Você está na página 1de 5

As Três Grandes Disrupções da Indústria Automotiva em 120 anos (1910-2030)

Introdução: A minha relação com a indústria automotiva

Não sou um expert da indústria automotiva. Apenas um especialista em estratégia e inovação e um estudioso
das teorias da disrupção do Professor Clayton Christensen em Harvard. Não obstante, tenho o orgulho de
dizer que a minha trajetória profissional teve início justamente no setor automotivo, como Assistente do
Diretor Técnico da Implantação do Complexo Industrial da FIAT em Betim-MG, de 1974 a 1976. Em 1997 fui
transferido para Xerém, no Rio de Janeiro, onde atuei como Gerente de Projeto da Expansão e Reforma da
FIAT DIESEL (fábrica de caminhões na antiga FNM – Fábrica Nacional de Motores). Deixei a FIAT em meados
de 1978 para trabalhar na ABB, uma multinacional suíço-sueca de automação e robótica.

Mais tarde, em 1986, viajei para o Japão para estudar o Sistema Toyota de Produção. Tive o privilégio de ser
aluno de Taiichi Ohno e Shigeo Shingo, os pais do Kanban, do Pokayokê e do Just-in-Time da Toyota, além de
Yasuhiro Monden da Universidade de Tsukuba. Talvez esta tenha sido a mais rica, densa e fascinante
experiência de aprendizado da minha vida, porque envolveu não apenas os aspectos técnicos de engenharia
industrial e dos princípios filosóficos de gestão, da manufatura enxuta e flexível (“lean”), que revolucionaram
a indústria no mundo daí em diante, mas sobretudo pela oportunidade de começar a entender a cultura
japonesa e a sua história milenar.

Trataremos de identificar e analisar, em três artigos sucessivos, as causas subjacentes aos três grandes
processos de disrupção na indústria automotiva entre 1910 e 2030, que culminaram com a emergência de
novos líderes do mercado global, no caso, a Ford a partir de 1912, a Toyota mais ou menos a partir de 1960
e a Tesla, de 2020 em diante, considerando que em valor de mercado a Tesla já é hoje a maior montadora.
Importante destacar que a disrupção na indústria automotiva não é um fenômeno meteórico de curto prazo,
mas sim um processo revolucionário e de ruptura lenta, que dura em média de 10 a 20 anos.

Fonte: Wikipedia
Você sabia que até 1912, o mercado automobilístico dos Estados Unidos e mundial era dominado por carros
elétricos, tendo alcançado nesse ano o recorde de 30.000 veículos elétricos em circulação?

Neste primeiro artigo, trataremos da disrupção da indústria automotiva de 1910 a 1930, após a introdução
do Ford Modelo T, em 1908, e da linha de montagem seriada em 1913, por Henry Ford. Veremos ainda como
o florescimento da indústria do petróleo impulsionou essa disrupção. Outro aspecto relevante a se notar é
que, como bem diz o notável Ram Charan, que foi o meu mestre de estratégia na Columbia University em
1992, a batalha da disrupção não é travada entre o concorrente A versus o concorrente B, mas é entre os
ecossistemas onde estão inseridos os concorrentes A e B. Portanto, a disrupção na indústria não é um
fenômeno novo, pois sua origem remonta ao início da era industrial, desde a introdução do motor a vapor.

A Primeira Grande Disrupção na Indústria Automotiva: 1910-1930

Segundo os registros históricos, os precursores do carro elétrico e do carro com motor a combustão, como
hoje conhecidos, remontam ao final do Século XIX. Inicialmente na forma de triciclos, desenvolvidos como
modelos experimentais, tanto com motores a combustão por Siegfrid Marcus (Áustria, 1870), Édouard
Delamare-Deboutteville (França, 1883) e Carl Benz (Alemanha, 1886), bem como, carros elétricos à bateria
por Gustave Trouvé (França, 1881) e Thomas Parker (EUA, 1884). Henry Ford, um engenheiro mecânico
apaixonado por motores a combustão, construiu o seu primeiro protótipo de quadriciclo em 1899.

Por outro lado, Thomas Edison, um dos inventores e empreendedores poderosos da época, entusiasta da
eletricidade e fundador da Edison Electric Co., precursora da GE, apostava no sucesso dos carros elétricos à
bateria. As baterias chumbo-ácido recarregáveis, inventadas por Gaston Planté em 1859, eram as mais
utilizadas. Porém, Edison equipou seu veículo com uma batéria níquel-ferro, que segundo ele, apesar de mais
pesadas e mais caras, possibilitavam uma recarga muito mais rápida.

Mesmo antes da virada do século XIX para XX, já havia uma competição entre os sistemas de propulsão à
bateria elétrica e de combustão à gasolina, para ver qual deles seria o mais eficiente em termos de velocidade
final do veículo. A marca de 100 Km/hora foi alcançada pelo belga Camille Jenatzy em 1899 com um carro
elétrico e, assim, os elétricos passaram a ser reconhecidos como mais rápidos.

Em 1900, mais de 30% dos carros nos EUA já eram elétricos, porém, a quantidade total de carros ainda era
pequena e concentrada nas grandes cidades. Em 1912 atingiram o seu apogeu, com mais de 60% dos carros
sendo elétricos, dominando o mercado americano com mais de 30.000 veículos em circulação. Entretanto,
tratava-se de um produto caro e acessível apenas a pessoas de alto ou médio-alto poder aquisitivo.

Em 1870, o belga Edward de Smedt após imigrar para os EUA, desenvolveu na Universidade de Colúmbia a
tecnologia da pavimentação asfáltica em camadas, a partir do betume extraído in natura de depósitos de
xisto. Tratava-se de um insumo caro, pois dependia da extração e transporte de longa distância, sendo que
os maiores campos naturais estavam localizados na Ilha de Trinidad, no Caribe, e na Provîncia de Alberta, no
Canadá. Porém, já em 1872, muitas das grandes cidades americanas tiveram suas ruas principais asfaltadas.
Entretanto, a massificação do asfalto e a sua capilarização pelo interior, com a construção de estradas de
ligação entre cidades, só veio a acontecer depois de 1908, logo após o boom petrolífero do Texas e o
desenvolvimento da tecnologia do craqueamento do petróleo em grandes refinarias, tendo como
subproduto o asfalto, em abundância e muito mais barato.

Henry Ford, depois de fundar em 1899 a Detroit Automobile Co., a sua primeira fábrica de automóveis com
motores a combustão e que, depois de fabricar apenas 12 veículos, de qualidade inferior e alto custo, faliu
em 1901. Ford passou então a dedicar-se a protótipos esportivos para competição de velocidade, tendo
atraído grande interesse do público e alcançado sucesso de popularidade e financeiro. Em 1903, fundou a
Ford Motor Co. e construiu um novo modelo de carro para corrida com motor a combustão, com o qual
alcançou o recorde de velocidade de 147 Km/h, sobre o Lago Saint Claire congelado. Isto teve uma grande
repercussão na época e serviu como propaganda que impulsionou as ideias de Henry Ford, voltadas para a
popularização do automóvel.

O advento da pavimentação asfáltica e da melhoria das estradas, interligando cidades, possibilitou que os
automóveis desenvolvessem maior velocidade média, encurtando o tempo de viagem. Todavia, a grande
competição entre o carro elétrico e o carro com motor a combustão à gasolina, passou a ser a autonomia e
não necessariamente a velocidade máxima. A bateria que alimentava o carro elétrico era muito pesada,
representava quase 50% do custo do automóvel e permitia uma autonomia máxima de 40 Km. E este passou
a ser o calcanhar de Aquiles do carro elétrico, embora dominante até 1912.

Fontes: Christensen, Clayton. LOW-END DISRUPTION. Elaborado/adaptado e complementado pelo autor.

Veremos que a primeira grande disrupção da indústria automotiva, ocorrida entre 1910 e 1930, decorreu do
embate entre dois ecossistemas, que envolviam os dois sistemas de propulsão disitintos, como componentes
principais e definidores de desempenho do automóvel (PDC1), no caso, o sistema da bateria e a sua recarga
pela rede elétrica de distribuição versus o sistema do motor a combustão, com o tanque de combustível e o
seu reabastecimento na rede de postos de distribuição.

Naquela época, a rede elétrica atendia aos consumidores industriais e residenciais localizados nos centros
urbanos e a sua eventual expansão, com a capilarização para o interior e ao longo das estradas, somente se
tornaria economicamente viável, se estivessem presentes os mesmos fatores de demanda industrial e
residencial. Portanto, a inexistência e a inviabilidade da expansão da rede elétrica para recarga das baterias

1
PDC = Perfomance Defining Component, que conforme o Prof. Clayton Christensen constitui o elemento principal e
definidor de desempenho de uma solução ou produto e cuja dominância tecnológica é fator estratégico decisivo para
o sucesso de uma empresa ou negócio.
dos carros elétricos nas periferias e ao longo das estradas, constituiu-se em mais um fator de dirupção do
ecossistema do carro elétrico, frente à facilidade de granelização e transporte dos combustíveis, somada ao
crescente poder econômico e lobby das empresas petrolíferas, que logo promoveram a rápida instalação de
um sistema de distribuição de combustíveis, com linhas tronco em dutos e uma extensa rede terceirizada de
postos, pulverizada nas cidades, vilas e ao longo das estradas. Resultado: a autonomia cada vez maior dos
carros com motor a gasolina, aliada à garantia de reabastecimento numa extensa rede de postos, inclusive
nas estradas, foi aos poucos matando o carro elétrico à bateria, que em 1930 já estava extinto.

Fontes: Christensen, Clayton. O Embate de Dois Ecossistemas. Adaptado pelo autor

Para se ter uma ideia da relevância do fator autonomia, em 2020 a Tesla anunciou com grande fanfarra que
as bateriais de última geração dos seus modelos de carros elétricos já teriam alcançado a autonomia de até
400 Km. Ou seja, depois de mais de cem anos de desenvolvimento da tecnologia das baterias, os carros
elétricos começam a encostar nos carros com motor à combustão, em termos de autonomia.

O Lançamento do Ford Modelo T e a Revolução no Sistema de Produção

O automóvel com motor à gasolina Modelo T lançado por Henry Ford em 1908, trouxe inúmeras inovações
importantes, como o volante no lado direito, o motor e a caixa de transmissão fechados, os quatro cilindros
do motor fundidos em um bloco sólido e a suspensão com molas semi-elípticas. Obcecado com a ideia da
popularização do automóvel, Ford perseguia obstinadamente a eficiência e a redução dos custos de
produção, através da mecanização do trabalho, da produção em massa, da padronização dos materiais e dos
equipamentos e, por consequência dos produtos, e de novas técnicas de gestão, além da motivação e
retenção dos melhores funcionários. Já no lançamento o preço do Modelo T de US$ 825.00 representava
quase a metade do preço de um carro elétrico equivalente. Nasceram aí as teorias do Fordismo, baseadas na
verticalização da fábrica, na padronização dos componentes e na sua produção em grande escala e com
metas de eficiência, com maior qualificação e remuneração dos colaboradores, bem como, no novo conceito
de linha de montagem seriada e contínua, sobre esteiras móveis e cronometradas, que foi iniciada em 1913.

Com essa monumental redução de custos, o Modelo T tornou-se acessível à base da pirâmidade de renda,
incorporando novos consumidores ao mercado de automóveis, aqueles de baixa renda ou não consumidores,
caracterizando-se aí o caso típico da disrupção de baixo para cima, ou Low-End Disruption2. A cada ano, o
preço do Modelo T caia; em 1916 chegou a US$ 360.00, de forma que em 1918, a metade dos veículos em
circulação nos EUA já era de Modelos T, com produção anual de 472.000 veículos (1916). O Modelo T
permaneceu inalterado e sua produção total, interrompida somente em 1927, totalizou mais de 15 milhões
de unidades de um mesmo modelo, recorde que permaneceu por 45 anos

Ao mesmo tempo, Henry Ford inovou também no sistema de marketing, vendas e distribuição do Ford
Modelo T, tendo criado um sólido sistema de publicidade e uma extensa rede de concessionários
independentes franqueados, aproveitando a contínua redução dos custos como uma alavanca de expansão,
aumentando os lucros dos concessionários, que tornaram a marca Ford onipresente em todo o país. O
Modelo T era muito simples e fácil de dirigir e tinha uma manutenção barata. A novidade despertou também
um grande interesse pelo automobilismo e a formação de clubes e associações de motoristas e proprietários
de automóveis locais em todas as cidades, para compartilhar conhecimentos, experiências e aventuras, se
tornou uma mania nacional.

Em razão do forte viés de padronização e eficiência, ou seja, menor variedade e produção em massa para a
redução de custos, destinada à incorporação dos não-consumidores ao mercado, fica evidente o conceito
clássico de “good enough”3 inerente aos processos disruptivos, ou seja, o produto que é barato e bom o
suficiente para a grande maioria. Algumas célebres frases trazidas por Henry Ford em sua autobiografia são
indicativas dessa visão estrita, tais como: “O cliente pode ter o carro da cor que quiser, contanto que seja
preto”. “Se tivesse feito o que meus clientes pediam, teria construído uma carruagem com mais cavalos ao
invés do Modelo T.”

No próximo artigo trataremos do Toyotismo e da Segunda Grande Disrupção da Indústria Automotiva,


protoganizada pela Toyota e pelos lendários Taiichi Ohno e Shigeo Shingo, pais do Kanban, do Pokayokê e da
revolução da manufatura pela lógica reversa do conceito Just-in-Time, do desperdício zero, do inventário
zero, da colaboração em rede de parceiros sincronizados, que em muitos aspectos, mas não em todos, é a
antítese do Fordismo.

Mauro G. Baleeiro é Engenheiro, Empreendedor e Conselheiro Independente. Certificado em Estratégia e


Inovação pelo MIT. E-diploma em Estratégias Disruptivas e Teorias da Disrupção pela Harvard Business
School.

2
Low-End Disruption: termo cunhado pelo Prof. Clayton Christensen da Harvard Business School, significando a
disrupção do mercado pela incorporação de novos consumidores da base da pirâmide de renda, os de baixa renda e os
não consumidores, e que, em razão da sua incomparável escala, levam o disruptor à liderança do mercado, e sucessivo
deslocamento dos players dos mercados de média e alta renda.
3
Good Enough”: termo utilizado pelo Prof. Clayton Christensen da Harvard Business School.

Você também pode gostar