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“La passion d’être um autre: étude pour la danse”

A paixão de ser um outro: estudo sobre a dança


PIERRE LEGENDRE

Do amor teatral

A dança é uma prova teatral do amor, e este “pôr à prova” da


realidade do sexo embaraça a ideologia gestionária. Que fazer do
argumento imaginário na reprodução política?

A questão requer grandes desenvolvimentos. Se começa a


farejar os imensos recursos de um tal modo de discurso como
este para a manutenção humana. Pressionados por
empreendimentos científico-culturais cujo essencial é
massivamente ignorado em França, ou pelas iniciativas da escala
burocrática internacional por sua vez tratadas como mobilizar
negligenciáveis, nós entramos passo a passo na era da
programação industrial aplicada à dança. Em termos
especializados, se trata de gerenciar as tensões, de mobilizar
esta ciência da coreografia, cada vez mais fecunda , mas também
cada vez mais submetidas às normas da promoção publicitária,
ela-mesma dependente de vastas redes de influencias e de
negociações onde os organismos oficiais, tais que o Conselho
Internacional da Dança criado pela UNESCO (1973), refletem o
grande jogo ideológico. O fato de um tal desarranjo, tão
carregado de problemas e pesado de nossos sintomas, deixa
indiferentes os profissionais das ciências da organização ou
alguns produtores de televisão, quando os Estados logo vão se
apropriar de novas propagandas, esta negligencia enorme em
realidade se explica: apesar da expansão das pesquisas e desta
repentina efervescência para contabilizar seus resultados,
paradoxalmente se ignora ainda aquilo que, do lado da dança, se
trama com o animal humano.

A mesma ignorância afeta o quadro político. Este livro se propõe


a indicar o ponto preciso da ignorância, uma falta de saber e
porque é tão difícil de preencher esta lacuna. Eu apresento então
uma ligeira contribuição a fim de desenredar a questão
fundamental. Como a música, a dança continua um enigma. O
inconsciente para este discurso mudo, é extrapolado; tudo é
dito, o texto do desejo está a descoberto.

Ler este texto é possível? Nós não queremos saber muito sobre o
corpo de troca onde a Lei se expõe ao amor. Sem dúvida
destacou-se desde muito tempo, do lado da psicanálise, o que se
convencionou chamar de uma simbologia sexual das danças,
comentário levemente psicologista de Robitsek numa
contribuição, hoje muito esquecida, na revista Imago (1925).
Ora, o assunto deve ser retomado desde mais atrás, pois se trata
de recapitular a conta legal, isto é, mítica, das coisas. O valor
orgásmico da dança, já identificado por Freud, define a
instituição, o lugar mesmo dos valores, isto é, o deus mesmo que
estipula o interdito. A divinidade da dança é demonstrável, tanto
para os ocidentais quanto para os outros. Mas saber disso, saber
esta selvageria, seria romper a cultura, colocar em dúvida
seriamente as propagandas, citar as crenças que são também a
parte do fogo num sistema de organização, em pleno regime
industrial. A este preço, ao preço de descobrir a radical
bestialidade da organização civilizada, marcando seu gado, a
antropologia não é suportável. As vezes em que não se
acreditaria mais , o que aconteceria?
Ao longo do meu trabalho, trataremos muito da Lei, conceito
eminentemente analítico pelo qual nós somos introduzidos no
funcionamento do mito, desta ordem textual onde se define o
dogma social que exprime o amor do poder. Na escala das
instituições e no estudo de um sistema tão estreitamente
dependente da acumulação histórica, uma tal referencia cria
dificuldade. Quase não se tem o hábito de raciocinar com este
instrumento jurídico, ou então este termo permanece impreciso.
O Outro da Lei não se vê nem se proclama por vozes ordinárias, e
seu reconhecimento é ainda menos fácil pelo fato que as
instituições não tem corpo; por consequência, não se poderia
contornar os problemas se agarrando ao inconsciente coletivo,
noção absurda. É necessário admitir nossa própria selvageria.
Para remediar a falta de corpo, as organizações se desenvolvem
pela prática da idolatria, graças às quais os sujeitos do desejo
inconsciente desembaraçam a desordem das coisas e acabam
por concordar sobre isto: o poder lhes fala, por mais desprovido
de corpo que seja. Assim nos tornamos sujeito das instituições.

Este fato comanda todas as manifestações dogmáticas, mas é


hoje mascarado e as ciências da organização o denegam. O
desdobramento do regime industrial se propõe como fábrica
para fazer instituições, para fabricar uma humanidade sem mito
e sem cultura. Idealmente, este investimento do discurso opera a
título de anti-selvageria, enquanto que a antropologia
permanece antes de tudo a ferramenta colonial, afiada para seu
objeto e somente para ele. Ora, a psicanálise é nas nossas mãos
uma espécie de objeto encontrado, um instrumento nascido do
do regime industrial no espaço das ciências, mas que desmente a
aposta de uma humanidade sem mito nem cultura. A prova do
mito e da cultura se encontra indefinidamente e massivamente
produzida na humanidade pela questão incessantemente
reaberta da castração, isto é, ao princípio mesmo de sua
construção por cada animal humano. Nesta articulação, a
psicanálise se situa ela mesma como saber titular, saber em
título sobre o dogma descendente do mito. Toda reflexão sobre
a Lei é essencialmente reflexão sobre o mito, e de uma maneira
ou de outra, transgressão da ideologia industrial, a qual se
inscreve dogmaticamente no dispositivo dos saberes autorizados
e funciona como catequese da novas verdades. As dificuldades
para abordar de frente os problemas atuais da dança, por parte
da telecomunicação de massa ou pelo alto patronato
universitário das ciências ditas políticas, não são então nem mais
nem menos que uma censura tradicional. O leitor deverá ter isto
em conta, a fim de avaliar a gravidade do que está em jogo.

A dança é a questão mesma da reprodução.

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