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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO
2. APÁTRIDAS: A IMPORTÂNCIA DO DIREITO A TER DIREITOS
2.1 Conceitos e Fundamentos Históricos
2.1.1 Definição de Apatridia
2.1.2 Direitos dos Apátridas
2.1.3 A relação entre apatridia e acesso à serviços básicos
2.2 A situação dos Apátridas no Brasil
2.2.1 O estatuto dos Apátridas no Ordenamento Jurídico Brasileiro
2.2.2 Lei de Migração Brasileira
2.2.3 O primeiro caso de apátridas declaradas brasileiras
2.3 Proteção Internacional dos Apátridas
2.3.1 Tratados e Convenções relevantes
2.3.2 Papel das Organizações Internacionais na Proteção dos
Apátridas
3. MATERIAS E MÉTODOS
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES
4.1 Abordagens Legais e Políticas para Resolver a Apatridia
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
6. REFERÊNCIAS
2.1 CONCEITOS E FUNDAMENTOS HISTÓRICOS

Inicialmente importa esclarecer que este capítulo tem por fim evidenciar
conceitos iniciais e fundamentos históricos acerca do tema. Com foco nisso,
dividiu-se a proposta em três subcapítulos. O primeiro busca esclarecer a
definição de apatridia. O segundo subcapítulo objetiva analisar os direitos dos
apátridas. Por fim, o terceiro subcapítulo trará a relação entre apatridia e
acesso à serviços básicos. Partindo desses pontos, será possível construir um
substrato teórico suficiente para avançar nas principais discussões acerca do
tema.

O surgimento do conceito de apátrida está associado à consolidação dos


Estados-nação no século XIX. Antes desse período, a ideia de nacionalidade
era menos clara e a cidadania era frequentemente baseada em critérios mais
flexíveis, como lealdade a um monarca ou pertencimento a uma comunidade
local. No entanto, com o avanço do nacionalismo e a busca pela unificação e
identificação dos Estados, tornou-se cada vez mais importante definir quem era
cidadão de um país.

A partir do século XIX, foram estabelecidas leis e regulamentos que


atribuíam a nacionalidade com base em critérios específicos, como o local de
nascimento (jus soli) ou ascendência (jus sanguinis). Esses critérios variavam
de acordo com os diferentes países e suas legislações nacionais.

No entanto, mesmo com esses critérios estabelecidos, algumas pessoas


acabavam sem uma nacionalidade reconhecida. Isso ocorria principalmente em
situações em que não se podia comprovar a ascendência ou o local de
nascimento, ou quando ocorriam conflitos entre diferentes reivindicações de
nacionalidade. Além disso, eventos históricos, como a dissolução de impérios
coloniais e a fragmentação de Estados, também resultaram em pessoas que
ficaram sem uma nacionalidade legalmente reconhecida.

A situação dos apátridas tornou-se um problema mais evidente após a


Primeira e a Segunda Guerra Mundial, assim como evidenciou Hannah Arendt
em sua obra. Durante esses conflitos, muitas pessoas foram deslocadas de
seus países de origem, perderam seus documentos de identificação e foram
impedidas de retornar às suas terras natais. Além disso, os regimes totalitários
como o nazismo, retiraram a cidadania de certos grupos étnicos ou políticos,
deixando-os sem direitos legais.

O aumento significativo dos apátridas, um grupo de pessoas excluídas,


foi umas das consequências das Guerras Mundiais. Esses indivíduos se
caracterizaram pela perda de sua pátria e pela impossibilidade de encontrar um
novo lar, além da falta de proteção governamental em qualquer país. As
guerras trouxeram uma série de problemas para a Europa, mas nenhum deles
afetou tão profundamente a estrutura interna das sociedades europeias quanto
os apátridas, cujas origens são explicadas por Arendt:

A culpa de sua existência não pode ser atribuída a um único fator,


mas, se consideramos a diversidade grupal dos apátridas, parece que
cada evento político, desde o fim da Primeira Guerra Mundial,
inevitavelmente acrescentou uma nova categoria aos que viviam fora
do âmbito da lei, sem que nenhuma categoria, por mais que se
houvesse alterado a constelação original, jamais pudesse ser
devolvida à normalidade. (ARENDT, Hannah, 2012, p.243)

Com o surgimento do Estado-nação e a reconfiguração do mapa


europeu, houve um aumento no número de minorias e apátridas, que se
tornaram dois grupos de vítimas que perderam até mesmo os direitos
considerados inalienáveis: os direitos do homem. A situação de instabilidade
interna nos países europeus que se desenvolveu em decorrência das duas
guerras mundiais, desencadeou uma onda crescente de violação dos direitos
dos apátridas. Isso levou os grupos minoritários europeus a concluir que os
direitos humanos não se aplicavam aqueles que não possuíam nacionalidade.
A falta de proteção e reconhecimento legal para os apátridas reforçou essa
percepção de que eles estavam excluídos dos direitos fundamentais.
2.1.1 DEFINIÇÃO DE APATRIDIA

A definição de apatridia, no âmbito do Direito Internacional é expressa


de várias maneiras, incluindo o termo em inglês “stateless person” (pessoa sem
Estado) ou “anacional” para se referir a alguém sem nacionalidade.

A utilização do termo “stateless person” no direito internacional enfatiza


a falta de uma entidade estatal que reconheça e proteja os direitos e deveres
de uma pessoa apátrida. A expressão “anacional” enfoca a ausência de
nacionalidade, destacando a privação de um status legal de pertencimento a
uma comunidade. Essas terminologias são amplamente empregadas em
tratados, convenções e documentos internacionais que visam abordar e
resolver questões relacionadas à apatridia. Ao adotar esses termos, o direito
internacional busca fornecer uma base comum para a compreensão e o
tratamento dessa realidade complexa e pouco conhecida.

Apatridia é a condição em que uma pessoa não é reconhecida como


cidadã por nenhum Estado, por diversos motivos, como conflitos armados,
discriminação étnica e religiosa, falhas burocráticas, migração forçada,
deslocamento interno, entre outros, o que implica a ausência de vínculo jurídico
ou pertencimento a uma nação específica.

Destaca-se ainda, que a definição de apátrida está disposto no artigo 1º


da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954:

Art.1º- Para efeito da presente Convenção, o termo apátrida


designará toda a pessoa que não seja considerada por qualquer
Estado, segundo a sua legislação, como seu nacional.

O conceito de apatridia, tanto no âmbito doutrinário quanto no direito


internacional, define o apátrida como o indivíduo que não possui pátria, ou seja,
é caracterizado pela ausência de nacionalidade. Por sua vez, nas palavras de
José Farani Mansur, o termo apátrida é definido como:
Apátrida é uma expressão do direito positivo de nossos dias, e
significa, etimologicamente “sem pátria”, do grego a “prefixo de
privação”, e pátrida, derivado de pátris, pátridos, pátria. O substantivo
formado -apátrida- a exprimir o indivíduo sem pátria, deu lugar a outro
substantivo –apatridia-, a traduzir a qualidade, a situação de quem
perde a nacionalidade sem adquirir outra. (GUERIOS, José Farani
Mansur, 1936, p.7)

Nesse sentido, partindo do princípio de que a nacionalidade é definida


como o vínculo jurídico-político que une um indivíduo a um Estado específico,
conferindo-lhe o status de membro integrante de uma sociedade política, pode-
se compreender a importância desse elo para o reconhecimento e exercício de
direitos.

A nacionalidade estabelece uma relação legal e política entre o indivíduo


e o Estado, conferindo-lhe direitos, responsabilidades e proteções que são
inerentes à cidadania. É através da nacionalidade que um indivíduo adquire um
status legal e se torna parte integrante da sociedade política de um Estado,
desfrutando de uma série de benefícios e obrigações decorrentes desse
vínculo.

A compreensão do elo entre o indivíduo e o Estado por meio da


nacionalidade é essencial para entendermos a importância desse vínculo e as
implicações da apatridia, que ocorre quando uma pessoa é privada desse elo e
não é reconhecida como cidadão por nenhum Estado.

Nessa mesma linha de entendimento, o autor e cientista político Brad K.


Blitz traz que:

A apatridia é uma negação dos direitos e da dignidade humana. A


cidadania é fundamental para garantir a igualdade, a inclusão e a
participação plena na sociedade. A falta de nacionalidade pode
resultar em marginalização, discriminação e privação de uma série de
direitos humanos básicos. É crucial buscar soluções duradouras para
a apatridia e garantir a proteção dos direitos dos apátridas (BLITZ,
Brad, 2011).

Portanto, pode-se compreender que a situação da pessoa é o que


determina a sua condição como sendo apátrida. Sendo assim, a qualificação
da pessoa como parte integrante de uma sociedade política por meio da
nacionalidade é um elemento essencial para garantir a igualdade, a inclusão e
o pleno exercício dos direitos humanos fundamentais.

2.1.2 DIREITO DOS APÁTRIDAS

Após os terríveis horrores causados durante a Segunda Guerra Mundial,


surgiu a necessidade de uma mudança significativa na ordem internacional. Em
1945, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU) em substituição à
Liga das Nações, com o objetivo de promover a paz, a segurança e o respeito
pelos direitos humanos em todo o mundo. Um dos princípios fundamentais da
ONU é o reconhecimento e a proteção dos direitos humanos como elementos
essenciais para a promoção de uma sociedade justa e pacífica.

Diante da disseminação da apatridia em todo o mundo, a Assembleia


Geral das Nações Unidas empenhou-se na adoção de diversas medidas para
abordar os problemas resultantes dos conflitos das guerras mundiais. Um
exemplo notável é o artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH), que estabelece de maneira clara e inequívoca o direito à
nacionalidade.

Artigo 15

1 – Todo indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade;

2 – Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade


nem do direito de mudar de nacionalidade.

Esse artigo está intrinsecamente relacionado ao direito dos apátridas,


uma vez que a falta de nacionalidade é uma violação direta desse direito
fundamental. Ao destacar o papel crucial da nacionalidade na promoção dos
direitos humanos, o artigo 15 da DUDH visa garantir que todas as pessoas
tenham uma identidade legalmente reconhecida, bem como acesso aos direitos
e benefícios associados à cidadania.
Com esses precedentes de níveis globais, os direitos dos apátridas se
concentraram sob à ótica e proteção do direito internacional, tendo como
objetivo a garantia de que esses indivíduos não sejam deixados em um estado
de vulnerabilidade e privação de direitos.

O direito dos apátridas é fundamentado em princípios e instrumentos do


direito internacional, que visam prevenir a apatridia, reduzir o número de
apátridas existentes, proteger e garantir seus direitos básicos fundamentais.
Alguns dos principais direitos incluem: Direito à não discriminação - Os
apátridas têm o direito de não serem discriminados com base em sua condição
de apatridia. Isso implica que eles devem ter igualdade de tratamento perante a
lei, sem qualquer forma de discriminação com base em sua falta de
nacionalidade; Direito à proteção contra a privação arbitrária de nacionalidade -
Os apátridas têm o direito de não serem arbitrariamente privados de sua
nacionalidade ou de ter sua nacionalidade retirada sem um processo justo e
imparcial. Isso visa prevenir casos em que os indivíduos possam ser deixados
sem nacionalidade de forma arbitrária; Direito à liberdade de circulação - Os
apátridas têm o direito de circular livremente em seu país de residência e de
escolher o locar de sua residência dentro desse país. Eles também têm o
direito de deixar qualquer país, incluindo o seu país de residência, e de retornar
a ele; Direito à educação e saúde - Os apátridas têm o direito de acesso à
educação e aos serviços de saúde. Isso implica que eles devem receber
tratamento igualitário em relação aos nacionais do país em que residem,
garantindo assim o acesso a oportunidades educacionais e serviços de saúde
adequados; Direito à identidade legal - Os apátridas têm o direito de ter uma
identidade legal reconhecida. Isso inclui o direito a um documento de
identificação, como um registro de nascimento, bem como, outros documentos
necessários para o exercício de seus direitos fundamentais.

No contexto brasileiro, embora a Constituição Federal não mencione


explicitamente os direitos dos apátridas, ela estabelece princípios e garantias
fundamentais que se aplicam a todas as pessoas, independentemente de sua
nacionalidade. A Constituição estabelece o princípio da igualdade perante a lei,
que proíbe qualquer forma de discriminação, incluindo a discriminação com
base na nacionalidade ou na falta dela.
Assim, os apátridas têm o direito de serem tratados de forma igualitária
em relação aos cidadãos nacionais. E em decorrência desse princípio da
igualdade, os apátridas possuem a garantia de serem detentores de todos os
outros direitos fundamentais necessários para garantir uma existência digna.

Todavia, é importante observar que, apesar dessas garantias


constitucionais, os apátridas enfrentam desafios e dificuldades na efetivação de
seus direitos, uma vez que a falta de nacionalidade afeta o acesso a certos
benefícios e serviços.

Nesse sentido, o filósofo e teórico político italiano Noberto Bobbio,


enfatizava a importância dos direitos humanos universais, que são inerentes a
todos os indivíduos, independentemente de sua nacionalidade, etnia, gênero
ou qualquer outra característica. Ele defendia que os direitos humanos são
indivisíveis e interdependentes, e que devem ser protegidos e promovidos em
todos os contextos. (BOBBIO, 2004)

Por essas razões, o direito dos apátridas, em particular a identificação


de seu status de apatridia, são regidos por normas imperativas que buscam
estabelecer um reconhecimento mínimo de existência, caracterizado pela
ausência de nacionalidade. Essas regras têm como objetivo assegurar que os
apátridas sejam reconhecidos como sujeitos de direitos, apesar de não
possuírem vínculo nacional. Haja vista que, os direitos não são apenas uma
conquista histórica, mas também um processo contínuo de luta e garantia
contra as opressões, abusos de poder e violação dos direitos fundamentais.

2.1.3 A RELAÇÃO ENTRE APATRIDIA E ACESSO A SERVIÇOS BÁSICOS

A relação entre apatridia e o acesso a serviços básicos é profunda e


complexa, tendo em vista que a falta de nacionalidade os coloca em uma
posição extremamente vulnerável, uma vez que eles são excluídos do
reconhecimento legal e da proteção de um Estado. Isso resulta em inúmeras
dificuldades no acesso a serviços, tais como educação, saúde, emprego,
moradia e proteção legal.
Sem uma nacionalidade, os apátridas enfrentam barreiras significativas
para obter documentos de identidade, o que limita sua capacidade de exercer
seus direitos e acessar serviços essenciais para uma existência digna. Eles
enfrentam discriminação, exclusão social e marginalização, uma vez que são
tratados como estrangeiros em todos os países, mesmo que tenham vivido lá
por toda a vida.

O acesso à educação é frequentemente negado aos apátridas, privando-


os de uma formação adequada e dificultando sua inclusão na sociedade. A
falta de documentos de identidade também dificulta seu acesso aos serviços de
saúde, privando-os de cuidados médicos básicos e expondo-os a condições de
saúde precárias.

Além disso, a ausência de uma nacionalidade dificulta a obtenção de


emprego formal e regular, levando muitos apátridas a trabalhar na economia
informal, onde estão sujeitos à exploração e a condições de trabalho precárias.
Eles também podem enfrentar dificuldades na obtenção de moradia adequada
e segura, tendo em vista que a falta de documentos de identidade dificulta sua
elegibilidade para programas habitacionais.

A proteção legal também é prejudicada para os apátridas, pois muitos


países exigem a nacionalidade como requisito para acessar a justiça. Isso
resulta em uma falta de proteção efetiva contra abusos, violência e violações
de direitos humanos.

Nesse sentido, é de extrema importância que a relação entre apatridia e


acesso a serviços básicos seja tangível, tendo em vista que o acesso a
serviços básicos é um direito fundamental, e garantir que os apátridas tenham
acesso a esses serviços é essencial para salvaguardar sua dignidade, bem-
estar e igualdade de oportunidades.
2.2 A SITUAÇÃO DOS APÁTRIDAS NO BRASIL

Em dados mais recentes fornecidos no ano de 2020, o Ministério da Justiça e


Segurança Pública, reconheceu 16 imigrantes como apátridas, desde a Lei de
Migração, em vigor desde 2017.

A principal causa da apatridia no Brasil está relacionada a questões


como migração, deslocamentos forçados, falhas burocráticas no registro de
nascimentos e ausência de legislação adequada para lidar com casos de
apatridia.

No Brasil, algumas medidas têm sido adotas para lidar com a questão da
apatridia, como por exemplo, a Lei de Migração que está em vigor desde 2017,
onde estabelece que o registro civil de nascimento é um direito fundamental, e
os órgãos responsáveis devem garantir que todas as crianças sejam
registradas e recebam uma nacionalidade. Além disso, o Brasil é signatário da
Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954, que busca prevenir e
reduzir a apatridia por meio de medidas de proteção e prevenção.

Segundo pesquisas da advogada e acadêmica atuante na área


migratória Ana Raquel Menezes, o Brasil é um país que se destaca nas ações
adotadas mundo afora, para combater a apatridia.

O Brasil é um país que se destaca nesse sentido com várias práticas.


Para mim a mais importante delas é conceder nacionalidade a
qualquer pessoa nascida no território brasileiro (jus soli). Muitos
países não possuem essa prerrogativa, e isso acaba gerando casos
de apatridia. (MENEZES, Ana Raquel. Entrevista ao Migra Mundo)

No entanto, ainda há desafios a serem superados. É necessário


fortalecer os mecanismo de registro civil, garantir o acesso efetivo à
documentação adequada e implementar políticas que abordem as
necessidades específicas dos apátridas. Ademais, é importante promover a
conscientização sobre a questão da apatridia e seus impactos, tanto entre a
população em geral quanto entre os profissionais que lidam com questões de
migração e registro civil.
À luz disso, garantir a proteção e os direitos dos apátridas é um
imperativo humanitário e jurídico. É essencial que o Brasil continue avançando
no sentido de garantir a prevenção e a redução da apatridia, assegurando que
todas as pessoas tenham uma nacionalidade reconhecida e possam desfrutar
plenamente de seus direitos como cidadãos.

2.2.1 O ESTATUTO DOS APÁTRIDAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO

A Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954, é um tratado


internacional adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, com o
objetivo de definir e proteger os direitos dos apátridas. Ela estabelece um
conjunto de normas e princípios para prevenir e reduzir a apatridia, bem como
para garantir a proteção e assistência aos apátridas existentes.

A convenção define um apátrida como uma pessoa que não é


considerada nacional por nenhum Estado, de acordo com sua legislação. Ela
estabelece que os apátridas devem receber tratamento igualitário com os
nacionais em relação a diversos direitos fundamentais, tais como direito à
identidade, direito à liberdade de religião, direito ao trabalho, direito à educação
e direito à segurança social.

Além disso, a convenção proíbe a privação arbitrária da nacionalidade e


estabelece que os Estados devem facilitar a aquisição de nacionalidade para
os apátridas que se encontram em seu território, bem como, incentiva a
cooperação entre os Estados para resolver casos de apatridia e estabelece
mecanismos para a prevenção e redução da apatridia, como a troca de
informações e a emissão de documentos de viagem para apátridas.

O Brasil ratificou a Convenção relativa ao Estatuto dos Apátridas em 30


de abril de 1996 e se encontra vigente no ordenamento interno a partir do
Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002, expedido pelo então presidente da
república Fernando Henrique Cardoso. Embora ainda não tenha sido
incorporada diretamente ao ordenamento jurídico brasileiro por meio de uma lei
específica, a convenção é considerada um instrumento internacional relevante
para orientar as políticas e práticas do país em relação aos apátridas.

Apesar da ausência de uma lei específica, isso não significa que os


apátridas sejam desprotegidos no Brasil. A Constituição Federal de 1988
garante direitos fundamentais a todas as pessoas, independentemente de sua
nacionalidade, e estabelece o princípio da igualdade perante a lei. Ademais, o
país possui a Lei de Migração, que busca garantir a igualdade de tratamento
entre brasileiros e estrangeiros, incluindo pessoas em condição de apatridia.

A proteção e os direitos dos apátridas no Brasil também são respaldados


pelos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o país é signatário,
como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos. Esses tratados estabelecem direitos e
garantias fundamentais que se aplicam a todas as pessoas sob a jurisdição do
Estado brasileiro.

Todavia, isso implica afirmar que, embora esses grupos não estejam
completamente desamparados do ponto de vista do direito internacional,
atualmente não existe uma forma mais efetiva de proteção do que a concessão
formal de uma nacionalidade reconhecida juridicamente. Em outras palavras:

A adesão à Convenção não substitui a outorga da nacionalidade às


pessoas nascidas ou residentes habituais no território de um Estado.
Não importa quão amplo possam ser os direitos reconhecidos a uma
pessoa apátrida, estes não são equivalente à aquisição da
nacionalidade. (Nacionalidade e Apatridia, Manual para
Parlamentares n. 22, p. 12)

Por essa razão, reconheceu-se a necessidade de adotar medidas que,


além de garantir certos direitos aos apátridas, pudessem também reduzir e
prevenir a ocorrência de pessoas em situação de apatridia.
2.2.2 LEI DE MIGRAÇÃO BRASILEIRA

Inicialmente, é importante destacar que em 31 de julho de 2014, foi


apresentado ao Ministério da Justiça um Anteprojeto de Lei de Migrações e
Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil. Esse anteprojeto resultou do
trabalho de uma comissão de especialistas, instituída por meio da portaria nº
2.162/2013. O anteprojeto tinha como objetivo assegurar os direitos
fundamentais dos migrantes, incluindo aqueles decorrentes de tratados dos
quais o Brasil fosse parte, ele previa por exemplo, a concessão de um visto
temporário em casos de acolhida humanitária.

Essas medidas foram propostas como um passo importante na


promoção e garantia dos direitos dos migrantes no Brasil, tendo em vista que o
tema de migração era tratado através do Estatuto do Estrangeiro, Lei nº 6.815
de 1980, sancionada pelo general João Figueiredo. Esse estatuto é uma
herança da ditadura civil-militar, por isso foi tão importante ser expressamente
revogado pela Lei de Migração.

À luz disso, foi sancionada a Lei nº 13.445/2017, também conhecida


como de Lei de Migração brasileira, que é a legislação que regula a entrada, a
permanência, os direitos e os deveres dos migrantes no território brasileiro. Ela
foi promulgada com o objetivo de modernizar a abordagem do país em relação
à migração, garantindo uma perspectiva mais inclusiva e respeitando os
direitos humanos dos migrantes.

Essa legislação adota um enfoque mais amplo em relação aos


migrantes, reconhecendo a sua dignidade, promovendo a igualdade de
tratamento e assegurando o respeito aos direitos fundamentais. Ela busca
estabelecer uma política migratória baseada nos princípios da não
discriminação, da integração social, dos respeito à diversidade cultural e do
respeito aos direitos humanos.

Além disso, a lei prevê a emissão de documentos de identificação para


os migrantes, o que se torna especialmente relevante para os apátridas, tendo
em vista que ter um documento oficial, contribui para que eles exerçam seus
direitos e obtenham reconhecimento legal no país.
Embora a Lei de Migração não trate exclusivamente dos apátridas, ela
oferece um arcabouço legal abrangente que busca proteger e garantir os
direitos dos migrantes em geral, incluindo aqueles que se encontram na
condição de apatridia.

Para as pessoas em situação de apatridia, a Lei de Migração pode ser


especialmente relevante, pois reconhece a necessidade de proteção e
assistência a essa população vulnerável. Apesar da lei não fornecer uma
definição específica de apatridia, ela busca garantir que todos os migrantes
tenham seus direitos respeitados e protegidos, independentemente de sua
nacionalidade ou na falta dela.

Nesse sentido, nas palavras de Jahyir Philippe Bichara:

Ao reconhecer a figura do apátrida, mesmo que de forma limitada na


Lei de Migração, o Estado Brasileiro admite a sua obrigação de
assegurar direitos mínimos de tais indivíduos. Destarte, a Lei prevê
que à pessoa que requerer o status de apátrida seja garantido o
direito de residir no Brasil até a obtenção da resposta ao seu pedido.
Nesse aspecto, reconhece-se um avanço significativo do direito
interno. Acrescenta-se ainda que a Lei alinha-se ao standard
internacional no que concerne à facilitação de aquisição de
nacionalidade do país de acolhimento. (BICHARA, Jahyr Philippe,
2017, p.11)

Todavia, é importante destacar que a Lei de Migração brasileira não


resolve completamente a situação dos apátridas, tendo em vista que o
anteprojeto de lei de migração não se tornou lei na sua forma original, o que foi
prejudicial em relação aos apátridas, haja vista que, em seu artigo 25 trazia o
CONARE com competência administrativa para lidar de forma precisa e salutar
sobre os pedidos de permanência por motivo de apatridia.

Nesse sentido, convém mencionar o artigo supracitado do anteprojeto,


que seria um avanço no tratamento do apátrida no Brasil, porém não foi
perpetuado pela Lei de Migração.

Art. 25. A pessoa apátrida será destinatária de instituto protetivo


especial, consolidado em mecanismo de naturalização expressa, tão
logo seja determinada a condição de apátrida pelo Comitê Nacional
para os Refugiados – CONARE.

§1º. Será emitida permissão de residência provisória desde o


momento em que iniciar o processo de reconhecimento da situação
de apatridia.

§2º. Durante a tramitação do processamento do reconhecimento da


condição de apátrida, incidem todas as garantias e mecanismos
protetivos e de facilitação da inclusão social relativos à Convenção
sobre o Estatuto dos Refugiados e à Lei nº 9.474/1997.

Dessa forma, ainda persiste um vácuo jurídico em relação ao órgão


responsável pelos apátridas na legislação vigente, o que representa um
considerável retrocesso em relação ao que estava no anteprojeto de lei de
migração.

2.2.3 O PRIMEIRO CASO DE APÁTRIDAS DECLARADAS BRASILEIRAS

Através de um estudo de caso inspirador, convém abordar a história das


irmãs Maha e Souad Mamo, que se tornaram refugiadas no Brasil a partir de
2014. Elas foram as primeiras apátridas a serem oficialmente reconhecidas
pelo governo brasileiro. Um marco significativo nesse processo foi o ato
assinado pelo então ministro da Justiça Torquato Jardim, em Brasília, no ano
de 2018, que não apenas confirmou a condição das irmãs como também
concedeu a elas a nacionalidade brasileira.

Segundo o ministro da Justiça, Torquato Jardim, a primeira naturalização


de apátridas simboliza um momento “histórico” para o país (AGÊNCIA BRASIL,
2018). Em suas palavras durante a solenidade, afirmou:

Ao conceder a nacionalidade brasileira a Maha e Souad Mamo, o


Brasil reafirma sua tradição de acolhimento aos vulneráveis e
desassistidos e dá um exemplo ao mundo de que foi, e sempre será,
um país comprometido com a erradicação da apatridia. (JARDIM,
Torquato, Brasília, 2018)
Essa decisão do governo brasileiro foi um passo importante para a
proteção e inclusão das irmãs Mamo na sociedade brasileira. Ao conceder a
nacionalidade brasileira, o Estado reconheceu a condição de apatridia das
irmãs e lhes proporcionou uma identidade jurídica e acesso aos direitos e
benefícios associados à cidadania brasileira.

As irmãs apátridas nasceram em Beirute, capital do Líbano e não


puderem ser registradas em seu país de origem, uma vez que a legislação do
Líbano concede a nacionalidade pelo critério ius sanguinis, ou seja, pelo
sangue. Elas teriam então que assumir a origem dos pais, sírios. Ocorre que o
pai, Jean Mamo, é cristão, e a mãe, Kifah Nachar, é muçulmana, e as leis da
Síria não permitem o casamento inter-religioso (ACNUR, 2020). Sendo assim,
também não puderam ser reconhecidos como sírios, devido a ilegalidade do
matrimônio no país. O resultado dessa perversa combinação jurídico-religiosa
foi a apatridia e tudo o que dela deriva.

Durante quase toda a sua vida, Maha e seus irmãos tiveram que lutar
pelas questões mais essenciais provenientes da cidadania, como frequentar
uma escola, ter acesso a hospitais ou desfrutar da liberdade de ir e vir
(ACNUR, 2020).

Foi então no ano de 2013, que Maha, Souad e Edward estabeleceram


contato com diferentes países em busca de assistência. Foi através da
embaixada brasileira no Líbano que encontraram apoio, recebendo uma
autorização de residência em território brasileiro na forma de um laisser-passer,
reconhecendo-os como refugiados. Assim, em 2014, os irmãos chegaram ao
Brasil com um sonho quase real de serem oficialmente reconhecidos como
cidadãos nacionais (MAMO, OLIVEIRA; 2020).

Os irmãos estabeleceram residência na cidade de Belo Horizonte, no


estado de Minas Gerais, onde receberam acolhimento da família Fagundes.
Inicialmente, devido à falta de conhecimento do idioma português, conseguiram
um emprego entregando panfletos nas ruas. Apesar das dificuldades
enfrentadas, eles já vislumbravam um futuro promissor, distante da
marginalização e da situação de ilegalidade (MAMO; OLIVEIRA, 2020).
No entanto, na noite de 29 de junho de 2016, Edward Mamo, foi
abordado por criminosos. O jovem, que ainda não falava português
fluentemente, não conseguiu entender o que estava acontecendo, e por isso
passou a impressão que estava resistindo ao assalto, fazendo com que um dos
criminosos desse um tiro em seu tórax, Edward não resistiu e faleceu (G1,
2016).

Apesar deste triste acontecimento, as irmãs Mamo permaneceram em


solo brasileiro. Dois anos depois, em 04 de outubro de 2018, o governo
concedeu a nacionalidade brasileira a Maha e Souad Mamo (AGÊNCIA
BRASIL, 2018). Se tornando assim, oficialmente, pertencentes a uma
sociedade.

Como resultado de sua jornada extraordinária do Líbano ao Brasil, Maha


Mamo compartilha sua história de luta pelo direito de existir, em conjunto com o
jornalista Darcio Oliveira, na emocionante obra intitulada “Maha Mamo: A luta
de uma apátrida pelo direito de existir”. Neste livro, Maha narra sua trajetória
épica com palavras poderosas e comoventes, permitindo que os leitores
mergulhem em sua experiência única e compreendam os desafios e obstáculos
enfrentados por um apátrida em busca de reconhecimento e dignidade. Com
palavras fortes e comoventes, Maha declara:

NASCI NINGUÉM. Ou melhor, eu era alguém que não existia


oficialmente. Porque não poderia existir em meu país. Melhor
dizendo: em minha terra natal, porque país eu também não tinha.
Nascer no Líbano, onde morava minha família, não me transformava
formalmente em libanesa. A lei local diz que a nacionalidade vem do
sangue, não do solo, como, aliás, ocorre em diversos países. Sendo
assim, eu deveria assumir a origem de meus pais, sírios. O problema
é que meus pais, juntos, também não podiam existir, porque não se
une religião na Síria. É ilegal. Meu pai é cristão. Minha mãe,
muçulmana. Eles formam, portanto, um casal ilegítimo, inconcebível
para as tábuas oficiais. E o que não se concebe não pode, em tese,
conceber. Se não há união possível, não há filhos legítimos, não há o
que registrar. Sem registro, não há documentos, não se tem pátria,
cidadania nem direitos. O resultado é o limbo social, a vida nas
sombras para os frutos dessa união proibida, no caso, eu e meus
irmãos. Meu nome é Maha Mamo, filha de Kifah Nachar e Jean
Mamo, irmã de Souad e Edward. Fui, durante trinta anos, uma
apátrida (MAMO; OLIVEIRA, 2020, p.6).
À luz disso, podemos concluir que esse caso exemplifica a importância
de políticas e medidas que visam a garantir a proteção dos apátridas e
promover sua inclusão nos países de acolhimento. Ao conceder a
nacionalidade às irmãs Mamo, o Brasil demonstrou seu compromisso com os
princípios de direitos humanos e solidariedade internacional.

Ademais, essa história também ressalta a necessidade contínua de uma


abordagem sensível e humanitária para lidar com a questão de apatridia.
Através de estudos de caso como o das irmãs Mamo, conseguimos aprender
lições valiosas sobre a importância do reconhecimento legal, da proteção e da
concessão de direitos aos apátridas, contribuindo assim para a construção de
um mundo mais justo e inclusivo. Afinal, a terra é o lar de todos os seres
humanos.

2.3 PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS APÁTRIDAS

No contexto internacional, a proteção dos apátridas é abordada por meio


de instrumentos legais e normativos, que buscam estabelecer diretrizes e
garantias para essa população marginalizada. Esse tema é de extrema
importância e relevância no âmbito dos direitos humanos.

A Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 é um exemplo


fundamental nesse sentido. Essa convenção define o conceito de apatridia,
estabelece os direitos e deveres dos apátridas e incentiva os Estados a
adotares medidas para prevenir e reduzir a incidência de casos de apatridia.

Além disso, a proteção dos apátridas é abordada em outros tratados


internacionais, como a Convenção para Reduzir os Casos de Apatridia de
1961, e a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, que reconhece o
direito das crianças a uma nacionalidade.

No Brasil, a proteção dos apátridas está prevista na Constituição Federal


de 1988, que garante igualdade de direitos entre brasileiros natos e
naturalizados. Ademais, a Lei de Migração de 2017 estabelece diretrizes para a
proteção e integração dos apátridas que se encontram no território brasileiro.

No entanto, é importante ressaltar que a proteção internacional dos


apátridas ainda enfrenta desafios significativos. A falta de reconhecimento de
sua condição por parte dos Estados são algumas das questões que precisam
ser abordadas de forma mais abrangente e efetiva.

Nesse sentido, é imperioso destacar que a cooperação entre os


Estados, a sensibilização da sociedade civil e o fortalecimento dos mecanismos
de proteção, são fundamentais para garantir os direitos e a dignidade dos
apátridas, assegurando que eles possam desfrutar plenamente de sua
condição de seres humanos, independentemente de sua nacionalidade.

2.3.1 TRATADOS E CONVENÇÕES RELEVANTES

As Grandes Guerras Mundiais provocaram um aumento significativo no


número de pessoas apátridas em todo o mundo, evidenciando a necessidade
de políticas públicas que pudessem ampará-los. Nesse sentido, no cenário
pós-guerra, era necessário a promulgação de tratados e convenções que
pudessem versar sobre a situação dos apátridas com particularidade.

Surgem então convenções internacionais relevantes no contexto da


proteção dos apátridas, sendo elas: Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas
de 1954, onde define o conceito de apatridia, estabelece os direitos e deveres
dos apátridas e incentiva os Estados a adotarem medidas para prevenir e
reduzir a incidência de apatridia; Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados
de 1951, que embora seja focada principalmente na proteção dos refugiados,
aborda também a proteção dos refugiados apátridas, reconhecendo que a falta
de nacionalidade pode ser um fator que leva ao deslocamento forçado;
Convenção para Redução dos Casos de Apatridia de 1961, que cria regras a
serem seguidas pelos países contratantes que facilitem a aquisição de
nacionalidade pelos apátridas, diminuindo assim sua quantidade; Convenção
sobre os Direitos da Criança de 1989, este tratado reconhece o direito de todas
as crianças a uma nacionalidade e estabelece que os Estados devem garantir
o registro de nascimento e a atribuição de uma nacionalidade às crianças
imediatamente após o nascimento; Convenção Internacional sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965, apesar de
não se concentrar especificamente nos apátridas, esta convenção proíbe a
discriminação racial, étnica e nacional, o que de certa forma acaba sendo
relevante para a proteção de pessoas apátridas; Convenção de Genebra de
1951, como uma pioneira dos movimento, ela defende vigorosamente os
direitos dos refugiados a uma vida digna, incluindo também os apátridas como
indivíduos detentores de direitos fundamentais.

No entanto, apesar de todos os esforços internacionais nesse sentido, o


Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, estima-se
que em todo mundo existam cerca 12 a 15 milhões de apátridas (ACNUR,
Apatridia Cartilha Informativa).

De acordo com estudos recentes realizados pelo ACNUR, existem


quatro causas contemporâneas principais da apatridia. Sendo elas:

Lacunas nas leis de nacionalidade são uma das principais causas de


apatridia. Todos os países têm leis que estabelecem em que
circunstâncias alguém adquire ou perde a nacionalidade. Se essas
leis não forem cuidadosamente escritas e aplicadas corretamente,
algumas pessoas podem ser excluídas e tornarem-se apátridas. Um
exemplo são as crianças, cujos pais são desconhecidos, em um país
onde a nacionalidade é adquirida com base na descendência de um
nacional. Felizmente, a maioria das leis de nacionalidade os
reconhece como nacionais do país em que são encontrados.

Outro fator que pode complicar as coisas é quando as pessoas se


deslocam dos países onde nasceram. Uma criança nascida em um
país estrangeiro pode correr o risco de tornar-se apátrida se esse
país não permitir a nacionalidade com base apenas no nascimento e
se o país de origem não permitir que os pais passem a nacionalidade
por meio de laços familiares. Além disso, as regras que estabelecem
quem pode e quem não pode transmitir a sua nacionalidade são às
vezes discriminatórias. As leis em 27 países não deixam as mulheres
passarem sua nacionalidade, enquanto alguns países limitam a
cidadania para pessoas de determinadas raças e etnias.

Outro motivo importante é o surgimento de novos países e mudanças


nas fronteiras. Em muitos casos, grupos específicos podem ser
deixados sem uma nacionalidade como resultado e, mesmo quando
os países novos permitem a nacionalidade para todos, as minorias
étnicas, raciais e religiosas frequentemente têm problemas para
provar seu vínculo com o país. Nos países onde a nacionalidade só é
adquirida por descendência de um nacional, a apatridia será
transmitida à geração seguinte.

Por fim, a apatridia também pode ser causada por perda ou privação
de nacionalidade. Em alguns países, os cidadãos podem perder sua
nacionalidade simplesmente por viverem no exterior por um longo
período de tempo. Os Estados também podem privar os cidadãos da
sua nacionalidade por mudanças de lei que deixam populações
inteiras apátridas, usando critérios discriminatórios como etnia ou
religião (ACNUR)

A partir desse estudo, podemos concluir que o Alto Comissariado das


Nações Unidas para Refugiados amplia as razões por trás desse fenômeno,
abrangendo não apenas os conflitos geopolíticos, mas também regras de
aquisição de nacionalidade, migrações espontâneas, mudanças de fronteiras e
discriminação. Dessa forma, reconhece-se que a apatridia pode ser causada
por uma variedade de fatores complexos e interligados.

Nesse sentido, para que um Estado possa efetivamente implementar


medidas de proteção aos apátridas, de acordo com a Convenção de 1961, é
fundamental que ele tenha ratificado a Convenção de 1954. Nas palavras de
Cássio Eduardo Zen:

Trata-se de uma Convenção mais extrema, pois prevê a concessão


de nacionalidade através da extensão do ius soli e do ius sanguini
para prevenir apatridia (...). Portanto, trata-se de uma Convenção que
obriga os Estados a alterarem suas leis internas de concessão de
nacionalidade, um ato tradicionalmente delegado exclusivamente aos
próprios Estados (ZEN, Cássio Eduardo, Curitiba, 2007).

Sendo assim, é possível concluir que essas duas convenções estão


interligadas e fornecem o arcabouço legal necessário para lidar com a questão
da apatridia de maneira mais abrangente e eficaz.

À luz disso, é relevante mencionar o mapa mundial divulgado pelo Alto


Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, que ilustra os Estados que
são membros das Convenções sobre Apátridas. Essa representação visual
oferece uma percepção abrangente dos países que aderiram aos instrumentos
jurídicos internacionais relacionados à proteção dos apátridas:
FIGURA 1 – ESTADOS PARTES DAS CONVENÇÕES SOBRE APÁTRIDAS

Fonte: Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR (2019)

Assim, apresenta-se em azul claro os países que seguem somente a


Convenção de 1954; em azul ciano estão os países signatários apenas da
Convenção de 1961; no tom mais escuro de azul, estão os países que
ratificaram as duas convenções de proteção aos apátridas. Ademais, os países
marcados com pontos amarelos são os países que aderiram uma ou as duas
convenções a partir do lançamento da campanha I Belong em novembro de
2014, feita pelo ACNUR, em prol para que os países sejam solidários as
convenções. Por fim, na cor cinza do mapa, são os países que não signatários
de nenhuma convenção.

2.3.2 PAPEL DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS NA PROTEÇÃO DOS


APÁTRIDAS

As organizações internacionais desempenham um papel fundamental na


proteção dos apátridas. Elas têm como objetivo promover a conscientização,
formular políticas e implementar medidas práticas para prevenir e reduzir a
apatridia em todo o mundo.

Algumas das principais organizações envolvidas nesse trabalho incluem


o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, a
Organização Internacional para as Migrações – OIM e o Instituto para os
Direitos Humanos e a Democracia – IDHED.

Essas organizações desempenham diversas funções, tais como:


Monitoramento e Pesquisa: Elas coletam e analisam dados sobre a apatridia,
identificando suas causas e impactos. Isso ajuda a compreender melhor a
situação dos apátridas em diferentes regiões e a formular políticas eficazes;
Defesa e Lobby: As organizações internacionais trabalham em estreita
colaboração com os Estados-membros e outras partes interessadas para
promover a adoção de leis e políticas públicas que protejam os apátridas. Elas
também pressionam por mudanças nas políticas nacionais e internacionais
para melhorar a situação dos apátridas; Assistência e Proteção Direta: Essas
organizações oferecem apoio prático aos apátridas, incluindo assistência
jurídica, acesso a serviços básicos, como educação e saúde, e apoio na
obtenção de documentação adequada, tal como certidão de nascimento e
documentos de identidade; Sensibilização e Educação: As organizações
realizam campanhas de conscientização e programas educacionais para
informar o público em geral sobre a condição de apatridia e promover uma
maior compreensão e empatia em relação aos apátridas; Cooperação e
Coordenação: As organizações internacionais trabalham em conjunto com
governos, organizações não governamentais e outros atores relevantes para
coordenar esforços, trocar boas práticas e garantir uma abordagem integrada
na proteção dos apátridas.

À luz disso, convém discorrer minuciosamente sobre o Alto


Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, pois ele
desempenha um papel crucial na proteção e erradicação dos apátridas em todo
o mundo. Como agência especializada da ONU, o ACNUR tem como mandato
principal a proteção e assistência aos refugiados, mas também está envolvida
na proteção dos apátridas.

O escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados


foi criado em dezembro de 1950, após a Segunda Guerra Mundial, por
resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, para ajudar milhões de
europeus que fugiram ou perderam suas casas. Seu trabalho tem como base a
Convenção de 1951 da ONU sobre os refugiados.

O protocolo de 1967 foi um instrumento que modificou e atualizou a


Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados, ampliando o escopo de
atuação do ACNUR para além das fronteiras europeias e das pessoas afetadas
pela Segunda Guerra Mundial. Esse protocolo estabeleceu que o ACNUR
também seria responsável pela proteção e assistência aos apátridas em todo
mundo.

A designação do Alto Comissariado como órgão responsável pela


proteção e assistência dos apátridas ocorreu em 1995. Essa designação
reconheceu a necessidade de uma abordagem global para lidar com a situação
dos apátridas.

Desde então, o ACNUR tem desempenhado um papel fundamental na


promoção e proteção dos direitos dos apátridas em todo o mundo. A
organização trabalha em estreita colaboração com os Estados e outras partes
interessadas para encontrar soluções duradouras para a apatridia, incluindo a
busca de soluções duradouras para sua situação, bem como a prevenção de
surgimentos de casos de apatridia.

Ademais, o Alto Comissariado também desempenha um papel


importante na conscientização e defesa em relação à apatridia, buscando
mobilizar a comunidade internacional, governos, organizações da sociedade
civil e o público em geral para enfrentar esse desafio e garantir que todos
possam desfrutar plenamente de seu direito à nacionalidade e aos direitos
fundamentais.

Nesse sentido, como uma forma de conscientização, o ACNUR lançou


em 2014 uma campanha global chamada “I Belong”, traduzida para o
português como “Eu Pertenço”, que visa erradicar a apatridia até 2024. A
campanha destaca a importância de garantir a nacionalidade a todas as
pessoas, promovendo a igualdade de direitos e a inclusão de apátridas na
sociedade.
A erradicação da apatridia está se tornando cada vez mais alcançável
devido aos progressos recentes no aumento do número de países que
aderiram a dois tratados fundamentais de direitos humanos das Nações
Unidas.

Nos últimos anos, tem havido um crescimento significativo no número de


países signatários da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e do
Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967.

À medida que mais países se comprometem a cumprir esses tratados e


implementar as medidas neles previstas, aumentam as chances de alcançar a
meta de erradicar a apatridia. Esses avanços refletem um reconhecimento
crescente da importância de garantir a nacionalidade e os direitos humanos
para todos, independentemente de sua origem ou status migratório.

Assim sendo, convém apresentar aqui a imagem da campanha global I


Belong, que vem alcançando resultados promissores para acabar com a
apatridia em todo o mundo.

FIGURA 2 - CAMPANHA I BELONG

Fonte: Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR (2014)
Nesse sentido, é relevante mencionar os avanços significativos
alcançados por meio das ações coordenadas pelo ACNUR, provenientes da
campanha I Belong: Quase 350 mil apátridas adquiriram a nacionalidade em
lugares tão diversos como Quirguistão, Quênia, Tajiquistão, Tailândia, Rússia,
Suécia, Vietnã, Uzbequistão e Filipinas; 25 nações aderiram às duas
Convenções da ONU sobre apatridia, totalizando 94 países que agora fazem
parte da Convenção de 1954 relativa ao Estatuto dos Apátridas e 75 países
signatários da Convenção de 1961 sobre o Estatuto da Apatridia; 16 países
também estabeleceram ou melhoraram procedimentos de determinação da
apatridia para identificar pessoas apátridas em seus respectivos territórios,
alguns oferecendo um caminho facilitado para a obtenção da cidadania; 8
países (Albânia, Armênia, Cuba, Estônia, Islândia, Letônia, Luxemburgo e
Tajiquistão) alteraram suas leis de nacionalidade para conceder nacionalidade
a crianças nascidas em seus territórios que, de outra forma, seriam apátridas.
Dois países nas Américas (Cuba e Paraguai) reformaram suas leis de
nacionalidade para permitir que as mães possam repassar a nacionalidade a
seus filhos em igualdade de condições com os pais (ACNUR).
3. MATERIAIS E MÉTODOS

Os materiais e métodos usados na condução deste estudo,


compreenderam uma abordagem multidisciplinar que envolveu pesquisa
documental, análise jurídica e revisão bibliográfica. A coleta de informações foi
realizada por meio de fontes primárias e secundárias, com foco em
documentos legais, tratados internacionais, lei nacional, relatórios e manuais
de organizações internacionais e acadêmicos, bem como estudo de casos
pertinentes.

A pesquisa documental consistiu na busca e seleção de tratados e


convenções relevantes relacionados aos direitos dos apátridas, incluindo a
Convenção de 1954 e seus Protocolos Adicionais, bem como a análise de
legislação nacional que aborda a questão de apatridia, mesmo que de forma
rasa. Além disso, foram analisadas decisões judiciais e pareceres legais
relevantes para compreender como o tema é tratado em jurisprudência.

A análise jurídica foi realizada a partir da interpretação dos textos legais


e tratados, buscando compreender os direitos e obrigações estabelecidos em
relação aos apátridas. A análise incluiu a comparação de definição de apatridia
em diferentes normativas.

A revisão bibliográfica abrangeu uma ampla gama de fontes, incluindo


livros, artigos acadêmicos, relatórios de organizações não governamentais e
publicações de organismos internacionais como o ACNUR. A partir dessas
fontes, foram levantados conceitos teóricos, perspectivas históricas, análises
de casos práticos e discussões sobre soluções possíveis para a questão da
apatridia.

Em suma, a metodologia empregada combinou análise documental,


estudo normativo e revisão bibliográfica para abordar de forma abrangente o
tema da apatridia, explorando suas causas, consequências e possíveis
soluções, bem como o papel das organizações internacionais e das legislações
nacionais nesse contexto.
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES

Ante todo o exposto, convém destacar que o objetivo aqui é argumentar


que a efetivação dos direitos humanos, em especial no contexto dos apátridas,
requer a participação ativa das comunidades políticas individuais, ou seja, dos
Estados, sem negar a importância da proclamação desses direitos em nível
internacional.

Nesse sentido, embora as declarações e convenções internacionais


sobre direitos humanos afirmarem que as pessoas possuem direitos inatos e
inalienáveis, é fundamental reconhecer que a existência de uma entidade
política capaz de assegurar esses direitos não é uma necessidade secundária,
mas sim primordial. Um exemplo dessa constatação é o artigo 15 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, já mencionado no presente
trabalho, e o artigo 20 do Pacto de São José da Costa Rica, que enfatizam o
direito à nacionalidade, evidenciando que a comunidade internacional ainda
não está pronta para conferir e garantir todos esses direitos de forma
independente.

Apesar dos avanços positivos tanto em âmbito nacional quanto


internacional, é evidente que o problema da apatridia ainda está longe de ser
solucionado. Não podemos questionar que a atribuição de uma nacionalidade a
todas as pessoas seja insignificante, sob a alegação de que a ordem jurídica
internacional por si só seria suficiente para garantir todos os direitos humanos.
No entanto, os desenvolvimentos recentes nessa questão indicam que muitos
desses direitos, especialmente os relacionados à participação política, só
podem ser plenamente exercidos dentro do âmbito da proteção estatal. Isso
nos leva a concluir que, embora seja impressionante e positivo o fortalecimento
do direito internacional dos direitos humanos, as instituições estatais ainda são
indispensáveis e não foram tornadas obsoletas.

Em outras palavras, embora o direito internacional dos direitos humanos


tenha um papel importante na proteção dos direitos fundamentais, ainda é
necessário que os Estados exerçam suas responsabilidades para garantir a
efetivação desses direitos. A atribuição de uma nacionalidade é essencial para
que as pessoas possam desfrutar plenamente de seus direitos e participar
ativamente da vida política e social. Portanto, a importância das instituições
estatais permanece relevante na promoção e proteção dos direitos humanos,
mesmo diante do desenvolvimento do direito internacional.

Hannah Arendt em seu livro As Origens do Totalitarismo, aborda para a


evolução e a necessidade contínua de reafirmação dos Direitos Humanos ao
longo do tempo.

Por sua vez, isso só pôde acontecer porque os Direitos do Homem,


apenas formulados mas nunca filosoficamente estabelecidos, apenas
proclamados mas nunca politicamente garantidos, perderam, em sua
forma tradicional, toda a validade (ARENDT, Hannah, 2012, p.379).

Ela enfatiza que, embora esses direitos tenham sido formulados em


declarações e tratados, eles muitas vezes não foram completamente
estabelecidos ou fundamentados em bases filosóficas sólidas. Além disso,
embora tenham sido proclamados internacionalmente, sua implementação
política e garantia prática nem sempre foram e são efetivamente asseguradas.

Essa situação revela uma importante reflexão sobre a dinâmica dos


Direitos Humanos. A medida que as sociedades evoluem e as concepções de
justiça e igualdade se desenvolvem, os direitos fundamentais dos indivíduos
precisam ser continuamente revistos, reavaliados e adaptados para se
adequarem à complexidade das realidades contemporâneas.

A referência à perda de validade na forma tradicional sugere que a


simples proclamação dos direitos não é suficiente para garantir sua aplicação
eficaz. Os desafios políticos, sociais e legais muitas vezes limitaram a
concretização desses direitos na vida das pessoas. Portanto, o pensamento de
Arendt sugere que a revisão e a reafirmação constante dos Direitos Humanos
são necessários para manter sua relevância e garantir sua efetiva proteção e
implementação em todas as esferas da sociedade.

Nessa perspectiva, nas palavras de Celso Lafer:


Daí a conclusão de Hannah Arendt, calcada na realidade das
displaced persons e na experiência do totalitarismo, de que a
cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e
direitos dos seres humanos não é um dado. É um construído da
convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este
acesso ao espaço público que permite a construção de um mundo
comum através do processo de asserção dos direitos humanos.

Neste sentido, a reflexão arendtiana em The Origins of Totalitarianism


mostra a inadequação da tradição, pois os direitos humanos
pressupõe a cidadania não apenas como um meio (o que já seria
paradoxal, pois seria o artifício contingente da cidadania a condição
necessária para assegurar um princípio universal), mas como um
princípio substantivo, vale dizer: o ser humano, privado de seu
estatuto político, na medida em que é apenas um ser humano, perde
as qualidades substanciais, ou seja, a possibilidade de ser tratado
pelos Outros como um semelhante, num mundo compartilhado
(LAFER, Celso, São Paulo, 1988).

À luz disso, podemos concluir que a apatridia pode ser superada por
meio da vontade política. Ao contrário de muitos outros desafios enfrentados
pelos governos atualmente, a apatridia tem potencial para ser resolvida dentro
desta geração. É fundamental que os governos reconheçam a importância de
abordar a questão da apatridia e demonstrem comprometimento em tomar
medidas concretas para prevenir e reduzir o número de apátridas. Além disso,
é importante estabelecer mecanismos eficazes de identificação e registro de
pessoas apátridas, garantindo que elas sejam devidamente documentadas e
tenham acesso aos serviços básicos.

Com vontade política e ações concretas, é possível avançar na direção


de um mundo onde a apatridia seja um problema superado. Ao garantir que
todas as pessoas tenham uma nacionalidade e sejam reconhecidas como
cidadãos plenos, podemos promover a dignidade, a igualdade e o respeito
pelos direitos humanos de todos.

4.1 ABORDAGENS LEGAIS E POLÍTICAS PARA RESOLVER A APATRIDIA

Conforme apresentado anteriormente, a Lei de Migração representou um


avanço significativo na proteção dos apátridas que se encontram no território
brasileiro, ao buscar alinhar-se às principais normas internacionais
convencionais. Entretanto, como mencionado, ainda existem lacunas
administrativas quanto à definição do órgão responsável por tratar dos casos
de apatridia e, possivelmente, encaminhar os pedidos de naturalização de
acordo com o artigo 26 da Lei de Migração.

Atualmente no que concerne ao reconhecimento da apatridia, ela ocorre


por meio da Polícia Federal, que coleta informações legais e as repassa à
Secretaria Nacional de Justiça – SNJ para que esta conceda o reconhecimento
do status de apátrida, assim como dispõe a Portaria Interministerial nº 05, de
27 de fevereiro de 2018:

Portaria nº 05

Art. 1º A presente Portaria estabelece procedimentos a serem


adotados em relação à tramitação dos requerimentos de
reconhecimento da condição de apatridia e do procedimento facilitado
de naturalização aos apátridas assim reconhecidos pela República
Federativa do Brasil.

Art. 2º A decisão sobre o pedido de reconhecimento da condição do


apátrida fica delegada ao Secretário Nacional de Justiça.

Posteriormente, inicia-se o processo de naturalização, que pode ser


tanto processo ordinário como o simplificado. Essas atividades são de natureza
essencialmente administrativa, o que em certa medida desvia o foco da função
original da Polícia Federal.

Nesse sentido, seria mais coerente se o Comitê Nacional para os


Refugiados – CONARE, conforme disciplinado no anteprojeto, assumisse essa
responsabilidade, proporcionando uma abordagem mais adequada e
especializada no tratamento das questões relacionadas à apatridia.

O CONARE foi criado pela Lei nº 9.474/1997, Lei do Refúgio, onde sua
criação ficou disciplinada no art. 11 da referida lei:
Art. 11. Fica criado o Comitê Nacional para os Refugiados –
CONARE, órgão de deliberação coletiva, no âmbito do Ministério da
Justiça.

Dessa forma, diante da ausência de definição específica na nova lei de


migração, uma alternativa viável seria ampliar o alcance da Lei nº 9.474/1997,
que trata dos mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados
de 1951, e determina outras providências, para abranger também a definição e
proteção dos apátridas. Essa expansão poderia fornecer uma definição mais
precisa do conceito de apátrida e estabelecer competências claras para o
CONARE no tratamento dos casos dos apátridas.

Ademais, essa ampliação na Lei nº 9.474/1997 poderia preencher a


lacuna administrativa existente na Lei de Migração e permitir uma abordagem
mais abrangente e consistente em relação à proteção dos apátridas no Brasil.
Além disso, a atribuição de competências específicas ao CONARE para lidar
com os casos de apatridia garantiria maior agilidade e efetividade no processo
de reconhecimento e concessão da nacionalidade brasileira.

Nesse sentido, enquanto essa proposta que busca aprimorar o


tratamento administrativo das demandas dos apátridas, não entrar em vigor, o
que naturalmente requer um certo tempo no âmbito do processo legislativo, o
vazio jurídico permanecerá.

Essa lacuna tem impulsionado o Poder Judiciário brasileiro a se


pronunciar no sentido de conferir eficácia à Convenção sobre o Estatuto dos
Apátridas de 1954. Isso significa que, diante da ausência de uma
regulamentação específica sobre o tema, os tribunais têm buscado interpretar e
aplicar as normas internacionais existentes de modo a garantir a proteção dos
apátridas em solo brasileiro.

Dessa forma, a judicialização se torna uma importante ferramenta para


que os apátridas possam reivindicar seus direitos e buscar a proteção
adequada. Ao recorrer ao Poder Judiciário, os apátridas podem buscar a
aplicação das normas e convenções internacionais que regem a apatridia, caso
as mesmas não estejam sendo observadas ou seguidas pelas autoridades
competentes.
Como exemplo dessa possibilidade, é o caso do Recurso Extraordinário
nº 844.744/RN, que trata do reconhecimento judicial da apatridia e mostra a
atuação do Supremo Tribunal Federal nessa questão:

“CONSTITUCIONAL E HUMANITÀRIO INTERNACIONAL.


APATRIDIA IMPRÓPRIA. AUSÊNCIA DE DOCUMENTAÇÃO
COMPROVADORA DA NACIONALIDADE ORIGINÁRIA. FALTA DE
INTERESSE PROCESSUAL. EVIDENTE UTILIDADE DA DEMANDA
MERCÊ DA NEGATIVA DA CONDIÇÃO DE NACIONAL PELO
ESTADO DO BURUNDI. RECONHECIMENTO DO STATUS DE
APÁTRIDA. APLICAÇÃO DA CONVENÇÃO DE NOVA YORK DE
1954”.

Nesse caso específico, o Tribunal Regional Federal – TRF da 5ª Região


manteve uma sentença condenatória contra a União, determinando a
concessão de direitos decorrentes da Convenção sobre o Estatuto dos
Apátridas de 1954, da qual o Brasil é signatário. O recorrido, Andrimana
Buyoya Habizimana, fugiu de Burundi, sua terra natal na África do Sul, devido a
genocídios étnicos, graves crises econômicas e política, além do falecimento
de seus familiares, onde chegou ao Porto de Santos ilegalmente. Em seguida,
seguiu ilegalmente também para Lisboa, portando documentos falsos, o que
resultou em sua devolução ao Brasil.

O caso se tornou mais complexo devido à dificuldade em manter contato


com Burundi para comprovar sua nacionalidade, bem como Andrimana não
possuir documentação que o identificasse como cidadão de outro país. Essa
situação de limbo jurídico o caracterizava como apátrida.

A União apresentou o recurso sustentando que a permanência do


recorrido no país colocaria em risco a soberania nacional, alegando que as
condições da Convenção de 1954 não se aplicam a indivíduos que tenham
cometido crimes graves. No entanto, o TRF reconheceu a condição de apátrida
com base na distinção entre apatridia propriamente dita, quando é comprovada
a perda da nacionalidade do indivíduo e apatridia impropriamente dita, quando
a nacionalidade do indivíduo é desconhecida.
O desfecho desse caso foi o não seguimento do recurso extraordinário
interposto pela União em relação a Andrimana, com o STF adotando um
posicionamento alinhado ao cumprimento dos instrumentos internacionais.
Essa decisão do Supremo Tribunal Federal reforçou a importância de cumprir
os tratados internacionais e garantir a proteção dos direitos dos apátridas no
Brasil.

À luz disso, é importante destacar que o Poder Judiciário pode ser


considerado um mecanismo de solução no combate à apatridia, haja vista que,
as decisões judiciais têm o propósito de preencher o vácuo jurídico,
assegurando que os apátridas sejam reconhecidos e protegidos em
conformidade com os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. A
atuação do Poder Judiciário tem sido essencial para garantir que os direitos
dos apátridas sejam respeitados, bem como auxilia na prevenção de eventuais
violações de seus direitos fundamentais.

Apesar da importância do papel do Poder Judiciário, é essencial que o


tema seja regulamentado de forma abrangente e sistêmico por meio do
processo legislativo. Somente assim será possível estabelecer um marco legal
claro e efetivo para a proteção dos apátridas no Brasil, conferindo-lhes o devido
reconhecimento e garantindo o pleno exercício de seus direitos. Enquanto isso
não ocorrer, a atuação do Judiciário, mesmo que não seja a forma mais célere
de solução, continuará a ser um importante instrumento na luta pela proteção
dos direitos dos apátridas no país.

Por oportuno, é relevante mencionar que a França possui uma estrutura


análoga ao CONARE do Brasil, denominada Office Français de Protection Des
Réfugiés et Apatrides (OFPRA). Traduzido para o português, isso se refere ao
Escritório Francês de Proteção a Refugiados e Apátridas, estabelecido em 25
de julho de 2006. Esse órgão possui competências abrangentes, abarcando a
formulação de diretrizes gerais para as atividades do OFPRA e a deliberação
sobre os procedimentos relacionados à concessão do status de refugiado ou
proteção subsidiária.

O OFPRA é composto por um corpo de 17 membros com autoridade


deliberativa, incluindo dois deputados (uma mulher e um homem), nomeados
pela Assembleia Nacional; dois senadores (uma mulher e um homem),
indicados pelo Senado; dois representantes da França no Parlamento Europeu
(uma mulher e um homem), nomeados por decreto; dez representantes do
Estado; um representante do pessoal da OFPRA, eleito por três anos pelos
agentes da OFPRA; três especialistas qualificados, e um representante do
ACNUR sem direito a voto (RÉPUBLIQUE FRANÇAISE, OFPRA).

Nesse contexto, observamos um modelo de entidade administrativa que


emite resoluções no âmbito de um processo administrativo, considerando a
documentação apresentada pelo apátrida para efetuar a solicitação. Essa
abordagem, assim como esse órgão francês, pode servir como base para a
implementação de uma instância semelhante, uma espécie de CONAREA
(Comitê Nacional para Refugiados e Apátridas) no Brasil, assim como
denominou Bichara em seu artigo O Tratamento do Apátrida na Nova Lei de
Migração.

Ante todo o exposto, concluí-se que uma abordagem potencialmente


viável para lidar com a apatridia (pelo menos teórica) e a tensões entre a
soberania estatal e a universalidade dos direitos humanos pode ser a aceitação
de uma obrigação ética e moral por parte dos Estados. Essa abordagem não
implicaria necessariamente a supressão do modelo estatal, mas sim um
reconhecimento da responsabilidade dos Estados em conceder a
nacionalidade a indivíduos apátridas que tenham residido em seu território por
um período determinado. Além do critério temporal, outros fatores razoáveis,
pertinentes e não discriminatórios podem ser considerados.

No entanto, essa obrigação ética também implicaria a proibição da


expatriação arbitrária, a fim de garantir que os indivíduos não sejam privados
de sua nacionalidade de maneira injusta. Essa conduta procura encontrar um
equilíbrio entre o universalismo moral e o particularismo cultural e político.

Nas palavras de Arendt:

Assim, a calamidade que se vem abatendo sobre número cada vez


maior de pessoas não é a perda de direitos específicos, mas a perda
de uma comunidade disposta e capaz de garantir quaisquer direitos.
O homem pode perder todos os chamados Direitos do Homem sem
perder a sua qualidade essencial de homem, sua dignidade humana.
Só a perda da própria comunidade é que o expulsa da humanidade.

O direito que corresponde a essa perda, e que nunca foi sequer


mencionado entre os direitos humanos, não pode ser expresso em
termos das categorias do século XVIII, pois estas presumem que os
direitos emanam diretamente da “natureza” do homem – e, portanto,
faz pouca diferença se essa natureza é visualizada em termos de lei
natural ou de um ser criado à imagem de Deus, se se refere a direitos
“naturais” ou a mandamentos divinos. O fator decisivo é que esses
direitos, e a dignidade humana que eles outorgam, deveriam
permanecer válidos e reais mesmo que somente existisse um único
ser humano na face da terra; não dependem da pluralidade humana e
devem permanecer válidos mesmo que um ser humano seja expulso
da comunidade humana (ARENDT, Hannah, 2012, p. 258)

Assim sendo, reconhece-se que, embora os direitos inalienáveis estejam


ligados à dignidade humana, a capacidade de exercer ações e discursos
políticos está intrinsecamente ligada à pertença a uma comunidade política.

A afirmação de um direito à nacionalidade assume um papel crucial


nesse cenário, assegurando que nenhum indivíduo seja marginalizado “fora da
legalidade” e não seja privado do “direito de ter direitos”, assim como aduziu
Hannah Arendt em sua obra As Origens do Totalitarismo.

Essa ótica busca harmonizar os princípios universais dos direitos


humanos com as necessidades das comunidades políticas, promovendo a
inclusão e a proteção da dignidade de todos, independentemente de sua
origem ou status.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
6. REFERÊNCIAS

ACNUR BRASIL. ACNUR lança hoje campanha global pelo fim da apatridia
até 2024. Genebra, 2014. Disponível em:
https://www.acnur.org/portugues/2014/11/04/acnur-lanca-hoje-campanha-
global-pelo-fim-da-apatridia-ate-2024/

ACNUR BRASIL. Campanhas e Advocacy #IBelong. Brasil. Disponível em:


https://www.acnur.org/portugues/campanhas-e-advocacy/ibelong/

ACNUR BRASIL. Conheça a história de Maha Mamo, a mulher que viveu


por trinta anos sem nacionalidade. Brasil, 2020. Disponível em:
https://www.acnur.org/portugues/2020/11/30/conheca-a-historia-de-maha-
mamo-a-mulher-que-viveu-por-trinta-anos-sem-nacionalidade/

ACNUR BRASIL. Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954.


Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_sobre
_o_Estatuto_dos_Apatridas_de_1954.pdf . Acesso em: 13 de JUNHO de 2023.

ACNUR BRASIL. Estados Partes das Convenções sobre Apátridas.


Disponível em: https://www.refworld.org/docid/54576a754.html

ACNUR BRASIL. Nacionalidade e Apatridia: Manual para Parlamentares nº


11. Genebra, 2005. Disponível em:
https://www.acnur.org/portugues/wp/content/eploads/2018/02/Manual_para_par
lamentares-Nº11_-_Nacionalidade_e_Apatridia.pdf

ACNUR BRASIL. Quem ajudamos Apátridas. Disponível em:


https://www.acnur.org./portugues/quem-ajudamos/apatridas/

AGÊNCIA BRASIL. Brasil concede nacionalidade a duas irmãs apátridas.


Por Paulo Victor Chagas. Brasília, 2018. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-10/brasil-
concede-nacionalidade-duas-irmãs-apatridas.

AGÊNCIA BRASIL. Brasil reconhece condição de apátrida pela primeira


vez na história. Por Pedro Rafael Vilela. Brasília, 2018. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-06/brasil-
reconhece-condicao-de-apatrida-pela-primeira-vez-na-historia.

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. 17ª Edição. São Paulo:


Companhia das Letras, 2012.

BICHARA, Jahyr Philippe. O tratamento do apátrida na nova lei de


migração: Entre avanços e retrocessos. Revista de Direito Internacional,
Brasília, v. 14, n. 2, 2017.
BLITZ, Brad; LYNCH, Maureen. Statelessness and Citizenship: A
Comparative Study on the Benefits of Nationality. 1ª Edição. UK: Edward
Elgar, 2011

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 7ª Reimpressão. Rio de Janeiro:


Elsevier, 2004.

BRASIL. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a


implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras
providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1997. Disponível em:
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm

BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Portaria Interministerial


nº 05, de 27 de fevereiro de 2018. Diário Oficial da União, publicado em 28 de
fevereiro de 2018. Edição 40, Seção 1, p. 34-39. Disponível em:
https://www.in.gov.br/materia/-
/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/4716363/do1-2018-02-28-portaria-
interministerial-n-5-de-27-de-fevereiro-de-2018-4716359

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 844.744/RN.


Recorrente: União. Recorrido: Adrimana Buyoya Habizimana. Relator: Ministro
Ricardo Lewandowski. Brasília, 28 de maio de 2020. Disponível em:
https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/1106559829/inteiro-teor-
1106559837

FES.DE. Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos


Migrantes no Brasil. 2014. Disponível em: https://library.fes.de/pdf-
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G1. Adolescente suspeito de matar estrangeiro em BH é apreendido.


Minas Gerais, 2016. Disponível em: https://g1.globo.com/minas-
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GOV.BR. Entenda o Anteprojeto de Lei de Migrações. Disponível em:


https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/proposta-de-nova-lei-de-
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ditadura/entenda_novo_estatutoestrangeiro2.pdf

GOV.BR. Ministério da justiça e segurança pública reconhece 16


estrangeiros como apátridas. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-
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GUERIOS, José Farani Mansur. Condição Jurídica do Apátrida. Curitiba:


1936, p. 7.
LAFER, Celso. A reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com o
pensamento de Hannah Arendt. 1ª Reimpressão. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988.

MAMO, Maha; OLIVEIRA, Darcio. Maha Mamo: A luta de uma apátrida pelo
direito de existir. Brasil: Globo Livros, 2020.

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Disponível em: https://migramundo.com/brasil-e-destaque-em-acoes-de-
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Disponível em: https://www.ofpra.gouv.fr/dossier/organisation/le-conseil-
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https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos

ZEN, Cássio Eduardo. A Prevenção à Apatridia no Contexto Internacional.


Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, 2007.

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