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Direito e Poder

Michel Foucault
Poder como Soberania
Para ele, não existe algo unitário e global
chamado poder, mas sim formas díspares
heterogêneas e em constante mutação. Ele
não é uma coisa, mas uma prática social
constituída historicamente, que não está
presente unicamente no Estado. Sua
análise ultrapassa, portanto, a concepção
jurídica-liberal do poder político e as
concepções marxistas.
Poder como ação social
“Por dominação não se deve entender o fato de
uma dominação global de um sobre os outros, ou
de um grupo sobre outro, mas as múltiplas
formas de dominação que podem se exercer
numa sociedade. Portanto, não o rei em sua
posição central, mas os súditos em suas relações
recíprocas: não a soberania em seu edifício único,
mas as múltiplas sujeições que existem e
funcionam no interior do corpo social”.
Poder e vigilância
Nos séculos XVII e XVIII, ocorre um fenômeno
importante, a invenção de uma nova mecânica de
poder, com procedimentos específicos,
instrumentos novos, e aparelhos incompatíveis
com as tradicionais relações de soberania. Estes
poderes se exercem continuamente através da
vigilância, e que, portanto, necessitam mais de
um sistema minucioso de coerções materiais do
que propriamente a existência física do soberano.
Os poderes disciplinares
As teorias da soberania, fundamentadas na
existência física do soberano, estavam mais
vinculadas a uma forma de poder que se exercia
muito mais sobre a terra e seus produtos do que
sobre os corpos e seus atos. Neste sentido, este
novo tipo de poder, que não pode ser explicado
nos termos da soberania, constitui uma grande
invenção da sociedade burguesa e figurou como
um instrumento fundamental para a constituição
do capitalismo industrial. São os chamados
“poderes disciplinares.”
Disciplina, obediência e
utilidade
O surgimento histórico das disciplinas
acompanha o nascimento de uma arte do
corpo humano que visa, não unicamente o
aumento das suas habilidades, nem
tampouco aprofundar sua sujeição, mas a
formação de uma relação que, no mesmo
mecanismo, o torne mais obediente na
medida em que o torna mais útil.
Poder e eficiência
O corpo humano entra numa maquinaria
de poder que o esquadrinha, o desarticula
e o recompõe, constituindo uma anatomia
política, que é também uma mecânica de
poder, pois ela define como se pode ter
domínio sobre o corpo dos outros, não
simplesmente para que se façam o que se
quer, mas para que se operem, como se
quer, com as técnicas, segundo a rapidez e
a eficácia que se determina.
Elas surgiram para ajustar a multiplicidade
de homens a multiplicação dos aparelhos
de produção, não só econômicos, mas,
também, que produzem saber e aptidões
escolares, bem como a produção de saúde
dos hospitais e a produção destrutiva do
exército.
Os corpos dóceis
A disciplina fabrica corpos submissos e
exercitados, os chamados “corpos dóceis”.
A disciplina desempenha um papel
ambíguo, pois, ao mesmo tempo, aumenta
as forças do corpo (em termos econômicos
de utilidade) e diminui essas mesmas
forças (em termos políticos de obediência).
A projeção maciça dos métodos militares sobre a
organização industrial foi um exemplo dessa
modelação da divisão do trabalho a partir de
esquemas de poder. O sucesso do poder
disciplinar, que é bastante humilde se comparado
aos rituais majestosos da soberania, necessita da
utilização de instrumentos simples: o olhar
hierárquico, a sanção normalizadora e sua
combinação num procedimento específico, que é
o exame.
A vigilância hierárquica
A vigilância hierárquica deve obrigar e induzir os
efeitos de poder pelo jogo do olhar. Tem como
modelo quase ideal o acampamento militar, onde
todo o poder seria exercido somente pelo jogo de
uma vigilância exata e cada olhar seria uma peça
fundamental no seu funcionamento global. Este
diagrama de poder serviu de modelo para a
construção das cidades operárias, dos hospitais,
das prisões e das casas de educação.
Neste sentido, a arquitetura não existe mais para
ser vista (palácios), nem para vigiar o espaço
exterior (fortalezas), mas para permitir um
controle interior, articulado e detalhado.
Nas fábricas e oficinas, também se organizou um
tipo novo de vigilância, que passou a não se
efetuar só sobre a produção, mas ao longo de
todo o processo do trabalho, levando em conta a
atividade dos homens, seu conhecimento
técnico, sua rapidez, e seu zelo.
A escola passou a integrar, no interior de um
dispositivo único, três procedimentos: o ensino
propriamente dito, a aquisição dos
conhecimentos pelo próprio exercício da
atividade pedagógica, e uma observação
recíproca e hierarquizada. Uma relação de
fiscalização, definida e regulada, está inserida na
essência da prática do ensino: não como uma
peça adjacente, mas como um mecanismo que
lhe é inerente e multiplica a sua eficiência.
Poder como máquina
O poder não se detém como uma coisa, e,
portanto, não pode ser transferido como uma
propriedade. Ele funciona como uma “máquina”,
onde, embora sua organização piramidal lhe dê
um chefe, é o aparelho inteiro que “produz”
poder e distribui os indivíduos neste campo
permanente e contínuo. Não deixa nenhuma
parte às escuras e controla continuamente os
mesmos indivíduos que estão encarregados de
controlar; e a absolutamente “discreto”, pois
funciona permanentemente e em grande parte
em silêncio.
A sanção normalizadora
Na oficina, na escola, no exército, a disciplina
funcionou como repressor de uma micro-
penalidade do tempo (atrasos, ausências,
interrupções das tarefas) da atividade
(desatenção, negligência, falta de zelo) da
maneira de ser (grosseria, desobediência), dos
discursos (tagarelice, insolência) do corpo
(atitudes incorretas sujeira) da sexualidade
(indecência). Para punir tais comportamentos, ela
pôs em ação toda uma série de processos sutis,
que vão do castigo físico leve, a privações ligeiras
e pequenas humilhações.
Disciplina e correção
O castigo disciplinar tem a função de
reduzir os desvios, por isso deve ser
essencialmente corretivo. Ele privilegia as
punições que são “exercícios repetidos”,
que almejam fortalecer o aprendizado.
“Castigar” é “exercitar”. A “penalidade
perpétua”, que atravessa todos os pontos e
controla todos os instantes das instituições
disciplinares, “compara”, “diferencia”,
“hierarquiza”, “homogeiniza” ou “exclui”.
O exame
O exame, por sua vez, combina as técnicas
da hierarquia, que vigia, e as da sanção que
normaliza. Trata-se de um controle que
permite qualificar, classificar e punir.
Estabelece-se sobre os indivíduos uma
visibilidade através da qual eles são
diferenciados e sancionados, por isso de
todos os dispositivos da disciplina o exame
é altamente ritualizado.
Inversão da visibilidade
Tradicionalmente, o poder é o que se vê,
sendo que aqueles sobre o qual ele é
exercido podem ficar esquecidos. A
aparição solene do soberano trazia consigo
qualquer coisa da consagração, do
coroamento, do retorno da vitória, onde até
mesmo os rituais funerários se
desenrolavam no brilho do poder exibido
durante a vida.
O poder disciplinar, ao contrário, se exerce
tornando-se invisível: em compensação
impõe aos que submete um princípio de
visibilidade obrigatória. Na disciplina, são
os “súditos” que devem ser vistos. Sua
iluminação assegura a garra do poder que
se exerce sobre eles. É o fato de ser visto
sem cessar, de sempre poder ser visto, que
mantém o indivíduo disciplinar como
“sujeito”.
O Panóptico
A vigilância permanente
O Panóptico de Bentham é a figura
arquitetural ideal do exercício do poder
disciplinar. . O efeito mais importante do
panóptico: induzir no detento um estado
consciente e permanente de visibilidade
que o expõe e que assegura o
funcionamento automático do poder. Ele
faz com que a vigilância seja permanente
em seus efeitos, mesmo que seja
descontínua em sua ação.
Quanto mais inútil for a atualidade de seu
exercício, mais perfeita torna-se a relação de
poder, pois o essencial não é que o preso seja de
fato vigiado sem cessar, mas que ele se sinta
vigiado. O poder deve ser visível, mas, ao mesmo
tempo, inverificável. Todo o tempo, o detento
terá diante dos olhos a alta silhueta da torre
central, de onde é espionado. Por outro lado, ele
nunca deve saber se de fato está sendo
observado, mas apenas ter a certeza de que
sempre pode sê-lo.
As janelas da sala central, onde fica o vigia,
devem ter persianas, onde se vê tudo, sem
nunca ser visto. No anel periférico, se é
totalmente visto, sem nunca nada ver. O
panóptico é uma máquina surpreendente,
que, a partir dos desejos humanos mais
diversos, fabrica efeitos homogêneos de
poder.
Não é necessário recorrer à força para
obrigar o condenado ao bom
comportamento, o louco à calma, o
operário ao trabalho. Todos que estão
submetidos a um campo de visibilidade, e
sabem disso, retomam por sua conta as
limitações do poder, fazendo-as funcionar
espontaneamente sobre si mesmos.
A disciplina social
Qualquer membro da sociedade terá
direito de constatar, com seus olhos,
como funcionam as escolas, os
hospitais as fábricas e as prisões. Não
há risco do crescimento do poder
devido à máquina panóptica possa
degenerar em tirania, pois o
dispositivo disciplinar será
democraticamente controlado.
Com o poder aumentando as suas
forças, ele poderá fazer crescer o da
sociedade em vez de confiscá-lo ou
refreá-lo. A majoração produtiva do
poder só pode ser assegurada se, por
um lado, ele tem possibilidade de se
exercer de maneira contínua nos
alicerces da sociedade, até seu mais
fino grau.
A igualdade jurídica
A igualdade jurídica, que garantia um
sistema de direitos a todos
universalmente, era sustentada por
esses mecanismos miúdos,
quotidianos e físicos, ou seja, por
todos esses sistemas de poder
essencialmente não igualitários e
assimétricos.
No momento em que, formalmente, o
sistema político representativo
permite que direta ou indiretamente a
“vontade de todos” forme a
substância fundamental da soberania,
as disciplinas fornecerão, na base, a
necessária garantia de submissão das
forças e corpos.

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