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Entrevista com Alfredo Bosi

P: É possível definir o modo de olhar de Machado de Assis? Quais as suas


características?
R: Definir o modo de olhar de Machado de Assis é uma das maiores dificuldades da
crítica, eu até chamei isso de enigma, o modo como Machado olha as suas criaturas. Ele
é um escritor realista, ele é um escritor preocupado com as determinações sociais, isto
é, as pessoas dentro das suas classes, dos seus estamentos, dos seus grupos. Então,
será que o olhar dele é um olhar social, no sentido clássico de determinação dos
comportamentos de cada personagem segundo a sua posição de classe? Uma boa
parte da crítica literária afirmou isto. Uma outra parte da crítica literária ficou mais
preocupada com a chamada intuição psicológica de Machado, isto é, ele observa não só
os comportamentos típicos das personagens, mas também as diferenças e, mais do que
isso, ele olha por dentro aquilo que a sociologia olharia por fora. Tudo isso compõe o
olhar de Machado. A minha idéia é de que o olhar dele seja circunspecto, essa palavra
quer dizer: pessoa que olha para todos os lados, como um círculo. A idéia de
circunspecção aqui não quer dizer só de gravidade, de seriedade, mas a capacidade de
olhar todas as posições e, dentro dessas posições, então, ele vê aquelas personagens
que são de fato típicas e que pertencem ao repertório da literatura realista, naturalista, e
ele vai um pouco mais a fundo, verificando como é que outras personagens reagem à
própria situação social. E há um ideal diferente, um ideal, vamos dizer, de vida, de uma
certa dignidade, um estoicismo muito raro nessas personagens.
A visão de Machado em geral é de quem olha a sociedade de baixo para cima, então ele
vê os motivos mesquinhos, as necessidades das personagens, mas isto não é a sua
única forma de ver. Eu diria que a riqueza de Machado de Assis está em ver tanto o tipo
como a riqueza pessoal, as diferenças que as personagens têm, às vezes dentro da
mesma classe. É por isso que o romance dele é difícil. Eu recomendo aos leitores, se
são leitores do curso secundário, que leiam sempre três ou quatro vezes um mesmo
romance. Uma leitura só, um olhar só sobre o Machado de Assis pode criar muitos
equívocos, dada esta sutileza na percepção das personagens.

P: É importante conhecer a vida de Machado para estudar sua obra?


R: Houve um tempo, quando eu estudava na faculdade, em que quase se proibia ler a
biografia dos autores, principalmente quando a crítica literária sofreu a influência do
estruturalismo nos anos 70 e parte dos anos 80. O crítico que partisse da biografia ou se
apoiasse na biografia era considerado um mau crítico, porque misturava vida e obra.
Então, talvez muitos de vocês e muitos professores de literatura tenham sido educados
nessa aversão à leitura biográfica “psicologizante”, etc. Mas eu acho que felizmente,
hoje, pela riqueza mesmo da cultura universitária, pelas abordagens múltiplas que se
fazem, esse preconceito desapareceu. É importante, sim, conhecer a vida de Machado
de Assis, e não apenas do ponto de vista metódico. É importante saber que ele foi um
menino pobre, filho de um pintor mulato e de uma lavadeira portuguesa, logo falecida.
Depois ele foi amadrinhado por uma pessoa, Dona Maria Inês, que durante um bom
tempo o apoiou. Depois ele entrou para a profissão de tipógrafo aos 16 anos, muito
cedo, portanto, já se meteu no meio dos livros e dos jornais. Daí por diante foi convidado
a participar dos jornais, enfim, uma vida ao mesmo tempo modesta, penosa, mas que foi
bem sucedida.
Uma observação que o professor Antonio Candido fez, que eu acho muito inteligente, é
que Machado de Assis furou muito depressa a barreira da cor e da classe, então não há
nele, vamos dizer, aquele longo período que produz o ressentimento, que é o caso de
Lima Barreto, que foi sempre um mestiço humilhado e ofendido. Machado teve apoios
suficientes, além do seu próprio valor, naturalmente, que é inegável, mas ele teve apoio
social suficiente para furar a barreira de classe e com isso ele passou a ter uma
compostura de homem de classe média e de classe média alta.
Há uma crítica que eu acho muito feliz, de uma historiadora da literatura que é a Lúcia
Miguel-Pereira, que escreveu a melhor biografia de Machado de Assis, nos anos 30, e
até hoje não foi superada. Lúcia Miguel-Pereira acredita que esta passagem de classe
de Machado de Assis e o seu afastamento em relação ao morro, em relação ao mundo
muito humilde da sua infância, não tenham acontecido sem consciência e sem marcas
profundas na psique de Machado, porque ele acabou transferindo essa posição de
homem que se afastou das origens para personagens femininas, sobretudo da primeira
fase. Então, as personagens femininas de Machado de Assis, da chamada primeira fase:
A Mão e a Luva, Iaiá Garcia; sobretudo as duas, Guiomar, de A Mão e a Luva, e Iaiá, de
Iaiá Garcia, são personagens que de alguma maneira superam voluntariamente o meio
social em que estão e ganham portanto um novo patrimônio. Isto é dito de uma tal
maneira, em Machado de Assis, que as absolve. Não existe, embora sejam obras
consideradas erroneamente românticas, não existe assim uma tematização da ingratidão
em relação à infância, em relação aos padrinhos; ao contrário, o romance é o romance
do triunfo dessas personagens que se afastaram e superaram as suas origens
modestas. Então, isto prova, se Lúcia Miguel-Pereira tem razão, se o seu raciocínio for
correto, que, em Machado, é importante conhecer a trajetória, a biografia, vamos dizer,
espiritual de Machado de Assis, porque, se isto for verdade, as personagens femininas
da primeira fase de alguma maneira se compreendem melhor, à luz desta superação
que Machado exerceu em si mesmo em relação ao passado. (...)

P: Quais as características das personagens femininas de Machado?


R: Hoje, naturalmente, está muito em moda pensar nas personagens femininas, não só
de Machado, mas em geral, com o crescimento da chamada literatura feminista, das
questões de gênero. De modo que voltar a Machado e ler Machado em função das
personagens femininas nos dá grandes surpresas, porque essas personagens não são
homogêneas. É muito difícil eu falar da personagem feminina de Machado de Assis, e
atribuir a essa personagem sempre as mesmas qualidades ou propriedades. Há, como
vimos, estas personagens que vencem a sua barreira de classe através das relações
naturais, isto é, relações afetivas, chamemos assim. Elas se aproveitam do
amadrinhamento, elas têm uma fase inicial em que estão subordinadas a uma situação
de favor e, depois disso, elas procuram dar o salto como é o caso de Guiomar, em A
Mão e a Luva, e parcialmente de Iaiá Garcia, no romance do mesmo nome. Elas
procuram dar o salto através de casamentos de interesse. Então, o que Machado quer
mostrar é que, se elas não agissem desta maneira, com este olhar assim astuto, elas
pereciam, elas cairiam na mediocridade da vida extremamente modesta, elas seriam
vencidas na vida. Então, parece haver realmente uma condescendência de Machado em
relação a estas personagens, que unem o instinto, a paixão e o interesse.
Quem consegue unir o instinto e o interesse é vitorioso, quem separa... Por exemplo,
Helena, um romance patético, talvez o único romance romântico dessa fase
impropriamente chamada romântica; Helena é uma personagem que tem em si ideais de
pureza, mas ela entrou numa família à qual não pertencia por direito e ficou em silêncio
durante muito tempo, aceitando essa situação.
Depois, a verdade vem à tona e sabe-se quem é o pai dela realmente. O Conselheiro
Vale tinha dito em documento que ela era sua filha, mas não era, era filha de um outro
homem; quando pelo desejo que ela tem de ir ao encontro desse pai, de alguma
maneira fica pública a sua relação com o seu verdadeiro pai — e, portanto, toda a
situação ficaria desmascarada — ela sofre fisicamente, ela chega a um ponto em que
não suporta mais ser considerada como uma impostora. Apesar disso, ela tem uma
proposta de casamento do filho daquela família, que agora pode ser feita
tranqüilamente, porque não há mais o perigo do incesto, já que inicialmente se
acreditava que o filho fosse um irmão por parte de pai; mas verifica-se que não é nada
disso, que ela pode perfeitamente casar-se com ele. Ela recebe a proposta desse rapaz,
e esse seria o momento de unir então os seus desejos mais íntimos, pois ela estava
apaixonada por esse rapaz — e sua situação de pertencente à família Vale finalmente se
consagraria. Mas ela recusa e depois tem uma crise moral e morre. Ora, morrer de
consciência não é muito comum, nem fora e nem dentro da literatura. Então, essa
personagem seria o oposto das personagens que em situação de ambigüidade
conseguem contorná-la astutamente e são vitoriosas, como é o caso de Guiomar e Iaiá
Garcia. São dois exemplos de uma fase considerada menos complexa de Machado de
Assis, mas dois exemplos que já mostram a diferença: Helena é o oposto de Guiomar, e
são duas personagens femininas.
Quando a gente passa para os grandes romances de Machado, como Dom Casmurro,
Quincas Borba e Memórias Póstumas de Brás Cubas, as personagens femininas já
estão com um status alto, e com esse status alto elas não vão perder nada mais; elas
podem até dar-se ao luxo de entabular namoros adulterinos, o que elas fazem com a
maior cautela. Dois casos evidentes são Virgília e Sofia. Capitu é o grande mistério, nós
não sabemos o que ela fez, alguns dizem até que sabem. Eu invejo essas pessoas que
têm certeza do que ela fez, mas eu não sei. Machado não chegou a nos contar com
tanta minúcia, então a gente sempre fica naquela suspensão da acusação, que é
realmente o ponto alto do drama de Bentinho. Mas, deixando de lado Capitu, já que
poderemos falar dela depois, certamente Virgília e Sofia são personagens que... a
primeira comete o adultério abertamente com Brás Cubas; a segunda ensaia um namoro
e depois foge rapidamente disso, porque ela percebe que Rubião já está chegando à
loucura. Sofia muito cautelosamente se afasta de Rubião, procura de toda a maneira
expulsá-lo daquele convívio, aliás, age com bastante crueldade com ele. Depois, ela
tem um namoro com outra personagem, mas também é alguma coisa que é apenas um
flerte, palavra que vocês não usam mais na adolescência. É um namoro, é um namorico,
mas que apenas mostra a vaidade dela de ser cortejada por Carlos Maria, que é um
rapaz muito brilhante, muito prestigiado na sociedade. E ela tem a vaidade de ser
cortejada. Mas, nos dois casos, essas duas personagens, uma cometendo o adultério, a
outra namorando com o adultério, nos dois casos elas procuram de toda a maneira
preservar a respeitabilidade social e elas logram isso perfeitamente. Então, num
momento de dúvida, como é o caso de Virgília, que foi convidada pelo seu amante para
ficar e não partir com o marido, ela não hesita e parte realmente com o marido, que vai
ser presidente de Província. Portanto, como se vê, para responder uma pergunta sobre
as personagens femininas de Machado, a gente tem que separar a primeira e a segunda
fase, e mostrar que a primeira fase tem características e personagens diferenciadas e a
segunda também; não dá para a gente criar o tipo da mulher machadiana, não existe
isso.

P: Em quantas fases é possível dividir a obra de Machado? E quais as suas


características?
R: Desde muito cedo a crítica literária dividiu a obra de Machado em duas fases, é
quase um consenso. Os chamados romances da primeira fase são: Ressurreição, A
Mão e a Luva, Helena, Iaiá Garcia. A partir de 1881, com a publicação das Memórias
Póstumas de Brás Cubas, teríamos os grandes romances, a fase plenamente realista,
com Memórias Póstumas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Memorial de
Aires. Teríamos quatro romances na primeira fase, até mais ou menos Machado
completar os seus 40 anos de idade, e ele os completou em 78; e depois, até a sua
morte, em 1908, nós teríamos a fase madura.
Há de fato uma diferença de estilo e de valor, eu diria isto; quer dizer, a crítica hoje tem
aprofundado os elementos que na primeira fase já nos fazem pressentir a segunda, isso
é muito importante. O próprio estudo da Lúcia Miguel-Pereira é um estudo que nos leva
a pensar a força da primeira fase, mas numa leitura assim, sem preconceitos críticos,
uma leitura horizontal. Se a gente lê uma obra depois da outra, percebe uma fratura
considerável a partir de Memórias Póstumas. Aí o romancista assume a primeira pessoa,
o que não acontecia nas obras anteriores, mas não é só uma diferença de terceira e
primeira pessoas, essa seria uma diferença formal, interessante mas não decisiva. Há
uma revolução interior em Machado de Assis. A ele foi perguntado, Lúcia Miguel-Pereira
lembra isso: por que você mudou tanto? Já os seus leitores contemporâneos sentiram e
havia quem perguntasse por que essa diferença; e ele teria respondido que, a partir dos
40 anos, ele teria perdido todas as ilusões, então esse seria o modo existencial, e esse
modo existencial teria produzido um outro tipo de narrador, um narrador que está
próximo do que a gente chamaria de cinismo. O que é o narrador cínico? É aquele que
vai contando de maneira despachada o que ele fez, porque fez, os pensamentos que ele
tinha atrás dos atos considerados até bondosos, pensamentos egoístas; enfim, tudo
aquilo que é, que vai ser a anatomia da miséria humana já está incorporado na voz do
narrador, sem que isso produza no narrador sofrimento ou arrependimento. Brás Cubas
já morreu, ele começa morto. Para os que não leram ainda o romance, saibam que é o
defunto autor quem começa dizendo que vai contar as suas memórias, tendo já morrido,
e que isso é muito bom, porque agora ele não precisa mais dar satisfação para ninguém,
não precisa temer ninguém. Ele está desafrontado, como ele diz, da brevidade do
século, uma maneira clássica de dizer que agora ele pode ser descarado, porque não
tem mais a cara ou a máscara necessária.

P: Sobre a tese de que o narrador mente de propósito...


R: Essa é uma tese que começa praticamente com os trabalhos de uma estudiosa norte-
americana, que estudou Dom Casmurro e ficou muito preocupada com o fato de que a
história de Capitu, tenha sido narrada pelo marido ciumento, Bentinho. Então há de fato
um drama aqui, um drama que termina com a acusação, a culpabilidade. Todos sabem
que Machado deixou isso em suspenso e não se sabe se Capitu é culpada ou não, esse
era um dos encantos do romance, porque aí o romance é sempre lido e relido com a
preocupação de encontrar as pistas. É claro que as pistas são dadas pelo narrador, que
as acumula desde o início. Então, foi essa estudiosa, Helen Caldwell, quem amadrinhou
esta tese. Dom Casmurro já velho e desenganado, lembrando seus primeiros encontros
com Capitu, mostrou uma menina muito esperta, muito dissimulada, muito capaz de
armar situações que levariam, realmente, primeiro à desistência de dona Glória de fazer
com que Bentinho continuasse no seminário, e, depois, ao casamento. Bom, daí por
diante tudo vai crescendo, a suspeita de que ela fosse uma pessoa capaz de enganar
permeia todo o romance e toda a expressão do próprio narrador.
Então uma feminista assumida dirá: mas isto é a narração do acusador! Será que ele
não mente de propósito? Bom, a pergunta em si é levemente ridícula, porque achar que
o narrador mente é ter suspeita, não só suspeita, mas também conhecer uma verdade
oposta. Até hoje, nenhum daqueles que acha que o narrador mente escreveu outro
romance, aliás, a gente pediria que eles escrevessem um romance do ponto de vista de
Capitu, seria um romance em que ela contasse toda a verdade que estamos tão
ansiosos para saber; mas, como nenhum crítico se arriscou a escrever um outro
romance, então nós só temos esse romance, não temos outro. Então com o que é que
ficamos? Com a idéia de que Machado de Assis não só faz o narrador nos enganar, mas
ele nos dá pistas para saber que o narrador nos está enganando. Até hoje, nenhuma
delas me convenceu, quer dizer, eu posso sempre suspeitar que ele me engana, isso,
evidentemente, porque o narrador está na primeira pessoa.

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