tratará esses indivíduos e na forma como
eles se comportarão no futuro (AYRES,2017).
De acordo com Araújo (2010), o labelling approach surgiu no final do século
XIX e foi fortemente influenciado pelas correntes fenomenológicas, com o
interacionismo simbólico e a etnometodologia. A referida autora segue o entendimento
de que o interacionismo simbólico foi inspirado em George Herbert Mead (1953),
filósofo que colaborou para a criação de uma Psicologia Social responsável por melhor
captar a relação existente entre o indivíduo e a sociedade, explicando que o meio
social é constituído por meio das relações nele estabelecidas. Isso significa que este

37
ambiente é mutável de acordo com a realidade em que se encontra e que o sujeito é
moldado por este meio. Dessa forma são os próprios indivíduos que tipificam as
condutas praticadas.
Ademais, Mead (1953 apud ARAÚJO 2010) aduz que o meio social existe de
forma autônoma, mas que determinados caracteres seus se devem à sua relação com
os sujeitos. Posto isto, entende-se que o homem, por meio de suas experiências
adquiridas em sociedade, contribui para o estabelecimento de certos atributos do
ambiente com o qual interage. Ressalta-se, portanto, que é necessário haver um
diálogo entre os indivíduos e o meio para que seja possível o desenvolvimento de uma
relação social (AYRES,2017).
Todavia, a etnometodologia, nos dizeres de Schutz (1962 apud BARATTA,
2002) explana que a sociedade é uma construção social, ou seja, tudo que se
desenvolve na sociedade e que a forma, é obra dos indivíduos que a compõe. Sob
esse aspecto, analisa-se que o comportamento desviante é, portanto, uma criação do
meio social, corroborando a ideia que o labelling approach manifesta, a criminalidade
é algo extrínseco, é uma atribuição que se dá a alguém pela prática de uma conduta
interpretada como inadequada pela sociedade (AYRES,2017).
Posto isto, Araújo (2010) ressalta que pelo fato de a realidade social ser vista
como uma construção social não é possível caracterizá-la objetivamente, ou seja, para
tal finalidade é preciso ser feita uma análise levando-se em consideração o contexto
em que se encontra o meio.
Neste sentido:

Modelado pelo interacionismo simbólico e etnometodologia como esquema


explicativo da conduta humana (o construtivismo social), o labelling parte dos
conceitos de “conduta desviada” e “reação social”, como termos
reciprocamente interdependentes, para formular sua tese central: a de que o
desvio e a criminalidade não são uma qualidade intrínseca da conduta ou
uma entidade ontológica pré-constituída à reação social e penal, mas uma
qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos
processos de interação social, isto é, de processos formais e informais de
definição e seleção (ANDRADE, 2003, p. 40-41).

Salienta-se que, para se considerar um indivíduo como criminoso, não é


satisfatório somente a conduta ser tipificada como crime pela lei penal, é preciso ainda
que a sociedade, diante dos fatos, concorde e apoie essa ideia. É necessário ainda
38
haver uma interpretação nesse sentido, etiquetando o delinquente e criminalizando
sua conduta. A reação social é, como se pode depreender, um elemento de suma
importância para criminalização do sujeito, porque participa ativamente dessa
seletividade.
É perceptível, portanto, que há uma forte relação de influência e interação entre
a sociedade e o sistema penal. Em alguns casos a reação social é bastante intensa
gerando uma forte cobrança sobre suas agências para punição dos criminosos.
Nesses episódios a comoção coletiva é tamanha que implica ao poder público a
obrigação de “fazer justiça”, configurando o quão grande é o poder da sociedade.
Depois de compreendido como se forma o senso comum, faz-se mister
entender como ocorre sua divulgação na sociedade. Vários meios são utilizados para
essa propagação, tais como a TV, a internet, o rádio; a imprensa como um todo. A
prática de um crime no Brasil, em regra, é tratada com muito alvoroço e muito alarde
o que causa na sociedade uma sensação de revolta muito grande. Quanto mais se
fala do caso maior é o incentivo ao desejo de “fazer justiça”, o que aumenta a cobrança
social frente ao poder público. Ainda neste diapasão:

[...] a mídia televisiva, barbarizando a sua programação com a criminalidade


convertida em show [...] prodigaliza, a um só tempo, a cultura do „medo‟ do
crime e do sentido de insegurança e a indignação contra os criminosos,
contribuindo para fortalecer a ideologia penal e radicalizar a separação entre
o „bem‟ e o „mal‟ [...] (ANDRADE, 2003, p. 61).

Segundo Batista (2002) o discurso criminológico da mídia é divulgado não


apenas por meio das notícias ou dos editoriais, mas também por meio de pesquisas
acadêmicas que têm o objetivo de fundamentar aquilo que é noticiado. No entanto,
ele ressalta que os especialistas que realizam essas pesquisas são dotados de uma
mesma linha de raciocínio, ou seja, são pessoas que já possuem um ponto de vista
semelhante e que consequentemente chegam a uma mesma conclusão formando o
que ele chama de articulação retórico-demonstrativa.
O referido autor aduz ainda que para dar um respaldo científico àquilo que é
noticiado são reunidos esses especialistas como forma de demonstrar a veracidade
de ideias genéricas que são constantemente propagadas pela mídia, na tentativa de
conferir uma maior respeitabilidade àquilo que é noticiado à sociedade. Todavia,
39
adverte que essas pesquisas não conseguiriam demonstrar veracidade alguma, pois
não seria possível fazer uma constatação empírica dos juízos formulados.

A mídia construindo, seletiva e sensacionalistamente a notícia sobre a


criminalidade, cumpre um papel fundamental na construção social do perigo
e do medo. Centrando a atenção na “violência” da rua e do campo, que ela e
a polícia podem acessar, divulgando estatísticas alarmantes e sem
fundamentação científica de seu aumento assustador, ela é a mais poderosa
agência do controle social informal que, em simbiose com o sistema penal,
sustenta o paradigma de guerra (ANDRADE, 2003, p. 144).

Diante do exposto, é possível apreender que a formação do senso comum tem


várias origens, advém da convivência em sociedade, dos reflexos das análises de
Lombroso com o determinismo biológico, da teoria do labelling approach, da
propagação das notícias pela TV, rádio, ou seja, pela mídia. Observa-se que o senso
comum não se desenvolve baseado apenas no pensamento da massa, ele tem uma
gênese antiquada que permanece enraizada até hoje (quando se fala em
determinismo biológico e no etiquetamento), e é fortemente amparado pela doutrina
acadêmica.

As representações do determinismo /criminalidade ontológica/


periculosidade/ anormalidade/ tratamento/ ressocialização se complementam
num círculo extraordinariamente fechado conformando uma percepção da
criminalidade que se encontra, há um século, profundamente enraizada nas
agências do sistema penal e no senso comum (ANDRADE, 1995, p. 26-27).

Ao se avaliar o senso comum, pensa-se em um entendimento tomado pela


maioria como correto, válido e moral devendo ser respeitado por todos. Desta forma
a sociedade passa a exigir que o Estado atue de modo a respeitar esse entendimento
e a proteger os direitos por ele resguardados. Por isso a tamanha influência que a
coletividade tem sobre a criminalização dos indivíduos, demandando do Estado cada
vez mais sua atuação.
Neste ponto há duas conclusões a se fazer, primeiramente a sociedade
imbuída do senso comum (que, ressalta-se mais uma vez, não é de um todo ignorante)
tem um poder exacerbado sobre o processo de criminalização das condutas,
contribuindo inclusive para estruturação de novas leis e novas regras sociais.
Segundo, conclui-se que essa cobrança social deve ser sopesada pelo sistema penal

40
para garantir que a ordem emanada seja, sobretudo, constitucional e não apenas uma
resposta ao clamor social ofertada para calar o grito da maioria. Observa-se, portanto,
que o senso comum presente no seio da comunidade deve ser entendido como o
modo pelo qual a sociedade vê a si própria.

5.3 Princípios da ideologia penal dominante

A ideologia penal dominante é desenvolvida pelo senso comum, ou seja, ela é


formada pelo entendimento da maioria a respeito do modo como deveria agir o
sistema penal e quais são suas funções perante a sociedade. Assim entende Andrade
(2003) que aduz ser essa ideologia um conjunto de funções declaradas que atribuem
ao sistema penal o papel de combater a criminalidade e garantir a segurança social.
Destacando que, o sistema como um todo é constituído por agências tais como
as leis penais, as instituições judiciais, o cárcere (prisão) entre outros. Desta forma,
quando se fala em ideologia penal pensa-se numa ideia criada a respeito de todo esse
conjunto, estabelecendo funções e objetivos que são constantemente cobrados pela
sociedade.
O sistema penal é definido por Zaffaroni e Pierangeli (2015, p. 70) como:

Controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de


quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se
impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a
lei e institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os
casos e condições para esta atuação. Esta é a ideia geral de sistema penal
em um sentido limitado, englobando a atividade do legislador, do público, da
polícia, dos juízes, promotores e funcionários e da execução penal.

Partindo desse pressuposto, avalia-se que o sistema penal é bastante amplo e


abrangente, visto que atua desde o momento da identificação do delito até o momento
da punição dos delinquentes. Sobre esse viés ao se pensar na ideologia penal
dominante, observa-se que esta se constitui a partir da análise feita não só pelas
pessoas comuns, mas também da ideia que se divulga na academia, na mídia, nas
doutrinas. Tudo isso corrobora um entendimento que se expande ao ponto de se
tornar uma grande ideologia (AYRES,2017).

41
Quando essa ideia sobre o sistema penal é promovida (neste ponto faz-se
mister esclarecer que essa promoção é contínua) há uma cobrança social
considerável para que ele cumpra com suas funções, buscando garantir a justiça e a
segurança pública, condenando os criminosos para que lhes sejam aplicadas
punições à altura dos crimes cometidos. Por conseguinte, tal reação servirá de
exemplo aos outros indivíduos (caráter preventivo) de modo que se evite a execução
de novos crimes ao demonstrar como o Estado é forte em controlar os delitos.
Durante o cumprimento da pena deverá esse indivíduo ser ressocializado o que
facilitará sua reintegração ao meio social. Ademais o criminoso é visto como o mal da
sociedade, como o causador do perigo e da insegurança e, por isso, deve ser
capturado e tratado pelo sistema. Esta é a ideologia penal dominante.
Nas palavras de Andrade (2003, p. 132):

O sistema penal, constituído pelos aparelhos policial, ministerial, judicial e


prisional, aparece como um sistema que protege bens jurídicos gerais e
combate à criminalidade (“o mal”) em defesa da sociedade (“o bem”) através
da prevenção geral (intimidação dos infratores potenciais) e especial
(ressocialização dos condenados) e, portanto, como uma promessa de
segurança pública.

A lei penal estabelece as regras que deverão ser cumpridas tanto pela
sociedade quanto pelo sistema, no entanto, na prática, é observado que este último
tem certa liberdade de atuação o que caracteriza a sua seletividade. Por um olhar
crítico essa seleção não é de todo mal, visto que, não seria possível punir todos que
cometem delitos (AYRES,2017).
Para demonstrar tal ideia, cita-se a Política da Tolerância Zero, adotada nos
Estados Unidos nos anos 90, entendida por Lopes (2001) como um reflexo do direito
penal máximo que consiste na punição de todo e qualquer crime, desde os mais
brandos aos mais graves. Essa medida diminuiu os índices de crimes em Nova York,
mas aumentou demasiadamente o número de reclamações contra a atuação
agressiva da polícia. Além disso, seria necessário também um sistema penal mais
rápido para atender a demanda, o que implicaria na supressão de garantias
processuais dos indivíduos em prol do interesse estatal.

42
O Brasil ainda tentou aplicar tal política, mas não houve um resultado eficaz na
redução da criminalidade. Nas palavras de Lopes (2001):

Nada mais falacioso. O modelo de tolerância zero é fruto de uma


equivocadíssima política repressivista norte americana. [...] A ideia de que a
repressão total vai sanar o problema é totalmente ideológica e mistificadora.
Sacrificam-se direitos fundamentais em nome da incompetência estatal em
resolver problemas que realmente geram a violência.

Além das leis penais há também um rol de princípios que norteiam a ideologia
penal dominante anteriormente explicada. Baratta (2002) faz uma análise desses
princípios que permite uma maior dimensão do raciocínio pertencente a esta ideologia,
esclarecendo e norteando esse conjunto de ideias. São eles: o princípio da
legitimidade, legalidade, igualdade, culpabilidade, o princípio do bem e do mal, do
interesse social e do fim (AYRES,2017).
O referido autor explica que pelo princípio da legitimidade o Estado, como
detentor do poder, é o responsável legítimo para fazer aplicar as leis penais por meio
do sistema penal, reprimindo a criminalidade e punindo os causadores dessa
desordem. Já o princípio da legalidade, como o nome bem sugere, entende que o
Estado, como legitimado, deverá cumprir com as determinações legais. Ressalta-se
que essas ideias aqui estabelecidas norteiam a ideologia dominante, portanto, quando
se trata da legalidade impõe-se ao Estado mais que um dever, uma obrigação de
cumprir a lei penal, punindo aqueles que cometem delitos para garantir a ordem social
(AYRES,2017).
Com relação ao princípio da igualdade, Baratta (2002) entende de que o direito
penal é aplicado de forma igual a todos. Sabe-se que na prática tal juízo não se
aproveita, visto que o sistema penal realiza um processo seletivo de criminalização,
não tratando a todos com uniformidade. Isso causa uma significativa sensação de
impunidade no meio social porque passa a imagem de que o Estado não está
cumprindo com seu dever, e a partir dessa percepção nasce a opinião de que o
sistema está decadente (AYRES,2017).
Quanto ao princípio da culpabilidade, o autor compreende que ele ataca a
reprovabilidade do ato delituoso, não só porque fere normas penais, mas porque
atinge regras morais. Este último ponto é de relevante importância, posto que, ainda
43
que a ação seja tipificada como crime é o grau de reprovabilidade social que indicará
o nível de culpa daquele indivíduo, ou seja, é preciso que a sociedade interprete tal
ato como, de fato, inadmissível, para que seja aquele indivíduo etiquetado como
criminoso (AYRES,2017).
Ainda nesta senda, Baratta (2002) destaca o princípio do bem e do mal, que
identifica a sociedade como o “bem” e o criminoso como o “mal”, porque este é o
causador da desordem, do perigo, da insegurança social e aquela é a vítima, que sofre
com a violência e está a esperar pela proteção do Estado. Entretanto, ver o
delinquente como o “mal” é colocá-lo como o causador único dos problemas e não
atribuir, a esse cenário que se cria, a influência de fatores externos (sociais,
econômicos e políticos) dificulta a análise das ocorrências (AYRES,2017).
No que se refere ao princípio do interesse social, o autor destaca que os bens
protegidos pelo Direito Penal são de interesse de todos, isso talvez explique o porquê
da revolta social face à prática de crimes, ainda que o indivíduo não seja a vítima do
ocorrido. São protegidos os direitos à vida, à dignidade sexual, ao patrimônio, etc.
Observa-se que quando não há uma atitude firme do Estado em garantir essa
proteção a sociedade busca agir por conta própria e, neste ponto, tem- se a ocorrência
de situações como o linchamento. Surge um retrocesso, posto que o homem busca
solucionar a violência usando-a como arma de combate (AYRES,2017).
Também chamado de princípio da prevenção, Baratta (2002) explica que o
princípio do fim entende que a finalidade da pena é de prevenir a prática de outros
crimes. Ao punir aquele delinquente ele será ressocializado e não mais cometerá
outros delitos, e concomitantemente, servirá de exemplo para que outros não tenham
a mesma atitude delituosa que ele (AYRES,2017).
Nesse diapasão, ao se refletir sobre a ideologia penal dominante e seus
princípios, verifica-se que há uma visão utópica do sistema penal, que não demonstra
suas reais funções e objetivos. Essa imagem distorcida do sistema faz surgir na
sociedade cobranças baseadas em fundamentos falhos, mas que exerce uma
influência considerável nas mudanças realizadas nas leis penais e no próprio
processo de criminalização dos indivíduos. A mídia atua de modo a colaborar com as

44
exigências sociais, de forma que tais ideias se propagam como absolutamente
corretas e válidas (AYRES,2017).
Diante desse cenário, constata-se que de um lado tem-se a coletividade
cobrando uma melhor atuação do Estado frente ao sistema avaliado como falho e
incompetente e de outro, o Estado realizando por meio do sistema penal ora suas
funções reais, ora suas funções declaradas. Isto porque não há como se manter inerte
diante da atuação da população que vai às ruas, que protesta e reage àquilo que
chama de impunidade e injustiça, o que explica a tentativa do sistema de realizar, vez
por outra, suas funções declaradas (AYRES,2017).
Afinal, quando se fala da coletividade, é pensado não só na massa, mas nos
juízes que julgam as causas, nos professores que lecionam essas ideologias nas
salas de aula, nos doutrinadores que propalam essas ideias em suas obras etc. Há,
portanto, um conjunto muito forte que alimenta e apregoa essa ideologia,
pressionando demasiadamente o sistema, tornando mais difícil sua compreensão e
assentando essa relação num ciclo vicioso de conflitos (AYRES,2017).

45
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania


mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2003.

ANISTIA INTERNACIONAL BRASIL. Informe 2016/17: o estado dos direitos humanos


no mundo. Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: Acesso em: 20 fev. 2018.

ARAUJO, Fernanda Carolina de. A teoria criminológica do labelling approach e as


medidas socioeducativas. 2010. Dissertação (Mestrado em Direito Penal) - Faculdade
de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. doi: 10.11606/D.2.2010.tde-
06072011-111256. Acesso em: 25 de abril de 2017.

AVRITZER, L. Democracy and the public space in Latin America. Princeton: Princeton
University Press, 2002.

AYRES, Marília. Processo de criminalização: a tipificação da conduta delinquente a


partir da influência social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22,
n. 5213, 9 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60857. Acesso em: 3
fev. 2021.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal: introdução à


sociologia do direito penal; tradução Juarez Cirino dos Santos. 3º ed. Rio de Janeiro:
Editora Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos sediciosos -


crime, direito e sociedade. Ano 7º, nº 12, Rio de Janeiro: Ed. Revan, Instituto Carioca
de Criminologia, 2002.

BEZERRA, N. T. Do povo para o estado: a participação popular na construção de


Políticas Públicas para cultura em Alagoas, uma análise da execução do Plano
Estadual de Cultura de Alagoas. 2016. 26 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Curso
de Formação de Gestores Culturais dos Estados do Nordeste). Universidade Federal
da Bahia. Recife, 2016. Disponível em: Acesso em: 22 mar. 2018.
46
BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BOSCHI, R. A arte da associação: política de base e democracia no Brasil. Rio de


Janeiro: Vértice, 1987.

BRASIL. Decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010. Casa Civil - Presidência da


República. Disponível em: Acesso em 22 mar. 2018.

BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília: Presidência da República,


Secretaria de Comunicação Social, Ministério da Justiça: 1996. Disponível em: Acesso
em: 22 mar. 2018.

BULOS, U. L. Constituição Federal anotada: acompanhada dos índices alfabético- -


remissivos da constituição e da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2003. 1542 p

CALDEIRA, T. São Paulo: city of walls. Berkeley: University of California Press, 2000.

COELHO, R. C. Estado, governo e mercado. Florianópolis: Departamento de Ciências


da Administração da UFSC; [Brasília]: CAPES: UAB, 2009.

DALLARI, D. A. Elementos de teoria geral do Estado. 17. ed. São Paulo: Saraiva.
1993.

DIMOULIS, D.; MARTINS, L. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007, p. 36.

DOUZINAS, C. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009.

ESCOREL, S. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio


de Janeiro: Fiocruz, 1999. 208 p.

FRANKLIN SEIXAS, Fernanda. DIREITOS HUMANOS: Declaração Universal dos


Direitos Humanos. [S. l.: s. n.], 2021. Disponível em: https://sagahcm.sagah.com.br/.
Acesso em: 16 set. 2020.

GOHN, M. G. Movimentos sociais no início do século XXI: antigos e novos atores


sociais. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. 141 p.

47
LAVALLE, A. G. Crítica ao modelo da nova sociedade civil. Lua Nova.

São Paulo, n. 47, p. 121-135, 1999. Disponível em: Acesso em: 20 mar. 2018.

LOPES JR, Aury. Violência urbana e tolerância zero: Verdades e mentira. In: Âmbito
Jurídico, Rio Grande, II, n. 5, maio 2001. Disponível em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&ar
tigo_id=5805>. Acesso em: 2 de maio de 2017.

MARCHINI NETO, D. A constituição brasileira de 1988 e os direitos humanos:


garantias fundamentais e políticas de memória. Revista Científica FacMais, Inhumas,
v. 2, n. 1, 2. sem. 2012. Disponível em: Acesso em: 22 mar. 2018.

MARIA FONSECA AFFONSO, Ligia. MOBILIZAÇÃO SOCIAL: Movimentos


sociais e direitos humanos. [S. l.: s. n.], 2021. Disponível em:
https://sagahcm.sagah.com.br/. Acesso em: 16 set. 2020.

MARTINEZ, Maurício. O encarceramento de massa. In: (Org). ABRAMOVAY, Pedro


Vieira; BATISTA, Vera Malaguti. Depois do grande encarceramento, Rio de Janeiro:
Editora Revan, 2010.

MELUCCI, A. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades


complexas. Tradução Maria do Carmo Alves Bomfim. Petrópolis: Vozes, 2001. 199 p.

MOTTA FILHO, Cândido. O direito e o senso comum. Revista da Faculdade de Direito,


Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 40, p. 149-162, jan. 1945. ISSN 2318-
8235. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66044/68654>.
Acesso em: 8 de maio de 2017.

NEVES, L. A. Cidadania: dilemas e perspectivas na república brasileira. Tempo,


Niterói, v. 2, n. 4, p. 80-102, dez. 1997. Disponível em: Acesso em: 22 mar. 2018.

ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos.


2009. Disponível em: Acesso em: 5 jul. 2018.

PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual esquemático de criminologia. 2 ed. São


Paulo: Saraiva, 2012.
48
PEREIRA, A. C. R. Os novos movimentos sociais e a educação em direitos humanos
nas ações e políticas públicas no Brasil contemporâneo. Revista Entreideias,
Salvador, v. 4, n. 2, p. 90-105, jul./dez. 2015. Acesso em: 22 mar. 2018.

PIOVESAN, F. Temas de direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 398 p

RAMÍREZ, J. Movimentos sociais: locus de uma educação para a cidadania. In:


CANDAU, V. M.; SACAVINO, S. (Org.). Educar em direitos humanos: construir
democracia. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 49-71.

SANTOS, W. G. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de


Janeiro: Campus, 1979.

SCHOLTE, J. A. What is globalization: the definitional issue - again. CSGR Working


Paper, Warwick (UK), n. 109, dez. 2002. Acesso em: 20 mar. 2018.

SILVA, J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18. ed. São Paulo: Malheiros,
2000.

TESSMANN, E. K. Sociedade civil e (re) construção do espaço público: gestão


democrática ambiental para a reflexão na esfera pública. In: ENCONTRO
PREPARATÓRIO PARA O CONGRESSO NACIONAL, 16., 2007, Campos (RJ).
Anais... Rio de Janeiro: Compedi, Boitex, 2007.

VIEIRA, O. V.; DUPREE, A. S. Reflexões acerca da sociedade civil e dos direitos


humanos. SUR - Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 1, n. 1, jan.
2004. Disponível em: Acesso em: 22 mar. 2018.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro.


Direito Penal Brasileiro - Teoria Geral. 4º ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2015.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal


brasileiro - parte geral. 11º ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA, 2015.

ZARCA, Y. C. A invenção do sujeito de Direito. Porto Alegre: L&PM, 1997. (Filosofia


Política Nova série, v. I).

49

Você também pode gostar