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RUMO A UMA ÉTICA RELACIONAL PARA A PRÁTICA


TERAPÊUTICA

Toward a Relational Ethic for Therapeutic practice

Resumo: Os valores éticos do terapeuta nem Abstract: A therapist’s ethical values will not Kenneth J. Gergen
sempre coincidirão com aqueles de seus clien- always match those of his/her clients; nor may The Taos Institute
tes, talvez nem os valores do cliente ou do te- the values of client or therapist be acceptable
rapeuta sejam aceitos fora desse relacionamen- to all outside their relationship. To whose values
to. Por quais valores deve então o terapeuta ser should a therapist be responsible? Here it is useful
responsável? Vale a pena pensarmos em termos to think in terms of first and second order ethics.
de éticas de primeira e segunda ordem. Éticas de First order ethics are those common to everyday
primeira ordem são aquelas comuns à vida diária, life; they are under continuous production, and
estão sempre em contínua produção, podendo may or may not be fully articulated. They are also
ser totalmente articuladas ou não. Frequente- in frequent conflict, inciting animosity and hatred.
mente em conflito, geram animosidade e ódio. A second order ethic, however, is one that pla-
Entretanto, a ética de segunda ordem é aquela ces the supreme value on the relational process
que posiciona como valor supremo o processo from which all ethics spring. It is thus an ethic that
relacional, do qual todas as éticas emergem. É prizes those actions that can bring multiple and
ela que valoriza aquelas ações que podem trazer conflicting voices into productive communication.
múltiplas e conflitantes vozes para a comunica- Therapeutic practices illustrating a relational ethic
ção produtiva. Práticas terapêuticas que ilustram are discussed.
a ética relacional são analisadas.
Keywords: ethics, relational responsibility,
Palavras-chave: ética, responsabilidade rela- relational process, constructing meaning, multi-
cional, processo relacional, construção de signi- -being.
ficado e ser múltiplo.

Os valores éticos são filhos da cultura e da história, moldados pelos seres humanos
em sua tentativa de se relacionarem viável e significativamente. Como os mundos
culturais se comunicam, colidem e se cristalizam, é essencial que também reflita-
mos sobre nossas práticas e crenças éticas. Como nossos compromissos se ajus-
tam no transcorrer do tempo, eles ainda são relevantes? Há pontos cegos? Estão
contribuindo para um futuro promissor?
Tais questionamentos estimularam o presente artigo. Uma preocupação espe-
cial: nossa ética das práticas terapêuticas atuais conversa com o crescente plura-
lismo da sociedade contemporânea? Em um mundo de alianças múltiplas, com
quem ou com o que deveríamos ser responsáveis? Não posso falar por todas as so-
ciedades, mas realmente me parece comum à maioria dos códigos éticos dos cam-
pos terapêuticos, de aconselhamento e trabalho social, o comprometimento com
o bem-estar daqueles a quem atendemos. Seja um compromisso com o bem-estar,
o alívio do sofrimento, o pleno desenvolvimento ou a autonomia do indivíduo,
existe uma postura ética subjacente e frequentemente formalizada que vai além
do já bem estabelecido jargão médico “não fazer mal a alguém”. Isso parece bem Recebido em: 17/08/2016
óbvio, mas, para mim, apesar de sua plausibilidade superficial, questionamentos Aprovado em: 03/10/2016

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sérios ainda persistem. Indispensável, culto. Do mesmo modo, o terapeuta
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entre eles: “Sob a ótica de quem julga- não permanece imune ao intercâmbio
mos o bem-estar?” terapêutico e os resultados podem ter
Considero que uma coisa é o tera- efeitos reverberantes naqueles pelos
peuta ouvir e abraçar as necessidades quais ele é responsável. Onde devería-
de seu cliente, mas o que isso nos diz mos traçar uma linha em termos dessa
das vozes éticas que o terapeuta leva reverberação ética? Deveríamos nos
ao relacionamento? Como terapeutas, ater apenas ao mundo social imediato,
frequentemente somos confrontados aquele compartilhado pelo terapeuta e
por aqueles cujos estilos de vida não cliente? Nos relacionamentos transfor-
são compatíveis com os valores que madores, estamos transformando tam-
nós próprios trazemos para o relacio- bém culturas, e, por sua vez, o relacio-
namento. E se acharmos os valores e namento dessas com outras culturas.
padrões do cliente detestáveis, antiéti- Tais questões são extremamente desa-
cos ou mesmo maus? Deveríamos ou- fiadoras, pois nem todos os envolvidos
vir com empatia, por exemplo, um pai irão concordar com os valores de qual-
abusivo e tirânico, um patrão sexista, quer resultado terapêutico. A esposa de
um pedófilo, um comentarista racista um cliente pode ficar muito satisfeita
ou um valentão – aqueles que prati- com o resultado do tratamento do ma-
cam atos que podem ser perfeitamente rido, enquanto os filhos podem ficar
aceitáveis e normais para eles, mas não desapontados. A autoestima do clien-
para os demais? E se nosso cliente apoia te pode ser elevada, mas os familiares
o terrorismo, relações homem-menino podem se sentir dolorosamente negli-
ou o neonazismo? Deveríamos nós, genciados. Um racista é ajudado, en-
como terapeutas, permanecermos em quanto as vítimas são feridas etc. Onde
silêncio, curiosos, receptivos e esperar estão as vozes daqueles pertencentes
fazer alguma contribuição para o bem à rede maior de relacionamentos que
do cliente em seus próprios termos? Se têm seus interesses em jogo na relação
a relação é verdadeiramente um diá- terapêutica?
logo, então por que não deveríamos Está claro que essas não são ques-
esperar que o cliente também nos per- tões fáceis. Nunca houve critérios uni-
mitisse o direito de discordar? Por que versais absolutos para uma vida virtu-
deveria nossa visão do bem ser silen- osa. Entretanto, o diálogo contínuo é
ciada nessa troca? essencial. A seguir, gostaria de esten-
Mais ainda: o relacionamento entre der a discussão considerando cuida-
o terapeuta e o cliente deve ser muito dosamente o processo relacional e suas
importante para o bem-estar final do implicações para a concepção do self e
cliente. Contudo, essa é uma relação al- do outro. Nessa discussão levantarei
tamente circunscrita, focada como está desafios à concepção de selfs inde-
nessa díade. Dependendo do resultado pendentes e ações morais autônomas.
desse processo dual, muitos podem ser Então, com uma concepção relacional
afetados – para o bem ou para o mal. mais abrangente de self estabelecida,
Até que ponto, por exemplo, o ganho examinarei as origens dos valores hu-
do cliente representa uma perda para manos – morais e amorais. Nesse pon-
os outros? Tais perdas podem ser sen- to podemos considerar o potencial de
tidas não só pelos familiares e amigos uma instância totalmente envolvida
do cliente, mas também dentro de sua pela ética relacional e suas implicações
comunidade, emprego ou locais de para a prática terapêutica.

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A GÊNESIS RELACIONAL DA irá falhar em achar algum significado Momentos de Referência
nos comentários feitos. Caso o tera- Comum na Comunicação 13
SIGNIFICAÇÃO Dialógica
peuta comece a falar dos efeitos cola- John Shotter
Permitam-me fazer uma pergunta terais negativos dos antidepressivos
simples: o que é oferecer ajuda e apoio ou as consequências sociais dolorosas
a alguém? Especificamente: e se o te- do suicídio, ele estará desqualificando
rapeuta acredita que está oferecendo o que foi dito pelo cliente. Caso ele dê
ajuda ou apoio e o cliente discorda? uma prescrição médica para drogas
Pode o terapeuta afirmar estar ouvin- – tanto antidepressivos, quanto para
do com sensibilidade um cliente, se o o suicídio –, ele estaria confirmando
mesmo diz que o terapeuta é insensí- as ideias dos clientes. De fato, vemos
vel? Isso não é de menor importância. que, em termos de criar significado, o
Se a voz do cliente conta na definição terapeuta e o cliente são mutuamente
do significado das ações do terapeuta, dependentes. O significado não é con-
então uma re-visão dramática tanto trolado ou determinado nem por um
do indivíduo quanto da ação ética é nem pelo outro, emerge de ações coor-
necessária. Considerem: uma clien- denadas de ambos.
te relata longamente seu sentimento E também esse processo de coor-
de solidão, isolamento e insignificân- denação terapeuta/cliente não é in-
cia. O terapeuta ouve atentamente, dependente da cultura e da história.
se abrindo ao sentimento de insigni- Ambos são participantes nas tradições
ficância contido nas palavras ditas. conversacionais e a habilidade de se
Lentamente responde: “O que você darem bem um com o outro depende
está dizendo realmente me comove da aceitação por parte deles dos rituais
e vejo que você está lutando valente- de conversação que os precede. Ape-
mente com uma depressão intensa.” O nas a participação nessas tradições irá
cliente responde: “Tudo bem, mas eu permitir ao terapeuta fazer perguntas
não preciso de sua empatia. Preciso de pessoais e aos clientes revelarem suas
uma receita médica para um antide- angústias. Ou, de uma maneira mais
pressivo.” Ou considerem um segundo geral, não é apenas pedido a ambos
cliente que diz: “Quero apenas te dizer que “criem um sentido” no aqui e ago-
quão aliviado e grato estou. Sinto que ra, mas também dependam da tradi-
você realmente entende a profundida- ção de coordenação social.
de de minha depressão. E isso significa Disso podemos concluir que não
que talvez eu possa confiar em você somos as origens do significado de
para ajudar-me a encontrar uma saída nossas ações, mas o significado toma
dela... um jeito indolor de sair dessa forma dentro de um processo de ação
vida.” Efetivamente, encontramos o coordenada – que tanto precede quan-
significado das ações do terapeuta não to segue as ações em si. Nem deverí-
em suas conclusões, ele nasce da res- amos delimitar o processo da gera-
posta dos clientes. ção de significado à esfera linguística
No entanto, não devemos concluir apenas. A coordenação irá com fre­
que é o cliente quem cria o significado quência incluir movimentos corporais
das respostas do terapeuta. Pois apenas como: postura, olhares ou gestos, os
as respostas dos clientes não formam quais podem amiúde ser mais signi-
todo o significado. Caso o terapeuta ficantes que o conteúdo verbal. Além
não preste atenção a elas e continue disso, o processo de coordenação pode
com certa linha de perguntas, o cliente incluir objetos e contextos particu-

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lares de tempo e espaço. Do mesmo quais são as implicações em contextos
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modo que a coordenação, ao utilizar de visões múltiplas e conflitantes do
palavras, lhes confere um significado, bem? Iremos abordar esse problema
igualmente os vários objetos que nos questionando primeiramente as ori-
rodeiam são revestidos de significa- gens do bem e do mal em uma chave
ção. Esse “copo” torna-se uma xíca- relacional.
ra para tomar chá, esse “relógio”, um
aparelho para contarmos o tempo que
passamos juntos. Parafraseando Witt- Moralidade de primeira ordem: os
genstein (1953), o significado flui das perigos da dissonância
formas de vida nas quais estamos to-
dos incluídos. Dentro desse processo, Comumente supomos que o mundo
tudo que tomamos como real, racional sofre porque há pessoas que possuem
ou bom é trazido à existência. Tudo um senso de consciência defeituoso,
que consideramos ser significativo, aquelas que lutam por suas metas sem
sagrado, objetivamente verdadeiro ou se importar com as consequências
digno de comprometimento em nossa causadas a outras, ou não têm cará-
vida nasce do relacionamento. ter ou inteligência. De um ponto de
Como propus em meu trabalho vista relacional, entretanto, podemos
anterior (2009), essa visão também abraçar a hipótese oposta: não há falta
levanta questões fundamentais per- do Bem no mundo, ao contrário, em
tinentes às concepções tradicionais contextos importantes sofremos com
de indivíduos autônomos e da ação a sua abundância. Como assim? Se
moral. Se todo significado nasce den- traçarmos tudo o que consideramos
tro de ações coordenadas, então os significativo nos relacionamentos que
próprios conceitos de “individual”, temos em nossas vidas, então devemos
“mentes individuais” e “pensamento também ver os relacionamentos como
moral” são postos em questão. Todos fonte de nossas presunções sobre o
são subprodutos das tradições relacio- bem e o mal. Basicamente, podemos
nais. Igualmente, a ação moral nunca dizer que, virtualmente, toda relação
é realizada sozinha. As ações se tor- gerará, no mínimo, entendimentos
nam morais ou imorais dentro de uma rudimentares de bem versus mal. Eles
tradição relacional, e o significado de são essenciais para a manutenção dos
qualquer ação está aberto a uma contí- padrões de coordenação. Desvios dos
nua reinterpretação, pois as tradições e padrões aceitos podem constituir-se
os relacionamentos são transformados em ameaças. Quando desenvolvemos
no decorrer do tempo. Vamos voltar, modos harmônicos de relacionamento
agora, às tradições de ação moral e os – ao falar e agir –, colocamos um valor
desafios que elas nos impõem nas rela- nesse “estilo de vida”. Tudo aquilo que
ções de ajuda. o desafia, mina ou destrói se torna um
“não-bem” ou mal.
Vamos considerar esse movimento,
ORDENS DE AÇÕES MORAIS de uma coordenação rudimentar até
a formação de valores, em termos de
Se não é nem da ação individual, nem moralidade de primeira ordem. Para
da interação social que a inteligibi- funcionar de modo viável, a relação
lidade humana emerge, mas de um exige que acolhamos os valores ineren-
processo de coordenação de ações, tes a ela, sejam eles articulados ou não.

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Ao prepararmos o jantar com nosso sendo concretizada. Ao nos esforçar- Momentos de Referência
cônjuge, por exemplo, reconhecemos mos para encontrar modos mutua- Comum na Comunicação 15
Dialógica
que a moralidade de primeira ordem mente satisfatórios para seguirmos John Shotter

está em ação. Estabelecemos e perpe- juntos, começamos a estabelecer um


tuamos aquilo que é “bom para nós”. bem local, “o jeito de fazemos isso”.
Não há regras articuladas nesse caso, Como resultado, existem miríades de
injunções morais ou “Declarações de tradições do que é o bem, e em todo
Direitos” para marido e mulher. As lugar onde as pessoas se unem de um
regras são todas implícitas, mas tocam modo proveitoso, elas colocarão em
virtualmente em tudo o que fazemos, movimento novas possibilidades. Essa
do modo e tom de nossa voz, nossos condição não é apenas descritiva de
movimentos corporais na cozinha, inúmeras tradições locais, de famílias,
como a comida é preparada e se ou amizades ou comunidade, ela também
quando damos restos para o cachorro. se aplica às grandes religiões do mun-
Um movimento em falso na dança do do, aos governos, ciências, educação,
jantar pode tornar um de nós “moral- arte etc. Nesse caso, ciências e artes
mente superior” ao outro. são similares à religião. Todas mantêm
Segue-se que, se totalmente imer- uma visão do bem, algumas sagradas
so nessa relação particular, uma parte outras seculares, algumas articuladas
não pode deixar os padrões existentes outras implícitas.
de coordenação e agir inversamente a É essa multiplicação do bem que
ela. Fazer isso seria ininteligível. Reto- prepara o terreno para o conflito so-
mando o tema da cozinha, nenhum de cial. Em um mundo pluralista de bens,
nós jogaria comida no outro, cuspiria qualquer ação será julgada de acordo
ou bateria com uma panela na cabe- com a multiplicidade de tradições al-
ça do companheiro. Não fazemos tais ternativas. Todos os estilos de vida
coisas, pois são descabidas para nós, podem ser estranhos ou odiosos para
jamais aconteceriam como opções aqueles que não participam deles. E se
para uma deliberação ética. Continu- esses estilos de vida parecem impedir
amos com nossa vida doméstica nor- ou ameaçar nossas próprias tradições,
mal porque é nosso modo de vida. De a resposta é a resistência. Pode ser mí-
fato, a moralidade de primeira ordem nima, como desdém, evitação, fofoca
é essencialmente ser sensível dentro de maliciosa, ou moderada como ostra-
certo estilo de vida. Do mesmo modo, cismo, divórcio, deserção. Em casos
a maioria das pessoas não pensa em de ações mais ameaçadoras, o impul-
matar o melhor amigo, não porque so é dirigido à eliminação. Isso é tipi-
isso contraria algum princípio ao qual camente alcançado através de várias
fomos expostos na infância ou porque formas de defesa (vigilância e policia-
é ilegal. Simplesmente porque é im- mento), encarceramento (prisão, tor-
pensável. Vivemos largamente nossas tura), ou, mais radicalmente, através
vidas dentro da confortável zona da da eliminação (pena capital, invasão,
moralidade de primeira ordem. bombas). Em todos esses tipos, uma
Então, a que atribuímos a origem dura carapaça separa o bem compar-
das ações imorais? Devemos no- tilhado interiormente do mal exterior.
vamente retornar à moralidade de Aqueles de dentro obtêm aceitação
primeira ordem. Quando e onde as e apoio através da punição e destrui-
pessoas entram em coordenação, a ção dos de fora. Ao mesmo tempo,
moralidade de primeira ordem está estes últimos também podem resistir.

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Suas próprias tradições estão agora cativa, novas formas de valorização (e
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sob ataque. Nesse ponto, entramos em desvalorização) podem ser postas em
um padrão familiar de ataque cons- órbita. O Antagonismo é inevitável. O
tante e contra-ataque, tudo em nome desafio não é criar uma existência livre
do bem. Quando essa dança da morte de conflito, mas identificar modos de
está sendo realizada, não é o outro que abordá-lo que não ziguezagueiem em
é o maior inimigo, mas a tradição da direção à exterminação mútua. Dadas
coreografia. as circunstâncias da coordenação hu-
Claro, a relação tradicional de cuida- mana, como devemos prosseguir?
dos não chega a tais pontos extremos. Retornemos ao tema do processo
Entretanto, a maioria dos profissionais relacional, agora para apresentar o po-
em relações de cuidados reconhecerá tencial para a moralidade de segunda
frequentemente vozes sutis de antipa- ordem. Como exposto, a moralidade
tia que carregam em relação às pessoas de primeira ordem pode ser essencial-
que tratam. Eles encontram estilos de mente relacionada a uma vida satisfa-
vida nos quais prevalecem fracasso, tória, isto é, uma fonte de harmonia,
fraqueza, desperdício, insensibilida- confiança e direção. Ao mesmo tempo,
de, opressão, crueldade, preconceito devido ao seu enorme potencial para
e irresponsabilidade. Como conse­ variações e multiplicidades, também
quência, eles os evitam, despacham- somos confrontados com a contínua
-nos para longe e tentam explicá-los. produção do mal. Somos movidos
Existe a voz do outro pedindo atenção, para o controle, punição, encarcera-
mas também há também a contra-voz mento e, por fim, eliminação daquilo
moral da própria tradição do cuida- em cuja criação fomos instrumentais.
dor. O desafio, então, é entre formas Conflito é endêmico. Simultaneamen-
conflitantes de vida, cada uma valori- te, é importante notar que a morali-
zada por seus participantes. dade de primeira ordem repousa em
uma lógica de unidades distintas. Na
cultura ocidental, a unidade é o indi-
Moralidade de segunda ordem: víduo, e a partir da capacidade indivi-
coordenando a coordenação dual para razão e consciência emerge
(ou não) a ação moral. É o indivíduo
Ao aplicarmos o relato do processo que tipicamente é considerado res-
relacional às questões de pluralismo ponsável por extraordinárias ações,
moral, encontramos que a mesma seja em intercâmbios ordinários do dia
produção do bem também estabelece a dia, seja nos tribunais. Muito dessa
as condições para um algo abaixo do lógica é empregada em tornar grandes
bem, ou seja, o mal. De fato, todas as unidades responsáveis. Geralmente
vezes em que grupos diferentes coor- condenados são os partidos políticos,
denarem suas ações para gerar harmo- empresários, sindicatos, lobistas, re-
nia e satisfação, haverá confrontação ligiões, grupos terroristas, exércitos
entre o bem e o mal. Dado o rápido e nações. Seus representantes podem
desenvolvimento e proliferação das ser punidos, torturados ou destruídos,
tecnologias de comunicação – e-mail, simplesmente por serem membros da
celulares, Twitter, e outras redes so- unidade.
ciais na internet e similares –, pode- De um ponto de vista relacional, os
mos antecipar que tais diferenças irão maiores resultados da moralidade de
aumentar. Com cada conexão comuni- primeira ordem são frequentemente o

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rompimento de conexão comunicati- tuída pela responsabilidade relacional, Momentos de Referência
va. E, de fato, pode-se mesmo destruir ou seja, uma responsabilidade oriunda Comum na Comunicação 17
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o processo de coordenação do qual da participação relacional (McNamee John Shotter

derivam a realidade, racionalidade e o & Gergen, 1999). Apenas juntos pode-


senso do bem. Assim o potencial para mos construir uma ponte sobre o vão
a geração contínua da moralidade de da alienação e da destruição mútua.
primeira ordem chega ao fim. Quando Quando as rodas da responsabilidade
um impulso de eliminação é colocado individual entram em movimento, os
em curso e nos movemos em direção relacionamentos geralmente saem dos
a uma aniquilação mútua, nós escor- trilhos. À culpa seguem-se acusações
regamos em direção ao fim do signi- e mais culpas. Na responsabilidade
ficado. Eliminar todos aqueles cujos relacional damos um passo para fora
valores não são idênticos aos nossos dessa tradição e o valor da relação se
levaria a um único som – o da nossa torna o principal. Aqui nos aproxima-
própria voz. É justamente aqui que a mos do domínio da ética. Quer dizer,
presença da moralidade de segunda nos distanciamos da moralidade como
ordem é requerida, isto é, o proces- convenção e nos aproximamos de uma
so que pode restaurar a possibilidade consciência baseada em princípios
da primeira moralidade. É perceber a com extensas consequências. Substi-
imersão em nosso próprio passado da tuímos o chamado ético de “cuidar de
moralidade de primeira ordem e, que mim” ou “cuidar dos outros” por cui-
sem o outro, não existem valores, nada dar da relação.
digno de ser vivido. Quando as pri-
meiras moralidades entram em con-
flito, os potenciais para a produção de PRATICANDO A ÉTICA RELACIONAL
significado encolhem. Ou seja, quan-
do silenciamos ou eliminamos o que Quais são as implicações de uma
consideramos moralidades opostas, orientação relacional para a relação te-
o potencial para dar ou elaborar um rapêutica? Em um primeiro momento,
significado é extinto. Portanto, deve- percebemos que para o terapeuta sim-
mos juntos proteger e restaurar o pro- plesmente escutar e demonstrar apre-
cesso de valorização coletiva. De fato, ço pela vida e pelo mundo do cliente é
engajar-se na moralidade de segunda insuficiente. Nem é satisfatório usar o
ordem é apoiar a possibilidade da mo- relacionamento de prestação de cuida-
ralidade de qualquer ordem. dos para reforçar as próprias tradições
A moralidade de segunda ordem de valores. Em ambos os casos, as con-
repousa não em uma lógica de uni- dições desagregadoras da moralidade
dades distintas, mas no processo re- de primeira ordem são mantidas. Por-
lacional de co-ação. Não há atos maus tanto, o desafio é desenvolver uma prá-
cometidos por um único indivíduo tica relacional que se mova em direção
nessa perspectiva, pois o significa- à responsabilidade relacional, ou seja,
do de toda ação é derivada de rela- formas de prosseguir que valorizem
cionamentos. Considerar indivíduos primeiramente o processo gerador da
responsáveis por ações impróprias relação em si. Essencialmente, esse é
não é apenas inadequado, mas resul- um desafio para ambos (ou todos) os
ta em alienação e retaliação. No caso participantes da relação de prestação
da moralidade de segundo ordem, a de cuidados. “Apesar de nossas dife-
responsabilidade individual é substi- renças, como podemos construir algo

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que possamos ambos valorizar?” No terapeuta que compartilha como é ser
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entanto, a responsabilidade pela rela- uma criança nessas circunstâncias, ou
ção começa a se expandir. “Como nos- como seus pais substituíram o cinto
sa relação inclui aqueles que não estão pela conversa.
presentes, mas são próximos e queri- Abrindo o vocabulário dos selfs:
dos?” E subsequentemente: “Como Como já propus anteriormente (Ger-
estamos sendo responsáveis pela co- gen, 2008), somos seres múltiplos. Não
munidade em que vivemos: há modos apenas temos muitos personagens,
de sermos sensíveis a essa comunida- como também carregamos dentro de
de maior, de modo que nossa relação nós uma grande variedade de valores
contribua para formas mutuamente conflitantes. Para cada valor que abra-
viáveis de convivência?” çamos, podemos localizar outros con-
Esses não são desafios fáceis, e, travalores. Ao valorizar o equilíbrio,
por serem novos no mundo terapêu- falhamos em assumir riscos; ao devo-
tico, torna-se mais difícil extrairmos tar tempo para a família, falhamos em
respostas de nossas tradições já exis- nossas responsabilidades com a comu-
tentes. Contudo, a fim de estimular o nidade; ao nos dedicarmos de corpo e
diálogo sobre esse tópico, permitam- alma ao trabalho, nos esquecemos de
-me citar brevemente algumas micro- nossa saúde. Para tudo que fazemos,
práticas que considero potencialmente também podemos encontrar um va-
ricas na relação terapêutica: lor para não fazê-lo. Explorar esses
Compartilhar histórias: Baseado nos valores frequentemente suprimidos
projetos de testemunhas de Michael pode ser um modo efetivo de cruzar as
White (2007) e no trabalho Projeto de barreiras da diferença e dar às nossas
Conversações Públicas (www.public- próprias tradições um papel ativo. Por
conversations.org) fica claro que um exemplo, se um cliente é alcoólatra ou
dos grandes meios de desenvolvermos jogador irresponsável, ele pode abrigar
um maior apreço ao que, de outra ma- também muitas razões para não sê-lo.
neira, seria um estilo de vida estra- Trazer as tradições representadas por
nho, é escutar suas histórias. “É por esses valores à tona pode levar o clien-
isso que faço essas coisas, é por essas te a um relacionamento mais promis-
razões que acredito nelas etc.” Claro, sor com os outros. Ao mesmo tempo,
esse é o primeiro passo usado pelos o terapeuta pode trazer suas próprias
terapeutas para desenvolver empatia histórias, questionando de um modo
por seus clientes. Eles ouvem histó- reflexivo os valores particulares que
rias, e ao fazerem isso criam empatia está esposando em qualquer momen-
pelo estar-no-mundo de seus clientes. to dado. Ao ampliarmos o campo de
Entretanto, a serviço da responsabili- vozes disponíveis, evitamos antagonis-
dade relacional, o mesmo direito está mos entre os opostos.
disponível ao terapeuta. Eles também Troca de Fantasias: A comunica-
podem compartilhar experiências ção direta ou face a face não precisa
que podem dar um insight para va- ser essencial para o cruzamento das
lores alternativos. Pode-se aprender fronteiras do significado. Por exem-
muito com a história que um clien- plo, sou fascinado pelo modo como
te conta sobre por que os pais devem Peggy Penn (2009) tem feito da escrita
adotar a filosofia “é de pequeno que de cartas um meio para reestabelecer
se torce o pepino”, contudo, o cliente o relacionamento dos clientes com
também pode aprender muito com o aqueles de quem se alienaram. Uma

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filha que cortou relações com um pai vulnerabilidades ou inconsistências. Momentos de Referência
abusivo pode ser encorajada a escre- Nossas lições culturais nos instigam Comum na Comunicação 19
Dialógica
ver a ele e explicar seus sentimentos. A a mostrar perfeição em nossas perso- John Shotter

escrita não necessariamente significa nas. Particularmente em situações de


o envio da carta. Ao contrário, na fan- família, muitos terapeutas usam a in-
tasia, ela experimentaria o ato de uma vestigação apreciativa para fomentar o
expressão direta e seu impacto sobre entendimento mútuo, construir rela-
o pai. Posteriormente, poderia ser pe- cionamentos, ajudar a superar confli-
dido à filha que respondesse a carta tos e trazer paz às famílias (Cooperri-
como se fosse o pai dela. Agora, novas der, Silbert & Mann, 2008). Podemos
e significativas dimensões poderiam pedir aos participantes que comentem
ser adicionadas à fantasia, já que o os aspectos ou ações positivos de cada
cliente se tornou ciente da “versão do um. Com a construção de um reco-
pai da história”, podendo até imaginá- nhecimento mútuo, a demanda por
-lo contrito. Essa mudança de papéis perfeição ou coerência é reduzida; o
geralmente produz um degelo signifi- cliente pode mais facilmente reconhe-
cativo nos relacionamentos. cer falhas ou ambivalências. Os parti-
Estabelecer a presença dos outros: É cipantes começam a escutar com mais
dentro das relações que adquirimos os simpatia um ao outro. De fato, eles
inúmeros recursos de seres múltiplos. começam a fundir, integrar ou reco-
Podemos acessar essas vozes através nhecer as multiplicidades, assim no-
do diálogo, como dito anteriormente, vas possibilidades relacionais podem
ou elas podem ser “invocadas” den- emergir.
tro da própria da sala de terapia. Pen- Reflexão sobre repercussões: Final-
so aqui no trabalho do terapeuta Karl mente, menciono o trabalho dos filó-
Tomm (1998) e sua prática de explorar sofos orientados terapeuticamente (ou
os outros internalizados que os clientes terapeutas orientados filosoficamen-
trazem consigo para a terapia. Tomm te) que abordam questões de valores
pede aos clientes que descrevam os múltiplos no diálogo direto (vide, por
sentimentos e visões daqueles que não exemplo, Schuster, 1999). Essa abor-
estão presentes. Por exemplo, se um dagem pode incluir discussões abstra-
cliente é muito crítico em relação à tas sobre temas como valores funda-
esposa, a um chefe ou vizinho, o tera- mentais, a relatividade dos valores e a
peuta pode pedir ao cliente que entre virtude. Porém, em minha opinião, o
na pele do outro. O que ele ou ela di- mais importante é que essas discussões
ria, que história contaria? Se o cliente podem abarcar uma rede muito maior
é depressivo, que pontos positivos os de relações nas quais os indivíduos
outros poderiam achar nele? Algumas estão engajados e as conse­ quências
abordagens terapêuticas colocam uma de suas várias ações. “Quais são as
cadeira vazia para representar a parte repercussões de seus atos para sua
ausente. A pessoa ausente é agora nota- família, comunidade ou para o mun-
da no diálogo que se segue. Ao trazer à do em geral?” Tais discussões podem
consciência valores conflitantes, pode- distanciar-se de um questionamento
mos extrapolar as polaridades morais. abstrato de valores para confrontar a
Investigação Apreciativa: As pessoas importância dos relacionamentos dos
são relutantes em explorar alternati- clientes e sua contínua vitalidade.
vas ao seu estilo habitual de vida, por Essas poucas práticas são apenas
medo de ter que admitir fraquezas, ilustrações das possibilidades de mu-

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dança da ética de primeira para se- ramos querido ou digno – tudo que é
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gunda ordem no relacionamento te- significativo ou valioso na vida – tem
rapêutico. Elas abrem espaço para a suas origens no processo relacional,
percepção de visões múltiplas do bem então podemos querer nutrir e apoiar
e a importância do processo relacional esse processo. Ao contrário, entrar em
da qual derivam. Trazem à tona vozes conflito de bens rivais nos leva para o
conflitantes, criando estilos de vida nos fim da significação.
quais podem ser integradas. Após da- Do presente ponto de vista, tam-
rem à luz a um ser individual dentro do bém abandonamos a discussão do que
processo relacional, é minha esperança é moral ou ético em qualquer sentido
que essas práticas possam nutrir um cultural ou historicamente transcen-
processo vivificante para todos nós. dente. Ao contrário, a ética relacional
nos convida a mudar do foco argu-
mentativo abstrato para o domínio
PENSAMENTOS FINAIS da prática. As éticas relacionais são
essencialmente alcançadas dentro de
Como tenho proposto, a postura éti- um processo contínuo de se relacionar.
ca do terapeuta se estende além do Entendo que as profissões terapêuticas
relacionamento terapêutico. A vida estão em uma posição excelente para
do mundo terapêutico ondula em um criar tais práticas. Virtualmente única
imenso mar de relações. É nesse as- entre as profissões, os terapeutas es-
pecto que a ética relacional explorada tão em consonância com a exposição
aqui é uma que incorpora – sem acei- ao experimento com as práticas de
tar – todas as tradições de valores mo- construção de relações, discutir sobre
rais. Ela busca sair dos mundos par- seus potenciais e compartilhá-los com
ticulares em que vivemos e construir o público. Ao buscar práticas relacio-
pontes entre eles. Isso não significa nalmente éticas, os terapeutas podem
sacrificar os próprios valores como contribuir significativamente com o
terapeuta, nem simpatizar com todas futuro bem-estar da cultura.
as inclinações que satisfaçam o cliente.
Mas significa realmente resistir à ten-
tação de estar certo, de saber o que é Referências
o bem. Significa capacitar o processo
pelo qual inúmeros mundos se tornem Gergen, K.J. (2008). Therapeutic chal-
mutualmente infusos. lenges of multi-being. Journal of Fa-
Essa orientação relacional torna-se mily Therapy, 30, 4, 335-350.
agora uma fundação sobre a qual po- Gergen, K.J. (2009). Relational Being:
demos finalmente julgar entre boas e Beyond Self and Community. New
más ações – por exemplo, aquelas que York: Oxford University Press.
podem favorecer os relacionamentos McNamee, S., & Gergen, K.J. (1999).
positivos ao invés dos negativos? De Relational responsibility: Resources
maneira alguma. Fazer tal afirmativa for sustainable dialogue. Thousand
seria o mesmo que repetir os efeitos Oaks, CA.: Sage.
divisores da moralidade da primeira Penn, P. (2009). Joined Imaginations.
ordem. O que é proposto aqui é a fun- Chagrin Falls, OH: Taos Institute
dação não-fundacional, ou seja, uma Publications.
ética sem uma referência absoluta para Schuster, S.C. (1999). Philosophy and
o julgamento. Se tudo o que conside- practice: An alternative to counse-

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ling and psychotherapy. New York: (pp. 198-218). San Francisco, CA: Momentos de Referência
Praeger. Jossey-Bass. Comum na Comunicação 21
Dialógica
Tomm, K., Hoyt, M., & Madigan, S. White, M. (2007). Maps of Narrative John Shotter

(1998). Honoring our Internalized Practice. New York: W.W. Norton.


Others and the Ethics of Caring: Wittgenstein, L. (1953). Philosophical
A conversation with Karl Tomm. Investigations. (Trad. G. Anscom-
In M. HOYT (Ed.), The Hand- be). New York: Macmillan.
book of Constructive Therapies

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